Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1917/22.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
OBRIGAÇÃO DE INFORMAÇÃO
ASSEMBLEIA GERAL
APROVAÇÃO DE CONTAS
CONVOCATÓRIA
PRAZO PARA A AÇÃO DE ANULAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 58.º, N.ºS 1, ALÍNEAS A) E C), E 4, 263.º, N.º 1, DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS E 334º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A obrigação de informação consistente na disponibilização da documentação respeitante às contas a aprovar, pressupõe a verificação simultânea das duas condições impostas pelo nº1 do art. 263º CSC: i) ter patentes os documentos para consulta dos sócios, pelo menos, entre o dia do envio da convocatória e a data da assembleia ii) avisar os sócios de tal facto, na convocatória que lhes é feita da realização da assembleia.
II – Ainda que o pedido de anulação da deliberação tenha por fundamento um vício da convocatória, a contagem do prazo para a propositura da ação de anulação não se iniciará antes da tomada da deliberação.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo nº 1917/22.7T8VIS.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: José Avelino Gonçalves

2º Adjunto: Helena Gomes Melo

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum – “ação de declaração de nulidade e anulação de deliberações sociais” – contra A..., Lda.,

Pedindo que, na procedência da ação:

a) Se declarem nulas, sem quaisquer efeitos, todas as deliberações sociais tomadas na assembleia geral realizada no dia 30-03-2022 respeitantes à ré, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 56º, nº1, al. d) do CSC;

b) Sem conceder, caso assim não se entenda, se declare a anulação de tais deliberações sociais, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) e b) e nº4 do Código das Sociedades Comerciais.

d) E, em consequência da procedência da presente ação, com fundamento nos pedidos feitos em a) ou b), se mande cancelar o registo efetuado na Conservatória do Registo Comercial de prestação de contas individual.

Invocando a sua qualidade de sócio da ré, alega para tal, em síntese:

destinando-se a assembleia em causa à aprovação de contas referentes ao ano de 2021, a convocatória que lhe foi enviada não vinha acompanhada de qualquer documentação e não continha a menção a menção de que os documentos, que seriam submetidos à deliberação dos sócios, estavam disponíveis para consulta na sede da sociedade ou se a consulta seria disponibilizada ao sócio por outra via;

 apesar de ter remetido carta a solicitar os documentos relativos às contas da sociedade ou a indicação de data e hora para a respetiva consulta na sede da ré, a ré não lhe disponibilizou a consulta dos documentos de prestação de contas, nem a consulta dos documentos requeridos;

por outro lado, da ordem de trabalhos não consta a apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade.

A ré apresentou contestação, impugnando a matéria alegada na petição inicial e, para a hipótese de se entender que a deliberação objeto do litígio se encontra ferida de nulidade ou de qualquer anulabilidade, requereu, ao abrigo do disposto no artigo 62.º, n.º3 do Código das Sociedades Comerciais, prazo para a renovação.

Concluiu pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

Na sequência do despacho com a ref.ª 91234050 de 13-09-2022, a ré declarou não pretender a renovação da deliberação.

Realizada audiência final, foi proferida Sentença, que culmina com a seguinte decisão:

3. Decisão:

Termos em que, pelos fundamentos expostos:

3.1. Julgo improcedente o pedido de declaração de nulidade;

3.2. Julgo a ação procedente, nos termos do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alíneas a) e c), n.º 4, por referência ao artigo 263.º, n.º 1, e, em consequência, declaro anuladas as deliberações sociais tomadas na assembleia da ré realizada no dia trinta de março de dois mil e vinte e dois, relativas à aprovação das contas do exercício de dois mil e vinte e um e aplicação dos respetivos resultados, com o consequente cancelamento do registo efetuado na Conservatória do Registo Comercial relativo à prestação de contas que teve por base esta assembleia.

3.3. Condeno a ré nas custas da ação.

3.4. Registe e notifique


*

Inconformada, a Ré interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

DA ANULABILIDADE DAS DELIBERAÇÕES SOCIAIS

I. Deve considerar-se não aplicável ao caso dos autos a anulabilidade com fundamento no artigo 58.º, n.º 1, alínea a), por estar em causa uma mera irregularidade ou vício decorrente do processo de convocatória, e não um vício de conteúdo das deliberações sociais.

II. Devem considerar-se válidas as deliberações sociais por se encontrarem cumpridas todas as formalidades obrigatórias, previstas no artigo 58.º, n.º 1, alínea c) e n.º 4, e cuja falta levaria efetivamente à anulabilidade das deliberações, nomeadamente a aposição das menções exigidas pelo artigo 377.º, n.º 8 e a colocação dos documentos para exame dos sócios no local e durante o tempo prescritos pela lei ou pelo contrato, não se considerando nelas incluído o aviso do 263.º, n.º 1, menção cuja falta gera sanção.

III. Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de17.12.2020, Processo n.º 2212/19.4T8VS.G1, relatora Elisabete Alves, disponível em www.dgsi.pt, “A lei exige, para a validade das deliberações respectivas, que previamente se coloquem em determinado local, mais concretamente na sede da sociedade, certos documentos à disposição dos sócios - designadamente os documentos a que se reporta o artigo 263º n. 1 do CSC (…). Na verdade, e conforme oportunamente referimos, a lei estabelece de forma clara, no âmbito dos elementos mínimos de informação – n. 4 do artigo 58º- qual a conduta que faz incorrer a deliberação no vício da anulabilidade por falta de informação prévia à Assembleia, concretizando-a, no caso das sociedades por quotas, na falta de colocação e disponibilização aos sócios dos documentos para exame pessoal na sede da sociedade nos dias anteriores à Assembleia, no modo, tempo e forma aí previstos – artigos 214º n.4 ex vi 263º do C.S.C.”

IV. O próprio recorrido demonstra que é irrelevante a falta do aviso na convocatória quando remete a carta a solicitar documentos, uma vez que se estes lhe tivessem sido remetidos este nunca intentaria a ação em causa, pelo que essa falta se deve considerar sanada pelo facto de os documentos terem sido disponibilizados.

DA EXTEMPORANEIDADE DO PEDIDO

V. A presente ação foi intentada a 29.04.2022, com o fundamento de que a convocatória não continha a menção relativa à disponibilidade e consulta dos documentos.

VI. No que diz respeito à convocatória, esta foi recebida pelo sócio, a 15.03.2022, e este remeteu carta em resposta, a 22.03.2022, pedindo que lhe fossem remetidos documentos, aceitando deste modo a falta do aviso, e demonstrando assim que se estes lhe tivessem sido remetidos a presente ação nunca seria intentada com fundamento na falta desse aviso.

VII. Portanto, sendo a ação fundamentada num vício da convocatória, deve considerar-se que o prazo de 30 dias para arguir a anulabilidade, previsto no 59.º, n.º 2 do CSC, começou a correr no momento em que este a recebe dá conta do vício.

VIII. Pelo que, a presente ação é manifestamente extemporânea, uma vez que o prazo de 30 dias começou a correr no dia 15.03.2022, atingiu o seu termo a 26.04.2022, e a ação foi apenas intentada a 29.04.2022.

DO ABUSO DE DIREITO

IX. A convocatória para a assembleia geral foi recebida no dia 15.03.2022, tendo este remetido resposta apenas no dia 22.03.2022 a solicitar o envio ou, em alternativa, na impossibilidade de enviar os documentos, a consulta dos mesmos na sede social.

X. Frustrada a tentativa de entrega da carta, a mesma ficou disponível a 25.03.2022 para levantamento no balcão dos CTT, a uma sexta-feira! Tendo os gerentes da ré tido apenas 3 dias para a levantar!!

XI. Enquanto ROC, o recorrido sabia que podia e devia fazer a consulta dos documentos na sede social, tendo-o demonstrado quando se disponibilizou para fazer essa mesma consulta.

XII. O mero facto de este ser ROC cria uma situação objetiva de confiança, pois qualquer pessoa normal e diligente esperaria que um ROC soubesse onde fazer essa consulta.

XIII. Resulta do ponto 19. dos factos provados que os documentos estiveram disponíveis na sede social desde data próxima à realização da assembleia geral até data posterior à realização da mesma, e dos factos não provados que a ré não tenha disponibilizado esses documentos para consulta.

XIV. Resulta do depoimento da testemunha BB e do próprio recorrido, que o mesmo indicava os registos contabilísticos e consultava habitualmente os documentos no escritório do contabilista, prática que manteve pelo menos até 2020, sendo, portanto, legítima a expectativa da ré de que recebida a convocatório este efetuasse a consulta.

XV. É legitima a expectativa da ré de que após a receção da convocatória, o recorrido fizesse a consulta dos documentos, atuando de acordo com o seu comportamento anterior.

XVI. O recorrido atua desde o momento em que recebe a convocatória em manifesto abuso de direito, num venire contra factum proprium. A instauração da presente ação mesmo que tivesse algum resquício de fundamento não pode levar ao procedimento da lide por manifesta violação do artigo 334º do CC.

Em função do supra exposto, farão vossas excelências a acostumada justiça, julgando procedente o presente recurso.

*
A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Cumpridos que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir seriam as seguintes:
1. O vício decorrente do processo de convocatória não é gerador da anulabilidade com fundamento no artigo 58º, nº1, CSC;
2. Extemporaneidade do pedido de anulação com tal fundamento;
3. Se a invocação da nulidade/anulabilidade com fundamento na irregularidade da convocatória constitui um abuso de direito.
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III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

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A. Matéria de facto dada como provada na decisão recorrida

2.1.1. Factos provados:

Resultam provados os seguintes factos:

1. A ré A..., Lda., sociedade por quotas, pessoa coletiva n.º ...23, com sede na Avenida ..., ..., em ..., encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número desde 20-12-2016;

2. Tem por objeto social a promoção e gestão imobiliária, construção civil e obras públicas, administração, compra e venda e revenda de bens imobiliários adquiridos para esse fim, arrendamento de bens próprios e subarrendamento; prestação de serviços de consultoria nas áreas da gestão, contabilidade, fiscalidade e realização de peritagens.

3. Tem o capital social de €5.000,00 distribuído da seguinte forma:

- Uma quota com o valor nominal de €2.125,00 pertencente ao autor, CC, no estado de casado com DD, sob o regime da comunhão de adquiridos;

- Uma quota com o valor nominal de €2.125,00 pertencente a DD, no estado de casada com CC, sob o regime da comunhão de adquiridos.

- Uma quota no valor de €750,00 pertencente à sociedade B..., Lda., que tem como únicos sócios o autor CC e DD, no estado de casados entre si.

4. A sociedade vincula-se pela assinatura de um gerente.

5. Na matrícula comercial da ré, desde a constituição da sociedade, constava como única gerente a sócia DD e a partir de 28 de dezembro de 2021 passou também a constar como gerente EE, por ter sido requerido, pela ap. ...4 de 28-12-2021, o registo da designação de gerente por deliberação de 06-12-2021.

6. Corre termos neste Juízo de Comércio, Juiz ..., o processo n.º 5187/21...., que se encontra na fase de recurso em relação à sentença que julgou a ação improcedente, em que está em apreciação a existência e validade das deliberações sociais tomadas na assembleia geral de 19-07-2021 relativas à aprovação de contas do ano de 2020.

7. Está pendente neste Juízo de Comércio, Juiz ..., o processo n.º 86/22...., em que está em apreciação a nomeação de EE como gerente da ré.

8. DD, na qualidade de gerente da ré, subscreveu convocatória datada de 11 de março de 2022, onde menciona que convoca o agora autor para a Assembleia Geral Anual da ré a realizar no dia 30 de março, pelas catorze horas e trinta minutos, na sua sede social, com a seguinte ordem de trabalhos:

1° Deliberar sobre as demonstrações financeiras do período findo em 31 de dezembro de 2021;

2° Deliberar sobre as propostas de aplicação dos resultados apresentadas pela gerência referente ao período findo em 31 de dezembro de 2021.

9. A convocatória mencionada no artigo anterior, foi enviada em 11-03-2022, por carta registada com aviso de receção, remetida pela ré ao autor para a Rua ..., ..., em ...;

10. A carta mencionada no artigo anterior foi recebida em 15 de março de 2022, pelo funcionário do autor FF.

11. Na convocatória mencionada no artigo oitavo não é mencionado qualquer outro assunto a submeter a deliberação dos sócios e nada se menciona quanto aos documentos que serão submetidos à deliberação dos sócios, à sua consulta, se os mesmos se encontravam disponíveis para consulta na sede da sociedade ou se a consulta seria disponibilizada ao sócio por outro via.

12. A convocatória mencionada no artigo oitavo não foi acompanhada por qualquer documentação.

13. No dia 22 de março de 2022, o autor remeteu à ré, ao cuidado “da sócia e gerente DD, EE e GG”, para a Avenida ..., ... ..., carta registada com aviso de receção, com o seguinte teor:

- “Ex.mos Senhores Gerentes, DD, EE e GG, Recebi no meu domicílio profissional sito na Rua ..., ..., ..., ... a convocatória datada de 11 de março de 2022 para a Assembleia Geral que se irá realizar no dia trinta de março pelas catorze horas e trinta minutos na sede social.

Atento a que na convocatória remetida V. Exa, não consta qualquer menção à disponibilidade dos documentos de prestação de contas para exame dos sócios na sede da sociedade, venho pelo presente requerer a V. Exa., nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 214.°, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais, que seja disponibilizado e remetido para o mesmo domicilio para onde fui convocado, ou para o meu correio eletrónico ...@....pt conforme lhe for mais conveniente, informação e cópia da seguinte documentação:

1. As demonstrações financeiras do período findo e 31 de dezembro e respetiva documentação de suporte;

2. As propostas de aplicação de resultados apresentadas pela gerência referente ao período findo em 31 de dezembro de 2021 e respetiva documentação de suporte;

3. Balanço e balancete demonstrativo dos resultados do período findo em 31 de dezembro de 2021 e respetiva documentação de suporte;

4. Extrato da conta de suprimentos dos sócios e prestações suplementares, bem como a documentação de suporte;

5. Cópia de todos os pagamentos realizados pela sociedade, obrigações contraídas e respetiva documentação suporte;

6. Cópia de todos os meios de pagamentos entregues por C..., Lda.;

7. Informação sobre as receitas recebidos pela sociedade, o destino que lhes foi dado e a respetiva documentação suporte;

8. Extratos bancários da sociedade referentes ao período de 1 de janeiro de 2021 a 31 de dezembro de 2021;

Sem conceder, caso V. Exa. entenda que a remessa da documentação supra solicitada não é possível, requer-se que seja concedida a consulta dos documentos na sede da sociedade, pelo que se solicita a indicação de data e hora para tal consulta, nos termos do artigo 263.°, n.° 1 do Código das Sociedades Comerciais.

Informo, ainda, que me farei acompanhar por um perito, nos termos do artigo 214.°, n.º 4 do Código das Sociedades Comerciais, bem como irei usar a faculdade reconhecida pelo artigo 576.° do Código Civil.

Por fim, peço que me seja prestada por escrito informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, bem como a informação elucidativa sobre quando é que a Sociedade irá pedir anulação da falsa venda do prédio, que era propriedade da sociedade, ou seja da sua transmissão, sem contrapartida ou fundamento, realizada em violação do contrato de sociedade”.

14. No dia 24 de março de 2022 foi tentada a entrega, na sede da ré, da carta mencionada no artigo anterior, mas como ninguém atendeu foi deixado aviso com a indicação de que estava disponível para levantamento.

15. A carta mencionada no artigo 13.º permaneceu no balcão dos CTT, disponível para levantamento, desde o dia 25-03-2022 e foi levantada em 01-04-2023, às 13h27m, pelo gerente EE.

16. A única resposta que foi dada à solicitação mencionada no artigo 13.º é a constante do artigo seguinte.

17. Por carta datada 30 de maio de 2022, a ré, representada pelos seus gerentes DD e EE, remeteu ao autor carta a mencionar que apenas o mesmo se podia penitenciar pelo não levantamento da carta que lhe tinha sido enviada em 11-04-2022, tendo sido enviada cópia da ata da assembleia realizada no dia 30-03-2023 e cópia de uma carta datada de 11-04-2022, com o seguinte teor:

- “Acusamos a receção da vossa carta em 01 de abril de 2022, após a realização da Assembleia Geral Anual.

Como V. Exa. bem sabe, sempre teve livre acesso aos documentos sociais, mas como pretende alterar a prática, vimos informar que estamos disponíveis para o receber, para consulta dos documentos na sede social, no dia 11 de maio de 2022,entre as catorze horas e trinta minutos e as quinze horas e trinta minutos, nos termos da lei.

Relativamente ao último parágrafo da vossa carta, desconhecemos o solicitado”.

18. Não foram enviados ao autor, nem este consultou, os documentos referidos na carta mencionados no artigo 13.º, não se tendo deslocado à sede da sociedade, nem ao escritório do contabilista.

19. Todos os documentos de suporte da contabilidade da ré, incluindo os mencionados no artigo 13.º, em data próxima à da assembleia em causa nos autos, foram levados do escritório do contabilista para a sede da ré e aí permaneceram desde, pelo menos, a convocatória mencionada no artigo 8.º até data posterior à da realização da assembleia mencionada no artigo 20.º.

20. O autor não teve acesso aos documentos contabilísticos de suporte das contas da ré relativos ao ano de 2021.

21. No dia 30 de março de 2022, pelas 14h30m, teve lugar uma assembleia geral da ré, na sua sede social na Avenida ..., em ...;

22. Só se encontrava presente HH, em representação das sócias DD e B..., Lda.

23. HH deliberou nessa assembleia:

- Aprovar o balanço e demonstração de resultado relativos ao ano de 2021, com período findo em 31 de dezembro de 2021;

- Aprovar a proposta de aplicação de resultados apresentada pela gerência, com a transferência do resultado líquido negativo apurado no exercício de 2021 de €186,23 para resultados transitados.

24. Constando de seguida que, nada mais havendo a tratar, foi dada por encerrada a sessão cerca das 14h45m.

25. A ré não tem qualquer espaço destinado à sua atividade na Avenida ..., ..., em ..., local onde está instalado o escritório da sociedade D..., Lda. de que o pai dos gerentes é sócio, tendo esta sociedade ao seu serviço entre 15 a 20 funcionários.

26. Em 2022 a ré não tinha funcionários ao seu serviço.

27. No período da convocatória da assembleia de 01-04-2022 até à sua realização, a gerente da ré, então ainda casada com o autor, mas separados de facto, tinham pendente processo crime em que a gerente é queixosa e o autor é arguido.

2.1.2. Factos não provados:

Não resultaram provados os seguintes factos:

 a) Sem prejuízo do disposto no artigo 11.º, a ré não colocou à disposição dos sócios para consulta as demonstrações financeiras, proposta de aplicação de resultados e restantes documentos referentes à aprovação de contas do ano de 2021 previamente à realização da assembleia geral.

b) Sem prejuízo do disposto no artigo 11.º, a ré não disponibilizou ao autor a consulta dos documentos de prestação de contas, nem a consulta dos documentos requeridos, designadamente os mencionados no artigo 13.º.


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B. Subsunção dos factos ao direito

1.  Se a omissão, na convocatória para a assembleia geral, do aviso de que os documentos relativos à prestação de contas estavam patentes aos sócios, imposta pelo art. 263º, nº1, do CSC, acarreta a anulabilidade da deliberação.

A sentença recorrida declarou anuladas as deliberações sociais tomadas na assembleia da ré realizada no dia 30 de março de 2022, relativas à aprovação das contas do exercício do ano de 20021 e aplicação dos seus resultados, ao abrigo do disposto nas als. a) e c), do nº1, do artigo 58º, do CSC, com fundamento na inobservância no nº1 do art. 263º do CSC – segundo o qual, da convocatória para a assembleia deve constar o aviso de que os documentos relativos à prestação de contas estavam patentes aos sócios.

Insurge-se a Ré Apelante contra o decidido, com os seguintes fundamentos:

1. a omissão de tal aviso na convocatória não teve qualquer implicação ou relevância nas deliberações tomadas: o autor é ROC e sócio da ré desde 2016, pelo que, embora não constasse da convocatória, o autor sabia que as contas estavam disponíveis;

2. a lei não prevê qualquer sanção específica para a falta deste aviso, que não põe em causa o cumprimento de obrigação de disponibilização dos documentos, único dever que se prevê no nº1 do artigo 263º, pelo que se devem considerar válidas as deliberações tomadas em tal assembleia;

3. ainda que assim se não entenda, tal anulabilidade deve considerar-se sanada pelo facto de os documentos terem sido efetivamente colocados à disponibilidade dos sócios para consulta, conforme resulta do ponto 19. dos factos provados.

Não é de dar razão ao apelante.

Segundo o artigo 58º, nº1, al. c), do Código das Sociedades Comerciais (CSC), são anuláveis as deliberações que “Não tenham sido precedidas dos elementos mínimos de informação”.

E, para efeitos de tal artigo, o seu nº 4, al. b), considera elementos mínimos de informação, “a colocação de documentos para exame dos sócios no local e durante o tempo prescritos pela lei ou pelo contrato”,

Dispõe o artigo 263º nº1 do CSC (sob a epígrafe, “Relatório de gestão e contas do exercício”):

“1. O relatório de gestão e os documentos de prestação de contas devem estar patentes aos sócios, nas condições previstas no artigo 214º, nº4, na sede da sociedade e durante as horas de expediente, a partir do dia em que seja expedida a convocação para a assembleia destinada a apreciá-los; os sócios serão avisados do facto na própria convocação”.

Regulamentando textualmente o direito de informação dos sócios, o nº1 do artigo 263º do CSC, o modo como o mesmo deve ser cumprido é aí cindido em duas obrigações distintas:

i) obrigação de ter patentes os documentos para consulta dos sócios, pelo menos, entre o dia do envio da convocatória e a data da assembleia,

ii) avisar os sócios de tal facto, na convocatória que lhes é feita da realização da assembleia.

O dever de “disponibilização” da documentação previamente à assembleia de aprovação de contas pressupõe, assim, não só, que a sociedade patenteie na sua sede os documentos, em condições de serem aí examinados pelos sócios, como ainda, que a sociedade, ao enviar a convocatória, os avise de que a documentação já aí se encontra disponível para consulta.

Com este esclarecimento quanto ao modo de cumprimento da obrigação de prestar ao sócio as informações necessárias à tomada de decisão quanto à elaboração das contas, o código quis deixar claro que não é o sócio, caso pretenda ter acesso à mesma, que tem de solicitar a documentação, que tem de andar atrás dela, informando-se do local onde a mesma se encontra, sujeitando-se a que tal consulta lhe seja concedida nas condições a fixar pela sociedade. Com vista a assegurar que todos os sócios que assim o queiram, possam consultar sem qualquer restrição os documentos da sociedade, é esta que tem de ter a iniciativa de colocar a documentação à disposição na sua sede e avisar os sócios que os documentos se encontram em condições de aí serem consultados.

Trata-se do que Sofia Ribeiro Branco, a propósito da informação que há de ser transmitida ou posta à disposição previamente à realização de cada assembleia geral, apelida de “informação direta espontânea” – “aquela que é transmitida ou posta à disposição para consulta oficiosamente, sem que estes tenham de tomar qualquer iniciativa para a informação estar patente[1]”.

Não faz qualquer sentido a afirmação da Apelante de que, apesar de o autor não ter recebido tal aviso, o autor sendo ROC e sócio da sociedade desde há 16 anos “sabia que as contas estavam disponíveis”.

Desde logo, a Ré não esclarece como é que o autor “sabia” que os documentos estavam lá, quando ficou dado como provado, por alegação da própria ré, que todos os documentos da contabilidade em data próxima à da assembleia “foram levados do escritório do contabilista para a sede da ré e aí permaneceram desde, pelo menos, a convocatória mencionada no artigo 8º até data posterior à da realização da assembleia mencionada no artigo 20º”. Daqui se deduz que os documentos estariam habitualmente com o contabilista e só para aí terão sido levados nessa altura, onde permaneceram pelo menos desde a convocatória e a data da assembleia; ou seja, o que o autor poderia saber é que os documentos habitualmente não estariam na sede da ré; assim como, na qualidade de ROC, teria conhecimento da existência da obrigação legal de disponibilização dos documentos. E a Ré nem sequer alega que, de algum modo, tenha sido dado conhecimento ao autor de que os documentos haviam sido levados para a sede da sociedade e, muito menos, que aí se encontrariam disponíveis para consulta.

Concluindo, não bastava à sociedade levar os documentos respeitantes à sua contabilidade para a sua sede e aí os manter no período que medeia a data da convocatória e a data da assembleia, incumbindo-lhe, ainda, “disponibilizá-los” ao autor, avisando-o de que os documentos aí se encontravam e em condições de por este serem consultados, obrigação que se não mostra cumprida.

Quanto ao último fundamento invocado pela Apelante – de que a lei não prevê qualquer sanção específica para a falta deste aviso, que tal falta não poria em causa o cumprimento de obrigação de disponibilização dos documentos, e que o único dever que se prevê no nº1 do artigo 263º – assenta numa errada leitura da previsão constante do nº1 do artigo 263º.

O incumprimento do dever de informação pode gerar uma anulabilidade com base na violação de disposições que prescrevem o mínimo de informações aos sócios (artigo 58º, nº1, al. c), CSC), e um dos casos em que se encontra expressamente previsto e regulado o direito à informação dos sócios, respeita à informação prévia à realização de uma assembleia geral.

E se nem todos os vícios de procedimento provocam a anulabilidade das respetivas deliberações, é vício relevante, para efeitos de anulação das deliberações, o facto de o relatório de gestão e as contas do exercício não terem sido facultados à consulta dos sócios, antes da assembleia[2].

E o dever de disponibilizar os documentos, a que se reporta o nº1 do artigo 263º, tanto se mostra incumprido no caso de a sociedade enviar o aviso sem que tenha patentes os documentos na sua sede, como na situação oposta em que, mantendo os documentos na sua sede (porque é lá que a sociedade os guarda habitualmente ou porque os levou para lá no período que antecede a realização da assembleia), não dá conhecimento de tal facto aos sócios, criando condições para que aos mesmos tenham acesso.

Com efeito, o ato de disponibilizar concretiza-se, não só, em ter patentes os documentos no local e tempo previstos no artigo 263º, também com a comunicação aos sócios de que os documentos estão ou irão estar na sede e em condições de serem consultados pelos sócios.

Quanto ao argumento da irrelevância do incumprimento de tal aviso, pelo facto de “os documentos terem efetivamente sido colocados à disponibilidade dos sócios para consulta”, o que teria o efeito de “sanar” a irregularidade decorrente da ausência do aviso, não tem qualquer razão de ser.

Como já referimos anteriormente, os documentos só estão efetivamente disponíveis para consulta, se a sociedade os colocar de modo a poderem ser consultados e se avisar o sócio de que os mesmos se mostram disponíveis para consulta. Como tal, no caso em apreço, não se pode afirmar que os documentos tenham sido efetivamente colocados à disponibilidade dos sócios.

2. Da extemporaneidade do pedido de anulação

Unicamente em sede de alegações de recurso, vem agora a Ré invocar a extemporaneidade da presente ação de anulação das deliberações tomadas na assembleia de 30-03-2022, com fundamento em que o prazo de 30 dias para a arguição da anulabilidade, previsto no artigo 59º, nº2 do CSC, ter começado a correr no momento em que este recebeu a convocatória.

Segundo o artigo 573º do Código de Processo Civil, “toda a defesa deve ser deduzida na contestação”, significando que o réu tem nesta de invocar todos os meios de defesa de que disponha sob pena de ficarem prejudicados, não podendo ser alegados mais tarde[3].

Com a contestação, o réu tem o ónus de contestar e de deduzir todas as exceções que, não sendo de conhecimento oficioso, tenha contra a pretensão do autor, sob pena de preclusão.

A considerar-se que este tribunal sempre teria de apreciar tal questão, por respeitando a um prazo de propositura de uma ação, se tratar de um prazo de caducidade (art. 298º, nº2, CC), sendo esta de conhecimento oficioso (art. 333º do CC), ainda assim, não é de dar razão à Apelante.

O artigo 59º nº2 do CSC, ao fixar um prazo de 30 dias para a propositura da ação de anulação, dispõe expressamente que os mesmos são contados:

a) da data em que foi encerrada a assembleia geral;

b) do 3º dia subsequente à data do envio da ata da deliberação por voto escrito;

c) da data em que o sócio teve conhecimento da deliberação, se esta incidir sobre assunto que não constava da assembleia.

De qualquer modo, ainda que não existisse esta definição expressa do momento inicial da contagem do prazo de 30 dias para a propositura da ação de anulação das deliberações sociais, nunca tal prazo se poderia iniciar em data anterior à assembleia e à tomada de qualquer deliberação.

O que se encontra em causa é o pedido de anulação da deliberação que aprovou as contas e não de “anulação” da convocatória, pelo que antes da tomada da deliberação nada já a anular.

3. Do abuso de direito

Por fim, insurge-se a Apelante contra o decidido, invocando um abuso de direito também nunca antes por si alegado nos autos e que, como tal, não foi objeto de apreciação por parte do tribunal a quo.

De qualquer modo, sendo doutrina e jurisprudência unânime em que o tribunal está vinculado a tomar conhecimento do abuso de direito, desde que, do conjunto dos factos alegados e provados resultem provados os respetivos pressupostos legais[4], passaremos à sua apreciação.

O abuso de direito, consagrado no artigo 334º do CC, é definido como “o ilegítimo exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Alega o Apelante que o recorrido “atua”, desde o momento em que recebe a convocatória, em manifesto abuso de direito, num venire contra factum proprium, com base no seguinte circunstancialismo de facto:

- a convocatória para a assembleia geral foi recebida no dia 15.03.2022, tendo este remetido resposta apenas no dia 22.03.2022 a solicitar o envio ou, em alternativa, na impossibilidade de enviar os documentos, a consulta dos mesmos na sede social;

- frustrada a tentativa de entrega da carta, a mesma ficou disponível a 25.03.2022 para levantamento no balcão dos CTT, a uma sexta-feira! Tendo os gerentes da ré tido apenas 3 dias para a levantar!!

- enquanto ROC, o recorrido sabia que podia e devia fazer a consulta dos documentos na sede social, tendo-o demonstrado quando se disponibilizou para fazer essa mesma consulta;

- o mero facto de este ser ROC cria uma situação objetiva de confiança, pois qualquer pessoa normal e diligente esperaria que um ROC soubesse onde fazer essa consulta;

- resulta do ponto 19. dos factos provados que os documentos estiveram disponíveis na sede social desde data próxima à realização da assembleia geral até data posterior à realização da mesma, e dos factos não provados que a ré não tenha disponibilizado esses documentos para consulta.

- resulta do depoimento da testemunha BB e do próprio recorrido, que o mesmo indicava os registos contabilísticos e consultava habitualmente os documentos no escritório do contabilista, prática que manteve pelo menos até 2020, sendo, portanto, legítima a expectativa da ré de que recebida a convocatório este efetuasse a consulta;

- é legítima a expectativa da ré de que após a receção da convocatória, o recorrido fizesse a consulta dos documentos, atuando de acordo com o seu comportamento anterior.

Antes de mais haverá que esclarecer que a existência de abuso de direito por parte do autor só teria relevância na presente ação quando reportado à invocação da anulabilidade da deliberação de aprovação de contas com fundamento em vício da convocatória, consistente na omissão do aviso de que a documentação respeitante às contas a aprovar se encontraria disponível na sede da Ré.

Não se encontrando a obrigação de disponibilização da documentação dependente de qualquer pedido do autor, é irrelevante que o autor, após receber a convocatória sem que da mesma constasse que os documentos estavam disponíveis para consulta na sede da Ré, tenha enviado uma carta à Ré a solicitar que lhe fossem prestadas determinadas informações, sendo irrelevante a antecedência com que enviou tal carta à ré. Podia o autor não ter enviado carta nenhuma e as consequências de tal factualidade para o desfecho da ação seriam exatamente as mesmas.

Por fim, era completamente descabido que a Ré pudesse confiar que o autor fosse, por sua própria iniciativa, à procura da documentação:

 - invocando comportamentos anteriores do autor reportados a um tempo em que o autor ainda residia com a sócia/gerente da Ré, em morada que correspondia igualmente à sede da Ré, que não se mostram provados e, nem sequer, alegados nos autos; com efeito, nos articulados não foram alegados factos respeitantes a qualquer comportamento atual contraditório com qualquer outro comportamento anterior do autor e, muito menos, a quaisquer expectativas criadas na ré dignas de confiança, integrantes de um venire contra factum proprium;

- como já foi aqui referido, este dever de disponibilização da documentação por parte da sociedade existe independentemente de qualquer pedido formulado para o efeito por parte do sócio que os pretenda consultar; e, no caso concreto, face à conflitualidade existente entre o autor e a outra sócia, de quem se encontra separado, com inúmeros processos instaurados entre ambos e entre o autor e a sociedade, mais se justificaria que o autor ficasse à espera de que a sociedade ré o informasse expressamente que estaria disposta a disponibilizar-lhe os documentos para consulta; pelo que, omitindo a Ré tal aviso, a posterior invocação da nulidade da deliberação de aprovação das contas, por as mesmas lhe terem sido facultadas não se afigura como ofensiva da boa-fé ou dos princípios que subjazem ao nº1 do artigo 263º.

Concluindo, a apelação é de improceder em todos os seus fundamentos.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente a Apelação, confirmando-se a decisão recorrida:

Custas da Apelação a suportar pela Apelante.

Notifique.


Coimbra, 13 de dezembro de 2023                                              

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

(…)


[1] “O Direito dos Accionistas à Informação”, Almedina, pp. 275-276.
[2] J. M. Coutinho de Abreu, “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Vol. I (Artigos 1º a 84º), Almedina, pp. 763-674.
[3] Cfr., José Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil, Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 3ª ed., pp. 181-183, e Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2ª ed., p. 102.
[4] Cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 20-12-2022, relatado por Manuel Aguiar Pereira, disponível in www.dgsi.pt.