Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
685/23.0PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
ROUBOS COMETIDOS NO PRAZO DA SUSPENSÃO
COMPETÊNCIA PARA APLICAÇÃO DA LEI DA AMNISTIA
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 2)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 210º, N.º 1, 40º, N.º 2, 50º, 71º DO CÓDIGO PENAL; LEI N.º 38-A/2023, DE 2.8
Sumário: I – A circunstância de as estatísticas de uma dada categoria criminal revelarem uma curva ascendente repercute-se nas exigências de prevenção geral, fazendo-as subir;

II – Consequentemente, a submoldura da prevenção (aquela que dentro da medida da ilicitude correspondente ao tipo legal permite encontrar o mínimo de pena postulado pela eficácia da norma) verá o seu mínimo deslocado para um ponto que tanto mais se afastará do mínimo previsto na moldura do tipo quanto mais crescerem as exigências de prevenção.

III – O arguido condenado em cúmulo jurídico numa pena suspensa subordinada a regime de prova pela prática de quatro crimes de furto e que em pleno período de suspensão da execução da pena comete dois crimes de roubo, sobressaindo ainda do provado dificuldades de controlo comportamental associadas ao consumo de drogas, incapacidade de assumir um compromisso firme com o acompanhamento psiquiátrico e psicológico e com o programa de substituição opiácea, bem como a relação entre os factos cometidos e a procura de obtenção de meios para satisfazer as exigências da sua adição ao consumo de heroína e cocaína, faz claudicar o juízo de prognose subjacente à suspensão da pena.
IV – Num tal enquadramento não é possível formular um juízo de prognose positiva para a suspensão da execução da pena na condenação pelos novos crimes cometidos. A manutenção do arguido em liberdade não promoveria a sua ressocialização e seria ineficaz para lograr a finalidade de dissuasão de potenciais infractores.

V – Procedendo o Tribunal da Relação à substituição de pena suspensa por pena de prisão efectiva na sequência de recurso interposto pelo M.P., deverá ponderar a verificação dos pressupostos do perdão de penas previstos na Lei nº 28-A/2023, de 2 de Agosto.

VI – Sendo controversa a aplicação do perdão relativamente aos crimes de roubo punidos pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal, face ao confronto entre o disposto no artigo 7º, nº 1, al. b), i), e o disposto na al. g) do mesmo nº 1 do art. 7º e não tendo a questão sido discutida no recurso por não se ter colocado em primeira instância face à suspensão da pena ali decretada, a decisão inovadora do Tribunal da Relação nesta matéria privaria os interessados de um grau de recurso.

VII – Nessa medida haverá que, prudentemente, relegar para decisão em 1ª instância, após baixa dos autos, a ponderação da eventual aplicabilidade da Lei nº 28-A/2023.


Sumario elaborado pelo relator.
Decisão Texto Integral:

Tribunal da Relação de Coimbra

4ª Secção (criminal)

Recurso nº 685/23.0PBFIG.C1

Relator – Jorge Miranda Jacob

1ª Adjunta – Fátima Calvo

2ª Adjunta – Cândida Martinho

_________________________

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

No âmbito destes autos de processo comum (tribunal colectivo) que correram termos pelo Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 2, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência foi proferido acórdão de cujo dispositivo consta o seguinte:

 (…)

            Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este tribunal colectivo em julgar a acusação procedente, e, consequentemente decidem:

            A)- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e concurso efectivo, de dois crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º n.º 1, do Código Penal, nas penas de um ano e três meses de prisão (ofendido BB) e um ano e seis meses de prisão (ofendida CC);

            B)- condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de dois anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos, nos termos do artigo 50º, nºs 1 e 5, do Código Penal, mediante regime de prova, nos termos do artigo 53º, nºs 1 e 2 e 52º, nº 3, do mesmo diploma, no qual deverá ser considerado o acompanhamento/tratamento para os problemas da toxicodependência; além disso, ao abrigo da alínea a), do nº 1, do artigo 51º, a suspensão da execução da pena de prisão fica ainda subordinada ao dever de o arguido pagar, dentro do prazo da suspensão, a indemnização a cujo pagamento vai condenado;

            C)- condenar o arguido, nos termos conjugados do artigo 513º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP e tabela III, anexa, no pagamento de três UC’s de taxa de justiça e demais custas, sem prejuízo do apoio judiciário concedido;

            D)- julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB e, consequentemente, condenar:

            D.1)- o demandado AA a lhe pagar a título de danos patrimoniais, a quantia de 637,97 euros (seiscentos e trinta e sete euros e noventa e sete cêntimos), acrescida de juros de mora desde a notificação até efectivo e integral pagamento;

            D.2)- o demandado AA a lhe pagar, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de 500,00 euros (quinhentos euros), acrescida de juros de mora desde a presente decisão até efectivo e integral pagamento, do mais peticionado o absolvendo;

E)- condenar demandante e demandado no pagamento das custas do pedido de indemnização civil segundo o respectivo decaimento, nos termos conjugados dos artigos 523º, do Código de Processo Penal, 527º, do Código de Processo Civil e 4º, nº 1, alínea n), “a contrario” do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Recorre o Ministério Público formulando as seguintes conclusões:

1ª O arguido AA foi aqui condenado, pela prática, em concurso efectivo, de dois crimes de roubo, p. e p. no art. 210º-1 do Código Penal, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, sendo esta pena suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, com sujeição ao regime de prova, no qual deverá ser considerado o acompanhamento/tratamento aos problemas da toxicodependência, e ficando esta suspensão subordinada ainda ao dever de o arguido pagar, dentro do prazo da suspensão, a indemnização no valor de €1.137,97 a favor do demandante BB.

2ª Consideramos, com o devido respeito, que a medida concreta das penas de prisão parcelares, bem como da pena única de prisão encontrada são excessivamente brandas e estão muito aquém da medida da culpa, mostrando-se assim erradas e desajustadas, tendo em conta as evidentes e agudas exigências de prevenção geral, bem como de prevenção especial, o que, desde logo, resulta do passado criminal do arguido.

3ª De facto, considerando os factos provados, a medida da culpa, a moldura abstracta que cabe àquele crime e os critérios de determinação da medida concreta da pena enunciados no art. 71º do CP, como as fortíssimas exigências de prevenção geral e especial, entendemos que deve ser fixada a pena parcelar de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, para o crime cometido na pessoa do ofendido BB e a pena parcelar de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, para o crime cometido na pessoa da ofendida CC;

4ª E, em cúmulo jurídico, ser aplicada ao arguido a pena única de 3 (três) anos de prisão efectiva.

5ª Isto em virtude de ter cometido estes crimes no decurso do prazo de suspensão da execução de uma pena de prisão de quatro anos, em que cerca de três meses antes havia sido condenado, sendo que o crime de roubo causa particular insegurança e intranquilidade na comunidade, a merecer cada vez mais firmeza/severidade na punição correspondente.

6ª Perante os factos dados como provados, não se podia concluir pela verificação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido.

7ª Com efeito, o arguido cometeu estes dois crimes de roubo a 29.04.2023 e 16.05.2023, logo no decurso do período de suspensão da execução da pena de prisão de quatro anos aplicada no âmbito do PCC nº 1518/21...., cujo acórdão transitou em julgado a 27.01.2023.

8ª Como resulta da própria fundamentação do acórdão em crise, o arguido não mostrou qualquer arrependimento, não interiorizou a gravidade dos seus comportamentos e desvalorizou-os.

9ª Ora, se a anterior condenação do arguido permite concluir que o mesmo ainda não interiorizou o desvalor da sua conduta, sempre se dirá que a ora decretada condenação, ainda que submetida ao regime de prova, seria seguramente inócua, ineficaz e irrelevante para o arguido, ademais analisando a sua postura tida em audiência, nada levando a crer que iria cumprir as condições agora fixadas, nem responde manifestamente às finalidades da punição.

10ª Pois, o Certificado de Registo Criminal do arguido revela o seu total alheamento pela solene advertência da anterior condenação, pelas condições aí fixadas pelo Tribunal, pelas normas incriminadoras e pelos valores que as mesmas protegem.

11ª Existem, deste modo, evidentes exigências de prevenção especial a oporem-se, no caso em apreço, a que o arguido possa beneficiar do regime de suspensão da execução da pena de prisão, o qual não é de aplicação arbitrária, exigindo, além do mais, um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido, o qual, segundo explanado, não poderá ser formulado, no caso concreto.

12ª Para além disso, também são prementes as exigências de prevenção geral, atenta a ressonância social do cometimento de crimes desta natureza, gerando enorme intranquilidade e insegurança na comunidade onde os factos ocorreram.

13ª De outro modo, revela-se evidente o sentimento de impunidade que vai grassando na nossa sociedade e de inutilidade do direito penal.

14ª O acórdão recorrido violou, entre outros, os arts. 40º a 42º, 50º, 71º e 210º-1, todos do Código Penal.

Termos em que, dando-se provimento ao recurso e, em consequência, revogando-se o acórdão recorrido e substituindo-o por outro onde se condene o arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de dois crimes de roubo, p. e p. no art. 210º-1 do Código Penal, na pena única de 3 (três) anos de prisão efectiva, nos termos sobreditos

            O arguido respondeu, pronunciando-se pela manutenção da decisão recorrida, concluindo pela forma seguinte:

            1- Na formulação do prognóstico, o Tribunal reporta-se ao momento da decisão, e não ao momento da prática do facto.

            2- O ministério público ao longo do seu recurso só se reporta ao momento da prática do facto e não ao momento da decisão.

            3- O arguido só tem 1 condenação averbada ao seu registo criminal.

            4- O arguido tinha, aquando do julgamento deste processo, e tem, uma perspetiva de mudança.

            5- É jovem. Tem 25 anos. Tem apoio familiar. Não tem tendência criminosa. Manteve uma conduta e um relacionamento adequado com os vários intervenientes do Estabelecimento Prisional. À data da decisão e atualmente quer arranjar emprego. Quer ir para uma comunidade terapêutica para tratar, de vez, o seu problema de adição à droga e refazer a sua vida.

            6- Além disso, o arguido esteva preso preventivamente à ordem deste processo, na ala de segurança do EP de Paços de Ferreira, durante quase 6 meses, experiência essa dissuasora para o arguido da prática de futuros crimes.

            7- Acerca da prevenção geral, a comunidade quer que alguém que se pretende tratar, tendo em consideração a ressocialização do agente, se trate.

            8- Pelo que o tribunal a quo não violou o disposto nos artigos 71º, 210º 40º e 50º todos do CP, devendo V.ªs Ex.ªs manter a decisão proferida pelo tribunal a quo.

            9- Não deve, portanto, ser dado provimento ao recurso do Ministério Público, assim se fazendo Justiça!

            Nesta instância o Exmº. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do recurso, acentuando a circunstância de o arguido, anteriormente condenado por quatro crimes de furto qualificado, ter incorrido na prática dos crimes a que se reportam os presentes autos no decurso do período da suspensão da pena.

            O arguido respondeu, mantendo no essencial a posição anteriormente assumida.

            Foram colhidos os vistos legais.

Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões formuladas, as questões a conhecer consubstanciam-se no seguinte:

            - Averiguar se as penas em que o arguido foi condenado são insuficientes para garantir as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir;

            - E verificar ainda se as circunstâncias do caso são incompatíveis com a suspensão da execução da pena de prisão, devendo esta ser efectivamente cumprida.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1- No dia 29 de Abril de 2023, pelas 21:50 horas, na Rua ..., ..., ..., ..., o arguido AA encontrou-se com BB, depois de lhe ter telefonado a dizer que lhe ia pagar uma dívida anterior.

2- Quando estavam juntos e enquanto conversava com BB, o arguido, contra a vontade deste, arrancou-lhe das mãos o telemóvel de marca Apple, modelo Iphone 11, de cor preta, no valor de 637,97 euros.

3- BB pediu ao arguido para lhe devolver o seu telemóvel, mas este fugiu do local levando consigo tal telemóvel.

4- No dia 16 de Maio de 2023, pelas 16:45 horas, CC seguia apeada pela Avenida ..., em ..., ..., ..., quando foi abordada pelo arguido que lhe perguntou as horas.

5- Enquanto CC respondia que não sabia as horas porque não tinha relógio consigo, logo o arguido deitou mão à sua carteira/mala de mão, puxando-a para si, arrancando-a das mãos daquela, empurrando-a e fugindo de seguida.

6- Em resultado do empurrão sofrido na resistência à acção do arguido pela posse da sua carteira/mala, CC sofreu escoriações e hematomas no seu braço esquerdo, os quais, contudo, não demandaram tratamento médico.

7- No interior da referida carteira/mala, de cor ..., CC guardava os seus documentos pessoais, um telemóvel de marca Samsung, modelo X 20 e, de cor preta e com capa cor-de-rosa – no valor de 150,00 euros – bem assim um total de 100,00 euros em notas do BCE (5 notas de 20,00 euros), 2 notas antigas do Banco de Portugal (uma de 5000 escudos e outra de 100 escudos) e outros papéis e documentos não discriminados.

8- Pouco depois, na Rua ..., junto do estabelecimento “V...”, a referida mala/carteira foi encontrada por um transeunte que a entregou à PSP.

9- Verificado o conteúdo da mala/carteira recuperada, verificou-se a falta do telemóvel de CC bem como dos 100,00 euros em dinheiro.

10- Assim que teve conhecimento do sucedido, a PSP iniciou, de imediato, diligências para interceptar o arguido.

11- Depois daquela actuação, o arguido entrou na residência de DD, na Rua ..., ..., área da ....

12- Abordada pelos agentes da PSP, DD consentiu na realização de busca domiciliária à sua residência, tendo assinado o termo de autorização respectivo.

13- Então, os agentes da PSP encontraram o arguido, no interior da referida residência, escondido numa despensa.

14- Efectuada revista sumária ao arguido, foi encontrado e apreendido o telemóvel de CC bem como 80,00 euros (4 notas de 20,00 do BCE), uma nota de 5000 escudos do Banco de Portugal e uma nota de 100 escudos do Banco de Portugal.

15- Esses bens foram depois restituídos a CC.

16- O arguido agiu, em ambas as ocasiões, com o propósito de se apoderar pela força dos bens/valores de BB e de CC, bem sabendo que tais bens não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade destes.

17- O arguido não se coibiu de utilizar força física, como supra descrito, para intimidar os ofendidos no sentido de concretizar os seus intentos, de modo a impossibilitar qualquer capacidade de reacção dos mesmos à sua actuação, o que realizou.

18- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

19- O arguido não manifesta arrependimento.

20- O arguido AA foi condenado no processo comum colectivo nº 1518/21...., do Juízo Central Criminal de Coimbra, por acórdão de 15.12.2022, transitado em julgado a 27.01.2023, pela prática de quatro crimes de furto qualificado, por factos ocorridos nos anos de 2021 e 2022, na pena única de quatro anos de prisão com regime de prova.

21- O arguido AA nasceu a ../../1998, em ..., ..., sendo o segundo filho de um casal que se separou quando ele tinha dois anos de idade.

22- O seu processo educativo e de socialização decorreu no novo agregado familiar constituído pela mãe, padrasto e irmão uterino, cuja dinâmica era pautada pela excessiva autonomia e permissividade dos descendentes.

23- Não obstante a separação dos pais, AA manteve sempre proximidade com o pai, integrando o seu agregado, registando este problemas de toxicodependência.

24- O arguido AA abandonou a escola aquando da conclusão do 6º ano de escolaridade, com registo de várias retenções, num percurso caracterizado pela desmotivação e falta de aproveitamento.

25- Posteriormente inscreveu-se na escola naval tendo obtido a cédula profissional de pescador, passando então a trabalhar em part-time, junto do pai.

26- Com 18 anos de idade trabalhou, por cerca de 3 meses, como empregado de balcão, numa pastelaria, alternadamente com actividades relacionadas com a pesca, junto do pai, que apesar de apresentar problemas de toxicodependência, sempre manteve integração laboral regular.

27- Aos 19 anos de idade, por influência do padrasto e tio paterno, o arguido começou a trabalhar como serralheiro, em diversas empresas, algumas das quais com actividades relacionadas com a manutenção industrial, que implicavam deslocações e permanência em unidades fabris fora do país, tendo a “E... Lda.” sido a sua ultima entidade patronal, sendo o último mês de trabalho Novembro de 2021.

28- Estas prestações de serviço eram bem remuneradas e permitiam-lhe períodos de inactividade laboral, durante os quais mantinha um estilo de vida desregrado, acompanhando com colegas ligados ao consumo de estupefacientes e prática de ilícitos.

29- Em 2020, o arguido iniciou uma relação de namoro com uma jovem, natural de ..., com quem passou a coabitar pouco tempo depois, residindo num apartamento arrendado por ambos na ....

30- Devido a dificuldades económicas, o arguido foi trabalhar para ..., onde permaneceu cerca de um mês e meio, ficando a namorada em Portugal.

31- Quando regressou, por forma a reduzir os gastos, mudaram de residência para um apartamento mais pequeno e mais barato, mas acabaram por terminar o relacionamento.

32- Essa separação levou o arguido AA a um quadro depressivo e de instabilidade emocional, que provocou a intensificação do consumo de estupefacientes que mantinha desde a adolescência.

3- O fracasso desta relação afectou todas as dimensões da sua vida particularmente ao nível profissional e social, uma vez que durante o período em que viveu maritalmente afastou-se dos amigos e abandonou as actividades lúdicas que praticava regularmente, nomeadamente ginásio e boxe.

34- Nesse período da sua vida, num curto período, ficou totalmente dependente do consumo de cocaína, facto que a par com os meios de sociabilidade que frequentava e os colegas que acompanhava potenciaram o seu envolvimento na prática de crimes.

35- O arguido AA foi preso preventivamente em 07 de Abril de 2022 no Estabelecimento Prisional de Aveiro à ordem do processo 1518/21...., sendo que em 08 de Agosto de 2022 foi alterada para a medida de coacção para Obrigação de Permanência na Habitação com Vigilância Electrónica, a cumprir em Comunidade Terapêutica “Desafio Jovem”, em Cucujães – Oliveira de Azeméis, onde foi integrado no programa terapêutico segundo o método Teen Challenge Internacional (método bio-psico-social e espiritual), com vista ao abandono do consumo de substâncias psicoactivas.

36- Em 15 de Dezembro de 2022, cessou essa medida de coacção de OPHVE e o arguido saiu da comunidade e integrou o agregado familiar dos avós paternos, onde residia também o pai e foi admitido novamente na empresa suprarreferida.

37- À data dos factos a que se reportam os presentes autos, o arguido havia sido expulso da casa dos avós paternos, por ter retomado o consumo de estupefacientes e apresentar sinais de agravamento do seu estado físico e mental, com crescente desorganização comportamental, perturbando os seus familiares e a comunidade.

38- Então, o arguido viveu como sem-abrigo, sem local certo para pernoitar, a família recusava-se a acolhê-lo perante as suas condições, contudo continuavam a apoiá-lo ao nível da alimentação e ao acompanhamento às consultas de readmissão agendadas na equipa de Tratamento da ... para que pudesse ser integrado em comunidade de tratamento.

39- Não obstante, o arguido AA continuou a apresentar dificuldades de controlo comportamental associado ao consumo de drogas que eram desvalorizados pelo próprio, protelando a sua readmissão na referida equipa e faltando às marcações.

40- Em 16 de Março de 2023, o arguido foi readmitido na equipa de tratamento, sendo acompanhado em consultas de psiquiatria e psicologia e integrado no programa de substituição opiácea.

41- Em 26 de Abril de 2023, o arguido integrou a Unidade de Desabituação, tendo abandonado a mesma no dia seguinte, inviabilizando o plano terapêutico proposto.

42- O arguido AA foi preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Aveiro no dia 18 de Maio de 2023 à ordem dos presentes autos.

43- Em 2 de Maio de 2023, durante o período de permanência no estabelecimento prisional de Aveiro, o arguido protagonizou uma evasão, aquando da deslocação ao Tribunal de Coimbra, tendo sido recapturado no mesmo dia.

44- Na sequência deste comportamento foi determinado o seu internamento em regime de segurança tendo sido transferido para o Estabelecimento prisional de Paços de Ferreira e integrado a secção de segurança, onde permanece desde 24 de Maio de 2023.

45- Desde que permanece neste sector, o arguido tem mantido uma conduta e um relacionamento adequado com os vários intervenientes do Estabelecimento Prisional.

46- Encontra-se abstinente do consumo de drogas sendo acompanhado em consultas de psiquiatria e psicologia com prescrição medicamentosa.

47- Os pais e a irmã conservam com o arguido uma relação de proximidade afectiva sendo que a mãe e irmã o visitam no Estabelecimento prisional e mantêm contactos telefónicos com o mesmo.

48- O arguido desenvolveu as referidas actuações com o objectivo de obter meios para adquirir produtos estupefacientes (cocaína e heroína) que então consumia.

*

49- Em virtude do comportamento do demandado AA, o demandante BB ficou privado do uso do seu telemóvel, bem como perdeu toda a informação pessoal contida no mesmo e teve de adquirir um novo equipamento e requerer novo cartão.

50- O referido telemóvel continha informação pessoal, fotografias, imagens e vídeos do demandante.

            (…)

            Apreciando as questões suscitadas no recurso importa, num primeiro momento, verificar se as penas impostas ao arguido foram correctamente determinadas, chamando desde já a atenção para a circunstância de a função do tribunal superior na fiscalização da medida da pena não ser tanto a de verificar se o seu quantum é exactamente o correcto, mas se a concretização está fundamentada e se a pena encontrada se contém dentro da faixa penal que o próprio tribunal de recurso utilizaria no caso concreto.

            Sendo pacífica a matéria de facto que o tribunal a quo teve como assente, também não se suscitam dúvidas quanto ao seu enquadramento jurídico-penal, resultando linearmente que com as suas condutas o arguido incorreu na prática de dois crimes de roubo, ambos enquadráveis na previsão do art. 210º, nº 1, do Código Penal (diploma a que se reportam todas as demais disposições legais citadas sem menção de origem), norma que dispõe nos seguintes termos:

            1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel ou animal alheios, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

(…)

            Vejamos então, à luz das normas aplicáveis e dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, como se desenvolve o raciocínio tendente à determinação da medida concreta da pena.

            Para o efeito, há que partir do critério geral do art. 71º, tomando como referência o fundamento legitimador da pena, que reside na prevenção. São, na verdade, finalidades exclusivamente preventivas que subjazem à aplicação das penas e das medidas de segurança, cabendo à culpa o papel de pressuposto da pena e de limite máximo da sua medida.

            Em consonância com essa opção, dispõe o art. 40º, nº 1, que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Assim, a concretização da pena dentro da respectiva moldura faz-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com ponderação de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando destinada a reparar as consequências do crime, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

As exigências de prevenção afirmam-se na dupla vertente da prevenção geral e da prevenção especial, assumindo cada uma delas uma específica função:

– A prevenção geral dirige-se à generalidade dos membros da comunidade jurídica e desdobra-se numa vertente positiva (prevenção geral positiva, de integração ou de socialização [1]), através da qual se determina o limite mínimo da pena admissível para o caso concreto, assente na necessidade de garantir a manutenção da confiança da comunidade na validade da norma (a sua eficácia para salvaguardar os bens jurídicos que tutela); e numa vertente negativa ou de dissuasão de potenciais infractores; finalidades cuja prossecução exige um mínimo de punição [2], variável em função do contexto e do momento histórico, capaz de satisfazer aquela dupla função.

– Por seu turno, a prevenção especial acumula uma função positiva de ressocialização do delinquente a uma outra, negativa, de dissuasão da prática de futuros crimes, operando na graduação da pena entre o mínimo reclamado pelas exigências de prevenção geral e o máximo consentido pela culpa (cfr. arts. 40º, nº 2 e 71º, nº 1) como factor de determinação do quantum [3] de pena necessário à ressocialização (entendida como adesão do agente aos valores comunitariamente postergados) e à prevenção da reincidência (que se atinge através duma pena doseada em moldes de representar um sacrifício de tal forma penoso que o agente não quererá repetir).

Na determinação das penas parcelares que impôs ao arguido, após breve enquadramento do seu regime jurídico, o tribunal recorrido consignou o seguinte:

(…)

Os factos referidos nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 71º, quer pertençam ao tipo de ilícito objectivo ou subjectivo, quer digam respeito ao juízo ou tipo de culpa, intervêm na determinação da medida concreta da pena pela via da culpa.

A determinação concreta da pena deve valorizar as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, militem a favor do arguido ou contra ele; assim, impõe-se ponderar:

- grau de ilicitude do facto: há que ter em conta a intensidade da danosidade dos comportamentos e a gravidade das actuações do arguido;

- modo de execução dos crimes: praticados na via pública e por esticão;

- gravidade das consequências: o telemóvel do assistente BB não foi recuperado, sendo que quando à senhora CC apenas não foram recuperados vinte euros;

- grau de violação dos deveres impostos ao agente: elevado, tendo em conta o contexto e modos de actuação;

- intensidade do dolo: grau mais elevado – dolo directo – artigo 14º, nº 1, representação do facto e actuação com intenção de o realizar;

- sentimentos manifestados no cometimento dos crimes: desprezo completo pelos bens e integridade física das outras pessoas;

- fins ou motivos que o determinaram: obtenção de meios para satisfazer as suas necessidades de consumo de droga;

- condições pessoais do arguido e situação económica: jovem (nascido em 1998), algum apoio familiar e actualmente preso preventivamente;

- conduta anterior aos factos: o arguido já tinha uma condenação pela prática de crimes de roubo; trabalhando mas sem firme enquadramento; chegando a viver como sem-abrigo, inconsequente no tratamento/acompanhamento quanto aos problemas da toxicodependência;

- conduta posterior aos factos: falta de arrependimento e sem efectivo projecto de vida, para além da vontade de se afastar do consumo de estupefacientes.

Ao nível da prevenção geral é preciso ter presente a frequência de todos estes crimes, o que traduz uma acrescida necessidade de tutela dos bens jurídicos em causa.

No que respeita à prevenção especial deve-se ponderar a situação concreta dos arguidos e as necessidades de prevenção especial e de ressocialização do arguido.

Impõe-se definir, a partir deste quadro, a importância da justa retribuição do ilícito e da culpa, bem como as necessidades da prevenção especial e, depois, da prevenção geral (confirmação da ordem jurídica), chamando a ponderação entre a gravidade da culpa expressa no facto e a gravidade da pena com a graduação da importância dos crimes para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado os delitos (conteúdo da culpa).

O tribunal colectivo entende que as penas devem ser diferentes tendo em conta a intensidade da actuação sobre a integridade física das vítimas, tendo também em conta os valores em causa.

Tudo ponderado, o arguido deve ser condenado nas seguintes penas: um ano e três meses de prisão quanto ao crime praticado sobre o ofendido BB e um ano e seis meses para o crime praticado sobre CC.

(…)

            Ora, estas penas são manifestamente inferiores ao que seria recomendável em função das circunstâncias do caso, se efectivamente graduadas em função das exigências de prevenção.

            Na verdade, atentando no Relatório Anual de Segurança Interna referente a 2022 (o mais recente disponível), constata-se que o crime de roubo na via pública (excepto esticão) e o roubo por esticão são as duas categorias mais relevantes da criminalidade violenta e grave. Em conjunto representam 53,4% deste tipo de criminalidade. Após uma redução entre os anos de 2019 e 2021, que encontra explicação nos condicionamentos de mobilidade decorrentes da pandemia Covid-19, aquelas categorias aumentaram em 2022, respectivamente, 21,1% e 6,5% relativamente ao ano anterior.

            Como é óbvio, a circunstância de as estatísticas de uma dada categoria criminal revelarem uma curva ascendente repercute-se nas exigências de prevenção geral, fazendo-as subir, o que em termos práticos significa que a submoldura da prevenção (aquela que dentro da medida da ilicitude correspondente ao tipo legal permite encontrar o mínimo de pena postulado pela eficácia da norma) verá o seu mínimo deslocado para um ponto que tanto mais se afastará do mínimo legal quanto mais crescerem as exigências de prevenção. Em sentido inverso haveria que proceder se o tipo de crime estivesse em franca regressão.

            Revertendo ao caso concreto, poderemos afirmar que as exigências de prevenção geral que se fazem sentir relativamente à criminalidade violenta e grave, com particular ênfase para o crime de roubo, não admitem, no particular momento histórico a que nos reportamos, uma pena inferior a 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão (será este o mínimo de prevenção geral), havendo que valorar, por outro lado, o contexto em que foram praticados os crimes em presença, o concreto circunstancialismo que rodeou cada um desses crimes, o seu grau de ilicitude, bem como as evidentes exigências de prevenção especial determinadas pela história pessoal do arguido, avultando os seus antecedentes criminais, recuperando aqui, quanto ao mais, os elementos valorados pelo tribunal recorrido.

            Tudo visto, oferecem-se como ajustadas as penas de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão pelo crime em que foi ofendido BB e 2 (dois) anos de prisão para o crime que teve como ofendida CC.

            A moldura do cúmulo tem como mínimo 2 (dois) anos de prisão (a mais elevada das penas parcelares) e 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão (soma das penas parcelares, que não excede o máximo legalmente admissível).

            Vista a imagem do conjunto dos factos e sopesada a personalidade do arguido tal como retratada na matéria de facto, oferece-se como ajustada a concretização da pena única em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

            Posto isto, importa atentar na suspensão da execução da pena, que o recorrente afirma ser deslocada, no caso concreto, por a matéria de facto não permitir que se conclua pela verificação de um juízo de prognose favorável ao arguido.

            A suspensão da execução da pena de prisão obedece ao critério previsto no art. 50º, nº 1, do Código Penal, pressupondo a possibilidade de formulação de um juízo de prognose no sentido de a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, garantindo a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Trata-se de um critério objectivo a aferir casuisticamente através da matéria de facto assente. Assim, desde que a pena concreta não exceda os cinco anos de prisão – pressuposto formal – o julgador deverá verificar se as variáveis previstas na lei (personalidade do agente, condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias deste) consentem a formulação de um juízo hipotético de suficiência da suspensão da execução da pena para lograr os objectivos da punição. Se a matéria de facto consentir uma leitura cuja ponderação aponte para a realização das expectativas de reinserção e de tutela dos bens jurídicos (maxime, para a não repetição do facto praticado ou de outros factos criminalmente relevantes) através da simples censura do facto e da ameaça da prisão, a execução da pena deverá ser suspensa; de outro modo, a pena de prisão deverá ser cumprida para que não fiquem por satisfazer as finalidades assinaladas à punição, deixando esta de corresponder às exigências de ressocialização e de tutela dos bens jurídicos violados.

            No caso dos autos, a análise da matéria de facto revela que o arguido foi condenado, por acórdão de 15.12.2022, transitado em julgado a 27.01.2023, pela prática de quatro crimes de furto qualificado (factos ocorridos nos anos de 2021 e 2022), na pena única de quatro anos de prisão suspensa com regime de prova, donde decorre que os crimes a que se reportam os presentes autos, cometidos em 29 de Abril e em 16 de Maio de 2023, foram praticados em pleno decurso do período de suspensão da execução daquela pena. O mesmo é dizer que o arguido desprezou em absoluto a oportunidade que lhe foi facultada naquela anterior condenação, de permanecer em liberdade sob regime de prova, demonstrando através de um comportamento pautado pela adesão aos valores socialmente postergados o bem fundado do juízo de prognose formulado a seu respeito.

            Acresce que o tribunal recorrido deu como provado que o arguido não manifesta arrependimento.

            Da matéria de facto sobressaem ainda as dificuldades de controlo comportamental do arguido associadas ao consumo de drogas, a sua incapacidade de assumir um compromisso firme com o acompanhamento psiquiátrico e psicológico que lhe foi facultado e com o programa de substituição opiácea, bem como a relação entre os factos cometidos e a procura de obtenção de meios para satisfazer as exigências da sua adição ao consumo de heroína e cocaína.

            Numa outra vertente, após ter sido preso à ordem dos presentes autos e durante o período de permanência no Estabelecimento Prisional de Aveiro, o arguido protagonizou uma evasão aquando da deslocação ao Tribunal de Coimbra, tendo sido recapturado no mesmo dia, pelo que veio a ser internado em regime de segurança no E.P. de Paços de Ferreira.

O que tudo isto permite verificar é que a personalidade do arguido, tal como evidenciada no acervo fáctico provado, a sua conduta anterior e posterior aos factos e as circunstâncias destes, manifestamente não consentem a formulação de um juízo de prognose favorável, em termos tais que se possa afirmar que a censura do facto e a ameaça da prisão, ainda que sujeita a programa de tratamento e a regras de conduta, serão suficientes para lograr a sua reinserção social. O arguido teve ao seu dispor toda a benevolência que o sistema judicial lhe podia e devia facultar e, não obstante, incumpriu grosseiramente o dever que sobre si pesava de não cometer novos actos criminalmente relevantes. Fê-lo escassos meses após ter sido condenado em pena suspensa com regime de prova e restituído à liberdade, incorrendo agora em factos criminais mais gravosos do que os que determinaram a condenação anterior, não revelando indícios de arrependimento.

A mera circunstância de ter mantido nos últimos tempos em que permaneceu no E.P. de Paços de Ferreira uma conduta e relacionamento adequados com os vários intervenientes daquele Estabelecimento Prisional, só por si, não desmente nem se sobrepõe ao anteriormente afirmado, assim como não o desmente a circunstância de à data do julgamento se encontrar abstinente do consumo de estupefacientes e a ser seguido em consultas de psiquiatria e psicologia com prescrição medicamentosa.

            Em suma, a decisão por uma nova suspensão da execução da pena de prisão, no enquadramento demonstrado e face aos antecedentes do arguido e à personalidade por ele evidenciada, traduzem um excesso de benevolência do tribunal a quo. Não há como formular o juízo de prognose positiva exigido por lei para a suspensão da execução da pena. A manutenção do arguido em liberdade, apesar dos novos ilícitos cometidos e nas circunstâncias em que ocorreram, em pleno período de suspensão de execução da pena, não promove a ressocialização do arguido; pelo contrário, poderá incutir-lhe uma percepção de facilitismo, ou até mesmo de laxismo do sistema judicial, gerador da ideia de que apesar da gravidade dos factos cometidos e do seu desinteresse em ressocializar-se, poderá renovar actuações criminosas com alguma probabilidade de que daí não lhe advenha qualquer consequência. Simultaneamente, será ineficaz para lograr a finalidade de dissuasão de potenciais infractores.

            A pena de prião deverá, pois, ser efectivamente cumprida.

                       

            A alteração da decisão proferida em 1ª instância com aplicação de pena de prisão efectiva impõe agora a ponderação dos pressupostos do perdão de pena, ao abrigo da Lei nº 28-A/2023, de 2 de Agosto, na medida em que o arguido, nascido em ../../1998, não tinha completado 30 anos de idade à data da prática dos factos que integram os dois crimes de roubo, ambos cometidos em data anterior a 19 de Junho de 2023.

            Ainda que verificados aqueles dois pressupostos, coloca-se a questão de saber se o tipo de crime praticado pelo arguido está efectivamente abrangido pelo perdão de penas.

            Dispõe aquele diploma:

            Art. 7º (exceções)

            1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

            (…)

            b) No âmbito dos crimes contra o património, os condenados:

            i) Por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal, e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal;

            (…)

            Uma leitura imediatista e literal da previsão contemplada no art. 7º, nº 1, al. b), i), apontaria para a resposta afirmativa com base na interpretação a contrario da parte final da alínea b) i), na medida em que exceptuando a lei apenas os crimes de roubo previstos no nº 2 do art. 210º do Código Penal, ficaria salva a aplicabilidade do perdão aos crimes previstos no nº 1.

            No entanto, a jurisprudência não tem propendido, ou pelo menos, não tem propendido uniformemente para essa solução, como decorre, nomeadamente, do recentíssimo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/01/2024, publicado nas bases de dados da DGSI e em cujo sumário se pode ler o seguinte:

            - Com vista a determinar se o crime de roubo do art.º 210º, nº 1, do Código Penal, está ou não abrangido pelo perdão previsto na Lei nº 38-A/2023, de 02/08, não podem as normas da al. b-i) e da al. g) do art.º 7º, nº 1, ser interpretadas isoladamente entre si, ou relativamente às demais previstas no mesmo diploma, mas sim conjugadamente, tendo em conta todos os elementos necessários à interpretação (gramatical, teleológico, sistemático e histórico, e neste especificamente os trabalhos preparatórios), em termos que permitam demonstrar que o resultado da interpretação não será extensivo relativamente ao que resulta do texto da lei, no que toca à primeira norma referida, nem restritivo, no tocante à segunda, mas antes traduza o sentido normativo que efetivamente melhor corresponda ao pensamento legislativo;

            II - Da evolução registada na elaboração do texto que veio a resultar na versão final da Lei nº 38-A/2023, que teve por base a Proposta de Lei 97/XV/1.ª, pode concluir-se que o resultado final obtido foi o alargamento da exceção da não aplicação do perdão ao crime de roubo, seja ele simples (art.º 210º, nº 1) ou agravado (art.º 210º, nº 2), porquanto pese embora o roubo simples deixasse de estar abrangido na atual al. b)-i, passou necessariamente a está-lo na al. g) do mesmo artigo, cuja norma também passou a ter uma abrangência mais alargada do que o inicialmente previsto, ademais porque na aplicação de uma e de outra deixou de ser exigido que o crime haja sido praticado em residências ou na via pública, com arma de fogo ou arma branca, como inicialmente resultava da Proposta de Lei, aqui por uma relativamente abrangente referência ao “artigo 210.º do Código Penal”.

            III – Assim sendo, e resultando da redação dada à al. g) que não beneficiam do perdão e da amnistia os condenados por crimes contra vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, necessariamente passou a estar nela incluído o crime de roubo, previsto no art.º 210º, nº 1, do CP, dado o mesmo integrar o conceito de criminalidade violenta, por corresponder a condutas que dolosamente se dirigem contra a vida, a integridade física ou a liberdade pessoal, nos termos previstos no art.º 1º, al. j), do Código de Processo Penal, sendo ademais punível com pena prisão de máximo superior a 5 anos de prisão, e, nos termos do nº 3 daquele art.º 67º-A, “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis”.

            IV – Por outro lado, do ponto de vista teleológico, e na coerência com que o pensamento legislativo deve ser reconstituído “a partir dos textos da lei”, não seria compreensível que crimes muito menos graves do que o de roubo previsto no art.º 210º, nº 1, do CP, como o de coação e de perseguição, dos art.ºs 154º e 154º-A do CP, puníveis com pena de prisão de 1 mês a 3 anos ou com pena de multa, ficassem excluídos do perdão, e já não aquele, indubitavelmente mais grave e gerador de alarme social, onde a violência sobre uma determinada pessoa pontifica como elemento do tipo, seja na forma de coação, de ofensa à integridade física, ou de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física da vítima, sendo ademais o mesmo punível com pena muito superior à prevista para aqueles crimes, ou seja, 1 a 8 anos de prisão.

            No caso vertente, a questão da aplicação da referida Lei nº 28-A/2023, de 2 de Agosto, não se colocou em primeira instância por força da condenação em pena suspensa aí decretada e portanto também não foi considerada no recurso, pelo que a decisão do tema nesta sede poderia privar os interessados de um grau de recurso.

            Nessa medida haverá que, prudentemente, relegar para decisão em 1ª instância, após baixa dos autos, a ponderação da eventual aplicabilidade da Lei nº 28-A/2023.

III – DISPOSITIVO:

            Pelo exposto, acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso e, consequentemente, sem prejuízo da manutenção do acórdão do tribunal colectivo na parte não discutida no recurso (condenação do arguido no pagamento de indemnização ao demandante BB), decidem:

            a) Revogar aquele acórdão no que tange às penas parcelares e à pena única impostas ao arguido, bem como à respectiva suspensão;

            b) Condenar o arguido pela prática, em 29 de Abril de 2023, de um crime de roubo p.p. pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

            c) Condenar o arguido pela prática, em 16 de Maio de 2023, de um crime de roubo p.p. pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

            d) Em cúmulo jurídico de penas, condenar o arguido na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

            Não é devida taxa de justiça no recurso.

                                                                       *

            Oportunamente, após baixa dos autos à primeira instância, deverá ser equacionada a aplicação, no caso dos autos, do previsto na Lei nº nº 28-A/2023, de 2 de Agosto, emissão dos competentes mandados, efectuadas as necessárias comunicações ao TEP e ao processo nº 1518/21.... do Juízo Central Criminal de Coimbra, e remetidos boletins ao registo criminal em conformidade com o agora decidido.

            D.N.

                                                                       *

                                                                               Coimbra, 6 de Março de 2024

                                (Processado pelo relator, revisto por todos os signatários e assinado electronicamente)





[1]- Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 110-111.
[2]- Sobre o tema, cf. Taipa de Carvalho, Direito Penal - Parte Geral, págs 63-69.
[3] - Sobre a relação da prevenção especial com o quantum da pena, cf. Anabela Miranda Rodigues, «O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa de Liberdade», in Problemas Fundamentais de Direito Penal - Homenagem a Claus Roxin, pág. 206.