Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PEDRO LIMA | ||
Descritores: | CONTRAORDENAÇÃO DIREITO DE DEFESA AUTO DE NOTÍCIA | ||
Data do Acordão: | 04/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLIVEIRA DE FRADES) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 50º E 64º DO DEC.-LEI N.º 433/82, DE 27.10; 49º, N.º 1, DA LEI N.º 50/2006, DE 29.8. | ||
Sumário: | I- A notificação ao infractor, antes da decisão final e para que se pronuncie, do auto de notícia, conjuntamente com todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para aquela, nas matérias de facto e de direito, em conformidade com o art. 49.º/1, da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais (LQCA) e em linha com o art. 50.º do Regime Jurídico do Ilícito de Mera Ordenacão Social (RJIMOS), visa o cumprimento do art. 32.º/10 da Constituição da República, assegurando efectividade dos direitos de audiência e defesa daquele. II- A falta daquela comunicação ou a insuficiência dos elementos com a mesma transmitidos para cabal cumprimento do referido objectivo, importam uma nulidade do procedimento contraordenacional, que inquina a decisão administrativa e pode ser arguida judicialmente, no acto de impugnação desta última, como aliás e em vista do art. 50.º do RJIMOS é jurisprudência fixada no AUJ do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, de 28/11/2002 (DR I-A, de 25/01/2003). III- Isso não significa porém que aqueles factos tenham necessariamente de constar do próprio auto de notícia notificado, em narração acabada e em perfeita correspondência subsuntiva às pertinentes normas sancionatórias, nada impedindo que pelo contrário e ao menos em parte constem de relatório de inspecção elaborado subsequentemente ao dito auto e que, precisamente, com este é notificado, sendo certo que nestas condições a notificação cumpre a finalidade para que é imposta: permitir ao infractor o conhecimento da imputação e viabilizar-lhe a respectiva refutação. Sumário elaborado pelo Relator | ||
Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃO I – Relatório
1. Em processo de contraordenação e por decisão administrativa tomada a 10/05/2023, pela “Inspecção-geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território” (IGAMAOT), a arguida “C..., SA”, pessoa colectiva n.º ...85, com sede na Zona Industrial ..., ..., foi condenada como autora de uma contraordenação ambiental muito grave, cometida a título negligente, p. e p. pelos art. 81.º/3-c, do DL 226-A/2007, de 31/05, e 22.º/4-b, e 23.º-B, da Lei 50/2006, de 29/08 (Lei Quadro das Contraordenações Ambientais – LQCA), na coima de 12.000,00 €, e ainda, como autora também da contraordenação muito grave, igualmente cometida a título negligente, p. e p. pelos art. 22.º e 26.º/1-f, do DL 147/2008, de 29/07, e 22.º/4-b, e 23.º-B, da LQCA, na coima de também 12.000,00 €, em cúmulo jurídico de ambas sendo aplicada a coima única de 18.000,00 €.
2. No Juízo de Competência Genérica de Oliveira de Frades, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, e tendo a arguida deduzido impugnação judicial contra aquela decisão administrativa, o Ministério Público (MP) tornou-a presente a juiz em 19/07/2023, para valer como acusação, assim a acompanhando, na sequência do que a 16/01/2024 veio a ser pelo Sr. juiz proferido despacho que a julgou nula e, consequentemente, nulos todos os actos posteriores à respectiva prolação.
3. Desse despacho recorre agora o MP, pugnando pela correspondente revogação, em ordem ao prosseguimento dos trâmites do procedimento. Das respectivas motivações extrai a final as seguintes conclusões:
« I – Por sentença transitada em julgado o tribunal a quo declarou nula a decisão administrativa e, consequentemente, todos os demais actos posteriores à sua prolação.
4. Admitido o recurso, a arguida não ofereceu resposta, e subidos os autos o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, acompanhando a posição expressa do recorrente, se pronunciou a final no sentido do provimento, após o que, cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), respondeu então sim a arguida, em síntese sustentando o bem fundado do despacho recorrido, no sentido de dar por nula a decisão administrativa condenatória, louvando-se essencialmente dos argumentos nesse despacho expendidos.
5. Na sequência, e ao exame preliminar não se patenteando dúvidas relevantes, sem outras vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.
II – Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
1.1. O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e a esta luz a única questão a apreciar, não obstante as mais que na resposta ao parecer do MP junto desta relação a arguida procura configurar, é a de saber se com efeito a decisão administrativa enferma da apontada nulidade, consequente à nulidade procedimental de omissão de comunicação, à arguida e em sede de notificação para o exercício de defesa, de parte dos factos relevantes para o preenchimento das contraordenações imputadas e que depois foram naquela decisão atendidos.
1.2. Não havendo lugar a conhecimento da matéria de facto pelo tribunal da relação, que nos termos do art. 75.º/1, do DL 433/02, de 27/10, que instituiu o Regime Jurídico dos Ilícito de Mera Ordenação Social (RJIMOS), e nada desse diploma aqui especificamente impondo o contrário, apenas decide em matéria de direito (sem prejuízo do disposto pelo art. 410.º/2, do CPP, em sendo caso), e por outro lado não tendo sido requerida realização de audiência, sempre o recurso deveria ser julgado em conferência (art. 419.º/3-c, e 430.º/1, a contrario, do CPP), como foi.
2. A decisão recorrida e seu contexto processual
Transcreve-se aqui o despacho recorrido, mas além disso e até previamente, também os segmentos pertinentes da impugnação judicial e da decisão administrativa impugnada, fazendo-se ainda enunciação dos actos procedimentais relevantes, tudo segundo colhido dos autos. Assim:
2.1. Do procedimento:
a) Do auto de notícia n.º ...16 constam, entre o mais (designadamente a referência aos tipos contraordenacionais imputados e às normas pertinentes), a menção de que “o relatório de inspeção n.º ...16 faz parte integrante deste auto”, e a de que “a empresa armazena nas suas instalações um agente preservante da madeira, antifúngico, Celcure AC-725, que é uma substância perigosa nos termos da sua ficha de dados de segurança (…), fica[ndo] assim abrangida pela obrigação de constituir uma garantia financeira nos termos do art. 22.º conjugado com a al. a) do ponto 7 do Anexo III do DL 147/2008, de 29/07 [mas] não evidenciou a esta Inspeção-geral o comprovativo da referida garantia financeira obrigatória apesar de lhe ter sido solicitado”.
b) Desse relatório de inspecção n.º ...16 constando, por seu lado e também entre o mais: - No ponto 1 (“Dados da Inspecção”), em quadro descritivo do pessoal da arguida no decurso dela contactado, além de outros, a menção a “AA, Eng.º - Responsável Ambiente”; - No ponto 3 (“Actividade U.A.”), igualmente em quadro, este relativo a “licenças”, as ditas referências aos produtos armazenados e à não apresentação de comprovativo da garantia financeira obrigatória; e - No ponto 7 (“Ar”), a menção, relativa às “condições de armazenagem de combustíveis”, de que “a empresa dispõe de um depósito de gasóleo com 10000 litros de capacidade e que dispõe do alvará n.º ...25, válido até 19/05/2023”, e ainda a menção (no campo ‘Observações’ e sob epígrafe ‘Fichas de Segurança – FDS’), de que “a verificação dos requisitos da FDS da substância perigosa – Gasóleo, selecionada durante a inspecção, encontra-se apresentada na ficha em anexo intitulada ‘Fichas de verificação de produtos químicos utilizados/fabricados/importados’, encontrando-se conforme com os requisitos deste regulamento para as secções analisadas”.
c) Do despacho da autoridade administrativa de 11/11/2017, consta, entre o mais, a determinação de que “com cópia desde despacho, do auto de notícia que originou a instauração destes autos e do relatório de inspeção n.º ...16, notifique a arguida, na pessoa do seu legal representante, por carta registada com aviso de recepção, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 49.º da [LQCA], dando-se assim início às necessárias diligências de instrução”.
d) Do termo dessa notificação, datado de 14/11/2017, efectuada em cumprimento do assim determinado e por carta recebida pela arguida a 17/11/2017, consta a expressa menção de com ele seguirem “em anexo: cópia do despacho; cópia do auto de notícia n.º ...16; cópia do relatório de inspecção n.º ...16”.
2.2. Da decisão administrativa
Na decisão de 10/05/2023, depois de sob as als. j, k), l) e m) do respectivo ponto I (com epígrafe “Auto de notícia n.º 210/20...”), ser disso feita indicação, sob a referência “Do auto de notícia resulta sucintamente que”, enunciou-se adiante, sob o Ponto III (com a epígrafe “factos com relevo para a decisão”), e nas respectivas als. b), k), n) e o), respectivamente, que “foi contactado o responsável Ambiente do estabelecimento, Eng.º AA”, que “a arguida armazenava nas instalações um agente preservante da madeira, antifúngico, ‘Celcure AC-725’, que é uma substância perigosa nos termos da sua ficha de segurança”, que “a arguida dispunha de um depósito de gasóleo com 10000 litros de capacidade”, que a “à data da inspecção a empresa não tinha constituído garantia financeira nos termos do art. 22.º do DL 147/2008, de 29/07, como era sua obrigação, por utilizar/armazenar substâncias perigosas bem como por deter as autorizações de captação de água subterrânea”, e que “o relatório de inspecção n.º ...16 faz parte integrante do auto de notícia”, a mais disso enunciando-se, sob a al. m), que “o gasóleo é uma substância perigosa”.
2.3. Da impugnação da decisão administrativa
Na impugnação judicial que moveu contra o decidido, a arguida argumentou, entre o mais, e sob as conclusões C a F, o seguinte: “C – O art. 32.º/10, da [Constituição da República Portuguesa] CRP, conjugado com os art. 50.º do RJIMOS e 49.º/1, da LQCA, impõe a obrigação de, em qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa, o arguido ser previamente ouvido de modo a que possa defender-se das imputações que lhe são feitas, implicando que lhe sejam comunicados todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito; D – E, se no decorrer do processo, já depois de ter observado o imposto no citado art. 50.º do RJIMOS, forem conhecidos novos factos que agravem ou modifiquem a responsabilidade contraordenacional do arguido, podem os mesmos vir a ser apreciados e considerados na decisão final da autoridade administrativa, desde que, entretanto, relativamente a eles tenha sido concedida ao arguido a possibilidade de exercer o seu direito de defesa; E – Ora, resulta à saciedade que a autoridade administrativa, no cumprimento do art. 50.º do RJIMOS e 49.º/1, da LQCA, não comunicou à arguida os factos descritos nos pontos l) e m) da factualidade considerada como provada, isto é, que a ‘a arguida dispunha de um depósito de gasóleo com 1000 litros de capacidade (…)’ e ‘o gasóleo é uma substância perigosa (…)’, os quais, a serem verdadeiros, implicam a eventual prática pela arguida da contraordenação ambiental muito grave, p. e p. nos termos da al. c) do n.º 32 do art. 81.º, do DL 226-A/2007, de 31/05; F – Donde, omitindo a autoridade administrativa factualidade relevante para efeitos de imputação dos ilícitos contraordenacionais dos quais vem a arguida acusada, em clara e ostensiva violação do disposto no n.º 10 do art. 32..º da CRP, conjugado com os art. 50.º do RJIMOS e 49.º/1, da LQCA, a decisão é nula, por força do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 119.º, do CPP, aplicável ex vi do art. 21.º, do RJIMOS, nulidade essa que desde já se argúi.”
2.4. A decisão recorrida « Por estar em tempo e cumprir as exigências formais, mormente apontadas no art. 59.º/3, do RJIMOS, admito a impugnação interposta pela arguida a fls. 144 e ss. – cfr. o art. 63.º/1, a contrario, daquele referido diploma. Valendo a apresentação dos autos à distribuição, pelo MP, como acusação (art. 62.º/1, daquele diploma), segue-se que o tribunal tem o poder-dever de pronunciar-se quanto a nulidades e outras questões prévias ou incidentais, que obstem à apreciação do mérito da causa, e de que possa desde logo conhecer – cfr. o art. 311.º/1, do CPP, ex vi do art. 41.º/1, do dito RJIMOS. E traz-se à colação aquele poder-dever em função de a arguida suscitar um conjunto de vícios ao procedimento e/ou à decisão administrativa. Um deles, sustentado na alínea A do ponto III da impugnação, relacionado com a violação do direito de defesa inscrito no art. 50.º do RJIMOS. Em concreto invoca que os factos dados como apurados nas alíneas l) e m) da decisão administrativa não teriam sido oportunamente comunicados à arguida, mormente para efeitos de se pronunciar ou apresentar defesa quanto aos mesmos (e a outros). Observado o procedimento em si, evidencia-se que lhe assiste razão no que à apontada omissão concerne. De facto, o auto de notícia n.º ...16, que consta a fls. 17 e s. destes autos, é omisso relativamente a tais factos: a propósito daqueles que poderiam ou podem corporizar a contraordenação prevista no art. 22º do DL 147/2008, de 29 de Julho, apenas se refere a um determinado agente preservante da madeira, antifúngico. Por outra via, é nesse documento – auto de notícia – que para além dos factos constatados ou verificados pela/no âmbito da acção inspectiva, é feita menção das consequências normativas e sancionatórias dos mesmos. Tal identificação delimitadora não é alcançada senão por via de tal documento, e não através do relatório da inspecção, também notificado à arguida para efeitos da exercitação do seu direito de audição/defesa. A finalidade deste último documento é outra, sendo certo que apesar de fazer menção às infracções entendidas como verificadas (cfr. o respectivo ponto 9), não associa tais infracções aos concretos factos que lhes estariam subjacentes, sendo o relacionamento de uns e outros fundamental para um cabal exercício do direito de defesa. Deste modo, qual o efeito ou consequência da apontada omissão? Nesta sede não se poderá deixar de fazer ‘uso’ do entendimento sufragado no Acórdão 1/2003 do STJ, que fixou a seguinte jurisprudência: “Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contraordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contraordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de dez dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa”. No caso a autoridade administrativa optou pela audiência escrita da arguida – cfr. o despacho de fls. 11/12, de 11/11/17. Todavia não lhe deu a conhecer todos os aspectos relevantes, em sede de matéria de facto, para a decisão: não lhe comunicou a verificação, ou que assim tivesse considerado relevante, a factualidade que posteriormente verteu nas sobreditas alíneas l) e m). E releve-se que o entendimento do aresto uniformizador não foi no sentido de entender bastante a comunicação de alguns factos relevantes, ainda que estes, per si, integrem ou possam integrar a previsão normativa ou tipo contraordenacional, sem que ao agente fosse/seja dado a conhecer que outros factos poderiam ser dados como apurados, ainda que também corporizadores do mesmo tipo legal. Para aquilatar da relevância da situação em causa basta pensar na possibilidade de o tribunal não dar como provados os factos que haviam sido comunicados ao agente e que consubstanciariam a prática da infracção x, e dar como apurados outros factos não comunicados, e que corporizariam a prática da mesma infracção. Por isso, em nosso entender, a abrangência da interpretação subjacente ao aresto uniformizador, ‘obrigando’ à comunicação da totalidade do objecto do procedimento, na sua vertente factual. A não ser assim, ou seja, não havendo uma comunicação integral dos factos, “o processo ficará doravante afectado de nulidade…”. Termos em que: a) Declaro nula a decisão administrativa (constante de fls. 129 a 135 dos autos) e, consequencialmente, todos os demais actos posteriores à sua prolação. (…) »
3. Enfim apreciando
3.1. Importa antes de mais, e por uma estrita razão de clareza, precisar alguns contornos da questão que os termos do recurso não deixam correctamente definidos, e desde logo o de que ao contrário do assumido nas motivações e conclusões nem a decisão recorrida é uma sentença (designadamente não conhecendo a final do objecto do processo, sendo isso sim um despacho que sem esse conhecimento da substância da causa lhe pôs termo – cfr. art. 97.º/1-a-b, do CPP), nem muito menos e contrariamente ao afirmado (conclusão de recurso I) transitou em julgado (o recurso em apreço é que aliás lhe impede o trânsito, que se entretanto tivesse tido lugar fecharia a porta à impugnação…). Por outro lado, sendo como dissemos um despacho, a decisão também não seria à partida despacho mediante o qual, nos termos do art. 64.º, do RJIMOS, e em certas condições, pode em substância ser decidida a impugnação judicial da decisão administrativa, dispensando a realização de audiência e a subsequente prolação, então sim, de sentença em sentido próprio (cfr. os art. 64.º/1, 65.º, 73.º/1/2/3, e 74.º/1, do RJIMOS). Tratar-se-ia, como de resto nos próprios termos dele vem explicitamente referido, de despacho que, conhecendo nulidade processual que reportou à acusação (a isso equivale a apresentação a juiz, e pelo MP, da decisão administrativa impugnada – cfr. art. 62.º/1, do RJIMOS), se limitou a declará-la, disso tirando a correspondente invalidade dos actos subsequentes, sem por conseguinte chegar a apreciar a materialidade das questões contraordenacionais em causa.
3.2. Dissemos que a decisão recorrida reportou à acusação a dita nulidade, porque nela com efeito assim se configurou o problema, com vista a sediar aquele conhecimento no art. 311.º/1, do CPP, ex vi do art. 41.º/1, do RJIMOS. Em bom rigor, diríamos, com António Leones Dantas (in “Direito Processual das Contraordenações”, Almedina, Coimbra, 2023, pp. 231/232), que a sede própria desse conhecimento é sempre e em todo o caso o art. 64.º, do RJIMOS, sendo desnecessária e por isso incorrecta aquela construção com recurso à aplicação subsidiária do art. 311.º, do CPP; e nesse sentido, que de todo o modo conhecer assim da nulidade é já de alguma maneira conhecer da impugnação judicial da decisão administrativa. Contudo, o ponto não resulta aqui determinante: relevante, independentemente dessa precisão, é sempre que conheçamos do acerto ou não da decisão judicial que deu por verificada a nulidade, por seu lado e a despeito de repercutida na decisão administrativa que aplicou a(s) coima(s), verificada no decurso do procedimento a isso conducente, e em concreto na circunstância de com ele terem sido alegadamente preteridas as condições de cabal exercício, pela arguida, do correspondente direito de audiência e defesa. Disso passamos a cuidar, observando que o faremos à luz, primariamente, do disposto no art. 49.º/1, da LQCA, para cuja disciplina o RJIMOS é quadro normativo subsidiário (cfr. o art. 2.º/1, daquela LQCA), por força dele e do respectivo art. 41.º/1 sendo-lhe também subsidiário, como que em segundo grau, o do CPP.
3.3. Posto o que antecede, temos, atalhando manifestos equívocos, que quanto está concretamente em causa não é saber se à arguida tinham sido comunicadas ou não, para efeitos daquele art. 49.º/1, da LQCA, isto é, dando-lhas a conhecer, as circunstâncias de aquando da inspecção ter sido contactado o seu responsável pelo ambiente, Eng.º AA, e de no auto de notícia se mencionar, como dele fazendo parte (integrando-o remissivamente) o relatório de inspecção. O recorrente, como de resto a arguida logo na sua impugnação, tê-lo-ão assumido porventura induzidos pela confusa estruturação da decisão administrativa, que a essas circunstâncias alude, sob als. l) e m), ao descrever, em jeito de ‘relatório’, o que resulta do auto de notícia; mas a verdade é que os factos nessa decisão dados como provados, sob as als. l) e m), são isso sim os de a arguida dispor nas suas instalações de um depósito de gasóleo com 10000 litros de capacidade, e de o gasóleo ser uma substância perigosa – e na materialidade das coisas, é precisamente isso que a arguida se queixa de lhe não ter sido dado a conhecer aquando da referida notificação, e é isso que, reconhecendo-lhe o tribunal recorrido razão, motiva afinal o sentido da decisão aqui em crise. E, por conseguinte, é disso que cabe em concreto conhecermos, apurando se com efeito não foi comunicado e, somente a ser esse o caso, se desse jeito teria resultado na verdade prejudicado aquele direito de defesa.
3.4. Os parâmetros do juízo a fazer são dados, evidentemente, pelo art. 49.º/1, da LQCA, onde se dispõe que “o auto de notícia, depois de confirmado pela autoridade administrativa e antes de ser tomada a decisão final, é notificado ao infractor conjuntamente com todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, para, no prazo de quinze dias úteis, se pronunciar por escrito sobre o que se lhe oferecer por conveniente”, e pelo art. 50.º/1, do RJIMOS, que proclama que “não é permitida a aplicação de uma coima (…) sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre” – normas ambas que têm de ler-se compaginadas com a do art. 46.º/1, também da LQCA, relativa ao que deve constar do auto de notícia, e todas à luz da do art. 32.º/10, da CR, em que se estabelece que “nos processos de contraordenação (…) são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”, ou seja, que define o horizonte teleológico daqueles outros preceitos, orientados a garantir que o imputado possa cabalmente compreender, nas incidências de facto e de direito, a imputação, que lhe é feita, e assim adequadamente refutá-la; em termos tais, adiantemos, que em podendo afirmar-se ter isso sido viabilizado, então aquelas normas foram observadas.
3.5. Ora, não obstante a matéria seja, como já dissemos, para aqui e em rigor irrelevante, não cabe questionar que as circunstâncias de aquando da acção inspectiva ter sido contactado o responsável da arguida pelo ambiente, Eng.º AA, e de no auto de notícia se ter por remissão integrado o relatório da inspecção (factos dados como provados sob als. b) e o) da decisão administrativa impugnada), tinham ambas sido previamente comunicadas à arguida, com a notificação de 17/11/2017 (cfr. supra, II/2/2.1/d); essa notificação foi acompanhada do auto de notícia, que remetia para o relatório de inspecção, e bem assim deste mesmo, onde constava expresso aquele contacto (cfr. supra, II/2/2.1/a/b). É pois, nestas condições, absolutamente insustentável, por falsear até a realidade processual, argumentar-se que sobre aqueles factos, e na medida em que pudessem relevar, não tivesse sido à arguida assegurada possibilidade de defender-se como entendesse, consideração a que nada obsta, damo-lo por bom de ver, a concreta incidência de os mesmos não constarem todos do auto de notícia, alguns sendo isso sim plasmados no relatório de inspecção. É que, naturalmente, o que importa é que ao arguido seja efectivamente dado conhecimento da totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito (art. 49.º/1, da LQCA), sendo vedada a aplicação de coima sem antes se lhe assegurar a possibilidade de pronunciar-se sobre a contraordenação que lhe é imputada (art. 50.º, do RJIMOS), e isso foi quanto àqueles factos garantido com a dita notificação, não havendo uma imposição formal de que todos esgotante e necessariamente constassem do auto de notícia.
3.6. Em boa verdade, isso é quanto resulta, desde logo, do art. 46.º/1, da LQCA, que embora descrevendo nas respectivas alíneas os elementos que devem ser mencionados no auto (entre os quais, nos termos da al. a), “os factos que constituem a infracção”), o condiciona a uma reserva do possível (“sempre que possível”), assim prevenindo, entre uma miríade de outras hipóteses, simplesmente a de por então (aquando da elaboração desse auto), nem sequer estarem já todos determinados. Importante, ainda que posteriormente determinados, será que sejam sempre comunicados antes da decisão, com tempo para o arguido pronunciar-se, o que aliás explica o concreto teor não apenas do art. 50.º, do RJIMOS, mas ainda, e mesmo com mais potencial de ilustrar que os dados relevantes não terão para esse efeito de necessariamente constar do auto de notícia, o do art. art. 49.º/1, da LQCA: “o auto de notícia (…), antes de ser tomada a decisão final, é notificado ao infractor conjuntamente com todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito”; como é da mais elementar lógica, o auto é acompanhado dos mais elementos necessários para conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, precisamente porque estes podem constar desses outros actos ou termos do processo – se por força (e, digamo-lo, por absurdo) tivessem de constar do auto de notícia, então bastaria que fosse este o comunicado…
3.7. E isto que vimos de afirmar vale, irrestritamente, para o que dissemos isso sim e em concreto importar, que é quanto respeita às circunstâncias de além do produto antifúngico e sua natureza, a arguida manter nas respectivas instalações um depósito de 10000 litros de gasóleo e ser este igualmente um produto perigoso (als. l) e m) dos factos que na decisão administrativa impugnada se deram por provados). É que, como resulta do já exposto (cfr. supra, II/2/2.1/a/b), também isso, embora não constando do auto de notícia, constava sim e explicitamente do relatório de inspecção, por aquele em certos aspectos e em boa verdade sumariado, ambos tendo sido nos termos e para os efeitos do citado art. 49.º/1, da LQCA, notificados à arguida – a qual por isso não podia deixar de ficar ciente de também eles se integrarem nos factos que lhe eram imputados, nada a privando de sobre uma tal imputação se defender, e enfim só por acto deliberado ou descuido próprios seus não se pronunciando sobre eles na respectiva defesa, se com efeito não tiver pronunciado. Neste ponto, é útil retomar o já afirmado quanto a não ter de ser necessariamente o auto de notícia a integral e exaustivamente descrever os aspectos de facto e de direito relevantes da imputação, e isso como passo prévio da apreciação de algo que na decisão aqui sob recurso se afirma, quanto a nós e salvo o devido respeito em termos gratuitos e desprovidos de suporte legal.
3.8. De facto, sobre o tema expende-se ali que: “o auto de notícia (…) é omisso relativamente a tais factos: a propósito daqueles que poderiam ou podem corporizar a contraordenação prevista no art. 22.º do DL 147/2008, de 29/07, apenas se refere um determinado agente preservante da madeira, antifúngico. Por outra via, é nesse documento – auto de notícia – que para além dos factos constatados ou verificados pela/no âmbito da acção inspectiva, é feita menção das consequências normativas e sancionatórias dos mesmos. Tal identificação delimitadora não é alcançada senão por via de tal documento, e não através do relatório de inspecção, também notificado à arguida para efeitos de exercitação do seu direito de audição/defesa. A finalidade deste último documento é outra, sendo certo que apesar de fazer menção às infracções entendidas como verificadas (…), não associa tais infracções aos concretos factos que lhe estariam subjacentes, sendo o relacionamento de uns e outros fundamental para um cabal exercício do direito de defesa”. Por outras palavras, a decisão aqui recorrida reconhece a evidência de que os factos foram comunicados, mas como parte deles, ao menos a parte em questão, o foi constando do relatório de inspecção que se dá por integrado no auto de notícia, e não directamente neste, conclui, porque a função do relatório seria ‘outra’, que isso equivale a não terem sido comunicados… E acrescenta ainda que por também nele mesmo (auto de notícia) não ser feito um relacionamento concreto entre os factos e os normativos concitados, tudo acabaria em impedimento ao cabal exercício da defesa, e daí enfim a nulidade.
3.9. Do que se guarda o dito despacho recorrido de explicitar é qual seria essa ‘outra’ finalidade do relatório de inspecção, porque precludiria a de, mediante comunicação respectiva, informar a defesa dos factos nele referidos, e, sobretudo e mesmo descontando que afinal o correspondente teor é por remissão nele integrado (ao que se não vê e nem aliás é apontado obstáculo de princípio), deixa por explicar de onde tira essa suposta obrigação processual de no auto de notícia se conter uma descrição fáctica acabada, não valendo a comunicação, para os efeitos do art. 49.º/1, da LQCA, quanto àqueles que, do mesmo não constando, venham descritos sim em outras peças todavia comunicadas. Não o explica e, dizemos nós, nem teria como explicar, porque tanto nem resulta da lei, norma nenhuma o postulando com semelhante rigidez (não certamente o art. 46.º/1-a, da LQCA, que como vimos o estabelece como condição mas sob reserva do possível), nem é imposto pela já dita teleologia da comunicação, amplamente satisfeita com a transmissão desse factos, ainda que em outros elementos que não o auto de notícia (e que por isso devem ser e foram igualmente comunicados). E de igual modo é evidentemente destituído de sustento o argumento de que na comunicação, e em rigor no auto de notícia, tivessem, ainda sob pena de prejuízo insuportável das garantias de defesa, inviabilizando o seu exercício cabal, de ser relacionados aos factos às normas típicas igualmente comunicadas, numa acabada lógica de subsunção, dir-se-ia. Pelo contrário, a comunicação exigida não tem de ser, muito menos o auto de notícia ou aliás outro qualquer dos elementos remetidos, um perfeito exercício de silogismo jurídico, em jeito de acusação ou sentença mesma (!): para viabilizar a defesa do arguido, o necessário, e bastante, é que lhe sejam comunicados os factos imputados e as normas jurídicas que recortam os tipos contraordenacionais susceptíveis de com eles virem a final a dar-se por preenchidos – e isso foi feito, como vimos.
3.10. A não tê-lo sido, com certeza concederíamos na pertinência ao caso da jurisprudência fixada pelo STJ e que no despacho recorrido se concita (AC. STJ 1/2003, de 28/11/2002, publicado a 25/01/2003 – DR, I.A, pp. 547-559): “Quando, em cumprimento do disposto no art. 50.º do regime geral das contraordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contraordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de dez dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa”. Ainda que directamente reportada ao art. 49.º/1, da LQCA (o que não afasta o relevo do art. 50.º, do RJIMOS), aquela doutrina mantém íntegro relevo, e conduziria, na dita hipótese, à conclusão pela nulidade decidida. Todavia, o que dela nunca se tiraria é que as indicações tivessem de constar do auto de notícia e, para mais, com a referida subsunção precisa e individualizada às normas perspectivadas, como se faz na dita decisão, cabendo de resto notar que os factos e a correspondência potencial deles aos tipos igualmente comunicados não consentiriam dúvidas a destinatário razoável algum, de tal sorte que resulta mesmo algo esdrúxulo, sempre salvo o devido respeito, postular que a suposta falta dessa correlação brigasse com as condições de cabal exercício do direito de defesa pela arguida.
3.11. Deste modo, sobrando que a comunicação integral dos factos imputados e das normas tidas como por eles preenchida foi afinal feita, nos termos suficientes já abundantemente referidos, e para mais que na subsequente decisão administrativa não houve alteração nem desses factos, nem do enquadramento jurídico assim e com aquela comunicação adiantado (sem prejuízo de nessa decisão ter até ‘caído’ uma das três contraordenações primeiro encaradas), então simplesmente não é possível afirmar a violação dos citados art. 49.º/1, da LQCA, e 50.º, do RJIMOS, nem, claro está, a correspondente nulidade – apresentando-se a invocação da referida fixação de jurisprudência, na economia da decisão recorrida, como um apoio verdadeiramente deslocado. Em rigor, nessa decisão recorrida extrai-se, da (acertada) delimitação jurisprudencial das consequências da falta de comunicação das matérias de facto e de direito relevantes para a decisão administrativa impugnada, e do postulado (igualmente certo) de que tal comunicação prévia só vale quanto aos factos comunicados, uma como que confirmação desse outro postulado (já francamente errado) de que verdadeiramente só o são (comunicados) os que constem do auto de notícia remetido com a pertinente notificação – coisa esta última que porém não resulta daquela fixação de jurisprudência. Com quanto antecede, estamos em crer que já bastamente ficam elucidadas as razões de concluirmos pelo necessário provimento ao recurso, impondo-se-nos ainda assim, e em jeito de esclarecimento útil, fazer três últimas observações, tanto quanto possível breves.
3.12. Assim, e em encadeamento lógico: a) Em primeiro lugar, a de que esse provimento do recurso, isto é, o reconhecimento de que ao contrário do decidido pelo tribunal recorrido, o processo e a decisão administrativa impugnada eram isentos da nulidade afirmada, não implica e nem poderia implicar o correlato da confirmação, por este tribunal, da dita decisão administrativa em substância (que não obstante o recorrente peticiona – cfr. conclusão VIII e petitório final do recurso), como se aqui devesse conhecer-se, ex novo, toda a mais matéria da impugnação sobre que aquela decisão recorrida se não pronunciou sequer, por ter com a dita afirmação da nulidade ficado prejudicada. b) Em segundo lugar, que ao invés disso a revogação da decisão que indevida e até precipitadamente afirmou aquela nulidade, importa, tão só, a necessidade de, como aliás e não obstante contraditoriamente foi igualmente peticionado, prosseguir os trâmites do processo até final, agora sim com conhecimento e decisão, por mero despacho ou por sentença na sequência de audiência (art. 64.º e ss. do RJIMOS, aplicáveis por força do art. 2.º/1, da LQCA), segundo se afigurar devido, da substância do conjunto das questões suscitadas pela impugnação. c) E em terceiro lugar e por fim, que as considerações precedentemente expostas em rigorosamente nada tangem, precisamente, com a substância nem dessas outras questões que a decisão recorrida tinha prejudicado, nem em boa verdade com a da problematização do efectivo preenchimento, com os factos oportunamente comunicados e depois na decisão administrativa dados por provados, dos tipos contraordenacionais configurados: aqui, e no limitado contexto da verificação ou não da nulidade, que era o estrito objecto do recurso, apenas nos importou, claro está, se os factos imputados e os tipos contraordenacionais cujo preenchimento com eles se prefigurara, tinham sido antes daquela decisão comunicados, e em termos compatíveis com o exercício do direito de defesa pela arguida, tudo à luz dos art. 50.º, do RJIMOS, 49.º/1, da LQCA, e 32.º/10, da CR; sendo a nossa resposta inequivocamente afirmativa, e com isso se afastando a dita nulidade, saber se com efeito tais factos preenchem ou não tais tipos, e porquê, isso é já da materialidade das questões suscitadas pela impugnação judicial, vale dizer, do domínio do que na sequência da continuação da tramitação da causa o tribunal recorrido terá de apreciar e decidir.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, com a consequência de dever ser agora prosseguida a tramitação da impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou coimas, designadamente, com ou sem precedência de audiência, conforme couber, tomando-se decisão que conheça, também nos termos que couberem, as mais questões suscitadas na correspondente impugnação judicial que a arguida deduziu. Sem custas. Notifique. * Coimbra, 10 de Abril de 2024 Pedro Lima (relator)
Isabel Valongo (1.ª adjunta) Alexandra Guiné (2.ª adjunta) assinado electronicamente |