Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4090/20.1T8LRA-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
REPRESENTAÇÃO DO DEVEDOR
VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
LIVRANÇA
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 81.º, N.ºS 4 E 5, 146.º, N.º 1, DO CIRE, 17.º, 77.º DA LEI UNIFORME SOBRE LETRAS E LIVRANÇAS E 342.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – Embora o administrador de insolvência assuma a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessam à insolvência (art. 81.º, n.º 4 do CIRE), apresenta-se como uma figura substantiva e processualmente autónoma, cabendo-lhe a defesa geral dos interesses dos credores, e estando-lhe mesmo vedada a representação do devedor nos incidentes e apensos da insolvência, designadamente o da verificação ulterior de créditos em presença (art. 81.º, n.º 5 e 146.º, n.º 1 do CIRE).

II – Em termos cartulares, o administrador da Insolvência não se apresenta no âmbito das relações imediatas (não é uma mera figura de substituição do insolvente), nem mediatas (não é portador do título nem nele inscreveu qualquer ato juridicamente vinculativo).

III – No âmbito da verificação ulterior de créditos, não basta ao credor a mera invocação da livrança, impondo-se-lhe a alegação e prova da relação subjacente, ou seja, dos factos constitutivos essenciais da relação causal à subscrição e emissão da livrança.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 4090/20.1T8LRA-D.C1

Juízo de Comércio de Leiria – Juiz 2

_________________________________

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

M..., S.A., com sede na Rua ..., ..., ... ...

veio, por apenso aos autos de insolvência respeitantes a AA

intentar contra

A Massa Insolvente de AA

Restantes Credores de AA

e

AA

a verificação (ulterior) do crédito a que se arroga, no montante de € 9.700,80, titulado por livrança subscrita pelo agora insolvente, montante acrescido de juros de mora que liquidou (€ 7.53,68 à data de complemento da sentença de declaração de insolvência) e do imposto de selo respetivo (de € 282,15).

                                                                                   *

A Massa Insolvente (e apenas esta) contestou impugnando os factos invocados e excecionando a prescrição da livrança e dos juros.

                                                                                   *

Realizada a audiência de partes, no despacho que se lhe seguiu, foi saneado o processo (ao demais, julgando improcedente a exceção da prescrição), identificado o objeto do processo e enunciado o tema da prova.

                                                                                         *

Em 11.06.2023 foi proferida sentença, contendo o seguinte dispositivo “julgo a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, não reconheço qualquer crédito à A.”.

                                                                                   *

A A. interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:”

 “1º Não se conforma, a Recorrente, com a sentença recorrida;

2º Não existe correspondência entre os factos e documentos constantes dos autos e a decisão adotada, nem se aplicou, corretamente, a lei ao caso concreto;

3º Não pode a Autora aceitar, nem concordar com a decisão adotada na sentença recorrida face aos factos documentados nos autos;

4º Ficou amplamente provado a tempestividade da ação, a celebração do contrato de aluguer, a assinatura da livrança pelo punho do Insolvente e que a Recorrente era legítima portadora da livrança;

5º No entanto, e contrariamente ao esperado, atentos aos factos considerados provados, entendeu o Tribunal a quo não reconhecer o crédito reclamado pela Recorrente;

6º Ora, com interesse para a boa decisão da causa, provaram-se os seguintes factos: (…[2])

7º Posto isto, não consegue a Recorrente cogitar como é que atentos aos factos considerados como provados (contrato, rendas, assinatura da livrança, ação executiva), o Tribunal tenha concluído por improceder o petitório da Autora;

8º Ademais, diga-se que, apenas foi apresentada contestação pela Massa Insolvente, tendo o Réu Insolvente remetido ao silêncio;

9º Acresce que, nenhum dos factos alegados pela Massa Insolvente é passível de contrariar a matéria vertida na petição inicial apresentada pela Recorrente, não tendo a mesma arrolada qualquer testemunha que contrariasse a força probatória do título de crédito e do montante reclamado pelo credor, conforme lhe competia nos termos e para os efeitos do disposto no art. 342º do Código Civil;

10º   Ora, a Massa Insolvente limitou-se a fundamentar a sua pretensão na invocação da prescrição da livrança, não tendo, inclusivamente requerido a perícia à letra aposta na livrança, nem impugnado o contrato junto ou exercido o direito ao contraditório, nomeadamente impugnando a genuinidade do documento nos termos e para os efeitos do art. 444º do Código de Processo Civil;

11º   Ademais diga-se que também, não logrou ilidir a autenticidade ou a força probatória do documento nos termos do art. 446º do mesmo diploma no prazo que tinha para o efeito, ou seja 10 dias, como bem salientado na sentença;

12º   Pelo que muito se estranha que ainda assim, o Tribunal a quo aceda aos apanágios não alegados pela Massa Insolvente e decidindo pela improcedência do pedido formulado pela Autora;

13º   São, pois, latentes as contradições presentes na sentença ora recorrida, violando flagrantemente os normativos legais.

14º   Pelo que padece a aludida decisão de nulidade ao abrigo dos artigos 607º nº 4, nº5 e 615º c) do Código de Processo Civil;

15º   Prosseguindo no elenco das contradições expressas na sentença recorrida, é referida daquela decisão que é usual as letras e livranças serem entregues às instituições bancárias já assinadas como caução e para garantia do bom pagamento de todas as obrigações e/ou responsabilidades decorrentes dos contratos e são preenchidas, aquando do incumprimento dos contratos, pelos portadores do título;

16º   São as chamadas livranças em branco;

17º   Posto isto, sendo, pois, assente e do conhecimento geral que as livranças são assinadas e entregues em branco aos credores, lógico é que os demais campos são preenchidos apenas e quando ocorre o incumprimento de tal obrigação;

18º   Pois que, evidentemente, caso o contrato seja cabalmente cumprido, não haverá lugar ao preenchimento da livrança;

19º   Assim, perante o incumprimento, está o credor legitimado a preencher o seu montante designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, pelo valor correspondente aos créditosdeque emcada momentoo credor sejatitularporforça dopresente contrato oude encargos e despesas dele decorrentes”;

20º   Tal como resulta do contrato (cláusula 16ª das condições gerais), considerado celebrado, com a resolução do contrato a L... teria o direito de retomar o veículo, reter as importâncias pagas pelo locatário e de exigir as vencidas e não pagas atá a data da resolução, bem como ser ressarcida pelos prejuízos resultantes da resolução do contrato;

21º   Ora, tendo ocorrido o incumprimento das obrigações assumidas pelo Insolvente, a Credora procedeu ao preenchimento pelo valor de 9.700,80 € motivo pelo qual instaurou a respetiva ação executiva.;

22º   Tendo a Recorrente referido na petição inicial que, não obstante as diligências promovidas, nenhum montante foi passível de ser recuperado;

23º   Posto isto, não pode a Recorrente deixar de evidenciar que discordando o Réu ou a Massa Insolvente do valor inscrito no título cambiário, caber-lhe-á o ónus de alegação de factos concretos (constitutivos da exceção) que sustentam a sua não concordância com o valor ali descrito;

24º   Ademais diga-se que, em nenhum momento, a Massa Insolvente excecionou pelo pagamento, nem tão pouco atacou a veracidade da assinatura aposta na livrança ou o contrato celebrado.

25º   Assim, com o devido respeito por opinião diversa, não lograram os Réus impugnar o concreto valor descrito e devidamente titulado na livrança, limitando-se unicamente a alegar pela prescrição do aludido título, exceção essa que se verificou como improcedente ainda no despacho de saneador.

26º   Posto isto, cumpre referir que os cheques, letras e livranças, enquanto títulos de crédito, mantêm as suas características fundamentais (incorporação, literalidade, autonomia e abstração), encontrando-se o portador do título dispensado de invocar ou demonstrar qualquer relação extracartular ou a causa da emissão do título “o simples exame do título (…) deve revelar o direito cambiário, fazendo transparecer a sua natureza apenas pelo teor da sua redação” cfr. José Maria Pires in O Cheque Editora Rei dos Livros Lisboa 1999, pp.37 e seguintes.

27º   Por outro lado, e ainda que meros quirógrafos, a jurisprudência não deixou de reconhecer em tais documentos uma especial força probatória.

28º A este propósito cumpre chamar à colação do disposto no art. 458º do Código Civil, nos termos do qual, os documentos escritos de que conste a promessa de cumprimento de uma obrigação ou o reconhecimento de uma dívida, ainda que omitam a respetiva causa, dispensam o credor de provar a relação fundamental.

29º   Na verdade, desde cedo «[a] experiência judiciária [demonstrou] que, em grande maioria, as ações declarativas cuja causa de pedir se reconduz a uma obrigação cartular não são contestadas». Prescindindo-se, inicialmente, do reconhecimento notarial da assinatura do devedor apenas em títulos de crédito cujo valor fosse inferior à alçada da Relação (cfr. o n.º 1 do artigo 51.º do Código Civil, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 533/77), passou a atribuir-se força executiva a todos os títulos de crédito, independentemente do respetivo valor(cfr. a redação do mesmo preceito, dada pelo Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de julho).

30º   Assim, reitera-se que nenhum dos factos alegados pela Massa insolvente foi passível de contrariar a matéria vertida na petição inicial apresentada pela Recorrente, não tendo o mesmo arrolado qualquer testemunha que contrariassea força probatória do título de crédito e do montante reclamado pela Credora, conforme lhe competia nos termos e para os efeitos do disposto no art. 342º do Código Civil.

31º   Assim, considerando os documentos juntos pela Apelante, o Tribunal a quo deveria ter entendido por preenchido o ónus probatório da recorrente e julgado procedente a ação de verificação ulterior de créditos.

32º   Face ao exposto, a sentença recorrida faz incorreta avaliação dos factos e, por conseguinte, deficiente aplicação do direito.

33º   Assim, a aqui Apelante entende que os documentos juntos aos autos são plenamente demostrativos da verdade e justeza da sua pretensão.

34º   Assim sendo, deveria a douta sentença recorrida em face dos factos julgados provados, ter concluído pelo reconhecimento do crédito peticionado pela Recorrente, entendendo-se assim violados, nomeadamente, os arts. 342º nº2 e 458º do Código Civil, 607º nº 4, nº5 e 615º c) do Código de Processo Civil”.

Pugnou, a final, pela revogação da sentença recorrida e pelo reconhecimento do crédito por si peticionado.

                                                                  *

Respondeu a Massa Insolvente defendendo a improcedência do recurso, sintetizando o alegado com as seguintes conclusões:

(…).
*

Dispensados os vistos, foi realizada a conferência, com obtenção prévia dos contributos e dos votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.
*

II-Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).
No caso, face às conclusões avançadas, as questões a apreciar e decidir são as de saber se:
A – A sentença é nula por os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão
e se
B – Perante os factos considerados provados devia ter sido reconhecido o crédito da A.
                                                                                  *

III-Fundamentação

Com vista à incursão nas questões objeto de recurso, importa, antes de mais, transpor a factualidade que na decisão recorrida foi dada como provada e não provada.

“(…) provaram-se os seguintes factos:

1)-A sociedade L..., S.A. foi incorporada, por fusão, na sociedade F..., S.A., que alterou, em 16.01.2013, a sua designação social para M..., S.A..

2)- A Autora é dona e legítima portadora de um título com a palavra “livrança” nele inscrita, junto aos autos com a petição inicial, no valor de €9.700,80, emitida a 4.06.2003, com data de vencimento 4.07.2003, onde se diz, para além do mais, no seu vencimento, pagarei (emos) por esta única via de livrança à L... a quantia de nove mil e setecentos, oitenta cêntimos relativo ao contrato ALD nº 8938;

3) – No documento referido em 2) figura como subscritor AA que assinou o documento referido em 2).

4) - A L... celebrou com AA o acordo junto aos autos em 7.10.2022, datado de 4.04.2020, denominado contrato de aluguer do veiculo sem condutor – Condições particulares /proposta nº 1..., relativamente ao veiculo marca ..., modelo ....

5) - Ao abrigo daquele contrato, o Réu tinha o direito de usar o veículo, mediante a obrigação de pagar 49 alugueres mensais, sucessivos e iguais de €232,15 cada um, à excepção do primeiro que foi de € 1.873,69.

6)- A L..., S.A. instaurou contra o R. AA uma execução que correu termos com o nº 3725/O4..., no Tribunal Judicial ..., Juízo de Execução, Juiz... que tinha como título a livrança referida em 2).

Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a presente decisão, nomeadamente que:

a)- à data do preenchimento da livrança estivesse em dívida à A. o valor de €9.700,80 referente ao contrato referido em 4) e 5) e que até ao momento não tenha sido possível recuperar qualquer montante, quer por penhora, quer por pagamento voluntário”.


Apreciemos então as questões suscitadas.
A – Saber se a sentença é nula por os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão.
É, desde há muito, entendimento pacífico[3] que as nulidades típicas da sentença se reconduzem a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal.
Tratam-se, na essência, de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário da sentença e que obstaculizam o pronunciamento de mérito.
Assim, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), conduz a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou normativa (traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei), o error in procedendo consiste num desvio à realidade factual ou jurídica (por ignorância ou falsa representação da mesma).
Revisitando o ensinamento de José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, págs. 124, 125), o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de atividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional.
Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afetam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua atividade.
As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico)[4].
Em suma, como se refere no Ac. do STJ. de 03.03.2021 (processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1), as causas de nulidade da decisão elencadas no artigo 615.º do Código de Processo Civil visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o erro de julgamento, não estando subjacentes às mesmas quaisquer razões de fundo.
No que ao caso dos autos interessa, ou seja, quanto à nulidade da sentença fundada na contradição entre os seus fundamentos e decisão, pressupõe-se um erro lógico na argumentação jurídica, dando conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adotada, ou seja, como se refere no Ac. do STJ de 22.01.2019 (processo 19/14.4T8VVD.G1.S1) “apenas ocorre, quando os fundamentos invocados pelo Tribunal deviam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que veio expresso no dispositivo”.
Sucede que na situação presente existe uma total coerência entre a fundamentação e a decisão, tendo-se entendido – bem ou mal é questão de que agora não interessa cuidar – que, tratando-se de uma ação declarativa de condenação “em que são RR. não só o Réu AA que subscreveu a livrança, mas igualmente a massa insolvente que contestou a acção e é terceira relativamente ao contrato outorgado entre a A. e o R. AA e à emissão da livrança, não existindo, desde logo, por esse facto, e em face da contestação, qualquer possibilidade de se considerar confessado qualquer facto, impunha-se que a A. não só alegasse correctamente a relação subjacente, fundamental, ou seja, os factos constitutivos essenciais da relação causal à subscrição e emissão da livrança, como provasse através de prova testemunhal quer o incumprimento do R. quer o valor que se encontrava em dívida e a que título (…) não se tendo provado que R. AA à data do preenchimento da livrança devesse à A. o valor de €9.700,80 referente ao contrato referido em 4) e 5) e que até ao momento não tenha sido possível recuperar qualquer montante, quer por penhora, quer por pagamento voluntário, a acção terá manifestamente de soçobrar”.
Enunciando o raciocínio de outra forma; não operando no caso os princípios da abstração e da incorporação (relativamente à livrança) e sendo a Massa Insolvente terceira relativamente ao contrato celebrado entre a A. (que incorporou a L...) e AA (subscritor da livrança e agora insolvente), impunha-se que a A. fizesse a prova do crédito a que se arroga. Não tendo sido feita essa prova, o crédito não pode ser reconhecido.
Trata-se de um raciocínio lógico e congruente que induz ao resultado correspetivo em total coerência.
A existência ou não desse crédito, a correta subsunção dos factos ao direito, o saber se os factos provados permitem dar o crédito da A. como existente, contende já com o acerto da decisão e não com o vício em apreciação.
Não ocorre, por isso, com suporte no fundamento avançado, o apontado vício de nulidade da sentença.

B – Saber se perante os factos considerados provados devia ter sido reconhecido o crédito da A.
Antes de avançarmos com qualquer outra argumentação ou desenvolvimento, importa acentuar o óbvio: não tendo o recurso como objeto a impugnação da matéria de facto (a que se refere, ao demais, o art. 640.º do CPC), a factualidade considerada pela 1.ª instância deve manter-se intocada e, designadamente, não ter a A. logrado provar que à data do preenchimento da livrança estivesse em dívida à A. o valor de €9.700,80 referente ao contrato referido em 4) e 5) e que até ao momento não tenha sido possível recuperar qualquer montante, quer por penhora, quer por pagamento voluntário.
O que nos transporta para o núcleo da questão controversa que é a de saber se a A. tinha que fazer essa prova, o que é o mesmo que perguntar se os factos provados são, por si só, bastantes para a A. alcançar a procedência da ação.
Com efeito, ressalta provado que a A. (por incorporação, por fusão, da L..., S.A.) é a legítima portadora da livrança titulando a quantia de € 9.700,80, subscrita em 04.06.2023 pelo agora insolvente AA e tendo 04.07.2003 como data de vencimento.
Como é sabido, os títulos de créditos apresentam uma disciplina jurídica própria, destinada a promover a respetiva circulação e a tutelar os terceiros, de boa-fé, portadores desses títulos, que, em consequência dessa circulação, venham a entrar na posse do título cambiário.
Entre outros princípios vigora nessa disciplina o princípio da incorporação da obrigação no título, o que significa que o título tem uma função constitutiva do direito cartular que incorpora, sendo o documento (o título) necessário para exercitar o direito nele mencionado – o título representa o direito, sendo a titularidade do documento que decide a titularidade do direito nele mencionado; o documento é o principal, sendo o direito seu acessório.
Por outro lado, de acordo com o disposto no art. 17.º da L.U.L.L., aplicável à livrança por força do art. 77.º do mesmo diploma legal, “as pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”.

Um dos princípios revelados por este normativo e que reflete a especial preocupação em defender os interesses dos terceiros de boa-fé, imposta pela necessidade de facilitar a circulação dos títulos de crédito, é o da abstração ou seja a ideia de que o negócio cambiário não tem uma causa própria tipificada legalmente e é independente em cada caso concreto da sua causa, da função determinada que visa (cfr. Lobo Xavier; Lições de Direito Comercial, III, pág. 47).

A disposição citada sanciona a inoponibilidade ao portador mediato das exceções fundadas nas relações pessoais do devedor e, designadamente das exceções causais que decorrem dos vícios de uma relação pessoal estabelecida entre dois dos figurantes da cadeia cambiária (v.g. nulidade do negócio); a obrigação cambiária é vinculante independentemente dos possíveis vícios da sua causa.

Este princípio acaba por conduzir a um outro que é, no fundo, seu simples reflexo na perspetiva do portador do título - o da autonomia que significa, seguindo de perto as Lições de Ferrer Correia, (Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio”, vol. III, pág. 40 e segs.) que o possuidor do título adquire o direito que o título incorpora e anuncia de um modo originário, isto é, independentemente da relação jurídica fundamental ou subjacente, em relação à qual é autónomo e independentemente, não lhe sendo, por isso, oponíveis os vícios que porventura existam e que emirjam da relação subjacente ou fundamental.

A causa ou relação fundamental ou subjacente é separada do negócio cambiário (abstração) e este é vinculante para os obrigados cambiários independentemente dos possíveis vícios da sua causa e, por isso, se tornem inoponíveis ao portador mediato e de boa-fé as exceções cambiais: falta, nulidade ou ilicitude da relação fundamental, exceptio inadimplenti contractus, etc., porque decorrem de uma convenção extracartular, exterior ao negócio cambiário.

Ocorre que estes princípios apenas são válidos nas denominadas relações mediatas, mas já não nas relações imediatas.

Nas relações imediatas, isto é, naquelas em que o credor e o devedor do título são igualmente os sujeitos da relação subjacente, o título cambiário não chegou a entrar em circulação, pelo que não existem razões para se proteger a circulação do título, sequer eventuais terceiros de boa-fé que tenham entrado na posse do título por via das sucessivas transmissões daquele (Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Almedina, págs. pág. 191).

Nessas relações (imediatas), o título cambiário perde as suas características de literalidade, autonomia e abstração, pelo que qualquer das partes pode apelar às relações extracartulares que estiverem na origem do título cambiário e invocar contra o portador do título que contra ele pretenda exercer o direito cambiário, eventuais exceções resultantes da relação causal que tenha por sujeito aqueles sujeitos cartulares que concomitantemente o são da relação subjacente ou fundamental.

Não restam dúvidas em como na situação dos autos as relações cartulares entre a A. e o R. AA se inserem no âmbito das relações imediatas (são eles os originários formadores do título, um como credor e outro como promitente pagador), pelo que o devedor poderia opor ao beneficiário (a A.) todas as exceções que se verificassem (pagamento, inexistência da relação causal, etc.), exceções essas que não suscitou, não tendo, de resto, deduzido oposição.

Deixada esta premissa, a interrogativa que se coloca em termos sequenciais é de saber se esse posicionamento confessório se apresenta vinculativo para a Massa Insolvente (representada pelo A.J.).

Ora, muito embora o administrador de insolvência assuma a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessam à insolvência (art. 81.º, n.º 4 do CIRE), afigura-se-nos resultar inequívoco que este se apresenta como uma figura substantiva e processualmente autónoma, cabendo-lhe a defesa geral dos interesses dos credores, e estando-lhe mesmo vedada a representação do devedor nos incidentes e apensos da insolvência, designadamente o da verificação ulterior de créditos em presença (art. 81.º, n.º 5 e 146.º, n.º 1 do CIRE).

Do exposto decorre que o Administrador da Insolvência não se apresenta no âmbito das relações cartulares imediatas (não é uma mera figura de substituição do insolvente), nem mediatas (não é portador do título nem nele inscreveu qualquer ato juridicamente vinculativo).

Assim, de acordo com as regras gerais relativas ao ónus da prova (art. 342.º do Cód. Civil), e não beneficiando da proteção que a lei (apenas) confere aos detentores de boa fé, a A. estava obrigada a fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, exigindo-se-lhe, como bem se refere na sentença recorrida que “alegasse correctamente a relação subjacente, fundamental, ou seja, os factos constitutivos essenciais da relação causal à subscrição e emissão da livrança” e efetuasse a prova respetiva.

E não se invoque a este propósito – como fez o recorrente – o valor da livrança como quirógrafo (reconhecimento de obrigação assumida pelo punho), porquanto o documento em causa apenas poderia apresentar eficácia para efeitos do disposto no art. 458.º do Código Civil relativamente ao devedor, mas não já relativamente à Massa Insolvente (representada pelo Administrador Judicial).

E, a este propósito, recorda-se que, independentemente do acerto da decisão proferida pela 1.ª instância na apreciação da prova, foi considerado como não provado que à data do preenchimento da livrança estivesse em dívida à A. o valor de € 9.700,80 referente ao contrato celebrado entre a L... (incorporada) e o agora insolvente e bem assim que até ao momento não tenha sido possível recuperar qualquer montante, quer por penhora, quer por pagamento voluntário.

Do exposto resulta que, num quadro de execução universal destinado à satisfação dos credores, estando em causa a pretensão de vinculação ao pagamento da prestação de outro sujeito que não o subscritor da livrança – Massa insolvente – e que nela não teve qualquer intervenção, mau grado a confissão da dívida por esse subscritor (insolvente), se exigia que a A. fizesse prova da existência do crédito invocado, não bastando para tal a mera invocação dos princípios da incorporação, literalidade, abstração e autonomia, coevos à proteção de terceiros no âmbito de uma relação cambiária.

Não tendo sido feita essa prova, o recurso está condenado ao insucesso.


Sumário[5]:

(…).

                                                                                     *

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

                                                                                    *

Custas pela recorrente (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                                      *

Coimbra, 24 de outubro de 2023


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(Paulo Correia)

______________________

(José Avelino Gonçalves


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(Arlindo Oliveira)




[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – José Avelino Gonçalves e Arlindo Oliveira
[2] - Não se procede à transcrição nesta parte por os factos provados e não provados serem enunciados posteriormente.
[3] - Por todos o acórdão STJ, de 9.4.2019 (processo n.º 4148/16.1T8BRG.G1.S1.)
[4] - Cfr. o acórdão STJ de 17.10.2017 (processo. n.º 1204/12.9TVLSB.L1.S1).
[5] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).