Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
31/19.7JACBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: LEI 38-A/2023
PERDÃO
CÚMULO
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA.
Legislação Nacional: ARTS. 3º, N.º 4, 7º, N .º 3 DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2.8.; ARTS. 77ºE 78º DO CÓDIGO PENAL
Sumário:
1. Para efeitos de se considerar ou não um crime como amnistiado, aos crimes puníveis somente com pena de prisão, bem como aos crimes puníveis com pena de prisão e com pena de multa, cumulativamente, ou com pena de multa, em alternativa àquela pena de prisão, apenas se tem que atender ao limite da pena de prisão estabelecido no artigo 4º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8, sem atender ao limite da multa.

2. Respeitando a situação a um caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única, sem qualquer desvio às regras dos artigos 77º e 78º do CP, por ser precisamente nesse sentido a previsão expressa do nº 4 do artigo 3º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8.

3. No caso de cúmulo jurídico de penas parcelares aplicadas por crimes não abrangidos pela amnistia, em que apenas um deles está excluído do perdão, a conjugação dos artigos 3º, nº 4, e 7º, nº 3, da Lei nº 38-A/2023, de 2/8, impõe que o remanescente da pena única resultante da aplicação àquela do perdão não pode ser inferior à pena parcelar aplicada pelo crime excluído do perdão.

Decisão Texto Integral:
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Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
           1. O ACÓRDÃO RECORRIDO

No processo comum colectivo nº 31/19.7JACBR do Juízo Central Criminal de Viseu (Juiz 2), foi proferido o seguinte ACÓRDÃO de reformulação do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido AA, datado de 8 de Novembro de 2023 (transcrição):  
«I- RELATÓRIO
Para efeito de aplicação da Lei nº 38-A/2023 de 02-08, procedeu-se nos presentes autos a audiência de julgamento para reformulação do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido:
 AA, casado, nascido a ../../1989, filho de BB e de CC, ..., natural do concelho da ..., titular do C.C. nº ..., com residência no Bairro ..., ..., ..., ... – ... e atualmente a cumprir pena de prisão no E.P.do Porto.
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A instância mantem-se válida e regular, nada obstando à apreciação do mérito da causa.
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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com relevância para a presente decisão importam os factos seguintes:
1- Por acórdão proferido nos presentes autos, no dia 19-02-2020, transitado em julgado em 17-08-2020, foi o arguido AA condenado, pela prática nos dias 20 de dezembro de 2018, 1, 2 e 4 de janeiro de 2019 e na noite de 14.01.2019, em autoria material e consumada, em concurso efetivo:
a) na pena de 6(seis) anos de prisão pela prática de um crime de violação sexual, p. e p. pelos arts 164°, nº1, al.a), do C. Penal;
b) na pena de 1 (um) ano de prisão pela prática de um crime de violação de domicilio agravado, p. p. pelo art.190º, nº3, do C.Penal;
c) na pena de 8 (oito) meses de prisão pela prática de um crime de ameaça agravada, p. p. pelos art.s 153°, nº1, 155º, nº1, al.a), e 131º, todos do Código Penal;
d) na pena de 6(seis) meses de prisão pela prática de um crime de gravações e fotografias ilícitas p. p. pelo artigo 199º, nº 2, al.a), do Código Penal.
Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares de prisão condena-se o arguido na pena única de 6(seis) anos e 6(seis) meses de prisão efetiva”.
2- O arguido foi ainda condenado a pagar à vítima DD a quantia de €15.000 (quinze mil euros) arbitrada a título de indemnização civil.
3- De acordo com a liquidação efetuada nos autos, o arguido atingiu o meio da pena única de prisão no dia 14 de Abril de 2022, os dois terços da mesma no dia 14 de Maio de 2023 e atingirá os cinco-sextos no dia 14 de Junho de 2024 e o termo da pena no dia 14 de Julho de 2025.
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B-MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção com base nos elementos constantes das decisões condenatórias juntas aos autos, no teor do Acórdão condenatório proferido nos presentes autos e  respetiva liquidação da pena.
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III- O DIREITO
-- Da questão de apreciação da Lei 38-A/2023 de 02-08 relativamente a cada um dos crimes:
Estabelece o artigo 2º, da Lei nº38-A/2023 de 02-08:
1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de ../../2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3º e 4º
Preceitua o art 3º da citada Lei:
“1- Sem prejuízo do disposto no artigo 4º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
(…)

4- Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
Dispõe o artigo 4º da citada Lei:
 “São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa”.
Nos termos do artigo 7º:
“1- Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
a) No âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por:
(…)
v) Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163º a 176º-B do Código Penal;”
 (…)
3 - A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3º e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos.”
Conforme resulta ainda do artigo 8º:
“1 - O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.
2 - O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado.
3 - A condição referida no número anterior deve ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito.
4 - Considera-se satisfeita a condição referida no nº 2 caso o titular do direito de indemnização ou reparação não declare que não foi indemnizado ou reparado. (…)”
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Do benefício da amnistia:
No presente caso, conforme resulta dos preceitos supra citados, considerando as molduras penais abstratas aplicáveis aos crimes pelos quais foi condenado, temos que o arguido, por força do art 4º da Lei nº38-A/2023 de 02-08 apenas poderá beneficiar da amnistia relativamente ao crime de gravações e fotografias ilícitas p. e p. pelo art 199º, nº2, do C.Penal (punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias).
O arguido foi condenado na pena de 6 meses de prisão, pelo que no caso deste crime, deverá o mesmo ser amnistiado.
A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso presente faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos (cfr. artº 128º, nº 1, do C.P.) pelo que para os efeitos da reformulação do Acórdão, esta pena já não integrará o novo cúmulo a realizar.

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Da aplicação do perdão:
Por força do disposto no art 7º, nº1, a) v) da citada Lei, o condenado não poderá  beneficiar do perdão, no tocante ao crime de violação p. e p. pelo art 164º, nº1, al a), do Código Penal (pelo qual foi condenado numa pena de 6 anos de prisão).
O arguido foi ainda condenado na pena de 1 (um) ano de prisão pela prática de um crime de violação de domicilio agravado, p. p. pelo art.190º, nº3, do C.Penal e na pena de 8 (oito) meses de prisão pela prática de um crime de ameaça agravada, p. p. pelos arts 153°, nº1, 155º, nº1, al. a), e 131º, todos do Código Penal;
Aqui chegados, excluído do anterior cúmulo jurídico o crime de gravações e fotografias ilícitas p. e p. pelo art 199º, nº2, do C.Penal, em situações como a presente de concurso de penas, em que umas beneficiam de perdão e outras não, terá de se efetuar novo cúmulo jurídico das demais penas parcelares, desde logo, porque conforme resulta do art 7º, nº3 da citada Lei: “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3º e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos.”
No caso presente, em síntese, importa reter:
- O arguido havia sido condenado, em cúmulo jurídico das penas parcelares, numa pena única de 6 anos e 6 meses;
- O arguido beneficiou da amnistia relativamente à pena de 6 meses de prisão com consequente extinção do procedimento criminal e cessação da sua execução, a qual já não entra no cúmulo a realizar;
- Á data da prática dos factos tinha menos de 30 anos (art 2º);
- As penas parcelares aplicadas perdoáveis são superiores a 1 ano (1 ano + 8 meses = 1 ano e 8 meses).
E, por aplicação do citado art 77º do C.Penal,  a moldura do concurso das penas não perdoáveis e das penas perdoáveis (6 anos  + 1 ano + 8 meses) será agora de 6 anos no seu limite mínimo e de 7 anos e 8 meses no seu limite máximo.
E, aqui de novo seguindo o critério estabelecido no Acórdão anteriormente formulado, temos para nós adequado aplicar ao arguido uma pena única de 6 anos e 4 meses.
Por fim, obtida a pena única a que se refere o art 3º da citada Lei, sobre esta deverá incidir agora o perdão, no presente caso na parte remanescente perdoável de 4 meses, porquanto se deverá manter intocável a pena de 6 anos imperdoável.

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IV-DISPOSITIVO
Pelo exposto, procedendo à reformulação do cúmulo jurídico, acordam os Juizes que constituem este Tribunal Coletivo em:
a) Declarar amnistiado o crime de gravações e fotografias ilícitas p. e p. pelo art 199º, nº 2, do C.Penal, com consequente extinção da pena de 6 meses de prisão (art 128º, do C.P.), nos termos do art 2º nº 1 e 4º da Lei nº 38-A/2023, de 02-08. (única pena parcelar do processo nº 162/16....);
b) Condenar o arguido, em cúmulo jurídico, numa pena única de 6 anos e 4 meses (que engloba as sobreditas restantes penas parcelares aplicadas nos presentes autos, com exceção da pena ora amnistiado).
c) Declarar perdoados 4 (quatro) meses de prisão na pena única de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses, ficando a pena única reduzida a 6 anos de prisão, sob a condição resolutiva prevista no artigo 8º nºs 1 e 2 da citada Lei.
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Sem custas (art 513º do CPP).
Comunique ao TEP.
- Notifique e comunique aos Serviços de Identificação Criminal, nos termos previstos no artº 6º, al. f), da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio».

            2. O RECURSO
Inconformado, o arguido AA recorreu do aresto em causa, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

1. «O ora recorrente não concorda com o douto acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”, pelo que se apresenta o presente recurso.
2. Não obstante o artigo 7º da citada Lei preceituar que não beneficiam de perdão e de amnistia, no âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, vemos que legislador quis aproveitar o perdão e a amnistia conforme se infere do texto da norma: “a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos.”
3. Tendo em conta o preceituado no nº 3 do artigo 7º da citada Lei, e conjugando o disposto nos nºs 1 e 4 do artigo 3º do mesmo diploma, deveria ter sido perdoado 1 ano de prisão à pena concreta aplicada ao arguido, visto que no cumulo jurídico, estão incluídas penas parcelas resultantes da prática de alguns crimes que no nosso entender são passiveis de serem perdoados e/ou amnistiados;
4. Se assim não se entender, considerando que o arguido foi condenado na pena parcelar de 1 ano de prisão pela prática de um crime de violação de domicilio agravado, deveria ter sido amnistiada em igual período, 1 ano, na medida em que não está incluída no elenco das exceções previstas no artigo 7º da citada Lei, apelando à aplicação do sentido que o legislador quis aplicar e fazer valer, com esta Lei de perdão e amnistia.
5. Na sequência de todo o explanado, violou-se o disposto nos art. 3º, 4º, 7º, nº 3 da Lei nº 38-A/2023 de 02-08».


            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso não merece provimento, defendendo o decidido em 1ª instância.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido do não provimento do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
             Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Assim sendo, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
· O crime de violação de domicílio agravado está amnistiado, face à Lei nº 38-A/2023, de 2/8?
· Deveria ter sido perdoado ao arguido UM ano de prisão da pena concreta de cúmulo que lhe foi aplicada?

2. Sobre a sequência de factos processuais:
a) Por acórdão de 19/2/2020, transitado em julgado em 17/8/2020, foi o arguido condenado no seguinte:
1. CRIME Nº 1 - na pena de 6 (seis) anos de prisão pela prática de um crime de violação sexual, p. e p. pelo artigo 164°, nº 1, al. a), do Código Penal, doravante CP;
2. CRIME Nº 2 - na pena de 1 (um) ano de prisão pela prática de um crime de violação de domicílio agravado, p. p. pelo artigo 190º, nº 3, do CP;
3. CRIME Nº 3 - na pena de 8 (oito) meses de prisão pela prática de um crime de ameaça agravada, p. p. pelos artigos 153°, nº 1, 155º, nº 1, al. a), e 131º, todos do CP;
4. CRIME Nº 4 - na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática de um crime de gravações e fotografias ilícitas p. p. pelo artigo 199º, nº 2, al. a), do CP;
5. CÚMULO JURÍDICO DE PENAS - Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares de prisão condena-se o arguido na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva”.
b) Está em cumprimento dessa pena desde ../../2019, tendo sido assim liquidada tal pena:
a. O meio da pena no dia ../../2022;
b. Os dois terços da pena no dia ../../2023;
c. Os cinco sextos da pena no dia ../../2024;
d. O termo da pena no dia ../../2025.
c) Por força da entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023, de 2/8, foi reformulado o cúmulo jurídico de penas aplicadas ao arguido, o que foi feito no acórdão recorrido, o qual assim decidiu:
· declarar amnistiado o crime de gravações e fotografias ilícitas p. e p. pelo art 199º, nº2, do C.Penal, com consequente extinção da pena de 6 meses de prisão (art 128º, do C.P.), nos termos do art 2º nº 1 e 4º da Lei nº 38-A/2023, de 02-08. (única pena parcelar do processo nº 162/16....);
· condenar o arguido, em cúmulo jurídico, numa pena única de 6 anos e 4 meses (que engloba as sobreditas restantes penas parcelares aplicadas nos presentes autos, com exceção da pena ora amnistiado).
· declarar perdoados 4 (quatro) meses de prisão na pena única de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses, ficando a pena única reduzida a 6 anos de prisão, sob a condição resolutiva prevista no artigo 8º nºs 1 e 2 da citada Lei.
d) O arguido, nascido no dia ../../1989, tinha menos de 30 anos à data dos factos pelos quais veio a ser condenado nestes autos, praticados nos dias 20/12/2018, 1/1/2019, 2/1/2019, 3/1/2019 e 14/1/2019.
e) Recorre o arguido, entendendo que deveria ter sido perdoado um ano de prisão e não só 4 meses, adiantando, ainda que se forma algo imprecisa em termos jurídicos, que «considerando que foi condenado na pena parcelar de 1 ano de prisão pela prática de um crime de violação de domicílio agravado, deveria ter sido amnistiado em igual período, 1 ano, na medida em que não está incluída no elenco das excepções previstas no artigo 7º da citada Lei, apelando à aplicação do sentido que o legislador quis aplicar e fazer valer, com esta Lei de perdão e amnistia».
           
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Está em causa decidir qual o quantum da pena de prisão a perdoar ao arguido, por força da aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto.
Prévio a isso, há que descortinar se um dos crimes pelos quais veio a ser condenado o arguido, por acórdão transitado em 2020, está hoje amnistiado também, a par do que o foi efectivamente pelo acórdão de reformulação do cúmulo, ora recorrido.

3.2. Temos como assente o seguinte:
a. A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução, tanto da pena e dos seus efeitos, como da medida de segurança (cfr. artº 128º, nº 1, do Código Penal).
b. O perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte (cfr. artº 128º, nº 3, do CP).
c. A amnistia prefere sempre à aplicação do perdão.
d. O perdão incide sobre a pena concretamente aplicada, não se referindo a qualquer pena abstracta.
e. Estão abrangidos pela amnistia e perdão estabelecidos pela Lei nº 38-A/2023, de 2/8, entrada em vigor em 1/9/2023, as infracções que, reunindo os demais pressupostos por ela estabelecidos, tenham sido praticadas até ao final do dia 18/6/2023, ou seja, até à meia-noite de 18/6/2023.
f. Se após a realização da audiência de julgamento existirem dúvidas sobre a data concreta em que a infracção que ficou demostrada foi praticada, dando-se como provado na decisão condenatória que, por exemplo, os factos foram praticados em data indeterminada de ../../2023, após a determinação da pena concreta deverá aplicar-se o perdão, se a ele houver lugar.
g. O agente, à data dos factos, tem de ter entre 16 e 30[1] anos de idade, inclusivé.
h. Nas infracções permanentes deverá atender-se ao dia em que cessar a consumação.
i. Nas infracções continuadas e nas infracções habituais, leva-se em conta o dia da prática do último acto.
j. Nas infracções não consumadas, atende-se ao dia do último acto de execução.
k. Ao contrário do que se passa com as infracções e sanções penais, no que se refere às sanções acessórias relativas a contraordenações e às infracções disciplinares, a Lei em apreço aplica-se às infracções praticadas até à meia-noite de dia 18-06-2023, independentemente da idade do agente à data dos respectivos factos.

3.3. Quanto à AMNISTIA, temos por seguro que são amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável (moldura penal abstracta) não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa, sempre só abrangendo os cidadãos entre os 16 e os 30 anos, à data do evento.
Ora, no nosso caso, foi o arguido condenado pelos seguintes CRIMES:
· CRIME Nº 1 - na pena de 6 (seis) anos de prisão pela prática de um crime de violação sexual, p. e p. pelo artigo 164°, nº 1, al. a), do Código Penal, doravante CP;
· CRIME Nº 2 - na pena de 1 (um) ano de prisão pela prática de um crime de violação de domicílio agravado, p. p. pelo artigo 190º, nº 3, do CP;
· CRIME Nº 3 - na pena de 8 (oito) meses de prisão pela prática de um crime de ameaça agravada, p. p. pelos artigos 153°, nº 1, 155º, nº 1, al. a), e 131º, todos do CP;
· CRIME Nº 4 - na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática de um crime de gravações e fotografias ilícitas p. p. pelo artigo 199º, nº 2, al. a), do CP;
Como tal, apenas é amnistiável o CRIME nº 4 e já não os outros.
De facto, o crime nº 4 tem uma moldura penal abstracta de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, caindo na alçada do artigo 4º da Li nº 38-A/2023 (são amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa).
Como bem opina Pedro Esteves de Brito, em artigo «Notas práticas referentes à Lei nº 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude», publicado na JULGAR online:
«O referido limite da pena de prisão aplica-se aos crimes puníveis somente com pena de prisão, bem como aos crimes puníveis com pena de prisão e com pena de multa, cumulativamente, ou com pena de multa, em alternativa àquela pena de prisão.
Já o referido limite da pena de multa aplica-se aos crimes puníveis apenas com pena de multa.
Assim, os crimes puníveis unicamente com pena de prisão estarão abrangidos pela amnistia caso o limite máximo da pena aplicável seja inferior ou igual a um ano de prisão.
Por seu turno, os crimes puníveis com pena de prisão e com pena de multa, cumulativamente, ou com pena de multa, em alternativa àquela pena de prisão, estarão abrangidos pela amnistia caso o limite máximo da pena de prisão aplicável seja inferior ou igual a um ano de prisão, independentemente do limite máximo da pena de multa aplicável.
Finalmente, os crimes puníveis apenas com pena de multa estarão abrangidos pela amnistia caso o limite máximo da pena aplicável seja inferior ou igual a 120 dias».
Já os CRIMES nºs 2 e 3 não são amnistiáveis precisamente devido às suas molduras penais abstractas que não cabem na alçada do supracitado artigo 4º:
- a do CRIME nº 2 (que é agravado) é de prisão de 30 dias a 3 anos OU multa de 10 a 360 dias (cfr. artigo 47º1 do CP);
- a do CRIME nº 3 (que também é agravado) é de prisão de 30 dias a 2 anos OU multa de 10 a 240 dias.
Mal se compreende, assim, o pedido impróprio de amnistia, feito pela defesa na Conclusão nº 4, quanto ao CRIME nº 2, já que apenas se poderá aqui ponderar o PERDÃO e nunca a AMNISTIA, figuras distintas.
Havendo, assim, um crime amnistiado do rol de crimes pelos quais foi condenado ao arguido, foi legal a decisão de proceder à prolação de uma nova decisão de cúmulo jurídico, cuja moldura penal abstracta é agora a seguinte, à luz dos critérios plasmados no artigo 77º, nº 2 do CP:
· LIMITE MÍNIMO: 6 anos (a pena parcelar mais alta);
· LIMITE MÁXIMO: 7 anos e 8 meses (a soma das três penas em concurso pela prática dos CRIMES nºs 1, 2 e 3, ou seja, 6 A + 1 A + 8 M).
Portanto, até aqui é irrepreensível a decisão recorrida.

3.4. E que dizer agora do PERDÃO plasmado no artigo 3º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8?
Temos neste campo como certo que:
a. Prevê-se um perdão até 1 ano de prisão em todas as penas de prisão aplicadas, a título principal, em medida inferior ou igual a 8 anos. Na verdade, se a pena de prisão aplicada for inferior a 1 ano terá que ser perdoada a totalidade da pena de prisão aplicada, na medida fixada. No caso de a pena de prisão aplicada ser superior a 1 ano, mas inferior ou igual a 8 anos, será perdoado 1 ano de prisão. Contudo, como é óbvio, em caso de pena de prisão já parcialmente cumprida no momento da entrada em vigor da Lei em apreço, caso o remanescente por cumprir seja inferior a 1 ano de prisão, o perdão é apenas na medida dessa parte da pena ainda não cumprida.
b. Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
c. No caso de o mesmo agente ter sido condenado em diferentes processos em diversas penas, existindo uma relação de concurso entre os factos em causa nas diversas condenações, o que conduz a um cúmulo jurídico das penas aplicadas, em primeiro lugar deverá proceder-se a este e só depois, se for o caso, deverá aplicar-se o perdão à pena única fixada.
d. Em caso de condenação, em cúmulo jurídico, numa pena única de prisão, e estando algum ou alguns dos correspondentes crimes abrangidos pela amnistia dever-se-á, em primeiro lugar, por despacho, declarar o crime ou crimes em causa amnistiados, bem como, no caso de a condenação já ter transitado em julgado, também declarar cessada a execução das penas parcelares correspondentes aos mesmos crimes.
e. Caso o referido cúmulo jurídico abranja apenas uma outra pena parcelar aplicada pela prática de um crime não amnistiado, desfeito o cúmulo em consequência daquele despacho, a dita pena parcelar recupera autonomia, devendo ser aplicada à mesma o perdão, se for o caso.
f. Caso o referido cúmulo jurídico abranja outras duas ou mais penas parcelares aplicadas pela prática de crimes não amnistiados, haverá, em seguida, que proceder à reformulação do cúmulo jurídico dessas penas, atenta, desde logo, a alteração da moldura abstrata, aplicando, por fim, se for o caso, o perdão à pena unitária fixada.
g. Para a reformulação do cúmulo jurídico, será necessário designar dia para a realização da competente audiência (cfr. artº 472º do Código de Processo Penal - CPP), com a prolação da subsequente decisão.
h. Não estando englobados no cúmulo jurídico penas parcelares aplicadas por crimes abrangidos pela amnistia, não sendo sequer variável a medida do perdão em função da medida concreta da pena de prisão aplicada, ao contrário do que se passou com a Lei nº 16/86, de 11 de Junho (cfr. artº 13º, nº 1, al. b), com a Lei nº 23/91, de 4 de Julho (cfr. artº 14º, nº 1, al. b), com a Lei nº 15/94, de 11 de Maio (cfr. artº 8º, nº 1, al. d) e com a Lei nº 29/99, de 12 de Maio (cfr. artº 1º, nº 1), não se verificando a alteração da moldura abstrata, não se impõe reformular o cúmulo jurídico de penas já efectuado, pelo que nada obsta à aplicação do perdão à pena única por despacho, sem necessidade de designar dia para a realização de nova audiência e subsequente prolação de decisão
i. São apenas merecedores do perdão aqueles que, nas demais condições previstas, tenham sido condenados numa pena de prisão não superior a 8 anos – a lei fala em todas as penas de prisão até 8 anos, esclarecendo que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única: assim, no caso de condenações sucessivas atende-se à medida de cada pena de prisão aplicada em cada decisão e, em caso de condenação em cúmulo jurídico, à pena única dado que, neste caso, o perdão incide não sobre a pena parcelar mas sobre a pena única.
j. É a pena efectivamente aplicada que se terá que ter em conta para decidir sobre a sua eventual substituição por outra pena e não o remanescente resultante da aplicação do perdão.
k. Não existindo entre várias condenações sofridas pelo mesmo agente uma relação de concurso geradora de cúmulo jurídico das penas aplicadas, tratando-se, pois, de uma situação de cumprimento sucessivo de várias penas, o perdão aplica-se a cada uma das penas, reunidos os demais pressupostos, seja qual for o número de processos em causa.
l. A aplicação do perdão à execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação fica sujeita aos limites estabelecidos no nº 1.
m. Para efeitos do disposto no artº 122º do CP (prazo de prescrição das penas), a pena que importa ter em conta é a pena em que o agente foi condenado e não o remanescente resultante da aplicação do perdão.
n. Como o perdão incide sobre a pena, extinguindo-a, no sentido segundo o qual, na parte em causa, não terá que ser cumprida, e não sobre a responsabilidade criminal, a condenação não é apagada, podendo ser valorada a primitiva condenação.
No nosso caso, é alvo de PERDÃO a pena unitária a que se chegou pelo cúmulo (o acórdão recorrido situou-a agora nos 6 anos e 4 meses de prisão), tudo isto nos termos do artigo 3º, nºs 1 e 4 da Lei nº 38-A/2023, de 2/8, assente ainda que as penas parcelares que são perdoáveis são superiores a 1 ano (no caso, 1 ano e oito meses).
Sabemos nós entretanto que a pena de 6 anos de prisão não pode ser alvo de qualquer PERDÃO, por força da excepção prevista no artigo 7º, nº 1, alínea a)-v) da dita Lei (estamos perante a prática de um crime do artigo 164º do CP, logo, um crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual, «previstos nos artigos 163º a 176º-B do Código Penal»).

3.5. Aqui chegados, pergunta-se:
Foi legal o perdão apenas de 4 meses - e não de 1 ano, conforme pretensão da defesa -  sobre a pena de cúmulo de 6 anos e 4 meses de prisão?
A resposta é afirmativa.
Note-se que o recurso não incide sobre o quantum encontrado no agora novo cúmulo.
Apenas incide sobre o quantum a perdoar dessa pena unitária.
Neste ponto, também consideramos, como o tribunal recorrido, que «se deverá manter intocável a pena de 6 anos imperdoável».
E assim é porque aderimos à tese explanada no Acórdão da Relação do Porto, datado de 29/11/2000 (Pº 0010861), segundo a qual:
«I - Em caso de cúmulo jurídico, o perdão concedido pela Lei nº 29/99, incide sobre a pena única aplicada ao arguido, de harmonia com o nº 4 do seu artigo 1º.
II - Porém, se o arguido tiver sido condenado também por crime cuja pena está excluída do perdão (in casu, por homicídio, na pena de 17 anos de prisão), por força do artigo 2º, nº 2, alínea a) da dita Lei, a pena residual não pode ficar aquém de tal pena (no caso, os mencionados 17 anos de prisão)».
E damos o nosso pleno assentimento ao opinado por Pedro Brito no artigo acima citado, quando se refere ao nº 3 do artigo 7º da Lei da Amnistia:
«O preceito visa apenas esclarecer que, estando em causa vários crimes, a exclusão da amnistia e do perdão quanto a um ou alguns deles não prejudica a aplicação da amnistia e do perdão relativamente a algum ou alguns dos outros, verificados que estejam os necessários requisitos.
Contudo, em caso de cúmulo jurídico, haverá sempre que ter em conta que o perdão incide sobre a pena única aplicada (cfr. artº 3º, nº 4, da Lei em análise) determinada de acordo com as regras estabelecidas nos arts. 77º e 78º do C.P. e, assim, mesmo que englobando penas parcelares aplicadas por crimes excluídos do perdão e penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos. Deste modo, nesses casos, o perdão não é afastado pela circunstância de no cúmulo jurídico estarem englobadas, para além de penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos, pelo menos outra pena parcelar aplicada por crime dele excluído.
(…)
Deste modo, nos cúmulos jurídicos de penas a realizar que englobem penas parcelares correspondentes a crimes excluídos do perdão e penas parcelares dele não excluídos, não existe qualquer desvio às regras dos arts. 77º e 78º do C.P., sendo o perdão estabelecido pela Lei em apreço, se a ele houver lugar, aplicado à pena única.
(…)
Por outro lado, ainda no caso de cúmulo jurídico de penas parcelares aplicadas por crimes não abrangidos pela amnistia, em que apenas um deles está excluído do perdão, afigura-se que a conjugação dos arts. 3º, nº 4, e 7º, nº 3, da Lei em apreço impõe que o remanescente da pena única resultante da aplicação àquela do perdão não pode ser inferior à pena parcelar aplicada pelo crime excluído do perdão.
É certo que a pena única sobre a qual incide o perdão é uma nova e autónoma pena que se distingue das penas parcelares. Contudo, seria ilógico aplicar um perdão na pena única em medida superior à medida da pena parcelar aplicada pelo único crime que demanda a aplicação de tal benefício. Por outro lado, perante um único crime, caso o mesmo esteja excluído do perdão, entendeu o legislador que a respetiva pena não deveria ser reduzida. Desta forma, seria ilógico que, após a aplicação do perdão à pena única, o condenado tivesse que cumprir um remanescente inferior à medida da pena parcelar aplicada pelo único crime excluído de tal benefício».
O mesmo autor, em artigo[2] mais tarde publicado na mesma JULGAR, disserta assim, desenvolvendo a sua tese anteriormente adoptada:
«Por outro lado, ainda no caso de cúmulo jurídico de penas parcelares aplicadas por crimes não abrangidos pela amnistia, que englobe penas parcelares de prisão aplicadas por crimes não excluídos do perdão e apenas uma pena parcelar de prisão aplicada por crime excluído do perdão, a conjugação dos arts. 3º, nº 4, e 7º, nº 3, da dita Lei impõe que o remanescente da pena única de prisão resultante da aplicação àquela do perdão não pode ser inferior à pena parcelar de prisão aplicada pelo único crime excluído do perdão. Acresce que, caso tal cúmulo englobe várias penas parcelares de prisão aplicadas por crimes excluídos do perdão, por força da conjugação dos ditos preceitos legais e das regras de determinação da pena única em caso de cúmulo jurídico, o remanescente decorrente da aplicação do perdão não poderá ser inferior à mais elevada da pena parcelar de prisão aplicada por crime excluído do perdão.
É certo que a pena única sobre a qual incide o perdão é uma nova e autónoma pena que se distingue das penas parcelares. Contudo, seria ilógico aplicar um perdão na pena única de prisão em medida superior à pena parcelar de prisão aplicada pelo único crime que demanda a aplicação de tal benefício ou à soma das únicas penas parcelares de prisão aplicadas por diferentes crimes que determinam a aplicação desse benefício, caso a mesma seja inferior a um ano, que é a medida máxima do perdão estabelecido na Lei. Por outro lado, perante um único crime, caso o mesmo esteja excluído do perdão, entendeu o legislador que a respetiva pena de prisão não deveria ser reduzida. Desta forma, seria ilógico que, após a aplicação do perdão à pena única de prisão, o condenado apenas cumprisse um remanescente inferior à medida da pena parcelar de prisão aplicada pelo único crime excluído de tal benefício ou, no caso de serem várias as penas parcelares de prisão aplicadas por crimes excluídos de tal benefício, à mais elevada de tais penas.
Aliás, quando uma pena é englobada num cúmulo jurídico não perde a sua existência, as penas parcelares cumuladas são descritas nas decisões de punição do concurso, sendo que, apesar da efetivação do cúmulo jurídico, continuam a constar do registo criminal, são mencionadas e ponderadas individualmente no elenco dos antecedentes criminais do agente numa sentença condenatória, são novamente individualmente consideradas em caso de necessidade de reformulação do cúmulo jurídico, pelo que as punições parcelares integradas no cúmulo jurídico, apesar de perderem autonomia, não desaparecem da ordem jurídica.
Dos trabalhos preparatórios também é possível extrair que foi intenção do legislador que a aplicação da dita Lei fosse efetuada com os menores constrangimentos possíveis e, sobretudo, sem reformular cúmulos jurídicos já realizados, nos casos que não englobem penas parcelares abrangidas pela amnistia, mesmo que abranjam penas parcelares de prisão aplicadas por crimes excluídos do perdão e penas parcelares de prisão aplicadas por crimes que não estão excluídos do perdão.
(…)
Assim, no caso de um condenado numa pena única de prisão em cúmulo jurídico pela prática de um crime não excluído do perdão e pela prática de outro crime excluído do perdão, dever ter-se por referência, para efeitos de verificar se o mesmo beneficia ou não do perdão, a pena única de prisão aplicada, sobre o qual incidirá o perdão, caso se verifiquem os legais requisitos.
Deste modo, não deve “desfazer-se” o cúmulo e fazer incidir o perdão apenas sobre a pena parcelar de prisão aplicada pelo crime não excluído do perdão.
Já o condenado numa pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, englobando uma pena parcelar de 1 ano de prisão aplicada por um crime não excluído do perdão e uma pena parcelar de 5 anos de prisão aplicada por um crime excluído do perdão, apenas pode beneficiar do perdão de 6 meses na pena única a aplicar por despacho, sem necessidade de reformulação do cúmulo jurídico já realizado.
Na verdade, apesar de a única pena parcelar aplicada por crime não excluído do perdão, e que demanda a aplicação de tal benefício, ser de medida igual a 1 ano, a aplicação do perdão de 1 ano à pena única levaria a que o remanescente total decorrente da aplicação do perdão (5 anos e 6 meses – 1 ano = 4 anos e 6 meses) fosse de duração inferior à única pena parcelar aplicada por crime excluído do perdão (5 anos)».
Ou seja:
No caso em que tenham sido englobadas em cúmulo jurídico penas excluídas do perdão e outras que beneficiam do mesmo, haverá que averiguar se as penas que beneficiam de perdão são iguais ou superiores a um ano, de modo a não fazer incidir um perdão em medida maior do que as penas que dele beneficiam, averiguando-se ainda qual a pena mais elevada das que integram o cúmulo jurídico que não beneficia do perdão, não podendo a aplicação do perdão ter como resultado a redução da pena única abaixo da medida dessa pena (neste sentido, o recente aresto da Relação do Porto, datado de 10/1/2024, proferido no Pº 697/21.3T8AVR-A.P1).
No nosso caso, nunca poderemos baixar dos 6 anos de prisão, a pena efectivamente aplicada pela prática do crime mais grave não abrangido pelo perdão.
Sendo a pena mais elevada entre as que não beneficiam de perdão de 6 anos de prisão, e estando em causa uma pena única de 6 anos e 4 meses, a aplicação do perdão de um ano comprometeria aquela pena de 6 anos que, em respeito ao que resulta dos artigos 77º e 78º do CP, não poderá nunca ser afectada pelo perdão por constituir o limite mínimo da pena única[3].
Se assim é, o perdão de apenas 4 meses é legal, não tendo sido violado qualquer preceito da Lei nº 38-A/2023, de 2/8, mormente o nº 3 do artigo 7º.
Quanto às possíveis implicações constitucionais desta interpretação, demos voz ao acórdão da Relação de Guimarães, datado de 6/2/2024, proferido no Pº 771/17.5PBGMR-J.G1, a cuja tese aderimos com facilidade:
«Esta interpretação, diretamente resultante da conjugação dos artigos 3º, nº 4 e 7º, nº 3, ambos da Lei 38-A/20023, de 02.08, não padece da inconstitucionalidade que lhe atribui o recorrente, por violação do disposto nos artigos 13º (Princípio da igualdade) e 32º (Garantias de processo criminal) da Constituição da República Portuguesa.
Em primeiro lugar, o direito de graça ou de clemência, no qual se inclui a amnistia e o perdão genérico têm sempre uma natureza excecional, não comportando interpretação analógica nem extensiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas. Como se pode ler a propósito, com inteira atualidade, no então designado Assento nº 2/2001, de 25.10.2001, publicado no DR 264 SÉRIE I-A, de 14.11.2001, “(…) o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.
Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.
É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» — artigo 11º do Código Civil —, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (…)”.
Assim sendo, respeitando a situação em apreço, como já se viu, a um caso de cúmulo jurídico de penas parcelares de prisão aplicadas por crime excluído do perdão e por crime dele não excluído, foram ambas englobadas no cúmulo, com aplicação do perdão na pena única de prisão fixada, mas sempre de modo a que o remanescente da pena única de prisão resultante da aplicação àquela do perdão fique em medida inferior à pena parcelar de prisão aplicada pelo único crime excluído do perdão, como impõem os artigos 3º, nº 4 e 7º, nº 3, da lei em análise.
De outro modo, a pena do crime excluído do perdão acabaria por beneficiar de uma redução não decretada na lei de clemência. Sendo por isso inconcebível que após a aplicação do perdão à pena única de prisão nos termos pretendidos pelo recorrente, ele viesse a cumprir um remanescente inferior à medida da pena parcelar de prisão aplicada pelo crime excluído de tal benefício.
O que não é suscetível de violar o princípio constitucional da igualdade, pois que o mesmo se impõe a todos os cidadãos na situação do recorrente e não assenta em critérios arbitrários.
Como tem vindo a ser repetidamente proclamado pelo próprio Tribunal Constitucional, «Numa perspetiva material ou substantiva, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da diferença. Com efeito, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão nº 39/88: «A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29). O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes.
Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no nº 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados. O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»

3.6. Se assim é, e pelos fundamentos acima descritos, só pode improceder este recurso.

3.7. Diremos em sumário:
1. Para efeitos de se considerar ou não um crime como amnistiado, aos crimes puníveis somente com pena de prisão, bem como aos crimes puníveis com pena de prisão e com pena de multa, cumulativamente, ou com pena de multa, em alternativa àquela pena de prisão, apenas se tem que atender ao limite da pena de prisão estabelecido no artigo 4º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8, sem atender ao limite da multa.
2. Respeitando a situação a um caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única, sem qualquer desvio às regras dos artigos 77º e 78º do CP, por ser precisamente nesse sentido a previsão expressa do nº 4 do artigo 3º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8.
3. No caso de cúmulo jurídico de penas parcelares aplicadas por crimes não abrangidos pela amnistia, em que apenas um deles está excluído do perdão, a conjugação dos artigos 3º, nº 4, e 7º, nº 3, da Lei nº 38-A/2023, de 2/8, impõe que o remanescente da pena única resultante da aplicação àquela do perdão não pode ser inferior à pena parcelar aplicada pelo crime excluído do perdão.

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso intentado pelo arguido AA, mantendo todo o teor da decisão recorrida.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].

Coimbra, 20 de Março de 2024
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)
 
 Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro
Adjunto: Isabel Valongo



[1] Temos também para nós que esta «lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, portanto em número indeterminado, a delimitação do seu âmbito de aplicação está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não padece de inconstitucionalidade a limitação constante do nº 1 do artigo 2º» (Ac. desta Relação, datado de 22/11/2023 – Pº 39/07.5TELSB-H.C1).
E, como bem disserta o aresto da Relação de Évora, datado de 23/1/2024 (Pº 3873/20.7T9FAR.E1):
«As leis de amnistia e perdão têm caracter de clemência, não é um direito dos cidadãos;
O Estado goza de grande liberdade conformativa no conteúdo das leis de amnistia e perdão, sendo que as suas razões e objetivos não estão concretizadas em lei;
Não podendo ocorrer o arbítrio ou discriminação infundada, o Estado pode escolher o momento da entrada em vigor da amnistia/perdão, que tipos legais ou condutas serão passiveis de amnistia/perdão, qual a abrangência da amnistia/perdão (penal, contraordenacional, disciplinar …), que grupos de indivíduos amnistiar/perdoar (Lei 9/96, de 23 de Março, conhecida pela Amnistia às FP25), isto é, desde que justificada a sua restrição não existe inconstitucionalidade.
Ora, no caso em apreço não se vislumbra qualquer arbítrio ou falta de fundamento material.
Na verdade, tratou-se de assinalar a vinda do Papa às JMJ, estabelecendo-se vários limites: idade, data da prática dos factos, tipos de infracções.
Tal e qual se estabeleceu em anteriores amnistias.
A fixação da idade dos 30 anos, e não de outra qualquer, mesmo que por referência a jovens, está também bem explicitada, parecendo desrazoável a discussão acerca da idade até à qual se pode considerar uma pessoa jovem. E muito menos por referência ao conceito de jovem para muitos outros efeitos (até para jovem agricultor!).
Tratou-se apenas de equiparar com a idade considerada para participação nas JMJ.
Por outro lado, é bem compreensível que se associe à vinda do Papa e às JMJ à concessão de um “benefício” a quem sendo jovem, mais facilmente merece “incentivo” para uma melhor ressocialização.
Resulta de tudo o exposto que com a fixação do limite dos 30 anos não se vislumbra qualquer contrariedade aos preceitos constitucionais ou da carta dos direitos fundamentais dos cidadãos da união europeia».

[2] «Mais algumas notas práticas referentes à Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude»

[3] Cfr. ainda Acórdão do STJ datado de 15/11/2006 (Pº 06P3183).