Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ANTÓNIO FERNANDO SILVA | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS HEMORRAGIA ENCEFÁLICA BOMBEIRO NEXO DE CAUSALIDADE CAUSA SÚBITA EXTERNA E IMPREVISÍVEL | ||
Data do Acordão: | 01/09/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO CENTRAL CÍVEL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 210.º DO REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO | ||
Sumário: | I – Ocorrendo uma hemorragia encefálica associada a um evento de grande tensão (bombeiro em auxílio a criança acidentada), sem se apurar a causa orgânica concreta da hemorragia (mormente a existência de causa dissociada daquele evento), é probatoriamente ajustado associar aquela hemorragia ao referido evento quando este se pode afirmar, em termos médicos, constituir factor causal daquela hemorragia. II – Tal evento constitui uma causa súbita, externa e imprevisível da lesão, para efeitos do art. 210º do Regime Geral do Contrato de Seguro. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
Decisão Texto Integral: | Relator: António Fernando Silva Adjuntos: Teresa Albuquerque Luís Ricardo Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Vem a presente acção intentada por AA, BB e CC contra A..., SA, pedido o pagamento de 121.250 euros, correspondente ao capital devido em caso de morte da pessoa segura, acrescido de juros de mora. Alegaram, no essencial, que o marido da primeira e pai dos segundos AA. faleceu no exercício da sua atividade como bombeiro voluntário na sequência de uma hemorragia encefálica, causada pela missão de socorro que estava a realizar, o que justificava a mobilização do contrato de seguro celebrado com a R.. Suscitaram também a intervenção principal de DD, menor, igualmente filho do falecido. A R. contestou, invocando a existência de causa prejudicial por estar pendente ação laboral relativa ao mesmo evento, com base em apólice de acidentes de trabalho; a exclusão do falecido da cobertura do seguro por se ter mantido como trabalhador do Município ... (apesar de cedido aos Bombeiros Voluntários); e a inadmissibilidade de cumulação de indemnizações decorrentes dos contratos de seguro referidos. Impugnou ainda a versão dos AA., sustentando que o óbito teve causa espontânea, sem conexão com o exercício das funções. Admitida a intervenção principal de DD, este aderiu ao articulado dos AA.. No saneamento foi indeferida a requerida suspensão da instância. Após instrução e julgamento, foi proferida decisão que condenou a R. no pagamento aos AA. da quantia pedida, acrescida de juros de mora. Desta decisão interpôs a R. recurso, concluindo pela forma seguinte: I. A Recorrente “Lusitania – Companhia de Seguros, S.A.” intentou o presente recurso visando, desde logo, a reapreciação da prova gravada, nos termos do disposto no artigo 638.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, por entender que a resposta positiva ao ponto 30 da matéria de facto dada como provada deveria ter sido dada como não provada, impondo-se, por essa razão, a sua reanálise e alteração nos termos contantes do presente recurso. II. A Recorrente interpõe, ainda, o presente recurso por não concordar com o teor da sentença recorrida, uma vez que a mesma, salvo o devido respeito, não consubstancia a rigorosa aplicação do direito, razão pela qual não concorda com as conclusões retiradas e a decisão proferida, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que faça uma correcta aplicação do direito. III. Da análise da prova carreada para os autos, designadamente dos esclarecimentos dos peritos médicos e, bem assim, da testemunha Dr. EE, bem como os demais elementos probatórios, impunha-se ao tribunal a quo ter concluído de modo diverso, designadamente dar como não provada a matéria de facto dada como provada no ponto 30. IV. O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo partiu de um juízo de probabilidade, concluindo que a hemorragia foi despoletada pelas circunstâncias e estímulos externos envolventes… V. O sinistrado é um bombeiro, o qual, no seu dia-a-dia, socorre vítimas em diversos estados (mais graves ou menos graves), pelo que não será expectável que o exercício da sua função numa chamada de emergência seja passível de provocar um estímulo tão intenso que pudesse provocar uma hemorragia encefálica espontânea sem mais… VI. Atente-se aos esclarecimentos do Perito Médico, FF, o qual partiu da premissa da existência de um factor externo, para, no seu raciocínio, excluir a existência de qualquer outro factor, designadamente, o apontado pela outra perita médica, Dra. GG, e a testemunha Dr. EE. VII. O mesmo admitiu desconhecer a causa da hemorragia encefálica do sinistrado, pelo que, as suas conclusões enfermam de vício, sendo certo que, questionado do que acontece aquando de um rebentamento de aneurisma, hipótese colocada pelos outros dois colegas, o mesmo admitiu que se encontraria precisamente o que foi encontrado pelo médico legista e que transpôs no seu relatório de autópsia, ou seja, hemorragia encefálica espontânea. VIII. Atente-se aos esclarecimentos da perita médica, Dra. GG, é manifesto que a mesma chegou à conclusão da existência de uma malformação dos vasos, que teria levado a um rebentamento de aneurisma entretanto formado. IX. Sendo certo que, apenas admitiu a hipótese de uma situação de stress despoletar um eventual rebentamento na hipótese de o sinistrado padecer de uma predisposição para hipertensão, a qual, não fazendo nenhuma conclusão baseada em meras suposições, contrariou tal hipótese, por não haver historial clínico do sinistrado nesse sentido. X. Sendo certo que, atente-se que esta perita médica afirmou que, e sem conhecer as concretas circunstâncias que envolveram a morte do sinistrado, que o mero agachamento para apertar de um cordão pode causar o rebentamento de um aneurisma, o que, se atentarmos no facto dado como provado 21 percebe-se que o sinistrado, momentos antes do seu falecimento, acocorou-se… XI. Pelo que, atento os elementos objectivos existentes nos autos, no entendimento da Recorrente, existe um juízo serio de probabilidade de que o que motivou o óbito do sinistrado foi uma malformação nos vasos sanguíneos com consequente rebentamento de aneurisma, que em nada se relacionam com factores externos, podendo ocorrer de forma súbita e inesperada… XII. Atente-se, por fim, no depoimento da testemunha, EE, neurocirurgião de profissão, que não teve dúvidas nas causas do falecimento do sinistrado, designadamente, que foram causas espontâneas. XIII. O que não houve dúvidas é que o falecido HH tinha patologias prévias, ainda que identificadas post mortem, que potenciavam o risco. XIV. Do depoimento da prova pericial e, bem assim, dos esclarecimentos prestados, foi manifesto que teria que existir um factor interno para o despoletar da hemorragia encefálica, sendo o mais provável, a existência de malformações nos vasos. XV. Assim, atento o exposto, é entendimento da Recorrente que o Tribunal a quo não deveria ter dado como provada a matéria de facto dada como provada no ponto 30, devendo a mesmo ser aditada ao elenco de matéria de facto dada como não provada. XVI. Conforme consta da sentença ora colocada em causa, entendeu o Tribunal a quo que, atenta a matéria de facto dada como provada, que o evento em causa se caracteriza como um acidente, XVII. No relatório de autópsia não se fez constar qual a concreta causa da morte, designadamente o que originou a hemorragia encefálica espontânea, a qual não se subsume à definição de acidente contratada, por lhe faltar desde logo o requisito de exterioridade. XVIII. Tal requisito pressupõe a exclusão dos eventos ocorridos ou desencadeados no interior do corpo, inerentes à própria vítima, como é o caso de uma hemorragia encefálica espontânea. XIX. A mera operação de socorro a uma vítima, por um profissional a laborar num Corpo de Bombeiros, não é, por si só, sem o concurso de uma predisposição do organismo (conhecida ou desconhecida à data do evento), suficiente para causar a morte de HH. XX. Do certificado de óbito apenas refere hemorragia encefálica espontânea, sendo que da matéria de facto dada como provada, não consta qual a causa de tal hemorragia. XXI. A caracterização do evento como acidente pressupõe, que o mesmo tenha decorrido de causa externa, excluindo, portanto, os eventos que são originados e desencadeados por factores inerentes ao próprio organismo. XXII. Sem qualquer factor interno, o facto de a vítima HH estar sob uma situação de “stress”, enquanto cumpria as suas normais funções, não é idóneo a produzir o resultado morte. XXIII. A causa da morte foi hemorragia encefálica espontânea, sem que se tenha determinado onde a mesma começou e o que a motivou, designadamente, se um aneurisma, se um mero rompimento de um vaso, entre outras… XXIV. O Tribunal a quo não pode, atenta a ausência de uma “origem” da hemorragia, determinar que um factor externo, seja ele qual for, possa ter espoletado a mesma… XXV. Acresce que, tal como resultou da matéria dada como provada, a vítima tinha factores predisponentes à ocorrência do evento em causa. XXVI. Para ser qualificado como acidente, era necessário que se desse como provado que o “acidente” não se deu por circunstâncias atinentes ao organismo do falecido HH. XXVII. Não é possível afirmar que a hemorragia encefálica espontânea se deveu a uma causa externa e não pela condição física e/ou qualquer patologia que o sinistrado padecia. XXVIII. Nesta parte, atente-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 1 de Março de 2016, no processo n.º 4992/13.1TBLRA.C1. XXIX. Assim, deve ser revogada a sentença que condenou a Recorrente a pagar aos Autores o montante de € 121.250,00, e substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido. Os AA. responderam, sustentando de forma fundamentada a solução alcançada pela sentença impugnada.
II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa». Assim, as questões a tratar analisam-se no seguinte: - avaliar o mérito da impugnação do facto descrito em 30 do elenco de factos provados. - avaliar se os factos caracterizam um acidente relevante para efeitos do contrato de seguro em causa.
III. Estão tidos por provados os seguintes factos: 1. A ré é uma sociedade comercial por quotas que tem por objeto e se dedica efetivamente à atividade de comercialização de seguros; 2. No exercício da sua atividade comercial, a ré celebrou com o Município ... um contrato de seguro, do ramo de acidentes pessoais, titulado pela Apólice n.º ...34, que garante os danos emergentes do risco profissional dos Bombeiros Voluntários ... de acordo com uma lista que lhe foi facultada; 3. O falecido HH exerceu funções no Município ..., com a categoria de motorista, e posteriormente nos Bombeiros Voluntários ...; 4. O exercício de funções nos Bombeiros Voluntários ... acontecia ao abrigo de um Protocolo de Colaboração para Cedência de Trabalhadores Municipais, dado que o mesmo tinha um vínculo laboral com a Câmara Municipal .... 5. Enquanto trabalhador cedido aos Bombeiros estava incluído na referida lista de pessoas seguras no âmbito do supra mencionado seguro de acidentes pessoais celebrado entre o Município ... e a Ré. 6. No âmbito da apólice do seguro de acidentes pessoais foi convencionado o pagamento do montante de € 121.250,00 (cento e vinte e um mil, duzentos e cinquenta euros), devido a um acidente do qual resulte a morte da pessoa segura. 7. A referida apólice prevê que: i. Constitui «sinistro» o «evento ou série de eventos resultantes de uma mesma causa suscetível de fazer funcionar as garantias do contrato» (cf. cláusula 1.ª, al. h) das Condições Gerais); ii. «por acidente, entende-se: a. O acidente que se verifique no exercício da missão de bombeiro, ou por causa dela, incluindo ações de formação/instrução e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de anho ou a morte; b. O acidente ocorrido durante o percurso direto para o local de apresentação ao serviço ou no regresso destes, qualquer que seja o meio de transporte» (cf. Cláusula 2.ª das CG); c. «em caso de morte, o Segurador pagará o correspondente capital seguro ao(s) Beneficiário(s) expressamente designado(s) no contrato (cf. Cláusula 23.ª da CG), prevendo as condições pessoais o valor de € 121.250,00 para os casos de morte ou invalidez permanente. 8. HH, respetivamente marido e pai dos autores, nasceu a .../.../1977 e quando faleceu tinha 38 anos de idade. 9. No dia 21/10/2015, sob as ordens, direção e orientação dos Bombeiros Voluntários ..., HH deslocou-se ao Hospital de Viseu, pela manhã, a fim de transportar doentes. 10. Quando regressava de Viseu manteve uma breve conversa telefónica com a esposa, mostrando-se bem disposto. 11. Ao chegar à sede dos Bombeiros, pelas 12h50min, HH foi imediatamente solicitado a deslocar-se às instalações do Agrupamento de Escolas ... com vista a socorrer uma criança acidentada. 12. De imediato saiu para tal missão, sem ter descansado, almoçado ou satisfeito qualquer necessidade fisiológica. 13. Ao chegar à escola na companhia da bombeira II, HH deparou-se com uma criança de cerca de 10 anos, gravemente ferida, que foi vítima de uma queda de um corrimão das escadas da altura de um piso. 14. A criança encontrava-se no chão, a sangrar do ouvido, com grande inchaço e hematoma na zona da nuca, com olhar vidrado e absorto e em estado quase inconsciente, tendo tido convulsões. 15. HH apenas tomou conhecimento, no momento da chegada, das características da ocorrência. 16. No local encontravam-se alguns professores, a psicóloga escolar, pessoal não docente e a mãe da criança acidentada. 17. Um número diverso, mas indeterminado, de alunos encontrava-se presente, ainda que afastado e contido a cerca de dez metros do local. 18. Pelo menos uma das professoras e a mãe da criança choraram e gritaram por mais do que uma vez, em choque. 19. HH tinha, à data, dois filhos de idade próxima da criança a que prestava assistência. 20. Assim que chegaram e tomaram conhecimento da situação em causa, HH deslocou-se, em corrida, à ambulância para recolher um saco com material de socorro, ficando a sua colega II a segurar a criança ferida. 21. Uma vez regressado, acocorou-se junto à criança para colocar o medidor de tensão arterial no seu braço, momento em que – ato contínuo – caiu para o lado. 22. Assim que caiu, HH ficou inconsciente, manifestou convulsões durante alguns segundos, urinou-se abundantemente e perdeu os sinais vitais. 23. HH não fumava, não tomava medicamentos regularmente, não consumia drogas, nem ingeria bebidas alcoólicas. 24. Recorreu ao Hospital ..., na ..., cinco vezes em data anterior a 21 de outubro de 2015, sendo elas: 2 consultas externas de Ortopedia em 2001 e, 3 assistências no Serviço de Urgência (1 em 2001 e 2 em 2004). 25. Os episódios de urgência relacionaram-se com: i. Em 2001, o diagnóstico realizado com resumo da observação clínica foi fratura tacícula do rádio direito, sem desvio, tendo sido feita uma imobilização com tala engessada; dos registos disponíveis não se consegue apurar se houve prescrição de medicação; ii. Em 2004, o diagnóstico realizado com resumo da observação clínica foi paralisia facial e dos registos disponíveis não se consegue apurar se houve prescrição de medicação; 26. O relatório da autópsia realizada a HH, entre outras menções, i. não indica o peso do cadáver; ii. no plano do exame do hábito interno a. quanto à cabeça/meninges, refere «hemorragia subdural e subaracnoídea generalizada mais acentuada a nível frontal»; b. quanto à cabeça/encéfalo, refere «congestionado/hemorragia dos ventrículos laterias, 3.º e 4.º, peso: 1650g) c. quanto ao abdómen, refere «panículo adiposo de 7cm de altura» 27. O relatório da autópsia realizada a HH apresenta como conclusões:
28. Em momento compreendido nos segundos que antecederam o seu falecimento, HH foi acometido de hemorragia encefálica. 29. Em face da condição da criança e das reações das pessoas presentes, HH ficou transtornado e num estado de grande tensão e nervosismo. 30. A hemorragia encefálica de HH foi espoletada pelas circunstâncias e estímulos externos envolventes causadores de elevada tensão que imediatamente a antecederam: nomeadamente, o estado da criança a que prestava assistência e o pânico, vozearia e gritaria existentes. 31. Quando faleceu, HH padecia de hipertrofia miocárdica e de esteatose hepática, ambas de causa desconhecida, mas que potenciaram a hemorragia verificada. 32. As referidas patologias não foram identificadas ou diagnosticadas em vida.
IV. 1. A recorrente impugna a matéria de facto descrita em 30. Os ónus legais de impugnação (art. 640º n.º1 e 2 al. a) do CPC) foram tendencialmente, do ponto de vista da efectiva impugnação realizada, cumpridos[1]. Isto porquanto (e como aliás se salienta na resposta), pese embora todo o complexo factual descrito em 30 seja impugnado (e se conclua que deva ser tido por não provado), verifica-se, a partir da alegação (e conclusões) e dos meios de prova mobilizados, que não é realmente impugnada a parte do complexo factual relativa à existência das circunstâncias e estímulos externos descritos: tal matéria não foi contrariada (impugnada) nem foram invocados (nem discutidos e reproduzidos) meios probatórios que contestassem tal asserção factual. Nesta parte, inexiste realmente impugnação [ou, a existir, ela não cumpriria os requisitos da impugnação (o que seria fundamento de rejeição), e, de qualquer modo, não estaria probatoriamente fundada]. O que a R. pretende é discutir a imputação da hemorragia a tais circunstâncias (as quais, em si, não discute), tendo o facto em causa por não provado apenas por não existir aquele nexo de imputação, e já não por não existirem (ou por também não existirem) tais circunstâncias. Donde que, quanto à existência de tais circunstâncias, inexista avaliação autónoma a realizar.
2. Quanto ao mérito da impugnação efectivamente realizada, os elementos probatórios essenciais reconduzem-se aos relatórios periciais e seus esclarecimentos e, em particular, às declarações prestadas em audiência pelos peritos (GG e FF, declarações estas que se sobrepõem, em certa medida, aos relatórios por os explicitarem e desenvolverem) e pela testemunha EE [neurocirurgião com longa experiência profissional e também académica, e que na verdade depôs em veste quase pericial]. Cabe começar por sublinhar que se verifica alguma hipertrofia de natureza terminológica, valorando-se qualificações médicas que podem não ter o mesmo significado ou alcance no âmbito da medicina e do direito. Por exemplo, não importa avaliar se a existência de predisposição fisiológica para o evento o torna «uma doença súbita de causa natural» ou um «acidente espontâneo», e não «traumático», mas antes avaliar o que causou o evento e descrevê-lo. A distinção é importante porque é ela que explica que o rebentamento de um aneurisma (que se usa como exemplo apenas porque foi extensamente invocado no processo) causado por uma situação de stress possa ser natural (acidental) para a medicina e possa ter significado diferente para o direito [2]. Donde que se não atribua valor determinante a tais qualificações.
3. Posto isto, assente está que ocorreu uma hemorragia cerebral que, em último termo, causou a morte (matéria não controvertida e amplamente revelada, incluindo pelo relatório da autópsia). A partir daqui, temos que: i. não é possível afirmar qual a causa fisiológica concreta da hemorragia, no sentido de que se sabe que ocorreu o rompimento de vaso ou vasos sanguíneos (o que se mostra claro a partir dos relatórios periciais, dos esclarecimentos dos peritos e do depoimento da testemunha EE) mas se ignora qual a causa desse rompimento. Com efeito, o relatório de autópsia não identifica essa causa. O perito FF referiu que seriam necessários exames adicionais (análise patológica), não realizados, para o procurar determinar com certeza, mormente para poder assegurar que se tratava de um aneurisma. Das declarações da perita GG também deriva que esta ignorava a causa concreta do rompimento, que nunca assegurou (mesmo quando fala no aneurisma, é em termos gerais e na sequência de perguntas colocadas, sem de forma directa e clara o associar ao falecido), fixando-se antes na afirmação do carácter interno, congénito, da causa (o que já assegurava no relatório pericial mas sempre sem identificação do concreto factor interno) – carácter interno este que afirma sobretudo a partir da inexistência de evento traumático externo (que define como algo violento, traumático) e não por conhecer a causa imediata da ruptura. Por fim, também a testemunha EE[3], que mais sustentou a hipótese do aneurisma, admitiu, no final do seu depoimento, que não foi pesquisada a existência desse aneurisma (o que devia ter sido feito), assim como, com perfeita honestidade, afirmou que deduzia ter estado em causa um aneurisma (pelas condições do evento, próximas às condições resultantes do rebentamento do aneurisma, e pela frequência desta situação) mas também admitiu que há outras causas determinantes de hemorragias, as quias muitas vezes permanecem como tendo causa indeterminada porque não a encontram, e que poderão ser causadas por picos hipertensivos ou por pequenas mal formações (…) que rompem e não deixam rasto (tendo igualmente admitido que faltava no relatório a fixação de tal causa, e referido ainda que a maioria dos casos não apresenta uma causa conhecida da hemorragia). O que revela que a sua assunção da específica causa não era minimamente segura. ii. não é possível fixar a existência de predisposição patológica directa para o rompimento quer por se ignorar a causa (e com isso não se poder avaliar a existência de tal predisposição) quer porque, pese embora a testemunha EE tenha afirmado que teria que haver um defeito prévio, que um vaso normal não rompe no nosso dia a dia, o perito FF já tendeu a sustentar que ocorreu uma ruptura espontânea, no sentido de desligada de pré-causa, provocada pela pressão craniana que explicitou [sem que entre a testemunha e o perito se tenham detectado graus diferentes de honestidade, ou se tenha associado a algum deles alguma parcialidade[4]; ao invés, ambos procuraram prestar com rigor a informação que julgavam corresponder à situação, apenas divergindo na avaliação feita]. Sendo que o próprio reconhecimento pela referida testemunha EE da existência de causas indeterminadas para a hemorragia depõe contra a sua referida afirmação pois, se se ignora a causa, também se ignora se nesses casos (e é essa a situação dos autos) existia, ou não, defeito físico prévio. É certo que, se no relatório pericial daquele perito FF se atribui algum relevo sobretudo da hipertrofia do coração, também se percebe a partir dos seus esclarecimentos em julgamento que o essencial se joga na pressão intracraniana (e, de qualquer modo, aquela hipertrofia não era uma causa próxima da hemorragia mas apenas da disfunção arterial). Donde ser inviável a afirmação de qualquer prévia malformação, ainda que indeterminada. Embora, em rigor, também se não possa afirmar que ela inexistia. Assim, resta a avaliação do nexo entre a hemorragia em si e as circunstâncias em que tal evento ocorre. Ponto onde releva que: - como deriva dos factos provados, não impugnados, mas também dos depoimentos das testemunhas que a esta matéria se referiram, estava em causa evento que impactou o falecido, ao ponto de este reagir e se alterar de forma visível (com contexto igualmente pressionante: factos 9 e ss.). Compreensivelmente por estar em causa criança em estado muito grave e com idade próxima aos filhos da vítima (constituindo dado da experiência a associação que os pais fazem com os filhos), em situação singular para o falecido (situação não comum, corrente) e com características agressivas no seu contexto global (como, aliás, está expresso nos demais factos assentes). - foi sustentado e explicitado, de forma convincente e fundada, pelo perito FF que um evento externo que causa estímulo emocional (stress, tensão) provoca uma agressão psíquico-física (síndroma geral de adaptação) que pode causar o rompimento de vaso e a subsequente hemorragia (reportando-se em especial à caixa craniana, pelas suas condições específicas), nos termos que desenvolveu em audiência (e também constam do relatório que elaborou) e se mostram, mesmo do ponto de vista do leigo, compreensíveis e coerentes (o perito sustentou esta hipótese como a leitura que considerava mais ajustada, mas também admitiu que não se podia demonstrar directamente, sendo neste sentido menos taxativo do que no relatório pericial[5]). Acresce que a referida testemunha EE também referiu que picos hipertensivos (ou seja, pressão do sangue nos vasos) pode provocar o rompimento (mormente nas situações de hemorragia de causa indeterminada que referiu), o que se aproxima da explicação adiantada pelo perito (que supõe justamente a dilatação e maior pressão nos vasos sanguíneos). A própria perita GG, no seu relatório, também reporta a pressão intracraniana como possível causa da ruptura (que qualifica, no entanto, como espontânea). E esta mesma perita também declarou que situações adversas podem fazer a tensão aumentar, admitindo implicitamente um efeito letal em função da existência de «um estado físico que o facilite» (já não indicou o que seja este estado). - a hemorragia ocorre no decurso (e no auge) do referido evento impactante. - as patologias diagnosticadas ao falecido (fígado e coração) não constituem causa do evento letal (como consta de 31 dos factos provados, matéria não impugnada; e nenhuma prova, na verdade, sustentou a sua qualificação como causa da hemorragia mas apenas como seu factor) e até se tendeu a afirmar que, por si, poderiam nunca impactar a vida do falecido (segundo o mesmo perito FF, com reflexo também nos esclarecimentos prestados por escrito no processo). Estes elementos permitem, de forma indiciária mas suficiente, estabelecer uma conexão directa entre o evento externo (situação de stress) e o evento interno (hemorragia letal). Neste quadro, mesmo a eventual existência de pré-disposição para a hemorragia (incluindo a existência de um aneurisma) não excluiria este nexo, apenas acrescentando uma etapa intermédia do processo causal (ou, de outra forma, uma outra causa concorrente), a qual não que não afasta aquela conexão (mesmo o eventual rebentamento de um aneurisma teria que ser visto ainda como efeito, também, do evento externo e do pico arterial associado). A ignorância do fenómeno interno concreto subjacente à hemorragia não impede, pois, o estabelecimento de tal conexão factual. Ainda que sem ele (dado ignorado), é possível estabelecer a devida conexão causal (o conhecimento daquele fenómeno não é indispensável à afirmação factual do nexo já que este subsiste mesmo sem aquele conhecimento: apenas inexiste razão conhecida para desligar essa causa do evento externo, o que até conforta a afirmação da conexão). E não tem que se demonstrar a inexistência de qualquer causa diversa que possa comprometer a afirmação daquele nexo (prova diabólica, ou mesmo impossível). Neste quadro, natural se torna, pois, considerar que existe uma relação directa entre o evento externo e as circunstâncias internas do falecido, e assim a hemorragia letal. Acresce que uma relação de mera coincidência, acidental, torna-se não apenas muito improvável como sobretudo inverosímil: admitir a «espontaneidade» da ruptura num contexto de tensão, que a potencia, contraria as regras da experiência (comum e médica, face às declarações referidas) e a racionalidade inerente à lógica das coisas. Sendo possível estabelecer uma relação médica entre o evento stressante e certo efeito concomitante, e sobrevindo este efeito, torna-se fundado afirmar (com base numa certeza prática que é probabilística e não absoluta) que existiu um nexo de causa e efeito entre aquelas duas realidades (e isto é assim ainda que se ignore a causa próxima do efeito – a hemorragia – e mesmo que se ignore se o evento externo constitui a causa única ou não – v.g., se existia malformação que funcionasse como concausa). Sempre sabendo «que a verdade absoluta é estranha ao Direito e que, por conseguinte, a formulação de juízos judiciários deve assentar, conforme as circunstâncias e a natureza do caso, em critérios que se orientem pela verosimilhança ou pela maior ou menor probabilidade», e que «não devem ser feitas exigências probatórias irrealistas» (A. Geraldes), a solução exposta mostra-se suficientemente fundada nos dados probatórios, face ao crivo da livre convicção e do grau de exigência probatória exigível. Ora, foi justamente aquela asserção factual (conexão física entre o evento vivido e a hemorragia sofrida) que foi descrita no facto impugnado, que assim se julga não merecer censura. Nota-se ainda que nem o relatório de autópsia nem as declarações do seu autor (em audiência) facultaram qualquer contributo relevante para esta específica questão. Improcede assim a impugnação da matéria de facto.
4. Resta, perante os factos provados, avaliar o seu mérito, em função do objecto definido ao recurso pela A.. Ponto onde a R. apenas discute a caracterização do evento como sendo um acidente (para efeitos do contrato de seguro), embora não tanto com base em razões jurídicas como com base em considerações factuais (insistindo no carácter «espontâneo» da hemorragia encefálica, ou na existência de um exclusivo factor interno). Ponto de vista este que ficou prejudicado pela solução factual fixada, no sentido de que se estabeleceu uma relação directa entre um evento externo e o facto letal (e assim se exclui qualquer «espontaneidade» daquele evento letal e do mesmo passo a existência de um factor interno causal exclusivo). Sem embargo, dada a impugnação do acidente no recurso (e o disposto no art. 635º n.º3 do CPC, sendo duvidosa, e por isso não relevante, a existência de uma restrição tácita, para os termos do n.º4 do mesmo art. 634º do CPC), passa a avaliar-se também o acidente de uma perspectiva jurídica. Perspectiva esta no qual o ponto de partida, o contrato, não suscita dúvidas quanto à sua qualificação (incontroversa) como contrato de seguro e, neste, como contrato de seguro de acidentes pessoais, nos termos do art. 210º do regime jurídico do contrato de seguro (RJCS, aprovado pelo DL 72/2008, de 16.04).
5. A pretensão reclamada depende da verificação do sinistro, do evento seguro, o qual se reconduz à noção de acidente, já que é este que determina o pagamento do capital seguro. O contrato, face aos factos provados, não define o acidente relevante (apenas estabelecendo conexões entre o acidente e o desempenho de certas funções que o seguro cobre ou o tipo de lesão em causa, e entre o acidente e a sua ocorrência in itinere). Tal noção haverá assim que buscar-se, como acentua a decisão recorrida, no art. 210º do RJCS, norma da qual deriva que o acidente se associa à emergência de uma causa súbita, externa e imprevisível da lesão segurada. Numa aproximação imediata, não custa verificar no caso uma causa externa, no sentido de exterior ao sinistrado, ao seu corpo, e que radica no caso na situação de auxílio que causa a tensão; uma causa súbita, no sentido de que ocorre de forma não paulatina mas imediata, sem controlo, em período curto e delimitado - sendo que súbito não se confunde com instantâneo, veiculando antes uma ideia do carácter repentino do evento, não reiterado, como ocorre no caso; e uma causa imprevisível, pois não era expectável nem se inseria na esfera de controlo do sinistrado, mostrando-se inesperada. A aproximação da noção a eventos imediatos e violentos, que decorre da linguagem comum (e era doutrinariamente sustentada e continua a ser referida), não corresponde à solução legal (nem convencional, por o contrato não interferir, como se referiu, na definição do acidente), a qual não contempla a violência como elemento caracterizador da causa da lesão (este carácter violento do evento também constava de projectos que não foram acolhidos[6]). Aliás, a referida noção legal parece aproximar-se sobretudo do caso fortuito[7], que radica essencialmente no carácter imprevisível e estranho à vontade dos intervenientes do evento. O que se mostra ajustado ainda a uma visão global do evento lesivo, que atenda às suas características externas e não intencionais. Por isso, aliás, que se aceite que circunstâncias externas insidiosas ou perigosas, ainda que não instantâneas (condições de trabalho difíceis, por exemplo), que causam patologias internas constituem ainda acidentes, para os efeitos em causa [v. Ac. do STJ proc. 09A0449, in 3w.dgsi.pt[8] (válido, embora apreciasse noção de acidente não coincidente – por mais exigente – que a agora invocada), ou J. Vasques, quando considera incluídos na noção de acidente (em considerações tecidas a partir de noção de acidente não coincidente com a agora legalmente consagrada mas que são ainda válidas perante esta noção legal) os transtornos orgânicos e as doenças consequentes a factos repentinos[9]; v. ainda Ac. do TRG proc. 223/14.5T8FAF.G1].
6. Nesta medida, a situação em causa tem que qualificar-se como acidente, para efeitos do contrato de seguro, e, causando a morte (este nexo é factualmente claro a partir do facto descrito – espoletar significa ocasionar, provocar, desencadear - e não suscita questões jurídicas próprias, aliás não colocadas no recurso), é devido o pagamento do capital seguro. Nenhuma outra questão sendo suscitada no recurso, nem se verificando questão de conhecimento oficioso, improcede o recurso, devendo assim ser confirmada a sentença recorrida.
7. As custas correm por conta da R. (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).
V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela R..
Notifique-se.
Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC): (…).
Datado e assinado electronicamente. Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.
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