Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
108/21.9T8PNH-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
CONSEQUÊNCIAS DA DECLARAÇÃO DE NULIDADE DO MÚTUO
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PINHEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 607.º, 5; 640.º E 662.º, 1, DO CPC
ARTIGOS 220.º; 289.º, 1; 1142.º; 1143.º E 1148.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Demonstrado que uma das partes “empresta” à outra dinheiro ou outra coisa fungível, forçoso é concluir que a entrega da mesma coisa ocorre a título de empréstimo ou mútuo, estando concomitantemente esta última obrigada a restituir a coisa mutuada.
II – Declarada a nulidade do mútuo, por falta de forma, emerge como consequência a restituição, pelos mutuários, de tudo o que tiver sido prestado, nos termos do art. 289º, nº 1 do C.Civil.
Decisão Texto Integral: Apelações em processo comum e especial (2013)

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           Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                        *

            1 – RELATÓRIO

Foram instaurados autos de Inventário por AA, divorciada, identificada com os sinais dos autos, contra BB, divorciado, também identificado nos autos, visando a partilha dos bens na sequência de divórcio.

Em sede de Cartório Notarial – onde os autos deram inicialmente entrada –, foi nomeado cabeça-de-casal a interessada requerente, a qual prestou compromisso de fiel desempenho das suas funções, declarações de cabeça-de-casal e juntou aos autos a respetiva relação de bens.

Na relação de bens que apresentou, a cabeça-de-casal relacionou, sob as verbas do activo, bens móveis, bens móveis sujeitos a registo e bens imóveis, e como verba de “Passivo”, o montante de € 6.422,80.

O interessado CC apresentou reclamação à relação de bens, requerendo a exclusão da relação de bens dos seguintes bens:

- Verbas nos 1, 2 e 7 por sustentar que são bens próprios, adquiridos no estado de solteiro com dinheiro próprio;

- O bem identificado como Verba n.º 3, porque não existe;

- O passivo relacionado pela cabeça de casal não corresponde à verdade porquanto a cabeça de casal não levou para o casamento a quantia que menciona;

- O bem imóvel relacionado como Verba n.º 8 é bem comum do dissolvido casal, mas foi adquirido com dinheiro que os pais do requerido emprestaram ao então casal para adquirir o imóvel ali descrito e cerca de 2.000€ de mobílias, pelo que deve ser relacionado como passivo do extinto casal tal quantia em favor dos pais do requerido, sendo certo que juntou documento comprovativo do pagamento pelos seus pais da quantia de € 21.000,00.

A cabeça-de-casal apresentou resposta à reclamação à relação de bens, em que não aceitou a exclusão da relação de bens dos bens relacionados sob as Verbas nos 1, 2 e 7 , esclarecendo que foram adquiridas pelo casal com o dinheiro resultante da sua atividade, mantendo a existência da verba n.º 3 que se encontra na casa de morada de família. No mais, não aceita o valor mutuado pelos pais do requerido afirmando que nenhum negócio com eles foi por si celebrado, que o requerido não tem legitimidade para o reclamar, e que ainda que assim não se entenda tal mútuo seria nulo por falta de forma.

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Procedeu-se à tomada de declarações aos interessados e à produção dos meios de prova pessoal pelos mesmos requeridos.

Na sequência, a Exma. Juiz de 1ª instância proferiu decisão em 08.12.2022  quanto à reclamação em referência, através de despacho que concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«5. Dispositivo

Em face de todo o exposto, decido o seguinte:

5.2.1. Determino que sejam excluídas da relação de bens as verbas n.ºs 1,2 e 7.

5.2.3 Determino que se mantenha relacionada a verba 3.

5.2.2. Determino que seja relacionado como passivo do ex-casal a quantia de

21.000,00€ a favor dos pais do requerido.

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Custas pela requerente.

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Valor do presente incidente: o do inventário (sem prejuízo da posterior modificação) –

artigo 304.º, n.º 1, do CPC.

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Registe e Notifique, sendo a cabeça-de-casal para juntar aos autos relação de bens em

conformidade com o ora decidido.»

                                                           *

Insatisfeita, a dita interessada e cabeça-de-casal AA  interpôs recurso de apelação, o qual foi alvo de decisão sumária pelo ora Relator, com o seguinte dispositivo:

«Nesta conformidade e pelos fundamentos expostos, decide-se anular a “decisão” recorrida, determinando-se que os autos baixem à primeira instância a fim de a mesma aí ser substituída por outra em que se elenquem devidamente os factos provados e não provados após a audiência de julgamento (enumeração/discriminação expressa e explícita), fundamentando-se a decisão de facto de acordo com o dever atinente que emerge dos enunciados preceitos legais, aplicando-se então depois o direito aos factos apurados, deste modo ficando prejudicado o conhecimento do objecto do recurso.»

                                                           *

Tramitados os autos na 1ª instância, foi proferida decisão judicial, datada de 10/10/2023, com o seguinte dispositivo:

«Em face de todo o exposto, decido o seguinte:

5.2.1. Determino que sejam excluídas da relação de bens as verbas n.ºs 1, 2 e 7.

5.2.2 Determino que se mantenha relacionada a verba 3.

5.2.3. Determino que seja relacionado como passivo do ex-casal a quantia de 21.000,00€ a favor dos pais do requerido.

Custas pela requerente.».

                                                           *

Novamente inconformada, a Reclamada/Cabeça de casal veio interpor recurso de apelação, cujas alegações finalizou com as seguintes conclusões:

«I. Impugna-se a matéria de facto dada como provada e como não provada.

II. Existe prova documental, dois depósitos bancários na conta conjunta do ex-casal, no valor de € 6.422,80 (seis mil quatrocentos e vinte e dois euros e oitenta cêntimos), quanto ao valor levado para o casamento da requerente/recorrente.

III. Assim deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a Decisão proferida pelo Tribunal a quo e ser proferida nova sentença, onde deve ser julgado como provado o facto, “ … c) Na data em que contraíram matrimónio entre si a AA possuía a quantia relacionada na alínea d) do passivo. …”, e ser relacionado um passivo do ex-casal à requerente/recorrente no valor de € 6.422,80 (seis mil quatrocentos e vinte e dois euros e oitenta cêntimos).

IV. Não deveria ter sido relacionado um passivo de € 21.000 (vinte e um mil euros) do ex-casal a favor dos pais do requerido/recorrido.

V. O ex-casal, em especial a requerente/recorrente, nunca se obrigaram de nenhuma forma a restituir, pagar, devolver nenhum montante, nomeadamente € 21.000 (vinte e um mil euros), aos pais do requerido/recorrido.

VI. Igualmente não resultou da prova documental junta ou testemunhal produzida que o ex-casal e nomeadamente a requerente/recorrente se tenha obrigado para com outrem e nomeadamente para com os ex-sogros, nem que se tenha obrigado à restituição de nenhum valor, de nenhuma forma e em nenhum momento, pelo que nunca existiu nenhum mútuo, nos termos do artigo 1142º do Código Civil nem outro tipo de obrigação ou contrato.

VII. Pese embora a douta sentença não faça referencia a que titulo relaciona o passivo do ex-casal sempre se dirá, porque invocado pelo reclamante/requerido/recorrido, e apenas por mera hipótese académica se supõe, sempre se dirá, que não existe nenhum mútuo.

VIII. Assim deveria o tribunal à quo ter declarado como não provado, “ … 3. Pelos pais do interessado BB, foi emprestada aos interessados, seu filho e então nora AA, para aquisição do imóvel relacionado sob a verba n.º 8, a 25.10.2017, data da sua aquisição, a quantia de 21.000,00€, quantia directamente transferida para a conta da vendedora naquela data. (cf. documentos comprovativos da transferência juntos com a reclamação)”, determinado que não se relaciona-se um passivo no valor de € 21.000,00 (vinte e um mil euros) a favor dos pais do requerido.

IX. Os pais do ex-marido/requerido/recorrido nunca reclamaram o crédito.

X. Carece o requerido de legitimidade para o fazer neste âmbito

XI. Não foi feita prova suficiente para que o tribunal pudesse decidir que deveria ser relacionado um passivo no valor de € 21.000,00 (vinte e um mil euros) a favor dos pais do requerido.

XII. Deveria o tribunal à quo ter enviado, nos termos do artigo 1350º do CPC a discussão quanto à existência de algum crédito dos pais do requerido/recorrido para os meios comuns, que não se aceita e apenas por mera hipótese académica se supõe.

XIII. Assim deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a Decisão proferida pelo Tribunal a quo e ser proferida nova sentença que julgue como não provado, “ … 3. Pelos pais do interessado BB, foi emprestada aos interessados, seu filho e então nora AA, para aquisição do imóvel relacionado sob a verba n.º 8, a 25.10.2017, data da sua aquisição, a quantia de 21.000,00€, quantia directamente transferida para a conta da vendedora naquela data. (cf. documentos comprovativos da transferência juntos com a reclamação)”, e determine que não se relacione um passivo no valor de € 21.000,00 (vinte e um mil euros) a favor dos pais do requerido.

XIV. Ou caso assim se não entenda deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a Decisão proferida pelo Tribunal a quo e ser enviado para os meios comuns a discussão quanto à existência de algum crédito dos pais do requerido/recorrido, nos termos do artigo 1350º do CPC.

Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, requer-se a V. Exas. que seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, seja revogada a Decisão proferida pelo Tribunal a quo, substituindo-se por outra nos termos em que se concluiu, assim se fazendo a Acostumada JUSTIÇA.»

                                                           *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

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Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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           2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pugnando no sentido de que passe a figurar no elenco dos factos “provados” o facto que foi feito constar no elenco de sinal contrário, a saber, «c) Na data em que contraíram matrimónio entre si a AA possuía a quantia relacionada na alínea d) do passivo» [sendo «relacionado um passivo do ex-casal à requerente/recorrente no valor de € 6.422,80 (seis mil quatrocentos e vinte e dois euros e oitenta cêntimos)»], e que passe a figurar no elenco dos factos “não provados” que  «3. Pelos pais do interessado BB, foi emprestada aos interessados, seu filho e então nora AA, para aquisição do imóvel relacionado sob a verba n.º 8, a 25.10.2017, data da sua aquisição, a quantia de 21.000,00€, quantia directamente transferida para a conta da vendedora naquela data. (cf. documentos comprovativos da transferência juntos com a reclamação)»;

- a do desacerto da decisão relativamente à reclamação quanto à relação de bens [nomeadamente porque deveria ter sido relacionado um passivo do ex-casal à Reclamada/recorrente no valor de € 6.422,80 (seis mil quatrocentos e vinte e dois euros e oitenta cêntimos), e porque não deveria ter sido relacionado um passivo de € 21.000 do ex-casal a favor dos pais do Reclamante/recorrido, sendo que, no limite, deveria ter sido enviado para os meios comuns a discussão quanto à existência de algum crédito dos pais do Reclamante/recorrido].

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

3.1 – Os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são os que agora se encontram alinhados na decisão recorrida, a saber:

«4.1.1. Factos provados

1. BB e AA casaram um com o outro, no dia 11.07.2017, sob o regime de bens da comunhão de adquiridos, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio, por sentença proferida pelo Juízo de Competência genérica ... – comarca da guarda, datada de 29.10.2018, transitada em julgado na mesma data, tendo a petição inicial de divórcio dado entrada em 10.09.2018. [cf. certidão extraída do proc. divórcio n.º 116/18.... junta a fls.3 a 4]

2. O veículo identificado na verba 7 foi adquirido pelo interessado BB em data anterior a 04.11.2016 estando a sua propriedade registada a seu favor - [cf. comprovativo do pedido do registo de propriedade a seu favor do veículo automóvel - fls. 53]

3. Pelos pais do interessado BB, foi emprestada aos interessados, seu filho e então nora AA, para aquisição do imóvel relacionado sob a verba n.º 8, a 25.10.2017, data da sua aquisição, a quantia de 21.000,00€, quantia directamente transferida para a conta da vendedora naquela data. [cf. documentos comprovativos da transferência juntos com a reclamação]

4. Os bens relacionados nas verbas 1 e 2 foram adquiridos pelo interessado BB a respectivamente 10.08.2016 e 02.08.2016.[cf. facturas de aquisição dos respectivos bens juntas com a reclamação]

5. Na que foi a residência comum do casal, existe um faqueiro nos termos relacionados na verba 3.

6. Foi suportado pela interessada AA o valor de IMI respeitante aos anos de 2019 e 2020 no valor global de 55.92€. [cf. liquidação da AT junta a fls. 43 a 44]

4.1.2. Factos não provados

a) À data da separação apenas existiam algumas colheres, garfos e facas.

b) O imóvel relacionado foi adquirido com o produto do trabalho de ambos os interessados em feiras e actividades agrícolas.

c) Na data em que contraíram matrimónio entre si a interessada AA possuia a quantia relacionada na alínea d) do passivo.»

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3.2 – A Reclamada/recorrente invoca o erro na decisão da matéria de facto, pugnando no sentido de que passe a figurar no elenco dos factos “provados” o facto que foi feito constar no elenco de sinal contrário, a saber, «c) Na data em que contraíram matrimónio entre si a AA possuía a quantia relacionada na alínea d) do passivo» [sendo «relacionado um passivo do ex-casal à requerente/recorrente no valor de € 6.422,80 (seis mil quatrocentos e vinte e dois euros e oitenta cêntimos)»], e que passe a figurar no elenco dos factos “não provados” que  «3. Pelos pais do interessado BB, foi emprestada aos interessados, seu filho e então nora AA, para aquisição do imóvel relacionado sob a verba n.º 8, a 25.10.2017, data da sua aquisição, a quantia de 21.000,00€, quantia directamente transferida para a conta da vendedora naquela data. (cf. documentos comprovativos da transferência juntos com a reclamação)».

Esta é efetivamente a primeira questão a que importa dar solução.

Começando pelo ponto de facto que foi dado como “não provado”.

Trata-se do factualismo correspondente ao passivo sobre o património comum de que ela Reclamada/recorrente seria alegadamente detentora, mais concretamente do montante de € 6.422,80 (seis mil quatrocentos e vinte e dois euros e oitenta cêntimos).

Sustenta a Reclamada/recorrente que juntou prova documental (quer em sede de relação de bens, quer em audiência do dia 04/04/2022), prova esta que seria consubstanciada em dois depósitos bancários efetuados pela Reclamada/recorrente na conta conjunta do ex-casal ainda em solteiros, sucedendo que essa prova não teria sido impugnada, nem prova testemunhal de sentido contrário tendo havido, face ao que «(…) não tinha outra alternativa o douto tribunal a quo que não determinar o relacionamento do passivo do casal a favor da recorrente.»

De referir que na decisão recorrida, no essencial, a “motivação” apresentada quanto a este particular consistiu no seguinte:

«De igual modo também não se concebe como sustenta que detinha a quantia relacionada na verba D) do passivo quando apresenta um documento com valores depositados em nome de um terceiro, com quem nem foi sequer explicado de forma clara a relação que a mesma deteve com tal sujeito para que justificasse que dinheiro que lhe pertencia estivesse depositado no banco em nome daquele terceiro conforme se infere do documento por ela apresentado com a resposta à reclamação de bens.»

Que dizer?

Quanto a nós a solução é muito clara e inequívoca: desde logo importava ter presente que o Reclamante/recorrido impugnou a factualidade em causa, pelo que competia à Reclamada/recorrente a correspondente prova, o que não se pode considerar feito com a junção de dois meros documentos particulares, que são mera cópias de alegados recibos de depósito bancários, quando os mesmos são na verdade até perfeitamente ilegíveis.

Acresce que Reclamada/recorrente não contrariou minimamente a “motivação” apresentada pela Exma. Juíza a quo, em termos de erro de julgamento no juízo probatório feito, olvidando que é no confronto dessa valoração e convicção que é apreciada a “valia” da sua impugnação, acrescendo que a lei, no art. 662º, nº1 do n.C.P.Civil, é muito clara na exigência de que os meios de prova invocados têm que “impor” uma decisão diversa – o que naturalmente tem um significado distinto de “permitir” ou “consentir”.

Aliás, salvo o devido respeito, a específica e circunscrita forma de impugnar a decisão à matéria de facto operada pela Reclamada/recorrente, conduz necessariamente à sua improcedência.

Na verdade, as exigências legais constantes do art. 640º do n.C.P.Civil têm uma dupla função: delimitar o âmbito do recurso e tornar efetivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

Assim, o recorrente deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido».[2]

O que tudo serve para dizer que clara e inapelavelmente improcede a impugnação quanto ao primeiro particular em apreciação.

                                                           ¨¨

           Em segundo lugar, clamava a Reclamada/recorrente no sentido de que erradamente fora dado como “provado” um passivo de € 21.000 do ex-casal a favor dos pais do Requerido/recorrido [é o ponto de facto provado sob “3.”].

           Em síntese, invoca a Reclamada/recorrente que não existe nenhuma escritura publica de mútuo (nem documento particular, não autenticado ou autenticado) entre os pais do requerido/recorrido e o ex-casal, nem dos documentos juntos resulta alguma forma ou condição de restituição do alegado montante, e bem assim que «Igualmente não resultou da prova testemunhal produzida tudo o atrás referido».

            Será assim?

Salvo o devido respeito, nenhuma razão assiste à Reclamada/recorrente nesta parte.

Na verdade, na decisão recorrida, no essencial, a “motivação” apresentada quanto a este particular consistiu no seguinte:

«(…) Tivemos ainda em consideração (…) o documento comprovativo da transferência efectuada pela mãe do interessado BB da quantia de 21.000,00 euros no dia da celebração da escritura de compra e venda e directamente para a conta bancária da vendedora do imóvel (quantia devida pelo preço e o remanescente para aquisição de móveis) e ainda na liquidação da AT junta a fls. 43 a 44 para prova do ponto 6 dos factos provados.

Nos presentes autos, a prova pessoal produzida, reconduziu-se às declarações da cabeça de casal AA e do seu irmão DD, na qualidade de testemunha sendo claro, que este não tem qualquer relacionamento com a irmã que permita concluir por uma proximidade e convívio passíveis de demonstrar algum conhecimento concreto da vida daquela ou rendimentos por ela auferidos no presente ou no passado, EE, mãe do interessado BB e FF, amigo dos pais de BB que conhece ambos os interessados.

Ora, tais meios de prova, na sua maior parte, não foram suficientemente objectivos, esclarecedores e assertivos. No caso da cabeça de casal, precisamente, pelo carácter interessado das suas declarações e em completo desacerto com as mais elementares regras da experiencia comum, frontalmente contrariadas pelos documentos juntos e sem qualquer credibilidade. Na verdade, não se concebe como é capaz de negar que tenham sido os sogros a emprestar o dinheiro para aquisição do imóvel, quando a transferência foi realizada directamente para a vendedora e no dia da celebração da escritura, pelo que bem sabe a cabeça de casal que tal imóvel não foi adquirido com o produto do trabalho a que ambos se dedicavam. (…) Muitos menos, se de deu qualquer credibilidade ao que o seu irmão descreveu por ser notória que a relação entre ambos é completamente disfuncional. Ao invés apesar de EE ser mãe do interessado BB o seu depoimento até por ser inteiramente corroborado pelo documento junto com a reclamação de bens e que comprova a transferência no dia da celebração da escritura mereceu-nos inteira credibilidade, ao que acresce o facto de atenta a actividade desenvolvida pelo casal ser pouco credível que atento o tempo em que se relacionaram tivessem adquirido o imóvel com dinheiro desse trabalho, e muito menos que tenham em pouco mais de um ano pago aos pais de BB tal montante. Dúvidas não temos que o valor foi emprestado para não perderem a oportunidade do negócio.

Assim sendo, tais meios de prova foram valorados pelo Tribunal apenas na medida da sua coincidência com a factualidade julgada provada, por apenas nesta parte se terem revelado credíveis e verosímeis, seja em si mesmos, seja por estarem suportados por elementos de prova objectivos, designadamente, por documentos.»

Ora, operando uma reapreciação dos meios de prova em causa, é precisamente uma equivalente e similar convicção a que se obtém, isto à luz das regras que são o critério de avaliação e decisão de uma impugnação à decisão sobre a matéria de facto.

Na verdade, a Reclamada/recorrente começou por se centrar na alegação de que não existia prova por escritura pública ou documento particular/autenticado do “empréstimo”.

Não se denega uma tal circunstância, nem aliás em algum momento ela foi afirmada pelo Reclamante/recorrido, ou esteve pressuposto na convicção da Exma. Juiz de 1ª instância.

Antes, o que temos é que se valorou decisivamente a prova testemunhal feita, particularmente o depoimento de EE, mãe do interessado, a qual corroborou o teor e sentido do documento da transferência efetuada (pela própria) da quantia de € 21.000,00, o que teve lugar no dia da celebração da escritura de compra e venda, e diretamente para a conta bancária da vendedora do imóvel.

Naturalmente que foi da conjugação destes elementos de prova, com a consistência e concludência que mereciam, mormente pela sintonia do valor e datas em causa, que foi alcançada a convicção positiva que se traduziu em dar como “provado” o ponto de facto em análise.

Sendo certo que a Reclamada/recorrente, em insustentável negação, afirmou que nenhuma prova “testemunhal” existia (?!).

Ora, estabelece o nº 5 do art. 607º do n.C.P.Civil que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, exceto se a lei exigir, para a respectiva prova, alguma formalidade especial, o que não se verifica no caso concreto.

Por outro lado, a jurisprudência é uniforme no entendimento de que a utilização da gravação dos depoimentos em audiência de discussão e julgamento não modela de forma diversa o princípio da prova livre ínsito no direito adjectivo, nem dispensa as operações de carácter racional ou psicológico que geram a convicção do julgador.

O que bem se compreende, em virtude dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração consagrados no nosso ordenamento jurídico, em matéria de prova, no que à decisão sobre a matéria de facto operada pelo Tribunal de 1ª instância diz respeito.

É também a jurisprudência unânime no entendimento de que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode em caso algum subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto.

Deste modo, o uso pelo Tribunal superior dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.

Dito de outra forma: só existindo um erro evidente na apreciação da matéria de facto é que devem ser modificadas as respostas dadas aos temas de prova.

O que a Reclamada/recorrente não intentou sequer enunciar no confronto com o teor literal que este ponto de facto apresenta…

Sendo certo que aspeto diverso será a celebração ou não sob a forma estipulada por lei no art. 1143º do C.Civil [necessidade de escritura pública ou documento assinado pelos mutuários em função do valor]!

Por último, não deverá esquecer-se que a função da Relação não é a de realizar um novo julgamento de facto: «Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.».[3]

Assim sendo, na medida em que não foi evidenciado minimamente – nem se vislumbra! – erro de julgamento que sustente a reclamada alteração à decisão sobre a matéria de facto relativamente a este referenciado ponto de facto provado sob “3.”, sem necessidade de maiores considerações, improcede a impugnação à decisão sobre a matéria de facto quanto ao mesmo.

                                                           *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre então entrar diretamente na apreciação e decisão sobre a questão supra enunciada, a saber, a do desacerto da decisão relativamente à reclamação quanto à relação de bens [nomeadamente porque deveria ter sido relacionado um passivo do ex-casal à Reclamada/recorrente no valor de € 6.422,80 (seis mil quatrocentos e vinte e dois euros e oitenta cêntimos), e porque não deveria ter sido relacionado um passivo de € 21.000 do ex-casal a favor dos pais do Reclamante/recorrido, sendo que, no limite, deveria ter sido enviado para os meios comuns a discussão quanto à existência de algum crédito dos pais do Reclamante/recorrido].

Será assim?

Quanto ao primeiro aspeto da pretensão apresentada nesta sede – a de que deveria ter sido relacionado um passivo do ex-casal à requerente/recorrente no valor de € 6.422,80 – cremos que a resposta já inteiramente se adivinha.

É que tendo sido totalmente improcedente a impugnação à decisão sobre a matéria de facto relativamente ao (único) facto em que esta pretensão assentava, consequentemente daí decorre não resultar como provado a existência de um tal passivo, estando essa pretensão inapelavelmente votada ao insucesso.

                                                           ¨¨

Assim, passemos diretamente à apreciação e decisão sobre a segunda pretensão.

Sendo que o vamos fazer com a linearidade e sintetismo que, salvo o devido respeito, a situação reclama e justifica.

Recorde-se que está em causa ter sido positivamente relacionado um passivo de € 21.000 do ex-casal a favor dos pais do Reclamante/recorrido.

A 1ª linha de argumentação em via recursiva consistia na impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto a este particular – em termos de “provado” – que constava da decisão recorrida.

Como flui da decisão supra atinente a essa concreta questão, subsiste como “provado” no elenco correspondente essa materialidade.

Mas será que tal basta para sancionar a decisão recorrida quanto a este particular, isto é, para manter o «Determino que seja relacionado como passivo do ex-casal a quantia de 21.000,00€ a favor dos pais do requerido»?

É o que se verá de seguida, pois que tal estará dependente da resposta que for dada ao demais em causa, isto é, importa passar à apreciação dos demais argumentos de invalidação enunciados pela Reclamada/recorrente.

Na verdade a Reclamada/recorrente sustenta outras causas para o desacerto da decisão recorrida quanto a esta parte, como seja a invocação de que o ex-casal (em especial ela Reclamada/recorrente), nunca se obrigaram de nenhuma forma a restituir, pagar, devolver nenhum montante (nomeadamente € 21.000), nem, aliás, nunca os pais do ex-marido/requerido/recorrido teriam reclamado o crédito.

Não lhe assiste qualquer razão.

Recordemos a literalidade do ponto de facto que releva para este efeito, a saber, o dito ponto de facto provado sob “3.”:

 «Pelos pais do interessado BB, foi emprestada aos interessados, seu filho e então nora AA, para aquisição do imóvel relacionado sob a verba n.º 8, a 25.10.2017, data da sua aquisição, a quantia de 21.000,00€, quantia directamente transferida para a conta da vendedora naquela data.»

Esta factualidade alude literalmente a um “empréstimo”, o que nos remete para aferir da sua virtualidade no quadro da efetiva existência do passivo que aqui está em causa, mais concretamente face aos requisitos legais do instituto jurídico do “mútuo” de que trata o art. 1142º do C.Civil.

De acordo com o disposto no art. 1142º, do C.Civil, o contrato de mútuo é aquele pelo qual uma das partes – o mutuante – empresta à outra – o mutuário – dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a “restituir” outro tanto do mesmo género e qualidade.

A resposta ao óbice de não ter sido na circunstância apurada qualquer obrigação de restituição, nem ela nunca ter sido reclamada pelos “mutuantes”, encontra-se em douto aresto que apreciou estes aspetos, tendo sublinhado o seguinte[4]:

«I- A palavra “emprestar” no âmbito da celebração de um contrato de mútuo (art. 1142º, do C. Civil) deverá ser entendida, com o seu sentido corrente, que sempre teve, de atribuição de uma coisa para ser usada ou fruída por outrem e depois restituída em espécie ou coisa equivalente.

II- Demonstrado que uma das partes “empresta” à outra dinheiro ou outra coisa fungível, forçoso é concluir que a entrega da mesma coisa ocorre a título de empréstimo ou mútuo, estando concomitantemente esta última obrigada a restituir a coisa mutuada.»

Assente isto, não se argumente que se suscita então o óbice de se estar perante uma obrigação “pura” ou “sem prazo”, sobre a qual disciplina o art. 1148º do C.Civil.

É que uma tal questão não se chega a colocar, na medida em que a outra causa do que foi invocada para o desacerto da decisão, a saber, a “nulidade por falta de forma”, prejudica sem mais aqueloutra.

Assistia razão à Reclamada/recorrente quando alegou resultar do art. 1143º do C.Civil que o mútuo é um negócio consensual ou formal, consoante o seu valor, sendo que o mesmo só é válido se for celebrado por escritura pública (sendo o seu valor superior a € 25.000) ou por documento assinado pelo mutuário (sendo o seu valor superior a € 2.500 e inferior a € 25.000).

Assim, na medida em que estava em causa na situação ajuizada um montante de € 21.000, para existir validamente o mútuo, careceria de ter sido celebrado por documento assinado pelo mutuário, o que está adquirido não se ter verificado [não existiu qualquer tipo de documento, muito menos documento particular autenticado].

Donde, a incontornável nulidade do “mutuo” em apreciação, nos termos do art. 220º do C.Civil.

Sucede que assente isto [a declaração de nulidade do mútuo, por falta de forma], temos que emerge então como consequência a restituição, pelos mutuários (leia-se, pelo ex-casal formado por Requerente e Requerido] de tudo o que tiver sido prestado, nos termos do art. 289º, nº 1 do mesmo C.Civil.[5]

Ora se assim é, está por esta via adquirida a obrigação de restituição, o que, paralelamente, faz soçobrar a última via de argumentação recursiva da Reclamada/recorrente, qual seja, a de que faltava “legitimidade” ao Reclamante/recorrido para reclamar a relacionação deste passivo: a obrigação de restituição decorre ex vi legis, da declaração de nulidade por falta de forma do mútuo.

Sendo certo que desta decisão decorre forçosamente a improcedência da sustentação de que «deveria ter sido enviado para os meios comuns a discussão quanto à existência de algum crédito dos pais do Reclamante/recorrido»…

Improcedem, assim, todos os argumentos recursivos suscitados pela Reclamada/recorrente e, concomitantemente, o recurso deduzido pela mesma.

                                                           *

(…)

                                               *

6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, pela improcedência da apelação, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.  

Custas nesta instância pelo Reclamada/recorrente.

                 Coimbra, 23 de Abril de 2024

Luís Filipe Cravo

Vítor Amaral

Fonte Ramos


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Vítor Amaral
  2º Adjunto: Des. Fonte Ramos
[2] Citámos o acórdão do TRP de 17-03-2014, proferido no proc. nº 3785/11.5TBVFR.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[3] Assim no acórdão do TRG de 30-11-2017, proferido no proc. nº 1426/15.0T8BGC-A.G1, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
[4] Trata-se do acórdão do TRG de 07.03.2019, proferido no proc. nº 876/18.5T8BRG.G1, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
[5] Neste sentido, inter alia, o acórdão do TRL de 15.05.2018, proferido no proc. nº 12277/15.2T8LSB.L1-1, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.