Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
303/22.6GCTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: PROVA PROIBIDA
DEVASSA DA VIDA PRIVADA
DIREITO À IMAGEM
DIREITO À RESERVA SOBRE A INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
CRIME DE GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS ILÍCITAS
REPRODUÇÕES MECÂNICAS
CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 26.º, N.º 1, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA/CRP
ARTIGOS 31.º, 192.º E 199.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 125.º, 126.º E 167.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
ARTIGOS 79.º, N.º 2, E 80.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – Sendo elemento típico do crime de devassa da vida privada, do artigo 192.º do Código Penal, a intenção de devassa da vida privada, fica afastada a tipicidade das acções que tenham finalidades probatórias.

II – Quer no direito à palavra, quer no direito à imagem, tutelados no crime de gravações e fotografias ilícitas, do artigo 199.º do Código Penal, estamos perante um bem jurídico eminentemente pessoal, com a estrutura de uma liberdade fundamental e que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua palavra e a sua imagem.

III – É pressuposto da invalidade de valoração probatória das reproduções mecânicas, a que se refere o n.º 1 do artigo 167.º do C.P.P., que elas sejam ilícitas, nos termos da lei penal, isto é, à proibição de valoração não basta o preenchimento típico, sendo ainda necessário que a reprodução mecânica seja ilícita.

IV – Nada obsta à valoração da prova se a licitude resultar de justificação legalmente prevista e será na justa ponderação de todos os interesses em presença que competirá aferir da ilicitude penal do comportamento de quem procedeu às gravações contrárias à vontade/não consentidas pelo visado, e/ou as utilizou, para depois se concluir ou não pela validade ou invalidade da sua valoração probatória.

V – Se a gravação não foi obtida de forma oculta e se no momento da filmagem a pessoa visada não se encontrava numa situação de privacidade ou de intimidade que não pudesse ser acedida por outras pessoas a reprodução mecânica não é ilícita.

VI – Tendo presidido às gravações e à sua junção aos autos «exigências de justiça», de que fala o n.º 1 do artigo 79.º do Código Civil, e sendo as mesmas necessárias para o exercício do direito da vitima de fazer a prova do crime, a ilicitude é excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, nos termos dos artigos 20.º da CRP e 31.º, n.º 1, do Código Penal, revelando-se tal comportamento justificado.

VII – Quando a reprodução mecânica é adequada para a salvaguarda do interesse constitucional na descoberta do crime e punição do agente ela é proporcional sopesando os valores constitucionais conflituantes, que são os interesses público e da vítima na descoberta do crime, a eficiência penal, a segurança, a pacificação social e a justiça, e, depois, as garantias de defesa e os direitos de personalidade do agente, em respeito pelo disposto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, daqui resultando a lícitude da valoração probatória das gravações.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra


I. Relatório

1. … mediante despacho datado de 18.11.2022, foi AA pronunciada como autora material e na forma consumada, um crime de ofensa à integridade física simples, p.p. artigo 143.º do CP.

2. Inconformada, recorreu a arguida, formulando (após aperfeiçoamento) as seguintes conclusões:

«
i. …
ii. Finda a instrução foi proferida decisão de pronúncia, decisão esta que coartou os princípios da presunção de inocência e o princípio do in dúbio pro reo, pois que, a prova produzida não pode permitir o convencimento do Tribunal quanto à verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável …
iii. A decisão foi alicerçada num vídeo, que se trata de um método proibido de prova, pois que, não existe uma justa causa por parte da assistente para tal procedimento, não existindo qualquer legitima defesa ou estado de necessidade.
iv. E assim, todos os meios de prova que violem esses direitos fundamentais e de personalidade, são, em si, proibidos – 26º 1, 32.º n.º 8 todos da CRP e artigos 79.º e 80.ºdo Código Civil, porque claramente violadores do núcleo da vida privada da arguida, porque filmado sem o seu consentimento.
v. A arguida estava legitimada a estar no terreno e ainda aceder à servidão …
vi. Contrariamente à assistente a quem não assiste qualquer direito que permitisse fechar a rede ali existente, …
vii. Tal vídeo foi, assim, efetuado pela denunciante/assistente num terreno privado (e não no interior da “sua” propriedade como referiu na queixa crime e posteriormente em declarações complementares).
viii. …
ix. Não obstante, do vídeo não é visível em qualquer momento que a arguida agredisse a assistente, sendo toda a queixa alicerçada em factos falsos. …
x. …
xi. Assim, e salvo melhor opinião, ainda que conste da conclusão pericial de que “os elementos disponíveis permitam admitir o nexo de causalidade entre o trauma e o dano”, apesar do seu valor reforçado, tal não significa a prova de quem foi o autor de tal dano, …
xii. …
xiii. …
xiv. …
xv. …

3. Respondeu o Ministério Público …

4. Nesta Relação, a Digna Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer …

5. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido exercido o contraditório.

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

7.  Âmbito do Recurso

No caso em apreço é questão a resolver: a suficiente indiciação do crime de ofensa à integridade física simples (art.º 143.º do Código Penal).

II. Despacho recorrido (transcrito na parte relevante)

«Da ilicitude das gravações como meio de prova:

Na verdade, os fotogramas mencionados a fls. 98, resultam de uma gravação vídeo efetuada pela assistente, durantes os factos e é relevante saber se os mesmos podem ser valorados.

De acordo com o artigo 125 do CPP: “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”.

A regra é a de que a prova ilicitamente produzida, ou recolhida, não pode ser valorada.

As proibições de prova levantam o problema da dicotomia entre meios de prova e meios de obtenção de prova.

As proibições de prova estão consagradas no art. 126º CPP, e têm gerado algumas correntes na doutrina e na jurisprudência.

Dispõe o mencionado artigo que:

“…”.

Este artigo mais não é do que a consagração do artigo 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa.

O nº 1 e 2 do mencionado artigo refere-se as provas absolutamente proibidas e no nº 3, a provas relativamente proibidas.

As primeiras nunca podem ser utilizadas e as segundas podem ser utilizadas nos casos previstos na lei.

Dispõe o artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que “…”.

No entanto, a própria lei fundamental, no seu artigo 18º, nº 2, admite a restrição dos “direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Uma das exceções resulta do artigo 167º do Código de Processo Penal, que preceitua:

“1. …”.

Na situação concreta foi entregue pela assistente uma gravação efetuada pela própria durante os factos, reproduzida nos fotogramas juntos a fls. 98.

O crime de gravações ilícitas, encontra-se previsto no artigo 199 do CP.

De acordo com o mencionado artigo:

“1 - …”

O bem jurídico protegido no tipo em análise é eminentemente pessoal e prende-se com o direito à imagem e reserva privada de cada um.

Assim, tal artigo mais não é do que a expressão legislativa do direito à imagem, reconhecido e protegido pelo artº 26º, nº1 da CRP e 79 do CC.

Acresce que na al. a) do mencionado normativo está em causa o gravar palavras proferidas por outrem, sem o consentimento dela ou fotografar/filmar uma pessoa, sendo por isso ilícita a conduta do agente (terceiro) que fotografa outra pessoa sem o seu consentimento, enquanto que na al. b) está em causa a utilização da gravação, fotografia ou filme de outra pessoa mesmo que licitamente obtida (ou seja com o seu consentimento).

Contudo, não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento.

Na verdade, um comportamento para ser punido como crime tem de, para além de se encontrar tipificado na lei penal, configurar também um ato ilícito e culposo, o que implica a ponderação da existência, ou não, de uma causa de justificação da gravação ou da fotografia, que se pretende utilizar como meio de prova.

Já é pacífico na jurisprudência que as gravações ou fotografias, mesmo sem o consentimento do visado, feitas em locais públicos ou de acesso ao público, não correspondem a qualquer método proibido de prova, quer por não violarem o núcleo duro da vida privada.

Também é pacífico que algumas gravações e filmagens apesar de poderem cair nas proibições de prova, podem ser admissíveis desde que se mostre imprescindível, para a prova do crime ou para obstar ao mesmo.

Ora, esta é, precisamente, a situação dos autos.

De facto, as gravações em causa não podem ser entendidas como uma intromissão da esfera privada da arguida, na medida em que esta apercebeu-se que estava a ser gravada e, não obstante prosseguiu com a sua conduta, manifestamente ilícita, como a seguir vamos analisar.

A gravação é efetuada, como resulta claríssimo do vídeo (por nós visionado), durante uma agressão, sendo essencial para a prova dos factos.

Na situação concreta, atenta a forma como é feita a gravação, a mesma constitui um meio de prova válido, devendo ser valorada.

Como referido iniciaram-se os presentes autos com a denúncia da ofendida/assistente, onde a mesma refere, nomeadamente que no dia 24 de agosto foi agredida pela denunciada com um pau.

Quando inquirida confirmou os factos.

Por seu turno a arguida, quando interrogada negou os factos.

Sujeita a relatório de perícia de dano corporal a assistente apresentava lesões compatíveis com a informação.

Na situação concreta, como na maior parte das vezes existem duas versões dos factos.

O depoimento da assistente pode ser valorado e está sujeito à livre convicção do Tribunal, ainda mais quando se encontra corroborado por outros elementos de prova, …

Contudo, sempre se acrescenta que na situação concreta inexistem dúvidas sobre a agressão da arguida à assistente, bastando para tal visionar a gravação vídeo junto aos autos.

III- Assim, decide-se:

Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, pronunciar:

AA, …».

III. Apreciando e decidindo

Insurge-se a recorrente contra a decisão recorrida que, julgando válida a valoração de gravações de imagem e palavras colhidas pela assistente, sem o consentimento da arguida, a pronunciou pela prática de um crime de ofensa à integridade física, nos termos do art.º 143.º do Código Penal.

Foram, assim, no entender da recorrente, violados os artigos 199.º n.º 1 al. a) do Código Penal (ou CP); 125.º, 126.º, 283.º n.º 2, 286.º n.º 1, 308.º n.º 1 e 283.º n.º 2 todos do Código de Processo Penal (ou CPP); 79.º e 80.º todos do Código Civil (ou CC) e artigos 32º 2 e 8 e 26º 1 da Constituição da República Portuguesa (ou CRP).

Conclui a recorrente que a decisão recorrida deve ser substituída por outra no sentido de não pronúncia da arguida.

Impõe-se, então, apreciar e decidir a questão suscitada da suficiente indiciação do crime de ofensa à integridade física simples (art.º 143.º do CP).



Consabidamente, o despacho de pronúncia finda a instrução supõe a verificação de «indícios suficientes» da existência de um crime e de quem foi o seu agente (art.ºs 283.º, n.º 1, 286.º, e 308.º, n.º 1 do CPP).

Por sua vez, o n.º 2 do o art.º 283º nº 2 do CPP dispõe que se consideram «suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».

A aferição do grau de convicção requerido para a suficiência dos indícios haverá de ser em articulado seja com o princípio da presunção de inocência (art.º 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), seja com a fundamental garantia de defesa do arguido a não ser submetido a julgamento penal sem haver indícios suficientes da prática de um crime, seja, ainda, com o princípio da economia processual.

Temos, portanto, que o arguido apenas deverá ser pronunciado se, de acordo com um juízo de prognose antecipada, suportado na apreciação crítica dos indícios adquiridos no inquérito e na instrução, de tais provas resultar - a repetirem-se em julgamento, e não sendo abaladas ou infirmadas por outras aí produzidas - a elevada a probabilidade de condenação.

2.2 Sem esquecer, no entanto, que, se em processo penal vigora o princípio geral da liberdade de prova (artigo 125.º do CPP), provas existem cuja valoração é proibida.

Define o artigo 126º do CPP quais os métodos proibidos de prova, esclarecendo no seu nº 3 que «ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular».

No que respeita a provas obtidas por particulares, o legislador remete-nos para a tipificação dos ilícitos penais.

Ilustrativo desta concretização legislativa revela-se o n.º 1 do art.º 167.º do CPP, ao dispor que:

«As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal».

As alegações recursivas convocam o crime de gravações e fotografias ilícitas, previsto no art.º 199.º do CP, que tutela o direito à palavra e à imagem.

Invoca, ainda, a recorrente a violação do disposto no art.º 80.º do CC que consagra o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada.

Quer o direito à palavra e à imagem, quer a reserva da intimidade da vida privada e familiar encontram a sua consagração constitucional no art.º 26.º n.º 1 da CRP.

Mas, como é bom de ver, a violação do disposto no art.º 80.º do CC que consagra o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada não consiste em ilicitude penal.

O mesmo se diga da violação do disposto no art.º 26.º n.º 1 da CRP.

Ora, como já vimos, é pressuposto da invalidade de valoração probatória das reproduções que estas sejam ilícitas, nos termos da lei penal (n.º 1 do art.º 167 do CPP).

Sem prejuízo, sempre diremos que, no Código Penal, encontramos o art.º 192.º que, sob a epígrafe, devassa da vida privada, dispõe que:

«1 - Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual:

a) Interceptar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa, comunicação telefónica, mensagens de correio electrónico ou facturação detalhada;

b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos;

c) Observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado; ou

d) Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa;
é punido, no caso das alíneas a) e c), com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 240 dias e, no caso das alíneas b) e d), com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2 - O facto previsto na alínea d) do número anterior não é punível quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante».

Constatamos que elemento típico do crime é a intenção de devassa da vida privada.

Encontra-se, portanto, afastada a tipicidade quando às ações descritas presidam finalidades probatórias.

Expressamente convocado pelo recorrente foi o artigo 199.º do Código Penal, que, sob a epígrafe gravações e fotografias ilícitas dispõe que:

«1 - Quem sem consentimento:

a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou

b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;

é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.

2 - Na mesma pena incorre quem, contra vontade:

a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou

b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos».

A descrição do tipo objetivo abrange:

- A gravação ou a utilização, não consentidas, de palavras proferidas por outra pessoa não destinadas ao público;

-   A fotografia ou a filmagem, ou a utilização de fotografias ou filmes de outra pessoa, contra a sua vontade.

No dizer de Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 1999, página 818:

«Em consonância com a Constituição - que elevou o direito à palavra e o direito à imagem à constelação e ao estatuto dos Direitos fundamentais - também o ordenamento jurídico português reconhece e protege a palavra e a imagem como dois bens jurídicos autónomos, nomeadamente face à privacidade/intimidade em cujo seio começaram por se revelar».

Quer no direito à palavra, quer no direito à imagem, encontramo-nos perante um bem jurídico eminentemente pessoal com a estrutura de uma liberdade fundamental e que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria palavra e a sua imagem. «Em consonância, dispõe o art.º 79.º n.º 1 do CC (Direito à imagem): o retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o seu consentimento» - Cf. Manuel da Costa Andrade, obra citada, página 823.

No entender de Manuel da Costa Andrade, obra citada, página 833, «na determinação da área de tutela típica do direito à imagem deve ter-se presente o disposto no n.º 2 do art.º 79.º do CC. Que, pelo menos em algumas das constelações previstas, se projeta logo em sede de tipicidade e não apenas de ilicitude/justificação».

Para este ilustre Professor (cf. obra citada nas páginas 833 e 834), assim deve ser em relação a dois grupos de casos:

a) Em primeiro lugar, quando «a imagem ver enquadrada na de lugares públicos ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente»;

b) Em segundo lugar, quando seja relevante «a notoriedade ou o cargo desempenhado».

Com base na dogmática dos limites imanentes dos direitos fundamentais, há quem entenda que o comportamento indigno do titular do direito à palavra e imagem determina a perda da dignidade penal dos referidos direitos, afastando, desde logo a verificação de crime ao nível dos elementos do tipo.

Neste entendimento, dito de redução teleológica do tipo de sentido vitimo-dogmático, verifica-se a exclusão da relevância típica da conduta do agente que capta ou utiliza a imagem, em atenção ao comportamento censurável (porque imoral, ilícito, descuidado) daquele que é objeto de violação do direito à imagem enquanto pratica um crime.

Assinala, criticamente o Professor Manuel da Costa Andrade, na obra citada, página 835 que «mal se compreenderia que o direito, e em particular o direito penal, abandonasse as pessoas de qualquer modo envolvidas em práticas imorais ou ilícitas. A ponto de os atentados aos seus bens jurídicos, mesmos os de mais eminente dignidade, não atingirem sequer o limiar mínimo da relevância jurídico penal (a tipicidade). O que equivaleria a tolerar, mesmo a estimular, a formação de santuários de imoralidade e ilegalidade, onde apenas sobraria espaço para a auto-tutela e a «luta no escuro» (Haug, MDR,1964 548). De resto, tal não se compaginaria com o dogma da continuidade do Estado e do direito nem com os princípios basilares do Estado de direito (separação de poderes, legalidade, igualdade).        

Por outra via.

Tal como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 28.05.2009, no processo 10210/2008-9 (rel. Des. Fátima Mata-Mouros):

«Ao estabelecer-se, no art.º 167.º do CPP, que as reproduções fotográficas ou cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um ato ilícito e culposo».

Importa, assim, não perder de vista a possibilidade de verificação de alguma causa de justificação da ilicitude configurável no caso.

Nos termos do art.º 31.º do Código Penal, (causas de exclusão da ilicitude) o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade (n.º 1), nomeadamente, não é ilícito o facto praticado (no exercício de um direito (n.º 2 al. b).

Como é sabido, não é necessário o consentimento da pessoa retratada, quando assim o justifiquem «exigências de polícia ou de justiça» (art.º 79.º n.º 2 do Código Civil).

Para Tiago Caiado Milheiro, no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II Artigos 124 a 190, 3.ª Edição, Edições Almedina S.A., Abril, 2021, página 553: a «utilização no processo penal de reproduções mecânicas, naturalmente» que se subsume na previsão do art.º 79.º n.º 2 do CC, o que pode excluir a ilicitude penal por via da unidade da ordem jurídica plasmada no artigo 32.º n.º 1 do CP. «Contudo o conceito de «exigibilidade» convoca os critérios de adequação/necessidade/proporcionalidade nos termos do art.º 18.º n.º 2 da CRP. A reprodução mecânica deve ser adequada para salvaguardar o interesse constitucional na descoberta do crime e punição do agente; necessária, porque não existem outras provas ou são insuficientes para um cabal esclarecimento dos factos; proporcional sopesando os valores constitucionais conflituantes, como por exemplo o interesse público e da vítima na descoberta do crime, eficiência penal, segurança, pacificação social, justiça, garantias de defesa do arguido».

Ainda no entender de Tiago Caiado Milheiro, na obra citada, página 553, a utilização de gravações em processo penal pode também chamar à colação o exercício do direito à prova enquadrável no art.º 31.º/1/b CP. «Quer permitindo à vítima a prova do crime (enquadrado juridicamente como direito de acesso ao direito e aos tribunais - art.º 20.º CRP), ou no polo oposto o arguido provar a sua inocência (no âmbito do exercício do direito constitucional de defesa - art.º 32.º CRP). Em ambas as situações o direito à prova pode contender com o direito à imagem/palavra». Deverá recorrer-se a critérios de proporcionalidade, adequação e necessidade. «E será nesta dimensão que deve ser analisada a possibilidade de uso de reproduções mecânicas».

Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 29.03.2016, no processo 558/13.4GBLLE.E1, num caso de registo de utilização da imagem do arguido a riscar os automóveis da assistente, numa garagem, em que se entendeu aplicável o direito de necessidade justificante):

«A não ser assim, acabaria por aceitar-se a condenação por crime contra o direito à imagem de quem se limita a documentar através de filme ou fotografia o facto ilícito de que é vítima, o que representaria uma inversão dos valores e interesses penalmente tutelados, se não mesmo a subversão, em alguma medida, do regime dos direitos fundamentais. Tanto mais que para além do interesse em proteger a esfera pessoal ou patrimonial da assistente de atentados ilícitos, estará igualmente em causa projeção do direito fundamental de acesso dos particulares ao direito e a tutela jurisdicional efetiva que a CRP reconhece no art. 20º da CRP, pois as mais das vezes a fotografia ou filme são determinantes na prova do ilícito típico».

Como quer que seja, nada obsta à valoração da prova se a licitude resultar de justificação legalmente prevista, e será na justa ponderação de todos os interesses em presença que competirá aferir da ilicitude penal do comportamento de quem procedeu às gravações contrárias à vontade/não consentidas pelo visado, e/ou as utilizou, para depois se concluir, ou não pela validade ou invalidade da sua valoração probatória.

A concluir-se pela validade da valoração probatória das gravações, deverá a mesma, em concatenação com a restante prova válida e lícita, ser apreciada, nos termos do art.º 127º do CPP «segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

Por isso é que «o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que sem sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só» - Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 12.06.2008, no processo 07P4375 (rel. Cons. Raúl Borges).

Por certo que, «o juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade» - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10.09.2008, no processo 195/07.2GBCNT.C1 (rel. Des. Alberto Mira).

O que sempre se impõe é que o juiz explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 10.04.2014, no processo 5509/11.8TDPRT.P1 (rel. Des. Neto de Moura).

Assim, na fase de instrução, e para a formação da convicção do julgador devem ser examinadas as provas válidas e lícitas que possam suportar de, de modo convincente e para além de qualquer dúvida razoável, umas das versões suscitadas (a da acusação ou a da defesa).

Subsistindo dúvida séria e insanável, sobre a prova de factos desfavoráveis ao arguido aplica-se o princípio «in dubio pro reo», também na fase de instrução.

Efetivamente, «a existência de dúvida fundada e séria quanto à suficiência dos indícios deve ser decidida a favor do arguido, porquanto o princípio in dubio pro reo tem aplicação em todas as fases do processo - cfr., neste sentido, o ac. TRL de 16.11.2009, proc. n.º 3555/09.TDLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt, em cuja fundamentação se cita, além do mais, o ac. do Tribunal Constitucional n.º 439/02, que considerou que “a interpretação normativa dos arts. 286.º, n.º1, 298.º e 308.º, n.º1, todos do Código de Processo Penal, que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32.º, n.º2, da Constituição» - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 09.03.2016, no processo 436/14.0GBFND.C1 (rel. Des. Fernando Chaves).

Dito isto e retomando o caso dos autos, vejamos, então, se num juízo de prognose, em face da prova colhida no inquérito e na instrução, se pode concluir ser elevada a probabilidade de futura condenação da arguida.


No despacho recorrido é dada nota das duas versões distintas que foram apresentadas nos autos: a da ofendida/assistente que refere a agressão e a da arguida que a nega.
A convicção do Tribunal a quo fundou-se:
-Nas declarações da assistente;
- No teor do relatório de perícia de dano corporal (compatível com a informação);
- Nas imagens e sons gravados pelo aparelho de telemóvel da arguida.
No entender da recorrente, resulta incongruente a versão da assistente por:
- Na queixa apresentada, a ora assistente haver referido ter sido agredida na cabeça e mão esquerda, sem ter recebido tratamento médico;
- No relatório do INML, constar da história do evento que dele terão resultado traumatismos na mão esquerda e ombro direito;
- Nas declarações prestadas a assistente não assegurar se foi agredida na mão esquerda ou na mão direita;
- Decorrer da gravação que o telemóvel estava na mão direita (e não na esquerda, o que faz todo o sentido se atentarmos que a assistente é pessoa dextra, como resulta do relatório de clínica forense junto aos autos).
Como nos parece claro, não se descortina qualquer discrepância essencial, no que respeita à versão apresentada pela assistente, na parte em que resultou plasmada na pronúncia.
Tal como consta do despacho recorrido seguinte, na gravação «é perfeitamente visível a arguida munida de um pau a ir na direção da assistente, sendo audível, logo de seguida, o som das agressões».
Não resulta minimamente comprovada, nem a intenção de devassa da vida privada, nem a alegação recursiva de que à gravação presidiram motivações provocatórias.
Portanto, que o que resulta indiciado pela a junção nos autos é que foram finalidades probatórias a assistir à gravação.
Não sofre questão que a gravação foi efetuada em terreno privado.
É certo ainda que a imagem da arguida não se mostra enquadrada na de lugares públicos ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente, nem resulta que a pessoa da arguida seja de notoriedade ou que seja relevante cargo desempenhado.
Concordamos com o entendimento daqueles que afastam a redução teleológica do tipo de sentido vitimo-dogmático, parecendo-nos desadequado considerar que os atentados aos bens jurídicos da arguida não atingem sequer a tipicidade - limiar mínimo da relevância jurídico penal.

No entanto, à proibição de valoração não basta o preenchimento típico, sendo necessário que a reprodução mecânica seja ilícita.

Ora, a gravação não foi obtida de forma oculta.

A pessoa visada, no momento da filmagem, não se encontrava numa situação de privacidade ou de intimidade que não pudesse ser acedida por outras pessoas.

Aliás, o que a recorrente alega é que estava a realizar trabalhos agrícolas.

Claramente não foi afetado o denominado núcleo duro da vida privada da arguida.

A gravação foi efetuada na iminência e no desenrolar da agressão.

Como alega a recorrente, no vídeo não é visível a agressão.

No entanto, como pode ler-se no despacho em crise:
«A sequência das imagens e o som que se ouve não permite outra conclusão, senão a de que a assistente foi agredida com o pau, sob pena de violação das regras da experiência».
Mas se é assim, o que se mostra materialmente documentado através da gravação é a iminência do crime e a sua materialização.
Temos certo que a gravação e a respetiva junção autos ter ocorrido sem o consentimento e contra a vontade da arguida.
Mas as circunstâncias são tais que justificam a exclusão da ilicitude da conduta da assistente, em atenção ao comportamento da arguida.
Entendemos que o comportamento da assistente revela-se justificado por a ilicitude ser excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade (31.º n.º 1 do CP), uma vez às gravações e à sua junção nos autos presidiram «exigências de justiça» (art.º 79.º n.º 1 do CC) e que as mesmas são necessárias para o exercício de um direito (al. b) do n.º 2 do art.º 31.º do CP) permitindo à vítima a prova do crime (art.º 20.º da CRP).
A reprodução mecânica é adequada para a salvaguarda do interesse constitucional na descoberta do crime e punição do agente e para que a assistente aceda à justiça.
Revela-se necessária, mesmo na perspetiva da recorrente, por as restantes provas serem insuficientes para um cabal esclarecimento dos factos.
É proporcional sopesando os valores constitucionais conflituantes: por um lado, os interesses público e da vítima na descoberta do crime, a eficiência penal, a segurança, a pacificação social, e a justiça; e por outro, as garantias de defesa e os direitos de personalidade da arguida, para quem a gravação não se apresentava oculta, e que, na sua própria versão, se encontrava a trabalhar num terreno agrícola (em situação em que não foi atingido o núcleo duro da privacidade).
Tudo considerado, entendemos que não são desproporcionalmente atingidos os interesses da arguida (art.º 18.º n.º 2 da CRP), sendo lícita a valoração probatória das gravações.
Sujeita a prova ao crivo da apreciação judicial, foi julgado indiciado, para além da dúvida razoável, que a assistente foi atingida na mão esquerda e na cabeça, com o pau de que a arguida se encontrava munida.

Aliás, neste crime, a ação típica, «a agressão, pode ser realizada através de um sem número de diferentes comportamentos do agente, mas o que, para o caso, importa reter, é que podem existir ofensas ao corpo sem que, simultaneamente, exista uma ofensa à saúde do ofendido» - Cf. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 13.01.2016, processo 569/13.0PBCTB.C1 (rel. Des. Vasques Osório).
É o que sucede, por exemplo, «com uma bofetada ou um empurrão que, pela sua intensidade, não causem dor ou sofrimento» - Cf. citado Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.01.2016.
Portanto, não é condição de relevância típica a causação de dor ou de mal-estar corporal, incapacidade da vítima para o trabalho ou marca.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.1991 fixou a jurisprudência no sentido de que:
«Integra o crime do artigo 142.º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho».
Tal como se escreve na fundamentação de tal Acórdão: «A questão da dor, sua existência e intensidade, como a questão das lesões ou da incapacidade para o trabalho, não são questões de tipicidade, excepto quanto aos casos de crime qualificado ou privilegiado, mas sim questões tão-só relevantes quanto à escolha da pena e sua medida».
É certo que «as lesões insignificantes não devem ser consideradas ofensas ao corpo ou à saúde tipicamente relevantes, sob pena de violação dos princípios da dignidade do bem tutelado e da intervenção mínima do direito penal» (cf., nesse sentido, citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.01.2016).
No entanto, no caso, a factualidade indiciada não permite considerar manifestamente insignificante a conduta da arguida.

Pelo contrário.

Resulta do relatório do GML que a ora assistente apresentava lesões «no membro superior esquerdo: «equimose em fase de resolução na face dorsal da falange proximal do dedo indicador», que «lhe determinarão 3 dias para cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade profissional», «as quais terão resultado de traumatismo de natureza contundente, o que é compatível com a informação».
Tudo considerado entendemos que não se verificam contraindícios suscetíveis de abalar a convicção firmada, além da dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputado.

Lido o despacho recorrido o Tribunal recorrido não manifestou de dúvida fundada e séria quanto à suficiência dos indícios que tenha resolvido em desfavor da arguida.
Neste Tribunal da Relação entendemos de acordo com um juízo de prognose antecipada, apreciados os elementos de prova nesta fase existentes, que se indicia para além da dúvida razoável a versão plasmada na pronúncia, sem que subsista dúvida séria e insanável, sobre a prova de factos desfavoráveis à arguida que justifique a aplicação do princípio «in dubio pro reo».

Concluímos, face ao exposto, pela improcedência do recurso.


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IV. DISPOSITIVO

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Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando o despacho recorrido.

Custas pela arguida recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC´s (art.º 513º Código de Processo Penal).


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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).



Coimbra, 25.10.2023

Alexandra Guiné (relatora)

Isabel Valongo (adjunta)

José Eduardo Martins (adjunto)