Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
137/21.2T8VLF-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
SITUAÇÃO LÍQUIDA NEGATIVA
DESPROPORCIONALIDADE
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA NOVA DE FOZ CÔA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 23.º, N.ºS 4, AL.ª A), 5, 8 E 10, 25.º E 26.º DO ESTATUTO DO ADMINISTRADOR JUDICIÁRIO
Sumário: I – A atribuição ao administrador de insolvência de uma “remuneração pela gestão do estabelecimento compreendido na massa insolvente”, nos termos do art. 25º do EAJ, e de uma “remuneração pela elaboração de um plano de insolvência”, nos termos do art. 26º, nos casos em que tenha realizado tais tarefas, não afasta o direito à atribuição da remuneração variável “em função do resultado da recuperação”, acrescendo à remuneração fixa e à remuneração variável.

II – Nenhuma das diversas interpretações ensaiadas pela jurisprudência e doutrina quanto ao sentido a dar ao modo de cálculo da remuneração variável a atribuir ao AJ em caso de recuperação, previsto no art. 23º, nº 4, al. a), e nº 5, do EAJ, – em que, para uns “resultado da liquidação” equivale ao montante dos créditos perdoados/sacrificados, para outros corresponde ao valor dos créditos a satisfazer, e ainda outros fazendo-a equivaler ao conceito de situação líquida contabilística –  é isenta de criticas.

III – Se, pela aplicação da al. a) do nº 4, e do nº 5, do art. 23º, nas suas várias interpretações possíveis, forem alcançados resultados exorbitantes e desajustados às funções exercidas pelo AJ, haverá que, por interpretação extensiva, aplicar a faculdade de redução da remuneração até ao montante de 50.000,00 €, prevista no nº 8, aos casos de homologação de um plano de recuperação.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Proc. 137.21.2T8VLF-K.C1

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Arlindo Oliveira

2º Adjunto: Helena Gomes Melo

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de insolvência respeitantes a M..., Lda., o Sr. Administrador de Insolvência AA veio apresentar cálculo da remuneração variável nos termos do art. 23º do EAJ, considerada a redação da Lei nº 9/2002, de 11.01, que computou em 1.248.122,25 €, acrescido de IVA, conforme mapa discriminativo:



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Notificados de tal proposta, o Ministério Publico veio manifestar a sua concordância com a remuneração proposta, sendo que vários credores deduziram oposição à mesma.

Em resposta a tais posições, o Sr. Administrador Judicial, sustentando encontrar-se correto o valor que apresentou, aceitou reduzir a remuneração para o valor de 220.000,00 €, acrescido de IVA.

Pelo Juiz a quo foi proferido despacho a fixar a remuneração variável nos peticionados 220.000,00 €, acrescidos de IVA, de que agora se recorre:

Nos presentes autos de insolvência foi aprovado e homologado um plano de recuperação. Pelo que terá que se atender à remuneração prevista no artigo 23.º, n.º 4, alínea a), do Estatuto do Administrador Judicial, correspondendo, então, aquela a 10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor.

Este preceito legal remete-nos para o n.º 5 que determina que se considera resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.

Todavia, uma vez que o conceito ínsito nestes preceitos é equívoco no que à sua interpretação concerne, importa convocar o que a este propósito entende a jurisprudência.

Com efeito, como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.01.2023, proferido no âmbito do processo n.º 26107/20.0T8LSB.L1-1 (disponível em www.dsgi.pt), a expressão “resultado da recuperação” não foi delimitada pelo legislador com a necessária objectividade e clareza que se impunha.

E seguindo o que neste aresto se entendeu, e com o que concordamos, nesta tarefa interpretativa, não se pode olvidar a finalidade visada pelo processo de insolvência em que se aprova e homologa um plano de recuperação, e que se prende, tal qual a literalidade nos diz, a recuperação da empresa, no pressuposto da sua viabilidade económico-financeira. E esta será alcançada quanto maior forem as restrições dos direitos dos credores previstas no plano, já que, será precisamente por via de tais restrições que a empresa em causa obterá o necessário desafogo económico e financeiro, e como tal a sua recuperação.

Será, ademais, em função da medida de tal recuperação que o legislador visará remunerar de forma acrescida o administrador judicial.

Nessa medida, como se conclui naquele aresto, e também no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.11.2022, proferido no âmbito do processo n.º 3592/21.3T8GMR.G1 que aquele cita, a interpretação da expressão legal “resultado da recuperação” é aquela “«segundo a qual o montante do valor da recuperação, para efeitos do cálculo da remuneração variável, é o valor do perdão dos créditos». É sobre esta diferença que há de ser buscado o prémio devido ao senhor administrador judicial, traduzido na atribuição da remuneração variável. Quanto maior for o perdão das dívidas (e consequentemente o benefício da recuperanda), maior será o valor da remuneração variável.”

Conclui o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a que nos vimos a referir que “o entendimento que melhor se coaduna com o teor do nº 5 do artigo 23º do EAJ será o de o valor da recuperação, e consequentemente o da remuneração variável, “ter por base e estar dependente da maior ou menor redução do valor dos créditos a satisfazer no plano, no confronto com o que existia antes”.

Pelo que será este o critério que seguiremos.

Por outra parte, e ainda antes de descermos ao caso concreto, cumpre mencionar que como também se entendeu naquele Acórdão e se entendeu igualmente, a título meramente exemplificativo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.05.2023, proferido no âmbito do processo n.º 601/22.6T8VRL-A.G1 (igualmente disponível em www.dgsi.pt), a majoração a que se refere o n.º 7 do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, apenas será aplicado se o plano de recuperação previr que parte dos créditos sejam imediatamente satisfeitos por via de liquidação de bens.

Com efeito, pode ler-se no sumário deste último aresto que “A majoração a que se refere o n.º 7 do art.º 23º do Estatuto do Administrador Judicial, apenas será aplicado no PEAP (e no PER e no plano de recuperação aprovado em processo de insolvência) se e quando o Plano de Pagamento (ou Plano de revitalização ou plano de recuperação) previr que parte dos créditos sejam imediatamente satisfeitos por via de liquidação de bens.”

Para sustentar este entendimento, diz-nos o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que ““se a intenção do legislador fosse que a majoração contemplasse todos os casos, não faria sentido o nº 7. Bastaria, para tanto, aumentar a percentagem referida no nº 4 do preceito.” Assim, como se conclui naquele aresto, pese embora a majoração do nº 7 do artigo 23º se aplique, em regra, apenas nos casos em que exista liquidação do activo, no que respeita aos planos de recuperação aprovados e homologados, será possível essa majoração, mas apenas se e quando o próprio plano preveja que parte dos créditos sejam satisfeitos por via de liquidação de bens, designadamente nos casos previstos nos artigos 195º, nº 2, alínea c) e 196º, nº 1, alínea e) do CIRE.

A referência na norma a “créditos satisfeitos” e o facto de nela se prever o pagamento do valor da majoração antes do pagamento dos credores, leva-nos a concluir que apenas será aplicável quando os credores tenham valores a receber de imediato por via de qualquer liquidação. Ora, no âmbito da recuperação, os créditos serão satisfeitos à medida que se forem vencendo de acordo com o previsto no plano, sendo certo que a remuneração variável só se vencerá após dois anos em função do cumprimento do plano. Por isso, no que respeita à recuperação, não existirão créditos satisfeitos e nem o pagamento da remuneração será possível conforme previsto no nº 7 do artigo 23º.”.

Já no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães argumenta-se que “impõe-se considerar que o n.º 7 apenas será aplicado no PEAP (e no PER e no plano de recuperação aprovado em processo de insolvência) se e quando o Plano de Pagamento (ou Plano de revitalização ou plano de recuperação) previr que parte dos créditos sejam imediatamente satisfeitos por via de liquidação de bens (para uma situação de PER, mas aplicável tendo em consideração as semelhanças, o Ac desta RG de 17/11/2022, processo 3529/21.3T8GMR.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, entretanto seguido no Ac. da RL de 24/01/2023, processo 26107/20.0T8LSB.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl).

Só esta interpretação se mostra compatível com a letra do n.º 7 quando se refere a “grau de satisfação” e “créditos satisfeitos” e com a parte final do mesmo, ao determinar que o valor da majoração é “pago previamente à satisfação” dos créditos reclamados e admitidos.

E só esta interpretação se compatibiliza com o facto de o legislador ter incluído neste n.º 7 o n.º 6 do art.º 23º e que dispõe que para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.”

Por concordar com a posição e argumentação expendida, fazemos nossos os fundamentos expostos nestes arestos.

Por fim, impõe-se ainda tecer considerações acerca da aplicabilidade (ou não) do preceituado no artigo 23.º, n.º 8, do EAJ, no caso em que é aprovado e homologado um plano de insolvência e inexiste liquidação.

A este respeito comecemos, desde logo, pela letra da norma em apreço. Dispõe, então, como já dito acima, esta norma legal que “Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.”.

Da redacção da norma resulta, pois, que esta intervenção casuística do julgador apenas tem lugar quando, pese embora a remuneração exceda o montante de €50.000,00, exista liquidação da massa insolvente.

É certo que também aqui não podemos descurar a finalidade do processo de insolvência quando é apresentado, aprovado e homologado um plano de recuperação: precisamente a recuperação da empresa com viabilização económica e financeira. E, por isso, mais sentido até faria que houvesse sido previsto um limite à remuneração do Exmo. Senhor

Administrador Judicial, pois que esta não deve constituir entrave, e como se sabe, não raras vezes, o maior, à viabilidade da finalidade pretendida.

Todavia, e pese embora a estranheza que possa causar, o legislador não estabeleceu qualquer limitação como aquela a que se refere o n.º 8 do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial nos casos de recuperação.

Neste sentido, veja-se Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo (in A remuneração do administrador judicial e a sua apreciação jurisdicional depois de abril de 2022 - uma primeira apreciação às alterações introduzidas no CIRE e no EAJ pela lei nº 9/2022, de 11-1) segundo o qual “Por outro lado, não está prevista a apreciação pelo Juiz de uma possível redução da remuneração variável em caso de recuperação do devedor, quando o seu valor seja superior a € 50.000,00, no art. 23.º/8, que apenas se refere a essa possibilidade para “processos em que haja liquidação da massa insolvente” e, portanto, sem alusão nem aplicação aos processos de recuperação.”

Assim como, a remuneração por recuperação não tem limites, isto é, não está sujeita ao limite máximo de €100.000,00 estabelecido no artigo 23.º, n.º 10, do EAJ, o qual apenas prevê limite para a remuneração por liquidação prevista na alínea b) do n.º 4 do mesmo preceito legal.

Regressemos, então, ao caso dos autos.

Importa ter em consideração a seguinte factualidade:

1) Por decisão proferida em 15.07.2022, confirmada (com excepção da eficácia relativamente ao Instituto da Segurança Social) pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.12.2022, foi homologado o plano de recuperação apresentado pelo Exmo. Senhor Administrador Judicial;

2) O plano de recuperação homologado prevê que a recuperação da empresa se efectue por meio da manutenção de actividade da mesma;

3) O plano de recuperação da devedora não prevê a liquidação de qualquer bem existente no activo da mesma;

4) O plano de recuperação tem por base um passivo da insolvente no valor de €21.549.451,00;

5) O plano de recuperação prevê um perdão de créditos, reportados a capital e juros, no valor total de €12.842.322,00.

Assim, seguindo o entendimento da nossa jurisprudência a que se aludiu acima, tendo em conta que no plano de recuperação foram perdoados, na totalidade, créditos no valor de €12.842.322,00, a remuneração variável que seria devida ao Exmo. Senhor Administrador da Insolvência cifra-se em 10% de tal quantia, ou seja, no montante de €1.284.232,20.

A este valor, como se deixou dito acima, não acresce qualquer majoração, uma vez que o plano de recuperação não prevê a liquidação de quaisquer bens da insolvente para o pagamento dos créditos.

Igualmente, com o mesmo fundamento, não pode o tribunal lançar mão do disposto no artigo 23.º, nº 8, do EAJ. Isto é, não pode o tribunal recorrer a critérios de equidade para reduzir a remuneração variável do Exmo. Senhor Administrador da Insolvência.

Assim como, não tem aplicação, porque apenas previsto para o cálculo da remuneração previsto na alínea b) do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ, o limite de €100.000,00 aludido no n.º 10 deste mesmo preceito legal.

Todavia, importa ter presente que o Exmo. Senhor Administrador da Insolvência veio, por requerimento de 12.04.2023, reduzir a remuneração variável que primeiramente havia submetido à apreciação do tribunal para o montante de €220.000,00 acrescido de IVA à taxa legal, dizendo que não pretende ser o próprio a colocar em causa a efectiva recuperação da insolvente.

Nessa medida, atenta esta manifestação efectuada pelo Exmo. Senhor Administrador da Insolvência, entendo fixar a remuneração deste no valor de €220.000,00 acrescido de IVA à taxa legal em vigor.

Acresce que, nos termos do disposto no artigo 29.º, n.º 3 do EAJ, “A remuneração variável relativa ao resultado da recuperação do devedor é paga em duas prestações de igual valor, sendo a primeira liquidada no momento da aprovação do plano de recuperação e a segunda dois anos após a aprovação do referido plano, caso o devedor continue a cumprir regularmente o plano aprovado.”

Assim, face a tudo o exposto, fixo ao Exmo. Senhor Administrador da Insolvência a remuneração variável de €220.000,00 acrescido de IVA à taxa legal em vigor, a qual será paga em duas prestações, sendo a primeira (atento que já se mostra ultrapassado o primeiro momento a que alude o artigo 29.º, n.º 3, do EAJ) paga de imediato e a segunda prestação dois anos após a data da aprovação do plano, caso a devedora continue a cumprir regularmente o mesmo.

Notifique”


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Inconformado com tal decisão, o credor Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Nordeste dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

 1.ª - O administrador da insolvência começou por requerer o pagamento de uma remuneração variável no montante global de € 1.535.190,37, à qual se opôs a grande maioria dos credores, designadamente a ora recorrente, pois que ao admitir-se uma tal remuneração, o A.I. tornar-se-ia como que no maior credor, sendo a sua remuneração a maior dívida a ser suportada pela massa insolvente, o que, não só inviabilizaria a esperada recuperação da insolvente e o ressarcimento dos credores, como, face à manifesta incapacidade financeira da massa insolvente para suportar tão elevada quantia, imporia que um tal pagamento passasse a ser suportado pelo Estado, sendo, pois, um encargo do IGFEJ, o que levaria à inevitável rotura económica deste.

2.ª - Por outro lado, tendo em consideração o Balanço Previsional constante do Plano de Recuperação, constata-se que a situação líquida da insolvente era de - €10.278.656,00, situação negativa essa que se mantém após a homologação do Plano, como, de resto, se mostra projetado até ao ano de 2024 e, por isso, afigura-se-nos desde logo absolutamente injustificada, desproporcionada e indevida a remuneração variável proposta pelo A.I. que, note-se, se limitou a elaborar o plano de recuperação e foi já, aliás, bem remunerado por tal efeito - cfr. alínea a) do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ.

Ainda que assim não se entenda,

3.ª - Salvo o devido respeito, não é por não estar expressamente prevista na lei a possibilidade de apreciação pelo Juiz de redução da remuneração variável em caso de recuperação do devedor, que não pode, por analogia, ser aplicável a norma constante dos n.ºs 8 e 10 do art.º 23.º EAJ prevista para a remuneração nos processos em que haja liquidação - cfr. art.º 10.º do CC

4.ª - Entendemos, aliás, que se impõe - em função dos resultados obtidos, da (inexistente) complexidade do processo, dos princípios da proporcionalidade, igualdade, equidade, justiça e tratamento igualitário entre credores – reduzir o valor devido ao administrador de insolvência a título de remuneração variável - cfr. n.º 1 art.º 9.º e art.º 10.º do CC e n.ºs 8 e 10 art.º 23.º EAJ

5.ª - Na verdade, não foi intenção do legislador passar a consagrar a remuneração variável do administrador alheia ao grau de sucesso da satisfação dos créditos, sendo esta a interpretação que melhor se adequa ao texto da lei e ao espírito do legislador - vd., neste sentido, entre outros, os Acs. TRC de 28/09/2022, relatora: Maria Catarina Gonçalves, de 11/10/2022, relator: Arlindo Oliveira, do TRE de 29/09/2022, relator: Tomé de Carvalho, todos disponíveis em www.dgsi.pt

6.ª - O tribunal a quo, porém, incompreensivelmente, ateve-se cegamente à letra da lei, desconsiderando em absoluto o espírito da mesma, e não recorrendo a critérios de equidade, limitou-se, sem mais, a aceitar a remuneração de € 220 000,00 acrescida de IVA, que o administrador de insolvência sem qualquer justificação de suporte propôs receber, em contraposição ao valor inicialmente por si calculado de € 1.535.190,37 e rejeitado pela maioria dos credores.

7.ª - Ora, ponderados os concretos serviços prestados pelo administrador da insolvência, o valor da considerável remuneração fixa que já auferiu, os concretos resultados obtidos, a diminuta complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador no exercício das suas funções, afigura-se-nos desproporcionada, injustificada e indevida a remuneração variável de € 220 000,00 acrescida de IVA, que o tribunal a quo entendeu atribuir-lhe sem qualquer critério. - cfr. n.º 1 art.º 9.º e art.º 10.º do CC e n.ºs 8 e 10 art.º 23.º EAJ

8.ª - Com a fixação de uma tal remuneração excessiva, além de ficarem prejudicados os interesses da massa insolvente e dos seus credores, comprometendo-se até o próprio cumprimento do plano aprovado, permite-se que ao A.I. seja paga uma remuneração sem quaisquer limites, devida pela mera existência de um plano de recuperação, e que será tanto maior quanto maiores os créditos por si reconhecidos, independentemente de virem ou não a ser satisfeitos.

9.ª - Face a todas as razões expostas, entendemos que a considerar-se devida ao administrador da insolvência uma remuneração variável, nunca poderá a mesma ser de valor superior a € 50 000,00.

DE HARMONIA COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO AO RECURSO E, POR TAL EFEITO:

- revogar-se o douto despacho recorrido, deliberando-se a recusa da atribuição de qualquer remuneração variável ao administrador da insolvência, ou, caso assim não se entenda, fixar-lhe uma remuneração variável, com base em critérios de equidade, em valor não superior a € 50 000,00 €.


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O Magistrado do Ministério Publico apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Sendo a situação líquida da devedora negativa, não haverá lugar à fixação de qualquer remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor, correspondente a 10% da situação líquida calculada 30 dias após a homologação do plano – artigo 23º, nº 4, al. a), e nº5, do EAJ.
2. A assim se não entender, sendo a remuneração variável fixada em 220.000,00 €, desproporcionada à situação líquida da insolvente e ao trabalho por si elaborado, e aplicando por analogia o disposto nos ns. 8º e 10, do artigo 23º do EAJ, a remuneração variável não deve ser fixada em valor superior a 50.000 €
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
 1.  Se, apresentando a devedora uma situação líquida negativa – nº 4, al. a) e nº5, do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial –, não deve haver lugar à fixação de qualquer remuneração variável
Encontra-se aqui em discussão a determinação dos critérios de fixação da remuneração variável do administrador judicial para o caso de a satisfação dos créditos se encontrar prevista através da “recuperação”, neste caso, pela aprovação de um plano de insolvência.
Segundo o nº4 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial (Lei nº 22/2013, de 26 de fevereiro, na redação dada pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro) os administradores judiciais, para além da remuneração fixa a que se reporta o nº1, têm direito a uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado:
a) 10% da situação liquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do nº5,
b) 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do nº6.
Encontrando-se a satisfação dos credores prevista, não pela liquidação da massa insolvente, mas através da aprovação de um plano de recuperação, a remuneração variável a que se reporta o nº4 será calculada pelo critério previsto na sua alínea a)10% da situação líquida – alínea esta que nos remete para o nº5, onde se determina que:
“5. Para efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento, ou em processo de insolvência em que seja provado plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.”
A decisão recorrida, seguindo a posição de alguns acórdãos publicados quanto a tal questão, considerou que “o resultado da recuperação” corresponde ao valor do perdão dos créditos, aplicando a percentagem de 10% sobre o valor dos créditos perdoados no montante 12.842.322 €, alcançando uma remuneração de 1.284.232,20 €, remuneração que vem depois a fixar no valor de 220.000,00 €, face à redução da pretensão formulada pelo próprio Administrador de Insolvência.
Insurge-se o Apelante contra do decidido, com os seguintes fundamentos:
- a remuneração variável é determinada nos termos da al. a) do nº4, do art. 23º, do EAJ, correspondendo a 10% da situação líquida, calculada a 30 dias após a homologação do plano de recuperação, referindo o nº5 de tal preceito que se considera resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano;
- tal remuneração não pode ser obtida pela mera existência de um plano de recuperação e na mera percentagem dos créditos admitidos, mas no efetivo valor dos créditos satisfeitos;
- para calcular o grau de satisfação dos créditos haverá que calcular, desde logo, o valor efetivamente disponível para pagamento aos credores;
- tendo em conta o balanço provisional constante do Plano de Recuperação constata-se que a situação líquida da insolvente na data da apresentação do PER era de – 10.278.656,00 €, situação negativa que se manterá após a homologação do plano, como se mostra projetado até 2024;
- nessa medida não haverá fundamento para a fixação de qualquer remuneração variável, ao abrigo da al. a) do nº4 do art. 23º do EAJ.
Cumpre decidir
No âmbito do EAJ aprovado pela Lei nº 22/2013, que estabeleceu o estatuto do administrador judicial, a remuneração variável do administrador judicial encontrava-se prevista no artigo 23º, nos seguintes termos:
o administrador judicial auferia uma remuneração variável “em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente”, cujo valor seria o fixado nas tabelas constantes em portaria a publicar;
no caso de aprovação de um plano de recuperação, considerava-se “resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano” conforme tabela específica constante da portaria a publicar.
Não tendo chegado a ser fixada a portaria aí referida, defendia-se o recurso ao valor estabelecido na Portaria nº 51/2005, de 20.01, no caso de liquidação da massa insolvente. Não fornecendo tal portaria qualquer critério para fixação da remuneração em função do resultado da recuperação, entendia-se que, no caso de aprovação de plano de recuperação, e na falta de outro elemento ou critério legal, a remuneração do administrador judicial teria de ser efetuada com recurso à equidade[1].
As alterações introduzidas pela lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, ao artigo 23º do EAJ, no que respeita ao cálculo da remuneração variável do administrador judicial em caso de aprovação de um plano de recuperação, levantam grandes dificuldades interpretativas, pela sua falta de clareza – seja pela indefinição dos conceitos de que o legislador se socorre, seja pela remissão que a al. a) do nº4 do art. 23º faz para o seu nº5:
4 – Os administradores judiciais referidos no nº1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10 prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor nos termos do nº5;
b) 5 prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do nº6.
5 - Para efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
6 – Para efeitos do nº4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida nº 1 e das custas dos processos judiciais pendentes na data da declaração de insolvência.
Numa primeira leitura global de tais normas, temos que o legislador propõe dois critérios distintos para a fixação da remuneração variável do administrador judicial:
a) em caso de recuperação do devedor, tal remuneração corresponderá a 10% da situação líquida, situação a determinar nos termos do nº5;
b) em caso de liquidação da massa, a remuneração corresponderá a 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, resultado a determinar nos termos do nº6.
Prescrevendo que o administrador tem direito a uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor:
1. na al. a) do nº4, diz-se que o valor da remuneração é calculado em 10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor – o que à partida apontaria para a situação líquida da empresa (enquanto ativo menos passivo),
2. mas depois acrescenta-se “nos termos do nº5”, onde se diz que “considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.”
As grandes divergências interpretativas situam-se, desde logo, na determinação do que se há de entender por “situação líquida” – conceito este aditado pela Lei nº 9/22 sem qualquer esclarecimento quanto ao seu sentido –, sendo que será o valor daí resultante que constituirá a base de cálculo para a fixação da remuneração variável, correspondente a 10% de tal valor.
O teor literal de tais dispositivos, apontaria no sentido de que o valor da “situação líquida” (calculada 30 dias após a homologação do plano) a que se reporta a al. a), é determinado “com base no montante dos créditos a satisfazer”.
Sendo o valor da remuneração variável calculado “em função do resultado da recuperação”, e determinando-se na al. a) do nº4, que o valor da remuneraçãoé calculada em 10% da situação liquida reportada a 30 dias após a homologação do plano, infere-se que, ao acrescentar “nos termos do nº5”, se está a remeter a definição do que é a situação líquida (ou de como se chega à situação liquida) para o seu nº 5, onde afirma que “se considera resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano”.
A partir daqui, poder-se-ia defender que a situação líquida corresponde ao montante global dos créditos a satisfazer pelo plano, pelo que a remuneração corresponderia a 10% daquele montante.
O que poderia fazer algum sentido, pois quanto maior for o montante dos créditos a satisfazer integrados no plano, mais se justifica o “prémio” remuneratório que a lei estabelece[2].
E, se compararmos com o regime anterior à Lei nº 9/22, era precisamente esse o critério adotado pelo legislador, sendo o valor da remuneração variável calculado através da aplicação de determinada percentagem a incidir sobre o montante dos créditos a satisfazer – “em função do resultado da recuperação”, considerando-se “resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos integrados no plano, conforme tabela específica” a publicar (ns. 1, 2 e 3 do art. 23º).
 No entanto, atendendo-se a que o nº5 do art. 23º não faz equivaler o resultado da recuperação ao montante dos créditos a satisfazer pelo plano, prescrevendo apenas que o valor da recuperação “tem por base” o montante dos créditos satisfeitos, e que apontará para a necessidade de alguma operação de cálculo aritmético, há quem proponha outras vias para a interpretação a dar à “situação liquida”.
Assim sendo, há quem[3], considerando que, no conjunto normativo constituído pelos ns. 4 e 5, que não podem ser dissociados, a “situação líquida” está subordinada ao “resultado da recuperação”, entenda que “o montante da recuperação e consequentemente da remuneração variável terá por base e estará dependente da maior ou menor redução do valor dos créditos a satisfazer no plano, no confronto com o que existia antes”.
Nesta perspetiva, “o conceito de situação liquida é a diferença entre o montante dos créditos reclamados e o montante dos créditos a satisfazer reclamados no plano[4]”.
Não é esta a posição assumida pela jurisprudência dominante (seguida pela decisão recorrida), embora com alguns votos de vencido, e por alguma doutrina,  para quem a “situação líquida” a atender, corresponderá à diferença entre a situação económica do devedor antes e depois da aprovação do plano de recuperação, correspondendo à diferença entre os o valor dos créditos reclamados e admitidos e o valor dos créditos a pagar pelo devedor aos credores na execução do plano de revitalização do plano aprovado, ou seja, ao valor do perdão dos créditos[5].
“Assim, o sentido a dar à expressão resultado da recuperação, deverá ter em conta a finalidade principal do processo especial de revitalização, que é a da recuperação da empresa (após renegociação do passivo) no pressuposto da viabilidade económico-financeira. Daí que, a recuperação da empresa será tanto maior quanto maior forem as restrições dos direitos dos credores previstas no plano, já que, será por via destas restrições que aquela obterá o necessário desafogo económico e financeiro e como tal a sua recuperação. E será em função da medida de tal recuperação que o legislador visará remunerar de forma acrescida o administrador judicial[6]”.
Contudo, esta tese, que faz assentar a interpretação de tais normas na finalidade da recuperação da devedora, fazendo corresponder a remuneração à aplicação da percentagem de 10% sobre o valor dos créditos perdoados/sacrificados, entra em contradição aberta com a noção de resultado da recuperação que nos é dado pelo nº5 que, considera “resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano”. Nesta solução, o valor relevante para a determinação da remuneração variável passa a ser dado, não pelos créditos a satisfazer, como prevê a lei, mas ao invés, pelos créditos relacionados e admitidos que não serão pagos nos termos do plano[7]!
Na opinião crítica de Nuno Marcelo de Freitas Araújo, “tal solução procede à fixação da remuneração totalmente ao arrepio do interesse essencial do processo de insolvência, mas também do PER e do PEAP (mercê do disposto nos arts. 17º-A/3 e 22º-A/3, e que reside, nos termos expressos no art.1º/1 do CIRE, na “satisfação dos credores[8]”.
Por outro lado, levaria à não atribuição ao administrador de qualquer remuneração variável em casos em que se mostraria perfeitamente justificada, como o seria no caso de o plano homologado, assentando noutras vias que não o perdão de créditos, previsse o seu pagamento integral.
Esta via – da determinação da remuneração variável do administrador judicial tendo por único critério o montante dos créditos perdoados, montante este que, além do mais, depende essencialmente da vontade da devedora e dos credores – também não nos convence.
O regime da remuneração variável visa “criar incentivos para que o administrador judicial procure condições que permitam ao devedor alcançar a melhor situação líquida possível ou em caso de liquidação, para que procure alcançar a satisfação dos credores na maior medida possível. Por isso mesmo, o valor que o administrador judicial terá a receber será tanto maior quanto maior for o valor da situação líquida (art. 23º, 4, a), do EAJ) ou o resultado da liquidação da massa insolvente (art. 23º, 4, b), do EAJ)[9].
Tentando dar algum conteúdo à remissão na al. a) do nº4, do art. 23º, à “situação líquida”, e considerando que o legislador nada mais esclarece, há quem sustente[10] que se reporta à situação líquida da devedora em termos contabilísticos[11], que teria em conta a diminuição do passivo ocorrida na sequência do perdão de créditos, mas que corresponderia, não ao valor dos créditos perdoados, mas a um valor contabilístico resultante da operação de subtração do passivo ao ativo.
O conceito de capital próprio, ou ativo – passivo “ tem a vantagem de, ao menos, transmitir tendencialmente a dimensão económica e patrimonial do devedor, permitindo, assim, em coerência, ajustar o valor da remuneração do AJ a essa dimensão e capacidade do devedor[12]”.
David Sequeira Dinis e Tiago Lopes Veiga[13] advogam que o legislador não quis que a remuneração variável fosse calculada por referência à situação líquida em sentido técnico contabilístico, porquanto, se assim fosse, estaria a aceitar que, em várias situações, os administradores judiciais, apesar do seu trabalho e esforço bem sucedido de recuperação, não teriam direito à remuneração variável.
Vejamos agora a que resultados chegaríamos pela aplicação de qualquer um dos critérios aqui avançados.
A decisão recorrida teve em consideração a seguinte factualidade:

1) Por decisão proferida em 15.07.2022, confirmada (com exceção da eficácia relativamente ao Instituto da Segurança Social) pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.12.2022, foi homologado o plano de recuperação apresentado pelo Exmo. Senhor Administrador Judicial;

2) O plano de recuperação homologado prevê que a recuperação da empresa se efetue por meio da manutenção de atividade da mesma;

3) O plano de recuperação da devedora não prevê a liquidação de qualquer bem existente no ativo da mesma;

4) O plano de recuperação tem por base um passivo da insolvente no valor de €21.549.451,00;

5) O plano de recuperação prevê um perdão de créditos, reportados a capital e juros, no valor total de €12.842.322,00.
Pela nossa parte, temos ainda como relevantes os seguintes factos:
6) À data da apresentação do plano, a situação líquida da devedora era de – 10.278.656,00 € (situação negativa);
7) A situação líquida da devedora 30 dias após a homologação do plano era de 8.127.657,00 € (situação positiva);
8) Os créditos reclamados e admitidos, a satisfazer pelo plano ascendem a 8.707.129, 06 €, o que corresponde a uma percentagem de 40% do total dos créditos reclamados e admitidos.
Se partimos do critério que que faz corresponder a remuneração variável a 10% da situação líquida da devedora, em termos contabilísticos, 30 dias após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano – 8.127.657,00 € –, da aplicação dos 10% sobre tal situação líquida obteríamos uma remuneração de 812.765,70 €.
Se entendermos que tal valor de 10% será de aplicar ao “montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano”, obteríamos uma remuneração no valor de 870.712,96 €.
Da equiparação da situação líquida ao valor dos créditos perdoados – 12.842 322, 00 € – obteríamos uma remuneração variável de 1.284.232,20 €!
Ou seja, da aplicação de qualquer um dos critérios resultantes das possíveis leituras dos normativos em questão, chegamos sempre a resultados completamente desproporcionados e excessivos[14].
E, de tal modo tal desadequação é notória, que o próprio administrador de insolvência, depois de ter começado por peticionar a quantia de 1.248.122,25 € (pela aplicação de 10% sobre a situação líquida contabilística, mais uma majoração correspondente ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos), acrescida de IVA, acabou por reduzir a sua pretensão para o montante de 220.000,00 €, mais IVA.
E é contra este valor que o credor/Apelante se vem insurgir, sustentando que:
a), a título principal, ao administrador não deve ser fixado qualquer montante a título de remuneração variável, porquanto:
- a situação líquida da devedora era de – 10.278.656, situação negativa que se mantém após a homologação do plano, como se mostra projetado até ao ano de 2024;
- já lhe foi atribuída uma remuneração mensal de 750,000 € pela fiscalização da gestão do estabelecimento, nos termos do nº3 do art. 25º, bem como uma remuneração pela elaboração de um plano de insolvência;
b) ou, assim se não entendendo, não deve a mesma ser fixada em valor superior a 50.000,00 €, por força do disposto nos ns. 8 e 10 do art. 23º.
Passemos à apreciação direta das razões de discordância expostas pela Apelante como fundamento do recurso.
Desde logo, sobressai que, ao contrário do sustentado pela Apelante nas suas alegações de recurso, a situação líquida da devedora, se era negativa à data da apresentação do plano, 30 dias após a homologação do plano surge como positiva, no valor de 8.127.657,00 €, o que se compreende, desde logo, face ao valor dos créditos perdoados e à redução do capital social para cobertura de prejuízos.
Por outro lado, o facto de ter recebido uma remuneração mensal de 750,00 € pela fiscalização da gestão do estabelecimento da insolvente e a quantia de 8.000,00 € pela elaboração do plano de insolvência, não afasta o direito à atribuição da remuneração variável “em função do resultado da recuperação”.
Com efeito, a razão da atribuição ao administrado de uma “remuneração pela gestão do estabelecimento compreendido na massa insolvente”, “quando competir” ao administrador de insolvência tal tarefa (artigo 25º), ou, de uma remuneração pela elaboração de um plano de insolvência, no caso de assembleia lhe confiar tal tarefa (artigo 26º), reside precisamente no facto de se tratar de tarefas que, à partida, não fazem parte do seu conteúdo funcional, e a que só procederá se lhe forem expressamente cometidas pela assembleia de credores (156º, nº3)[15].
Como tal, são remunerações que acrescem, quer à remuneração fixa, quer à remuneração variável.
Concluindo, a pretensão do Apelante à não atribuição de qualquer remuneração variável, é claramente de improceder.
2. Se a remuneração variável fixada em 220.000,00 €, e aplicando por analogia o disposto nos ns. 8º e 10, do artigo 23º, não deve ser fixada em valor superior a 50.000 €
Vejamos, agora, se a remuneração variável fixada ao administrador de insolvência, no valor de 220.000,00 € é “injustificada, desproporcionada e indevida”, e se deve ser reduzida.
A decisão recorrida entendeu não poder o tribunal recorrer a critérios de equidade para reduzir a remuneração variável do AI, nos termos do nº8 do artigo 23º, e que não tem aqui aplicação o limite de 100.000 € previsto no nº10 do mesmo preceito.
Insurge-se o Apelante quanto a tal entendimento, alegando que, se assim é para os processos em que aja liquidação e nos quais o administrador tem a incumbência de promover e realizar todas e quaisquer diligencias tendentes à venda dos bens que integram a massa insolvente, por maioria de razão, analogicamente, nos processos em que se siga para um plano de recuperação, em que a atividade exercida pelo administrador é efetivamente mais reduzida, como foi no caso dos autos, não se justifica que ao mesmo possa ser atribuída uma remuneração superior àquele limite legal.
Cumpre apreciar da aplicabilidade, da redução prevista no nº8, e do limite máximo previsto no nº10, ao montante da remuneração variável nos casos em que haja sido aprovado um plano de recuperação.
Antes das alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022, não se encontrava previsto qualquer teto ou limite legal máximo para o valor da remuneração variável, fosse na situação de recuperação, fosse de liquidação da massa insolvente, prevendo-se, tão só, no nº6 do art. 23º, a possibilidade de uma redução com base na equidade:
6 – Se, por aplicação do disposto nos termos anteriores, a remuneração exceder o montante de 50.000 € por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue no exercício das funções.
Não se distinguia, então, entre a remuneração variável a atribuir em caso de recuperação ou de liquidação da massa, podendo o juiz, em qualquer das situações, reduzir tal remuneração até ao montante de 50.000 €, quando da aplicação dos critérios legais resultasse um valor desproporcionado.
Com a redação atualmente em vigor, a possibilidade de redução da remuneração anteriormente prevista no nº6, apenas se encontra prevista para os casos de liquidação da massa insolvente e criou-se um teto no valor 100.00,00 €, mas também neste caso, unicamente para os casos de liquidação da massa:
8. Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que aja liquidação da massa insolvente, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligencia empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.
10. A remuneração calculada nos termos da al. b) do nº4 não pode ser superior a 100.000,00 €.
Questionando-nos que razões poderão estar na base da previsão destas clausulas de salvaguarda com vista a evitar a fixação de remunerações desproporcionais e excessivas unicamente para as situações de liquidação da massa – para além de lapso do legislador – , e a única que nos ocorre é que, nessa hipótese a remuneração do administrador é suportada pela massa insolvente (art. 29º, nº1), sendo paga com valores que, saindo precípuos da massa, diminuem o montante a distribuir pelos credores. Já no caso de aprovação de um plano de recuperação, a remuneração será suportada pela empresa/ devedor (art. 17º-C, 6, quanto ao PER, e 222º-C, nº6, quanto ao PEAP), não implicando uma direta diminuição do montante a pagar aos credores, cujos créditos serão satisfeitos nas condições previstas no plano.
Ora, se pela aplicação da al. a) do nº, 4 e nº5, nas suas várias interpretações possíveis, alcançámos resultados perfeitamente exorbitantes e desajustados, de tal modo que, o administrador de insolvência, por iniciativa própria, reduziu a remuneração variável por si peticionada peara o montante de 220.000, 00 €, tal significa que podemos estar perante uma lacuna legal.
Não desconhecemos que, na origem das alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022, esteve a intenção de valorizar o trabalho do administrador judicial em caso de recuperação, criando incentivos, que se refletem, desde logo, no facto de se prever uma taxa de incidência superior em caso de recuperação (uma prct. 10%, enquanto que no caso de liquidação, a prct. de 5%).
Em comparação com os regimes anteriores, temos que, no anterior Estatuto do Administrador de Insolvência, aprovado pela Lei nº 32/2004, de 22/07, a remuneração variável apenas se encontrava prevista para as situações de liquidação da massa (artigo 20º, ns. 2 a 5). No caso de aprovação de um plano de insolvência, o administrador de insolvência apenas tinha direito à remuneração fixa e, eventualmente, ainda à remuneração pela elaboração do plano ou pela gestão do estabelecimento compreendido na massa insolvente, se tais funções lhe fossem cometidas (artigos 22º e 23º).
De qualquer modo, quer no anterior Estatuto do Administrador de Insolvência, quer no Estatuto do Administrador Judicial aprovado pela Lei nº 22/2013, que vem alargar a atribuição da recuperação variável aos casos de recuperação, a remuneração variável era calculada através da aplicação de uma taxa de incidência variável em função do valor da liquidação da massa (quanto maior o valor fosse o valor da liquidação, menor a percentagem a aplicar), precisamente para evitar a obtenção de valores excessivos e desajustados ao trabalho exercido pelo AI.
E, quer face ao EAI, quer ao EAJ, na sua versão original, existia ainda a possibilidade de, caso por aplicação dos critérios legais a remuneração excedesse o montante de 50.000,00 €, o juiz determinar a que a remuneração devida para além desse montante, tendo em conta, designadamente os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligencia empregue no exercício das funções.
Nenhuma das soluções que ensaiamos através das varias hipóteses de interpretação daquelas normas leva a resultados satisfatórios.
Tais dificuldades mais se agravam quando a lei atual apenas prevê como fatores corretivos, a possibilidade de redução da remuneração prevista no nº8, quer do limite máximo previsto no nº10, apenas nos casos de liquidação da massa.
David Sequeira Dinis e Tiago Lopes da Veiga, defendem uma interpretação extensiva, ou por recurso à analogia, que permita abranger pelo mecanismo do nº8, também os casos de homologação de um plano de recuperação – precisamente, por entenderem que, “em ambas as situações existem motivos e circunstancias que podem justificar a redução da remuneração. Aliás, tal redução pode até ser mais justificada em caso de recuperação, pois, para além da remuneração fixa e variável, o administrador judicial poderá ter direito a uma remuneração adicional pela elaboração do plano e, porventura, pela gestão do estabelecimento[16]”.
Tais autores vão ainda mais longe ao afirmar que, não permitir que o tribunal reduza a remuneração do administrador em casos de recuperação, equivale a pagar-lhes à cabeça 10% do total dos créditos perdoados, significando que o perdão da dívida teria sempre associado um custo de 10%, o que representaria um desincentivo fortíssimo ao recurso a esta medida.
Concluem, assim, que “não admitir que o tribunal reduza a remuneração do administrador judicial em casos de recuperação seria uma solução manifestamente inconstitucional, quer por representar uma restrição desadequada e desproporcional da garantia do acesso ao Direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrada no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa”.
Regressando ao caso concreto, é de questionar como é que, encontrando-se em causa uma empresa declarada insolvente, em que é aprovado um plano de insolvência que prevê um perdão de 60% do valor dos créditos reclamados e admitidos, cheguemos pela aplicação dos critérios legais a valores de remuneração variável completamente exorbitantes, sem que nos possamos socorrer de uma cláusula de limitação que a reduza a valores adequados?
Como tal, entende-se ser de aplicar, por interpretação extensiva, o disposto no nº8 do artigo 23º, aos casos de recuperação.
A remuneração variável de 220.000,00 € é de considerar desproporcionada ao sacrifício imposto aos credores, constituindo um encargo brutal para a própria empresa insolvente – a pagar em duas tranches nos termos do art. 29º, envolvendo o pagamento imediato da quantia de 110.000,00 € mais IVA, será de molde a afetar a liquidez da devedora, podendo colocar em causa a viabilidade do cumprimento do plano aprovado.
Por outro lado, as funções exercidas pelo administrador de insolvência nos presentes autos não se afiguram de especial complexidade (para a fixação do montante da remuneração variável, não podemos ter em consideração o facto de ter sido ele a elaborar o plano de insolvência ou ter-lhe sido confiada a gestão do estabelecimento compreendido na massa insolvente, tarefas pelas quais já lhe foi atribuída a respetiva remuneração), pelo que se considera ajustada a redução do valor da remuneração variável para o montante de 50.000,00 €, acrescido de IVA.

A Apelação é de proceder parcialmente.

*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, pelo que, revogando-se parcialmente a decisão recorrida, reduz-se a remuneração variável a pagar ao administrador de insolvência, para o montante de 50.000 €, acrescido de IVA.

Custas a suportar pelo administrador de insolvência e pelo credor reclamante, na proporção do vencimento. 

                                                                Coimbra, 23 de abril de 2024


 V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

(…).



[1] Cfr., entre outros, Acórdão do TRC de 22-06-2020, relatado por Catarina Gonçalves, disponível in www.dgsi.pt., e Acórdão do TRG de 15-03-2018, relatado por Maria João Matos, https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/f0b848d764880bd98025826700321ea9?OpenDocument
[2] Cfr. voto de vencido de Rosa Barroso, in Acórdão do TRE de 11-05-2023, já citado.
[3] Acórdão do TRG de 25-05-2023, relatado por José Carlos Pereira Duarte, https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/6a3f5000f54f2533802589cc004b7a4f?OpenDocument.
[4] Acórdão do TRG de 25-05-2023, relatado por José Carlos Pereira Duarte.
[5] Neste sentido, Ac. TRE de 15.05.2023, relatado por Francisco Matos, Ac. TRL de 28.011.2023, relatado por Renata Linhares de Castro, https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/190c84ad9e9bc39880258a890050cbf7?OpenDocument, Ac. TRL de 24.01.2023, relatado por Nuno Teixeira, https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/7138c1d88bde79b08025894900364894?OpenDocument , Ac. TRG de 17.11.2022, relatado por Fernando Barrosos Cabanelas, https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/605315de44cc1b418025890a0036d747?OpenDocument
[6] Ac. TRL de 24-01-2023, já citado;
[7] Nuno Marcelo de Freitas Araújo, “A remuneração do Administrador Judicial depois das alterações da Lei nº 9/2022, de 11-1”, Parte II – A Remuneração Variável”, https://www.datavenia.pt/ficheiros/edicao14/datavenia14_p027_076.pdf 
[8] “A remuneração do Administrador Judicial depois das alterações da Lei nº 9/2022, de 11-01, Parte II – A Remuneração Variável”, https://www.datavenia.pt/ficheiros/edicao14/datavenia14_p027_076.pdf
[9] Alexandre de Soveral Martins, Anotação ao Acórdão do STJ de 18-03-2023, in RLJ Ano 152, Março-Abril, p.281.
[10] Raul Gonzalez, “A remuneração do administrador judicial – novas questões suscitadas”, in Seminário da Insolvência – 2023, Centro de Estudos Judiciários”, pp. 51-53, https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=VEfMoVZQqdc%3D&portalid=30
[11] Em termos técnico-contabilísticos, a situação líquida (ou o capital próprio) de uma sociedade comercial corresponde à diferença entre o ativo e o passivo num determinado momento.
[12] Nuno Marcelo de Freitas Araújo, “A remuneração do Administrador Judicial (…)”, p.36.
[13] “Remuneração do administrador judicial - algumas questões”, in Revista de Direito da Insolvência, nº7, 2023, Almedina, pp. 34-35.
[14] Para uma análise sistemática das várias vias interpretativas que se podem conceber, cfr., Maria de Fátima Ribeiro, “A remuneração do administrador judicial, nomeado por iniciativa do juiz – em especial a remuneração variável”, VI Congresso de Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina, pp. 385-421.
[15] Neste sentido, Acórdão do TRC de 13 de abril de 2021, relatado por Arlindo Oliveira, https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/7c09912df4ac5c02802586c10032ee09?OpenDocument
[16] “Remuneração do administrador judicial (…), pp. 44-45.