Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2143/22.0T8CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
USO DO LOCADO CONTRÁRIO AO PDM
NULIDADE
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CALDAS DA RAINHA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 5.º, N.º 2, DO DLEI N.º 38382, DE 7 DE AGOSTO DE 1951, 280.º, 1037.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL, 2.º E 3.º, N.º 2, DO DLEI N.º 80/2015, DE 14-05
Sumário:
I – Discutindo-se, em procedimento cautelar de restituição provisória de posse, um contrato de arrendamento urbano para o exercício do comércio, a inexistência de licença de utilização para o espaço locado não acarreta a nulidade do contrato, dado que se trata de prédio anterior à entrada em vigor do RGEU, nos termos do disposto no art.º 5.º, n.º 2, do DLei n.º 38382, de 7 de agosto de 1951.

II – Sendo o uso dado ao locado vedado pelo PDM, que constitui um conjunto de normas de direito administrativo, de caráter imperativo e de interesse público, o objeto do contrato de arrendamento é contrário à lei.

III – Âmbito em que não podiam as partes, ao contratar o arrendamento, afastar a impossibilidade de no locado se exercer o comércio, o que determina a nulidade desse contrato, afastando a restituição da posse à requerente, na sua invocada qualidade de locatária.

Decisão Texto Integral:
Relator: Arlindo Oliveira
1.ª Adjunta: Helena Melo
2.ª Adjunto: Paulo Correia

            Processo n.º 2143/22.0T8CLD.C1 – Apelação

            Comarca de Leiria, Caldas da Rainha, Juízo Local Cível

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

AA, requereu o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra BB, já ambas identificadas nos autos.

Alega, para tanto, que, a 01.06.2014, através de documento escrito, acordou com a requerida, na qualidade de proprietária, o arrendamento, por tempo indeterminado, de parte do prédio sito na Rua ..., em ..., correspondente a uma divisão para comércio com acesso à via pública através de escadas interiores comuns, contra o pagamento da renda mensal de 350,00€ até 31.03.2015 e de 400,00€, a partir de 01.04.2015; que, desde 2014, exerce no locado, a venda ao público de vestuários e acessórios para senhora, à vista de toda a gente e com o conhecimento da requerida; que a requerente pagou as rendas, encontrando-se estas em dia; que, porém, no passado dia 13.11.2022, deparou-se com toda a sua mercadoria despejada na via pública, tendo a requerida e os seu familiares impedido a entrada da requerente ao espaço locado, primeiro, através da alteração da fechadura da porta principal, de acesso às escadas comuns e, segundo, através da colocação de móveis no interior de modo a bloquearem a respectiva abertura.

Procedeu-se à apreciação da prova documental e à inquirição das testemunhas apresentadas pela requerente, com observância do legal formalismo e sem a prévia audiência da requerida, efectuando-se a gravação dos depoimentos prestados [cf. acta de 21.12.2022].

Foi proferida decisão que, após declarar todos os factos do requerimento inicial indiciariamente provados, deferiu a pretensão da Requerente e, nesta medida, determinou a restituição provisória à requerente, do uso, gozo e fruição do quarto sito à direita das escadas interiores de acesso, e das respectivas escadas de acesso, do prédio sito na Rua ..., em ....

Executada a restituição, foi a requerida notificada daquela decisão para, querendo, deduzir a oposição legal.

A requerida apresentou oposição no dia 11.01.2023, 1) suscitando a nulidade da citação; 2) arguindo a ilegitimidade passiva da requerida; 3) arguindo a falta de vontade da requerida na celebração do contrato de arrendamento invocado pela requerente; e 4) arguindo a ilegalidade da ocupação do imóvel pela requerente e a nulidade do contrato de arrendamento por falta de licença de utilização do locado para o exercício do comércio [ilegalidade do objecto do contrato de arrendamento e ausência de aptidão da fracção para o fim comercial do contrato]. Conclui peticionando que se considere improcedente o procedimento cautelar de restituição provisória da posse; e, em consequência, se ordene a requerente à desocupação dos espaços que ocupa na casa de habitação da requerida. Juntou documentos e arrolou testemunhas.

Na sequência do despacho proferido no dia 13.01.2023, foi sanada a irregularidade da citação arguida pela requerida.

Admitida a oposição por despacho de 26.01.2023, foi a requerente ouvida quanto à ilegitimidade passiva arguida na oposição.

Por despacho proferido no dia 01.03.2023, foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade passiva arguida pela requerida, sem que do mesmo tenha sido interposto qualquer recurso ou reclamação.

*

Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pela requerida, conforme se alcança do teor da acta com data de 11.04.2023.

Por despacho proferido no dia 13.04.2023, foi reaberta a audiência de julgamento para produção de prova complementar.

Após o que, foi proferida a decisão de fl.s 190 a 196, na qual se descreveram os factos tidos por provados e não provados e respectiva fundamentação e se julgou improcedente a oposição deduzida, mantendo-se a providência decretada pelo despacho proferido no dia 21/12/2022, ficando as custas a cargo da requerida.

Inconformada com a mesma, dela interpôs recurso a requerida BB, o qual foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cf. despacho de fl.s 211) finalizando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:

A. A DOUTA DECISÃO EM CRISE VEM A DECRETAR A RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE À REQUERENTE DE UM QUARTO NA CASA DA REQUERIDA, SENDO ESTA NUM PRIMEIRO ANDAR A QUE SE ACEDE (APENAS) ATRAVÉS DE UMAS ESCADAS ÍNGREMES. ESTA CASA SITA NA Rua ..., DENTRO DAS MURALHAS DA VILA DE ... - O QUE A TORNA OBJECTO DE LEGISLAÇÃO ESPECIAL, EXPRESSO E DECLARADO ATÉ NA CADERNETA PREDIAL JUNTA SOB O DOC. Nº 2, PELA MENÇÃO “PRÉDIOS CLASSIFICADOS” – E SENDO AQUELA A VIA PRINCIPAL DA VILA.

B. A REQUERENTE, NAQUELE QUARTO, TEM UMA LOJA DE ROUPA ABERTA AO PÚBLICO, UTILIZANDO AS ESCADAS COMO MONTRA E EXPOSITOR DAS COISAS QUE VENDE - CONFORME FOTOGRAFIAS JUNTAS À OPOSIÇÃO SOB O DOCUMENTO N.º 4.

C. EM PRIMEIRO LUGAR SE DIGA QUE, SALVO MELHOR OPINIÃO, O PROCEDIMENTO CAUTELAR CADUCOU NOS TERMOS DO ARTIGO 373.º N.º 1 ALÍNEA A) DO CPC, JÁ QUE A REQUERENTE NÃO PROPÔS A ACÇÃO PRINCIPAL NEM REQUEREU OU FOI DETERMINADA OFICIOSAMENTE OU NOS TERMOS DO ARTIGO 371.º DO CPC A INVERSÃO DO CONTENCIOSO NEM A DEFINITIVA RESOLUÇÃO DO LITÍGIO EM SEDE DO PROCEDIMENTO CAUTELAR.

D. CONTORNANDO A (SUSCITADA) IMPOSSIBILIDADE OBJECTIVA DE SER EXERCIDA NAQUELE

QUARTO UMA ACTIVIDADE COMERCIAL, A MERITÍSSIMA JUIZ A QUO VEM SUPOSTA E PROFUNDAMENTE FUNDAMENTAR A EXISTÊNCIA DE UMA LOCAÇÃO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS E A SUPOSTA “ISENÇÃO AO ABRIGO DO RGEU” POR O PRÉDIO SER “ANTERIOR À SUA VIGÊNCIA”, OLVIDANDO QUE O IMÓVEL SOFREU ALTERAÇÕES QUE

TORNARAM INEPTA E INVÁLIDA A CADERNETA PREDIAL DE ONDE CONSTA TER SIDO INSCRITO NA MATRIZ EM 1937 E QUE A CADERNETA PREDIAL EM VIGOR É AQUELOUTRA, TAMBÉM JUNTA AOS AUTOS E EMITIDA EM 2005 NA SEQUÊNCIA DAQUELAS ALTERAÇÕES. IGNORA-SE AINDA QUE AQUELA SUPOSTA ISENÇÃO NÃO PODE VALER SEQUER PARA INSTRUIR UMA ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA DESTA FRACÇÃO B DO PRÉDIO INSCRITO SOB A MATRIZ SOB O ARTIGO ...76, ... PROVÉM DO ARTIGO 72 (CONFORME DOCUMENTO DA REQUERENTE, ENTREGUE NOS AUTOS EM 2 DE JUNHO DE 2023), POR CADUCA PELO MENOS EM 2005, NA SEQUÊNCIA DAS REFERIDAS ALTERAÇÕES AO EDIFÍCIO.

E. DE MODO QUE O TRIBUNAL, POR SUA PRÓPRIA INICIATIVA E AO INVÉS DE COMPOR O LITÍGIO ENTRE AS PARTES APLICANDO-LHE O DIREITO, RESOLVEU ASSUMIR A DEFESA DOS INTERESSES DA REQUERENTE, NUM ESFORÇO NOTÓRIO DE “FAZER ENCAIXAR” TUDO O POSSÍVEL E AINDA QUE ILEGAL NUMA SUPOSTA DECISÃO QUE SURGIU ANTES AINDA DE QUALQUER PROVA E QUE SE QUER, A TODO O CUSTO E INDEPENDENTEMENTE DA PROVA, MANTER. VÊ AGORA A REQUERIDA QUE, ANTES DE APRECIADA A QUESTÃO, JÁ O TRIBUNAL SABIA AQUILO QUE IRIA DECIDIR, SENDO CLARA A RAZÃO PELA QUAL INDEFERIU O REQUERIMENTO DE PROVA DA REQUERIDA NA OPOSIÇÃO PARA QUE FOSSE OFICIADO À CÂMARA MUNICIPAL A QUESTÃO DA POSSIBILIDADE OU NÃO DE ALTERAR A HABITAÇÃO PARA COMÉRCIO NUM PRIMEIRO ANDAR…

F. O TRIBUNAL A QUO, NESTA DOUTA DECISÃO, “ARRUMA” A QUESTÃO DE FUNDO SEM DIZÊ-LO E SEM QUE LHO TIVESSE SIDO PEDIDO E, COM ESTA DECISÃO JUDICIAL - INJUSTA E ILEGAL - SE VIRIA A CONSOLIDAR NA REALIDADE MATERIAL UMA SITUAÇÃO DE FACTO AVESSA AO DIREITO A TODOS OS NÍVEIS: FORMALMENTE, COM A ISENÇÃO OU NÃO DE LICENÇA DE UTILIZAÇÃO; MAS PRINCIPALMENTE ESCANCARANDO PORTAS À VIOLAÇÃO DE BENS JURÍDICOS MUITÍSSIMO MAIS IMPORTANTES QUE ESTE AQUI EM DISCUSSÃO NOS AUTOS, COMO SEJAM A SEGURANÇA, A VIDA E A INTEGRIDADE FÍSICA.

G. O REGULAMENTO DO PDM DE ... (JUNTO COM A OPOSIÇÃO SOB O DOC. A), NO SEU ARTIGO 27.º N.º 1.1 ALÍNEA B) PROÍBE A POSSIBILIDADE DE ALTERAR O USO, DE HABITAÇÃO PARA COMÉRCIO OU SERVIÇOS, DOS PRIMEIROS ANDARES DOS PRÉDIOS NO CENTRO HISTÓRICO DA VILA E, COM AS LIMITAÇÕES ALI CONTIDAS, DESDE QUE TAL USO ESTEJA PREVISTO EM INSTRUMENTO URBANÍSTICO PLENAMENTE EFICAZ. ESTE FACTO (QUE É DIREITO) FOI EXPRESSAMENTE ALEGADO E COMPROVADO, FOI ABSOLUTAMENTE IGNORADO PELO DOUTO TRIBUNAL, QUE DECIDIU APLICAR A ESTE QUARTO NA CASA DA REQUERIDA (QUE É NUM PRIMEIRO ANDAR NA Rua ..., DENTRO DO CASTELO E POR ISSO NO CENTRO HISTÓRICO DA VILA, AO QUAL SE APLICA AQUELA NORMA DO REGULAMENTO DO PDM DE ...) O REGIME GERAL, APLICÁVEL A QUALQUER IMÓVEL SITO EM TERRITÓRIO QUE NÃO SEJA REGULADO POR NORMAS ESPECIAIS.

H. FÓRMULA INQUESTIONÁVEL E VIGENTE NO NOSSO SISTEMA É QUE A LEI ESPECIAL AFASTA A LEI GERAL - O QUE FOI “ATROPELADO” PELA E NA DOUTA DECISÃO EM CRISE, QUE DECIDE APLICAR O RGEU AO INVÉS DAQUELA NORMA ESPECÍFICA EM VIGOR PARA A ZONA EM QUE SE SITUA A CASA DA REQUERIDA. A MERITÍSSIMA JUIZ A QUO, FAZENDO TÁBUA RASA DE TODA A DOCUMENTAÇÃO DOS AUTOS, DECIDIU VER A “COISA” DO AVESSO: IGNOROU A ESPECIALIDADE DA LOCALIZAÇÃO DO IMÓVEL E A IMPOSSIBILIDADE DE EXERCÍCIO DO COMERCIO NUM PRIMEIRO ANDAR NO CENTRO HISTÓRICO DE ..., APLICANDO A ESTE CASO CONCRETO (E ERRADAMENTE) O RGEU PARA DIZER QUE O IMÓVEL ESTÁ ISENTO DE LICENÇA DE UTILIZAÇÃO, ESQUECENDO-SE ATÉ QUE A REQUERENTE COMEÇOU A VENDER ROUPA NO QUARTO DA CASA DA REQUERIDA EM 2014 E QUE, AINDA ASSIM, ATÉ AS NORMAS DO RGEU (QUANDO APLICÁVEIS E SE NÃO AFASTADAS PELO REGIME ESPECIAL) IMPEDIRIAM TAL OCUPAÇÃO - POR EXEMPLO O ARTIGO 143.º DO RGEU.

I. AINDA QUE QUISÉSSEMOS IGNORAR QUALQUER NORMA DO ORDENAMENTO JURÍDICO, É POR DEMAIS EVIDENTE QUE ESTA SENTENÇA VEM A LEGITIMAR JUDICIALMENTE UMA SITUAÇÃO NÃO SÓ ABSOLUTAMENTE CONTRA LEGEM COMO DE UMA PERIGOSIDADE MATERIAL GRITANTE, DIZENDO QUE AFINAL O “ARRENDAMENTO” DE UM QUARTO, NESTA SITUAÇÃO, É UM ARRENDAMENTO COMERCIAL E, ASSIM, PONDO EM CAUSA NÃO SÓ O DIREITO À PRIVACIDADE E À TRANQUILIDADE DA REQUERIDA COMO TAMBÉM A SEGURANÇA E A INTEGRIDADE FÍSICA E A VIDA NÃO SÓ DOS CLIENTES DA REQUERENTE COMO DA PRÓPRIA REQUERIDA E ATÉ DA REQUERENTE. PENSE-SE, POR EXEMPLO, QUE EM CASO DE INCÊNDIO OU DE QUALQUER OUTRA SITUAÇÃO QUE IMPONHA A SÚBITA E URGENTE ENTRADA DE MACAS E DE BOMBEIROS NAQUELA CASA, AS ESCADAS ESTÃO CHEIAS DE COISAS E DENTRO DA CASA DA REQUERIDA, NO QUARTO USADO PELA REQUERENTE, PODERÃO ESTAR UMA INFINITUDE DE PESSOAS, QUE SÃO OS SEUS CLIENTES; E QUE AQUELA CASA É EM ..., CENTRO TURÍSTICO POR EXCELÊNCIA, ONDE CIRCULAM DIARIAMENTE MILHARES DE PESSOAS, NUMA RUA QUE FOI FEITA NOS TEMPOS MEDIEVAIS, PARA PERMITIR A PASSAGEM DE UMA SÓ CARROÇA E CUJAS CARACTERÍSTICAS SE MANTÊM ATÉ HOJE - FACTO QUE É PÚBLICO E NOTÓRIO.

J. O TRIBUNAL DIZ QUE FORMOU A SUA CONVICÇÃO “VALORANDO CRITICAMENTE TODA A PROVA PRODUZIDA… E OS DOCUMENTOS DOS AUTOS”, MAS, SALVO O DEVIDO RESPEITO, SE O TRIBUNAL TIVESSE FEITO ESSA VALORAÇÃO ATENDENDO AO QUE FOI LEVADO AOS AUTOS, DA OPOSIÇÃO, NÃO PODERIA TER DECIDIDO COMO DECIDIU NA DOUTA SENTENÇA AQUI EM CRISE. É QUE UMA COISA É A RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE DA REQUERENTE, OUTRA COISA É O TRIBUNAL ADIANTAR E DECIDIR A TÍTULO “DEFINITIVO” QUE UM QUARTO NUM PRIMEIRO ANDAR PODE SER UMA LOJA – PORQUE ISSO É, ALÉM DE ILEGAL, PERIGOSO E PODE ATÉ SER CRIMINOSO…

K. O DOCUMENTO N.º 8 JUNTO COM A OPOSIÇÃO BEM DEMONSTRA, ATÉ PORQUE NÃO IMPUGNADO, QUE POR ESCRITO PELO MENOS JÁ DESDE 2020 A REQUERIDA NÃO CONSENTIA QUE A REQUERENTE CONTINUASSE A OCUPAR AQUELE QUARTO.

L. A REQUERIDA, NOS ARTIGOS 32.º E 33.º DA OPOSIÇÃO, EXPLICOU QUE A CEDÊNCIA DAQUELE QUARTO PARA A REQUERENTE ALI FAZER O SEU NEGÓCIO ERA APENAS TEMPORÁRIA E PROVISÓRIA E QUE O FOI NA SEQUÊNCIA DE A REQUERENTE TER DE SAIR DO ESPAÇO ONDE, ANTES, DESENVOLVIA O SEU NEGÓCIO - CUJA SENHORIA ERA A TESTEMUNHA CC, A QUAL DISSE AO TRIBUNAL QUE, EM 2014, A AQUI REQUERENTE TINHA DEIXADO DE SER SUA INQUILINA, E QUE, DEPOIS, “VEM A VERIFICAR QUE A REQUERENTE TINHA AS SUAS COISAS EXPOSTAS E A OCUPAR UM OUTRO ESPAÇO PERTENCENTE À REQUERIDA”, COMO ATÉ REFERE A DOUTA SENTENÇA. AQUELA EXPLICAÇÃO DA REQUERIDA FOI CLARAMENTE INDICIADA PELO DEPOIMENTO DAQUELA TESTEMUNHA, QUE EVIDENCIA E CONFIRMA A CRONOLOGIA REFERIDA PELA REQUERIDA, DE MODO QUE, O TRIBUNAL, FACE AO DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA E TENDO CONSIDERADO O “ESCRITO” APRESENTADO COMO UM

CONTRATO DE ARRENDAMENTO, NÃO TINHA COMO IGNORAR E NÃO JULGAR PROVADOS - PELO MENOS INDICIARIAMENTE - OS FACTOS ALEGADOS PELA REQUERIDA QUANTO AO MODO PELO QUAL A REQUERENTE VEIO A OCUPAR AQUELE QUARTO NA SUA CASA.

M. ASSIM, SE A VALORAÇÃO TIVESSE SIDO FEITA POR CONJUGAÇÃO DE TODA A PROVA, O RESULTADO, EMBORA PUDESSE PROVISORIAMENTE (E ANTES DO CONTRADITÓRIO) SER DA RESTITUIÇÃO DA POSSE À REQUERENTE, NUNCA PODERIA SÊ-LO A TÍTULO DEFINITIVO, APÓS AQUILO QUE A REQUERIDA TROUXE AOS AUTOS. IMPUNHA-SE, PORTANTO, DECISÃO DISTINTA DAQUELA QUE FOI TOMADA PELO TRIBUNAL QUANTO AOS FACTOS ELENCADOS SOB AS ALÍNEAS A. A D., NOS FACTOS DADOS COMO NÃO PROVADOS NA DOUTA SENTENÇA.

N. ACRESCE QUE O TRIBUNAL RESOLVEU FURTAR-SE À FULCRAL QUESTÃO DA TITULARIDADE DA CASA EM CUJO QUARTO A REQUERENTE MONTOU A LOJA: DOS AUTOS E DOS DOCUMENTOS RESULTA, À EXAUSTÃO, QUE AQUELA CASA INTEGRA A HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE DD, MAS O TRIBUNAL, “ATALHANDO”, PRODUZ UMA DECISÃO QUE NO LIMITE SEQUER VINCULARÁ O DONO DO PRÉDIO - QUE É A HERANÇA. FACTO QUE NÃO SERÁ INÓCUO, ATÉ PELA EVIDENTE E COMPROVADA NOS AUTOS FRAGILIDADE, DEBILIDADE E AVANÇADA IDADE DA REQUERIDA.

O. NA REALIDADE, A DOUTA SENTENÇA EM CRISE CONTÉM UMA APARENTE DECISÃO JUDICIAL QUE É POR DEMAIS EVIDENTE TER SIDO TOMADA ANTES E AO ARREPIO DO QUE FORAM OS FACTOS E OS DOCUMENTOS TRAZIDOS PELA REQUERIDA, ANTES EVIDENCIANDO UM ESFORÇO “ZIGUEZAGUEANTE” DE JUSTIFICAR O INJUSTIFICÁVEL FIM QUE O DOUTO TRIBUNAL QUERIA DAR AO LITÍGIO.

P. POR TUDO QUANTO SUPRA SE DISSE, A DOUTA SENTENÇA PADECE DAS NULIDADES PREVISTAS NAS ALÍNEAS C) E D) DO NÚMERO 1 DO ARTIGO 615.º DO CPC, DADO QUE FACE À PROVA PRODUZIDA NOS AUTOS, A DECISÃO TOMADA PELO TRIBUNAL É CONTRADITÓRIA; E, ALÉM DISSO, NÃO CONHECE DO QUE DEVIA CONHECER E ANALISA PROFUNDAMENTE O QUE NÃO LHE FOI PEDIDO E QUE, SE ERA PARA DECIDIR ASSIM, INCOMPREENSÍVEL É TAMBÉM O TEMPO DECORRIDO E AS MANOBRAS DE PSEUDO-ESCLARECIMENTOS PEDIDOS A ENTIDADES EXTERNAS, CONTUDO SEMPRE A “FUGIR” À PERGUNTA QUE, LOGO NA OPOSIÇÃO, LHE TINHA SIDO REQUERIDA QUE FIZESSE AO MUNICÍPIO ..., A QUAL, SE TIVESSE SIDO FEITA - SABE-O BEM O TRIBUNAL - NUNCA PODERIA CONDUZIR À QUALIFICAÇÃO DE “CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA FINS COMERCIAIS” DO QUARTO OCUPADO NA CASA DA REQUERIDA, NOS TERMOS EM QUE A DOUTA SENTENÇA O FAZ, POIS O “ESCRITO” APRESENTADO NÃO PODERIA SER OBJECTO DE CONVERSÃO NEM REDUÇÃO POR IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA E OBJECTIVA.

Q. A PARCIALIDADE E ESFORÇO NO ENQUADRAMENTO E DEFESA DA REQUERENTE PELO TRIBUNAL É DEMONSTRADA TAMBÉM NO MODO COMO SE ESQUECE DA IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO DE CONDENAÇÃO EM INDEMNIZAÇÃO, QUE NÃO REFLECTE QUANDO CONDENA A REQUERIDA EM 100% DAS CUSTAS E, ASSIM, A DOUTA SENTENÇA EM CRISE É NULA NOS TERMOS DO DISPOSTO NA ALÍNEA E) DA REFERIDA NORMA.

R. ASSIM, E POR CLAMOROSA INJUSTIÇA, ILEGALIDADE E PERIGOSIDADE E FRAUDE À LEI, POR PASSAR POR CIMA DA CADUCIDADE DA ISENÇÃO DO TÍTULO DE UTILIZAÇÃO RGEU, A DOUTA SENTENÇA EM CRISE NÃO PODERÁ MANTER-SE NO ORDENAMENTO JURÍDICO, SOB PENA DE, AO ABRIGO DE UMA DECISÃO DE UM TRIBUNAL, SER RECONHECIDA UMA FACTUALIDADE CONTRA LEGEM, ILÍCITA, ABUSIVA E, ABSTRACTA E CONCRETAMENTE, PERIGOSA, QUER DO PONTO VISTA FORMAL, LEGAL E MORAL E, PRINCIPALMENTE, DA REALIDADE MATERIAL.

S. POR ÚLTIMO, MAS NÃO MENOS IMPORTANTE, HÁ QUE EQUACIONAR E “PENSAR ATÉ AO FIM” QUE, OCORRENDO NAQUELE QUARTO E/OU ESCADAS UM ACIDENTE, UM INCÊNDIO, QUE CAUSE LESÃO A QUALQUER SER HUMANO QUE VÁ AO QUARTO QUE A REQUERENTE FEZ DE LOJA, A RESPONSABILIDADE SERÁ IMPUTADA, SE DE ACORDO COM A LEI E NA APARÊNCIA DAS COISAS, À REQUERIDA, QUE É “DONA DO IMÓVEL”; PORÉM, E ATENTOS OS VÍCIOS, VICISSITUDES E DESVIOS DESTA DECISÃO DE UM TRIBUNAL, NA PESSOA DE UM JUIZ, CUJO ESTATUTO O TORNA IRRESPONSÁVEL, QUESTIONAMOS SE ESTA IRRESPONSABILIDADE SERÁ PARA TODO E QUALQUER CASO, MESMO NESTES EM QUE A FUNÇÃO JURISDICIONAL É EXERCIDA AO ARREPIO DA LEGISLAÇÃO VIGENTE E EM DESPREZO PELA UNIDADE DO SISTEMA JURÍDICO. NO LIMITE, A FUNDAMENTAÇÃO DESTA DECISÃO BASEIA-SE NUMA FRAUDE OU PELO MENOS UM CONTORNO DA LEI VIGENTE, POR PRETENDER USAR UMA ISENÇÃO DO TÍTULO DE UTILIZAÇÃO CADUCADA NO MUNDO

JURÍDICO PELO MENOS DESDE 2005.

T. A SENTENÇA A PRODUZIR, NESTES AUTOS, HAVERIA DE TER ANALISADO COM SERIEDADE E SENTIDO DE JUSTIÇA MATERIAL E FORMAL A SITUAÇÃO CONTROVERTIDA QUE LHE FOI TRAZIDA. DE CONTRÁRIO, O QUE TEMOS É UM TRIBUNAL A DAR O AVAL A UM USO ANORMAL DE UM QUARTO E DE MEIOS PROCESSUAIS, PARA APADRINHAR UMA FACTUALIDADE E UM APARENTE DIREITO E EFEITO DE UMA SITUAÇÃO QUE NUNCA PODERIA OBTER-SE NUM QUADRO DE NORMALIDADE - E ISTO É O CONTRÁRIO DAQUELA QUE É A FUNÇÃO JURISDICIONAL. CHOCA-NOS A IDEIA DE EQUACIONAR COMO POSSÍVEL, ATRAVÉS DE QUEM TEM QUE ADMINISTRAR A JUSTIÇA POR APLICAÇÃO DA LEI E DO DIREITO, OBTER EFEITOS E ACOLHIMENTO DE QUESTÕES ABSOLUTAMENTE CONTRÁRIAS E VIOLADORAS DE LEIS VIGENTES. MAL ANDARIA O MUNDO SE CHAMÁSSEMOS A ISTO JUSTIÇA!

TERMOS EM QUE, E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVERÁ A DOUTA SENTENÇA EM CRISE SER EVOGADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE REVOGUE A PROVIDÊNCIA DECRETADA, FAZENDO CESSAR ESTA OCUPAÇÃO ILEGAL DO QUARTO DA CASA DA REQUERIDA, POR IMPOSSÍVEL A SUA CONVERSÃO OU REDUÇÃO JURÍDICA.

ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!       

Não foram apresentadas contra-alegações.

(…).

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se o presente procedimento cautelar já caducou, nos termos do disposto no artigo 373.º, n.º 1, al. a), do CPC, por a requerente ainda não ter proposto a acção principal, nem requereu a inversão do contencioso;

B. Se a sentença recorrida padece das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, al.s c) e d);

C. Se a oposição deve proceder, com o fundamento em o locado não ser da exclusiva propriedade da requerida;

D. Se não pode ser decretada a peticionada restituição provisória da posse, em virtude de o artigo 27.º, n.º 1.1, b), do PDM de ..., não permitir a alteração do uso do espaço locado, designadamente de habitação para comércio e;

E. Se a requerida não pode ser condenada no pagamento da totalidade das custas, por ter improcedido o pedido de condenação da mesma no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.

São os seguintes os factos indiciariamente dados como provados, na decisão recorrida:

Do requerimento inicial:

1. Através de documento escrito [constante de fls. 7vs, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido] assinado por requerente e requerida, a requerida, intitulando-se proprietária do prédio sito na Rua ..., em ..., declarou dar de arrendamento à requerente, com efeitos a partir do dia 01 de Julho e por tempo indeterminado, um quarto e escadas, contra o pagamento da quantia de 350,00€ até ao dia 01.03.2015, e de 40,00€ a partir de 01.04.2015 [cf. decisão de 21.12.2023].

2. Desde 2014, a requerente exerce no locado a actividade de venda a retalho de vestuário e acessórios para senhora [cf. decisão de 21.12.2023].

3. Com a loja aberta ao público, de forma contínua, à vista de toda a gente e com o conhecimento da requerida [cf. decisão de 21.12.2023].

4. No dia 13.11.2022, cerca das 10h00, a requerente, dirigindo-se ao locado, encontrou, na via pública, toda a sua mercadoria, móveis e caixa registadora e demais bens que mantinha no interior do locado [cf. decisão de 21.12.2023].

5. Nas mesmas circunstâncias, a requerente tentou aceder ao locado através da porta junto à via pública que dá acesso às escadas interiores, não o tendo conseguido, primeiro, porque a requerida, por si ou por interposta pessoa, mudou a respectiva fechadura e, segundo, depois de tentar forçar a respectiva abertura, porque foram colocados móveis no interior, a bloquear a respectiva abertura [cf. decisão de 21.12.2023].

6. Na sequência dos factos acima descritos, a requerente encontra-se, desde então, impedida de aceder ao locado [cf. decisão de 21.12.2023].

*

Da oposição:

7. O locado objecto da declaração de arrendamento descrita em 1) correspondente a um quarto na fracção autónoma B do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito sob o artigo ...76.º da freguesia ..., ... e ..., correspondente ao 1.º andar com quatro divisões, destinado a habitação [cf. ofício da AT de fls. 168 e caderneta predial urbana de fls. 169-169vs].

8. O acesso da via pública à referida fracção é feito exclusivamente pelas escadas referidas em 1) – artigo 111.º da oposição.

9. A fracção em causa corresponde à casa de habitação da requerida – artigo 116.º da oposição.

10. A qual não tem licença / autorização de utilização para habitação ou para comércio [cf. ofício da Câmara Municipal ... de fls. 167].

11. A fracção autónoma em referência foi inscrita na matriz no ano de 2005 [cf. caderneta predial urbana de fls. 169-169vs].

12. No entanto, anteriormente, correspondia ao prédio urbano em propriedade total descrito na matriz predial sob o artigo ...2.º da freguesia ... (extinta), …

13. … o qual foi inscrito na matriz no ano de 1937 – cf. certidão de teor de fls. 186vs-187.

***

Com relevância para a decisão da oposição, não se provou indiciariamente que:

Da oposição:

a. Aquando da subscrição do documento referido no facto provado 1), a requerida acreditava que se trataria de uma situação pontual, transitória e temporária… – artigo 32.º da oposição

b. … para ajudar a requerente – artigo 33.º da oposição.

c. A requerente aproveitou-se na incúria e caridade da requerida,… – artigo 35.º da oposição.

d. … a qual assinou o referido documento de cruz, sem ler o escrito que lhe foi apresentado pela requerente – art. 35.º da oposição.

e. Aquando da subscrição do documento referido no facto provado 1) e da ocupação do espaço ali referenciado, a requerente sabia que o mesmo não tem licença para poder vir a ser instalado um negócio aberto ao público – artigo 50.º da oposição.

A. Se o presente procedimento cautelar já caducou, nos termos do disposto no artigo 373.º, n.º 1, al. a), do CPC, por a requerente ainda não ter proposto a acção principal, nem requereu a inversão do contencioso.

Como consabido, os recursos não se destinam a apreciar “questões novas”, no sentido de não suscitadas e apreciadas na decisão recorrida, constituindo, ao invés, como que “remédios jurídicos” para concretas questões de facto e/ou de direito já analisadas na decisão em recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, o que não é o caso.

Assim, está este Tribunal da Relação impedido de conhecer esta questão, devendo a mesma ser colocada na 1.ª instância.

Pelo que, nos termos expostos, não se conhece desta questão do recurso.

B. Se a sentença recorrida padece das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, al.s c) e d).

Conclui a recorrente que assim sucede, com o fundamento em que a sentença recorrida não conheceu da questão da limitação imposta pelo PDM de ... e conhece de questões que não lhe foram pedidas e porque a decisão devia ser outra em face da prova produzida nos autos.

            O artigo 615, n.º 1, al.s c) e d), do CPC, sanciona com a nulidade a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão (al. c) e quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d).

Cf. A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, a pág. 669, a oposição entre a decisão e os respectivos fundamentos, respeita à contradição real entre os fundamentos e a decisão, em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto.

Por outro lado, as questões a apreciar são aquelas que têm relevo para a decisão do mérito da causa, embora sem se exigir que se conheça de toda a argumentação expendida pela parte.

Ora, não padece a sentença recorrida da nulidade com base na oposição entre os seus fundamentos e a decisão que nela foi proferida.

Isto porque na mesma se considerou que se verificavam os requisitos exigíveis para o decretamento da requerida providência, o que assim se fez, discordando a recorrente de tal decisão, o que não configura a invocada nulidade.

Por outro lado, conheceu-se da questão a decidir, precisamente a restituição provisória da posse, com base na argumentação constante da decisão em análise.

O que a recorrente invoca não ter ali sido apreciado – teor do PDM – tem que ver, isso sim, com eventual “erro de julgamento” que extravasa o âmbito das nulidades da sentença, que se apreciará em sede própria.

Consequentemente, não padece a decisão recorrida das apontadas nulidades.

Pelo que, nesta parte, o presente recurso tem de improceder.

C. Se a oposição deve proceder, com o fundamento em o locado não ser da exclusiva propriedade da requerida.

Esta questão prende-se com a excepção de ilegitimidade passiva que a recorrente arguiu na oposição que deduziu.

Esta excepção foi objecto do despacho proferido a fl.s 136 e v.º, julgando-a improcedente, sem que de tal despacho tenha sido, oportunamente, interposto qualquer recurso ou reclamação.

O recurso interposto da decisão final, abrange apenas esta, não se referindo que, também, se pretendia recorrer daquela decisão, apenas se aflorando esta questão, como mais uma argumentação para não ser decretada a providência.

Pelo que, quanto à questão da legitimidade passiva se verifica caso julgado formal, cf. artigo 620.º, n.º 1, do CPC.

            Consequentemente, também, quanto a esta questão, improcede o recurso.

D. Se não pode ser decretada a peticionada restituição provisória da posse, em virtude de o artigo 27.º, n.º 1.1, b), do PDM de ..., não permitir a alteração do uso do espaço locado, designadamente de habitação para comércio.

            Relativamente a esta questão, alega a recorrente que o contrato de arrendamento em causa não pode subsistir, porquanto o mesmo tem como objecto o exercício do comércio, actividade que o PDM impede de ali ser exercida.

            Na decisão recorrida refere-se que o contrato em questão é um contrato de arrendamento urbano, para o exercício do comércio e, não obstante inexista licença de utilização, tal não acarreta a nulidade do contrato, dado que se trata de prédio anterior à entrada em vigor do RGEU, pelo que a falta de licença de utilização não acarreta a nulidade do contrato, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 38382, de 7 de Agosto de 1951.

            A recorrente, quanto a esta questão, nada refere nas suas alegações e conclusões do recurso, pelo que nada há a referir quanto a tal e que, de resto, é a conclusão a extrair dos invocados preceitos legais, pelo que, efectivamente, não é o facto de inexistir licença de utilização que acarretaria a nulidade do contrato em apreço.

            A argumentação da recorrente assenta, isso sim, no facto de no locado ser exercido o comércio, o que viola o disposto no artigo 27.º 1.1, b), do PDM de ..., publicado no DR I-B, n.º 276, de 28/11/1996, de acordo com o qual:

            “1.1 No Centro Histórico, no qual se privilegiam os valores patrimoniais e o conjunto arquitectónico, só são permitidas obras de conservação e manutenção das construções existentes, podendo ser autorizado, excepcionalmente, mediante autorização prévia do IPPAR e de acordo com a legislação em vigor, o seguinte:

            (…)

            b) Mudança de uso de habitação para serviços ou comércio, que devem confinar-se ao rés-do-chão, quando previsto em instrumento urbanístico plenamente eficaz”.

            Ora, conforme disposto no artigo 2.º, n.os 1 e 5, al. a), do DL n.º 80/2015, de 14 de Maio (que estabelece o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial), definindo, entre outras coisas, o ordenamento do território e de urbanismo (cf. seu artigo 1.º), a política de ordenamento do território e de urbanismo assenta no sistema de gestão territorial, que se organiza no âmbito nacional, regional, intermunicipal e municipal, sendo que, neste último, a política de ordenamento do território e de urbanismo, se rege/concretiza, em primeiro lugar, pelo plano director municipal.

Plano, este, que, cf. artigo 95.º, n.º 1, do referido DL “… é o instrumento que estabelece a estratégia de desenvolvimento territorial municipal, a política municipal de solos, de ordenamento do território e de urbanismo …”.               

            Acrescentando-se no seu artigo 96.º, n.º 1, al. e), que o PDM estabelece “A definição de estratégias e dos critérios de localização, de distribuição e de desenvolvimento das actividades industriais, turísticas, comerciais e de serviços”.

            Reiterando/concretizando, no seu artigo 99.º, al. c), que o PDM, dispõe sobre “A definição do zonamento para localização das diversas funções urbanas, designadamente habitacionais, comerciais, turísticas, de serviços, industriais e de gestão de resíduos, bem como a identificação das áreas a recuperar, a regenerar ou a reconverter”.

            Resulta, assim, de todos estes preceitos que o PDM estabelece as regras de ordenamento do território municipal e de urbanismo, podendo definir, designadamente, a localização das diversas funções urbanas, designadamente habitacionais e comerciais.

            Ou seja, o PDM pode estabelecer restrições quanto aos locais onde pode ser exercido o comércio, na sua área de abrangência territorial, no caso, de âmbito municipal.

            É o que se faz no citado artigo 27.º, 1.1, b), do PDM de ..., que limita o exercício do comércio, na zona em questão, ao rés-do-chão.

            Acontece que o locado em causa, se situa no 1.º andar do prédio identificado em 7.º dos factos provados, que se destina a habitação. Pelo que a actividade comercial que ali vem sendo desenvolvida desde 2014, viola as supra citadas disposições do PDM de ....

Ora, o PDM vincula as entidades públicas e, directa e imediatamente, os particulares, como, cristalinamente, resulta do disposto no artigo 3.º, n.º 2, do citado DL n.º 80/2015.

Como refere Fernando Alves Correia, Manual De Direito Do Urbanismo, Vol. I, 4.ª Edição, Almedina, a pág.s 639/40, o PDM, para além de regular o aproveitamento dos solos, determinando a utilização dominante que lhes possa vir a ser dada, regula, também, “… a definição do zonamento para localização das diversas funções urbanas, designadamente habitacionais, comerciais, turísticas, de serviços e industriais, e a determinação dos indicadores e dos parâmetros urbanísticos aplicáveis a cada uma das categorias e subcategorias de espaços …”.

            Pelo que, fora de dúvidas, sendo, como tem sido, o uso dado ao locado vedado pelo PDM, que constitui um conjunto de normas de direito administrativo, de carácter imperativo e de interesse público, e só neste foro atacável, estamos em face de um contrato de arrendamento cujo objecto é contrário à lei.

            De resto, embora se desconheça o motivo pelo qual o contrato de fl.s 7 v.º, não contém nem a data em que foi elaborado, nem define qual o seu objecto – elementos essencialíssimos – num qualquer contrato de arrendamento, sempre se poderá cogitar que tal omissão poderá residir, precisamente, no facto de o uso que se pretendia dar ao locado, estava vedado pelo PDM, o que, é natural e plausível, que fosse do conhecimento das partes, dado que se trata de condicionantes de uma zona muito específica e, por certo, do conhecimento de quem lá vive e/ou exerce actividade profissional.

            Assim, resta determinar quais as consequências do facto de o contrato de arrendamento em causa ter um objecto contrário à lei.

            Dispõe o artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil, que é nulo o negócio jurídico contrário à lei e o seu artigo 294.º, preceitua serem nulos os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.

            Como refere Jorge Morais de Carvalho, Os Limites à Liberdade Contratual, Almedina, 2016, a pág.s 157/8 “Na expressão contrariedade à lei, a palavra lei é utilizada em sentido amplo, abrangendo qualquer diploma legal, independentemente da sua natureza: pode tratar-se de uma lei, DL, portaria, decreto regulamentar, etc. (Devem entender-se igualmente abrangidos regulamentos ou actos administrativos que vinculem uma ou ambas as partes de um eventual contrato a celebrar – nota 423, de pág. 157).

            “Apesar de a letra da lei se referir apenas a diplomas legais ditados por órgão com poder legislativo, parece dever entender-se que se inclui qualquer comando imposto pelo Direito, independentemente da sua fonte, resultante de norma jurídica dotada de imperatividade.

            A contrariedade à lei depende da existência de uma norma injuntiva ou imperativa, que torne indisponível para uma ou ambas as partes determinada situação jurídica”.

            Acrescentando que no âmbito da previsão do artigo 280.º, CC, se abrange tanto a coisa ou direito sobre que incide o contrato, quer o conteúdo do contrato, incluindo o seu objecto, aplicando-se, primordialmente, o citado artigo 280.º, nos casos em que se esteja perante um elemento interno do negócio jurídico e o artigo 294.º, quando esteja em causa um elemento externo ao negócio jurídico.

            Conforme fl.s 169/170, define as normas injuntivas ou imperativas, como aquelas que se “caracterizam pela sua aplicação mesmo que as partes emitam declarações em sentido contrário.

            (…)

            As normas injuntivas são aquelas que se aplicam mesmo que as partes acordem no sentido da sua não aplicação”.

            Acrescentando, a fl.s 174, que no caso de norma com conteúdo imperativo, tal implica que as partes, ao negociar, não podem afastar esse conteúdo imperativo “A disposição por via contratual encontra-se limitada pelo conteúdo imperativo de diversas normas jurídicas, sendo, portanto, limitada neste sentido a autonomia privada das partes”.

            E no caso de normas imperativas que visam a protecção de um interesse geral, como é o caso de norma inserta num PDM, já que visa o ordenamento de determinado território e o urbanismo, “O interesse geral identificado numa norma imperativa afeta a disponibilidade das partes no que respeita às situações jurídicas que o possam pôr em causa.

            Não é, assim, possível o afastamento, por via contratual, do conteúdo de interesse geral de uma norma imperativa, uma vez que esse efeito escapa totalmente à disponibilidade das partes”.

           

            Concluindo e descendo à análise do caso sub judice não podiam as partes, ao contratar o arrendamento em apreço, afastar a impossibilidade de no locado se exercer o comércio, o que implica que, na ausência de outra sanção legalmente fixada, se tem de concluir que o contrato celebrado entre as partes é nulo.

            Ora, a pretensão da requerente em lhe ser restituída a posse assentava na sua qualidade de locatária, cf. artigo 1037.º, n.º 2, do Código Civil, qualidade que a mesma não detém, por inexistência de contrato de arrendamento, válido e eficaz, pelo que a sua pretensão não pode merecer acolhimento, o que acarreta que a decisão recorrida não pode manter-se.

            Como acima se referiu, não foi carreada para os autos a justificação de o contrato celebrado entre as partes não mencionar o seu objecto, não obstante o locado tenha vindo a ser afecto à prática do comércio.

            Concomitantemente, a averiguação e quantificação de quaisquer prejuízos derivados de tal situação e cessação do exercício de tal actividade, só em acção própria poderá ser decidida.

            Assim, quanto a esta questão, procede o recuso.

            A procedência desta questão do recurso e consequente revogação da providência decretada, implica que as custas passam a ser de responsabilidade da apelada, que decaiu, cf. artigo 527.º, n.os 1 e 2, do CPC.

            Pelo que, fica prejudicada a análise da questão acima elencada em E.

Nestes termos se decide:

Julgar procedente o presente recurso de apelação, revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que revoga a decretada providência.

Custas, pela apelada, devendo atender-se à taxa de justiça paga, a final, na acção respectiva, conforme artigo 539,º, n.os 1 e 2, do NCPC.

Coimbra, 07 de Novembro de 2023.