Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1709/16.2JFLSB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA LAMAS
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
PERICULUM IN MORA
REENVIO PREJUDICIAL PARA O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
Data do Acordão: 01/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 7º, 227º E 228º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 110º DO CÓDIGO PENAL; ARTIGO 10º DA LEI Nº 5/2002; DIRECTIVA Nº 2014/42/EU DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 3 DE ABRIL DE 2014; ARTIGO 267.º, ALÍNEA B), DO TRATADO DE FUNCIONAMENTO DA UNIÃO EUROPEIA
Sumário:
I- A Directiva nº 2014/42/EU não impede o legislador de cada Estado-membro de sujeitar o arresto ou congelamento de bens à verificação de determinados requisitos, como sucede com o periculum in mora.
II- O reenvio prejudicial para o TJUE apenas pode/deve acontecer quando um tribunal nacional se vê confrontado com uma situação de interpretação de uma norma comunitária cuja resolução se torne necessária para o julgamento do caso concreto.
III- o Juiz nacional deve rejeitar o pedido de reenvio prejudicial se o caso não implicar a aplicação de direito comunitário, mas apenas de direito nacional
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO

1.1. A decisão

No Processo de Inquérito nº 1709/16.... foi julgado improcedente o pedido de arresto preventivo formulado pelo Ministério Público contra AA, BB, CC, DD, EE, FF e Sociedade A..., Lda, por não indiciariamente comprovado o requisito de «fundado receio» .

1.2.O recurso

1.2.1. Das conclusões do Ministério Público

Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

                               


1.          No âmbito do despacho final proferido nestes autos, o MP deduziu acusação contra seis arguidos, imputando-lhes a prática de crimes de participação económica em negócio, peculato, falsificação de documentos e abuso de poder.

2.          Na medida em que os crimes praticados geraram vantagens, foi efetuado, juntamente com o despacho de acusação, pedido de declaração de perda das vantagens dos crimes a favor do Estado, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 110.º n.º 1, alínea b), 2, 4, 5 e 6 e 111º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, perfazendo um total apurado de 2.098.194,70€.

3.          Sendo igualmente requerido, com urgência, o decretamento de arresto preventivo, previsto no artigo 228º do CPP, por forma a evitar o desaparecimento de bens/valores consubstanciados nas vantagens da prática dos crimes por parte dos arguidos e sociedade beneficiária.

4.          Por despacho de 22-10-2022, o tribunal julgou improcedente o pedido de arresto, entendendo, em síntese, que embora estivessem reunidos todo os restantes pressupostos, não estava preenchido, numa apreciação sumária, o requisito legal de periculum in mora.

5.          Este requisito deverá ser preenchido com recurso às regras da experiência comum relativa a colocação a salvo ou utilização diária de valores, dando-se uma abertura interpretativa consonante e efetuada uma adaptação aos concretos objetivos e pressupostos penais e processuais penais sempre que se pondera a remissão para o artigo 391º do CPC, sob pena de esvaziamento dos arrestos previstos no artigo 228º do CPP quando não haja atos de ocultação/dissipação de vantagens, atos que poderão em si, consubstanciar crimes de branqueamento.

6.          Com efeito, estamos no âmbito de confisco das vantagens da atividade criminosa, isto é, valores que não pertencem aos arguidos e beneficiários, mas ao Estado Português, sendo que a dissipação dos bens e/ou valores/vantagens, atenta a volatilidade do dinheiro, poderá suceder com todas as atividades diárias e corriqueiras imagináveis.

7.          Nestes autos, face ao elevadíssimo valor global em questão, fundamenta o receio de um homem médio de perda do seu crédito o facto de as regras de experiência comum darem um quadro mais do que provável e usual de que, a final, nada existirá de interesse para satisfazer estes valores, constatando-se ser este o desolador quadro pós-sentencial com que nos deparamos nos casos em que não se lança mão de qualquer providência que acautele desde cedo valores e bens para o Estado.

8.          A comunidade não compreenderá como o Estado, sabendo e antecipando esse desolador cenário final, nada faça ou dificulte injustificadamente o garantir que o valor das vantagens do crime fique do seu lado o mais cedo possível, entendendo o MP ter alegado e comprovado o preenchimento desse requisito no caso dos autos.

9.          Independentemente da leitura mais ou menos elástica relativamente à exigência do periculum in mora, a verdade é que essa imposição legal afronta os objetivos do legislador da União Europeia, na medida em que, ao invés de facilitar o confisco das vantagens da atividade criminosa, dificulta-o de forma acentuada, como a doutrina já teve oportunidade de o salientar, criando um sistema prático de “quase anti arresto” que justificará a sua parca utilização e sucesso.

10.        A Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014 sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia (a Diretiva) foi erradamente transposta em, pelos menos, três pontos por parte do legislador português, sendo um desses pontos a manutenção da exigibilidade do aludido requisito no artigo 228º do CPP, sendo a clarificação desta questão fundamental não só para a decisão deste caso como para outros no futuro.

11.        O considerando 26 da Diretiva estabelece, entre outras considerações, que “A fim de evitar o desaparecimento dos bens antes de a decisão de congelamento poder ser proferida, deverão ser conferidos às autoridades competentes dos Estados-Membros poderes para tomarem medidas imediatas destinadas a salvaguardar esses bens”, não impondo aos Estados-Membros qualquer requisito adicional a esse nível.

12.        Como refere certeiramente Hélio Rigor Rodrigues “Bastará que se convoquem as finalidades e fundamentos dogmáticos do confisco das vantagens do crime, e imediatamente se conclui que não será dogmaticamente sustentável a exigência relativa à demonstração do periculum in mora nos casos de arresto para o confisco das vantagens”, e “O crime não é titulo aquisitivo da propriedade, e o arguido não pode dispor (ainda que temporariamente) desse incremento patrimonial, mesmo que não tenha intenção de o dissipar.”.

13.        Ainda que entendendo que o arresto no âmbito do artigo 10º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, após a dedução de acusação, prescinde do requisito do periculum in mora, bastando-se com o conceito de fortes indícios, nota-se existir flagrante falta de sintonia legal com o artigo 227º e 228º do CPP, sendo que visando essencialmente os mesmos fins e até quanto aos mesmos crimes os requisitos diferem.

14.        De facto, ambos os arrestos visam privar quem comete crimes das vantagens da sua prática, contudo, no caso dos autos até se consegue fazer uma ligação direta das vantagens apuradas em relação aos concretos crimes imputados, o que, por maioria de razão, justificaria a mesma dispensa legal de periculum in mora, contrariando o disposto no artigo 7º da Diretiva, o qual não prevê qualquer requisito como este para que se opere o congelamento, indevidamente chamando à colação os requisitos previstos no artigo 391º do CPC.

15.        Existe, assim, a necessidade de efetuar uma interpretação conforme ao direito da UE, designadamente no que diz respeito ao nódulo interpretativo resultante da alteração operada pela Lei 30/2017, de 30 de Maio, que transpôs a Diretiva, ao regime de arresto, por alteração do disposto na Lei 5/2002, e da sua potencial aplicação à perda clássica prevista no CP.

16.        Esta lei, ao manter a exigência do apontado requisito adicional e cívilistico para decretar o arresto preventivo, quando não o exige já para efeitos do artigo 10º da Lei 5/2002, não está assim, em linha com os objetivos da UE e Diretiva 2014/24, dificultando o confisco de vantagens do crime mesmo que não haja atos de dissipação e ocultação.

17.        De acordo com o artigo 267.º, alínea b) do TFUE, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União, considerando o MP que estamos, de facto, em face de uma questão desta natureza, suscitada perante um tribunal Português no âmbito de um processo pendente.

18.        O recurso ao mecanismo do reenvio prejudicial será, na opinião do MP, a solução que se impõe para aquilatar decisivamente acerca da compatibilidade da lei portuguesa que transpõe a Diretiva com este instrumento normativo da UE, sabendo-se que uma fatia substancial dos pedidos de reenvio prejudicial efetuados por parte dos tribunais dos Estados-Membros assenta precisamente na compatibilidade ou oposição das legislações nacionais em relação a instrumentos normativos da UE.

19.        Face a todo o exposto, o Ministério Público sugere cerimoniosamente ao Tribunal da Relação de Coimbra, para decisão do presente recurso, que seja acionado o mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267º do TFUE, colocando ao TJUE a(s) questão(ões) da compatibilidade da lei portuguesa com a Diretiva 2014/42/EU, mais sugerindo, sem prejuízo de questões adicionais e/ou diversa enunciação, a formulação da seguinte questão concreta a título de pedido de decisão prejudicial:
- Uma correta interpretação do artigo 7.º da Diretiva 2014/42/EU opõe-se a uma legislação como a portuguesa, prevista no artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro e artigos 227.º e 228.º do Código de Processo Penal, que exigem, para o decretamento de uma medida de garantia patrimonial (arresto ou arresto preventivo) sobre as vantagens/produtos provenientes de infração penal, para além dos indícios da prática do crime, a condição adicional da verificação da existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais (periculum in mora), ou seja, um perigo de dissipação de bens e perda da garantia patrimonial, dessa forma permitindo que o agente se mantenha na posse das vantagens da prática de crime, mesmo que não tenha intenção de as dissipar, contrariando assim os objetivos da Diretiva 2014/42/UE, mais concretamente o objetivo de privar os agentes dessa atividade das vantagens provenientes do cometimento de infrações penais, através dos mecanismos de confisco previstos nos artigos 4.º e 5.º da Diretiva?

20.        Na sequência desse eventual juízo por parte do TJUE, sendo encontrada e decidida a dissonância entre a Diretiva 2014/42/UE e a lei nacional nos termos pugnados pelo MP ou semelhantes, deverá o despacho judicial que julga improcedente o requerimento de arresto preventivo ser revogado e substituído por outro que decrete o arresto preventivo em relação aos arguidos e sociedade beneficiária nos exatos termos requeridos, seguindo-se os demais trâmites legais até final nessa parte.

21.        Não considerando o Tribunal da Relação de Coimbra existir qualquer dissonância entre a Diretiva 2014/42/UE e a lei nacional nos termos pugnados pelo MP, deverá, ainda assim, ser considerado que o requerimento efetuado de arresto preventivo preenche todos os requisitos legais, estando, ainda que sumariamente, comprovado o requisito do periculum in mora, sendo revogado o despacho judicial que julga improcedente o requerimento de arresto preventivo, por violador do disposto no artigo 228º do CPP, substituindo-o por outro que decrete o arresto preventivo em relação aos arguidos e sociedade beneficiária nos exatos termos, seguindo-se os demais trâmites legais até final nessa parte.

1.2.2 O Ministério Público junto do Tribunal da Relação foi de parecer que, mesmo à luz duma interpretação de carácter civilístico do arresto, sempre deveria ser entendido que, nas concretas circunstâncias do caso submetido à apreciação do Tribunal recorrido, estaria verificado o requisito de periculum in mora; que o requisito do periculum in mora deve ser interpretado à luz da Directiva nº 2014/42/EU do Parlamento Europeu e do Conselho; e que, caso seja entendimento deste Venerando Tribunal que se não verificará tal requisito e que a verificação do mesmo seria absolutamente essencial para que o arresto fosse decretado, por força do disposto no art. 267º do TFUE, há que proceder ao reenvio prejudicial da questão, para apreciação pelo Tribunal de Justiça.

1.2.3. Foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência.

II. OBJECTO DO RECURSO

De acordo com o disposto no artigo 412º do C.P.P. e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. 1ª série-A de 28/12/95, o objecto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respectiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Assim, examinadas as conclusões de recurso, importa apreciar e decidir se deve ser decretado o arresto preventivo pedido pelo Ministério Público.

III. FUNDAMENTAÇÃO

Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido na primeira instância (transcrição) :
O DM do MP     veio requerer a medida de garantia patrimonial de Arresto Preventivo contra :

(…)


Para o efeito alega :
1.Por economia processual, dá-se aqui por integralmente reproduzida a acusação deduzida e os crimes imputados aos arguidos.
Incorrendo ainda AA na pena acessória de proibição do exercício de profissão/função de administradora judicial e de fiduciária, prevista no artigo 66.º, n.º 1, alíneas a), b), c) e n.º 5 do Código Penal.
2.         Conforme se verifica do pedido de perda de vantagens, o qual se dá qui por integralmente reproduzido:
Pelos factos descritos no capítulo IV e V, foi proporcionada ao B... uma vantagem de 100.000,00€, devendo AA, BB, DD e a sociedade beneficiária C..., Lda. ser condenados, solidariamente, no seu pagamento, sem prejuízo do disposto no artigo 112º nº 2 do C.P.;3º
Pelos factos descritos no capítulo VI, os arguidos obtiveram uma vantagem de 320.160,00€, devendo AA, BB, DD e a sociedade beneficiária C..., Lda. ser condenados, solidariamente, no seu pagamento, sem prejuízo do disposto no artigo 112º nº 2 do C.P.;
Pelos factos descritos no Capítulo VII, os arguidos obtiveram uma vantagem de 1.204.793,73€, devendo AA, CC, FF, EE e a sociedade beneficiária A..., Lda. ser condenados, solidariamente, no seu pagamento, sem prejuízo do disposto no artigo 112º nº 2 do C.P.;
Pelos factos descritos no capítulo VIII, os arguidos obtiveram uma vantagem de 291.340,00€, devendo AA, BB, DD e a sociedade beneficiária C..., Lda. ser condenados, solidariamente, no seu pagamento, sem prejuízo do disposto no artigo 112º nº 2 do C.P.;
Pelos factos descritos no capítulo IX, a arguida obteve uma vantagem de 30.307,57€, devendo AA ser condenada no seu pagamento;

Pelos factos descritos no capítulo X, a arguida DD obteve uma vantagem de 68.671,65€, devendo AA e DD ser condenadas, solidariamente, no seu pagamento, sem prejuízo do disposto no artigo 112º nº 2 do C.P.;
Pelos factos descritos no capítulo XI, a arguida DD obteve uma vantagem de 82.921,75€, devendo AA e DD ser condenadas, solidariamente, no seu pagamento, sem prejuízo do disposto no artigo 112º nº 2 do C.P.
3.         A sociedade C..., Lda. atualmente é propriedade de terceiros, os quais serão alheios aos factos pelos quais foi deduzida acusação, embora tenha, por ocasião desses factos, essa mesma sociedade auferido vantagens da prática dos crimes, sabendo os seus responsáveis legais, à data, da proveniência dessas vantagens.

4.         Conforme ali se refere, com as condutas descritas, os arguidos obtiveram diversas vantagens económicas, das quais se apropriaram e os beneficiaram, sendo que tais valores, em geral, são provenientes da insolvente D..., e no caso do capítulo XI, embora não sendo valores provenientes de massas insolventes, foram indevidamente obtidas por DD.

5.         Quanto à sociedade beneficiária A..., Lda., embora não sendo arguida, é dominada pelo arguido CC, sendo o seu representante legal/de direito o arguido EE, tendo beneficiado diretamente das vantagens decorrentes dos factos criminosos descritos no capítulo VII, sabendo perfeitamente essa sociedade, por intermédio dos seus representantes de facto e de direito, que tais vantagens eram provenientes da prática de crimes, pelo que, ao entrarem na sua esfera, serviam para beneficiar os arguidos, servindo como veículo dos crimes e conhecendo perfeitamente a sua proveniência.

6.         Tendo os arguidos atuado em benefício próprio e de terceiros, gerindo, após e como bem entenderam e dando o destino que quiseram, pelo menos, aos valores globais ali descritos.

7.         A arguida AA, em especial, tinha perfeito conhecimento de que, enquanto administradora judicial e fiduciária, estava investida numa função de  natureza pública jurisdicional, devendo considerar-se como servidora da justiça e do direito, estando vinculada, entre outros, aos deveres de probidade e fidelidade, bem sabendo que no exercício da função em cada umas das insolvências referidas lhe estava vedada a prática de quaisquer atos que, para seu benefício ou de terceiros, fossem suscetíveis de perigar as liquidações de ativos ou os rendimentos cedidos pelo devedor, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhe havia sido confiado.

8.         Desviando da forma descrita os valores apurados para a sua esfera e dos restantes arguidos, atuando como a sua proprietária, em prejuízo da massa insolvente e dos credores da D....

9.         Os arguidos AA, DD e BB (e a sociedade C..., Lda.) são então solidariamente responsáveis pelo valor global de 711.500,00€.

10.       Os arguidos AA, CC, FF, EE e a sociedade beneficiária A..., Lda. são solidariamente responsáveis pelo valor global de 1.204.793,73€.

11.       As arguidas AA e DD são solidariamente responsáveis pelo valor global de 151.593,40€.

12.       A estes valores acrescem à arguida AA o valor de 30.307,57€. 13.         Perfazendo um total de 2.098.194,70€.
14.       Nesse âmbito e nessa sequência, atendendo a que os arguidos e sociedades beneficiárias deram destino não concretamente apurado aos aludidos valores não foi possível garantir a sua apropriação em espécie.

15.       Tendo o Ministério Público promovido, consequentemente, a declaração de perda a favor do Estado dos aludidos valores, que correspondem às vantagens das atividades criminosas desenvolvidas pelos arguidos e sociedade beneficiária A..., Lda., nos termos do artigo 110.º n.º 1, alínea b), 2, 3, 4, 5 e 6 e 111º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, requerendo as condenações no pagamento dos montantes respetivos.
16.       No que diz respeito à arguida AA, verifica-se que mantém a sua inscrição nas listas oficiais de administradores judiciais (cfr. fls. 2016/2017 e esclarecimentos de fls. 2315).
17.       Havendo, como se constata da acusação, indícios fortes da prática de crimes de peculato, participação económica em negócio e abuso de poder, foi promovida a aplicação de medida de coação de proibição de exercício de funções, pelo que, em face dos graves factos pelos quais se encontra acusada e tendo em mente a pena acessória que poderá ser aplicada, a darem-se como provados os factos, certamente não voltará a exercer a atividade de administradora judicial/fiduciária ou até de advogada, reduzindo-se assim as suas possibilidades de angariar quantias suficientes para fazer face aos valores peticionados a título de perda clássica das vantagens da atividade criminosa.
18.       Quanto à arguida DD, como se constata dos factos pelos quais foi acusada com a documentação junta por parte da Segurança Social, verifica-se que uma parte significativa dos seus rendimentos adveio de esquemas criminosos, auferindo atualmente apenas o valor de 760€ mensais (cfr. informações da Segurança Social retiradas do sistema Citius de fls. 2420 e seguintes).
19.       Também, face aos valores elevados em causa, não são conhecidos rendimentos suficientes e bastantes por parte dos restantes arguidos que os façam ter robustez financeira futura de fazer face ao pagamento dos valores peticionados (cfr. informações da Segurança Social retiradas do sistema Citius de fls. 2420 e seguintes).

20.       Igualmente, quanto à sociedade beneficiária A..., Lda., recordando-se que se viu confrontada com ações judiciais que, para além de a fazer incorrer em responsabilidade civil, são, juntamente com os factos desta acusação, quando conhecidos, geradoras de séria desconfiança quanto à sua seriedade e capacidade, levando a que seja muito provável vir a ter uma diminuição considerável de receitas e, consequentemente capacidade de fazer face aos elevados valores peticionados (cfr. fls. 1938 e ANEXO 4 “Sentenças proferidas na Ação de Processo Comum 3165/20.... e Ação de Procedimento Cautelar 3165/20.... e sentença proferida na ação de processo comum 17264/15....”, constituído a fls. 2022/2026/2028
21.       Com vista a assegurar o confisco dos valores apurados não foi possível apreender quaisquer quantias até ao momento.
22.       Face ao que fica referido, existe um receio, fundado e atual, de que os arguidos e a sociedade beneficiária A..., Lda. não possuam, a final, valores ou bens que permitam o pagamento ao Estado das vantagens dos crimes aqui em questão, sendo que então, nesta parte, a pretensão do Estado em confiscar as vantagens da prática dos crimes ficará irremediavelmente comprometida.

23.       Inexistindo possibilidade de apropriação das vantagens em espécie, deverão os arguidos e sociedade beneficiária, esta na medida em que não está de boa fé porque os seus responsáveis sabem da proveniência das vantagens, ser condenados a pagar ao Estado, sem prejuízo dos direitos de eventuais lesados, o valor das vantagens diretas que obtiveram, nos termos do artigo 110º, n.º 1 a 6 e 111º, n.º 2, alíneas a) e b) e n.º 3 do Código Penal.

24.       Por forma a garantir o pagamento ao Estado das vantagens do crime, prevê o artigo 228º do CPP o arresto preventivo.

25.       Não entrando especificamente na discussão acerca do caráter - quanto a nós indevido - da exigência legal da demonstração do fundado receio de perda de garantia patrimonial (periculum in mora), na medida em que não consonante com os objetivos da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014 sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, a verdade é que, mesmo assim, como referido supra, estão reunidos todos os elementos exigidos pela lei portuguesa para se poder operar esse arresto nos autos, ou seja, os indícios da prática de crime e a condição adicional de verificação da existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais, ou seja, um perigo de dissipação de bens e perda da garantia patrimonial.
26.       Os indícios da prática dos crimes são fortes, tendo já sido deduzida acusação contra os arguidos e explicada a intervenção da sociedade beneficiária A..., Lda., gerando vantagens em valor já apurado em concreto, o que bastaria para ser decretado o arresto.
27.       Sendo que existe, adicional e igualmente e embora não exigível, conforme referido, um receio atual e concreto de diminuição de garantias patrimoniais, na medida em que os arguidos e sociedade beneficiária não possuem ou possuirão património ou rendimentos bastantes para poder fazer face aos elevados valores apurados, circunstância que, objetivamente, faz antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.

28.       É dever do Estado lançar mão de todos os meios legais à sua disposição para garantir que as vantagens da prática de crimes são efetivamente confiscadas, pelo que cumpre desde logo trazer para o seu domínio todos os ativos que permitam, a final, garantir ao máximo o pagamento do valor das vantagens dos crimes a que se fez alusão.
29.       Os arguidos e a sociedade beneficiária A..., Lda. são detentoras de várias contas bancárias.
30.       A arguida AA exerce as funções de administradora judicial e fiduciária em vários processos, sendo que no âmbito dessas funções existem valores que lhe serão ainda devidos, créditos que importa desde já arrestar sob pena de, a final, não haver qualquer valor, bem ou crédito para fazer face ao pagamento das vantagens da prática dos crimes apuradas.
31.       Entendemos, assim, que se encontram verificados todos os pressupostos legais de aplicação do arresto preventivo para garantia do pagamento do valor das vantagens do crime supra apuradas.
32.       Assim, pelo exposto, o Ministério Público requer:

a)        Seja o presente requerimento autuado por apenso;

b)        Após, seja decretado, com urgência, o arresto preventivo (cfr. artigo 228.º do CPP e 110º do CP) de todos os saldos das contas bancárias de depósitos à ordem tituladas ou co-tituladas pelos arguidos e sociedade beneficiária, bem assim cofres e contas de que sejam beneficiários efetivos, identificadas e sedeadas nas entidades bancárias abaixo elencadas, incluindo as contas de depósito a prazo e outras aplicações financeiras de qualquer natureza, incluindo warrants, que estejam associadas àquelas, e que não constituam garantia de contratos de mútuo que os arguidos e sociedades beneficiárias possuem nas instituições, até ao limite do valor que se pretende acautelar, salvaguardando um valor adequado e indispensável às necessidades de cada um:


* O Tribunal é competente.

Inexistem nulidade , questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer além da seguinte :

(…)


VIII. Referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida de garantia patrimonial , incluindo os previstos nos art.ºs 193º e 204º do CPP . -


O DM do MP requereu em relação aos requeridos a medida de garantia patrimonial de arresto preventivo nos termos que aqui se reproduz .
Em conformidade com a fundamentação que antecede foi determinada a não audição previa dos requeridos.


Cumpre apreciar e decidir :
A providencia de arresto insere-se nas medidas de garantia patrimonial    e destinam-se a garantir o pagamento da pena pecuniária , das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime , o pedido de indemnização civil e outras obrigações civis derivadas daquele e sobretudo da semelhança   da apreensão , a perda           do valor dos instrumentos , produtos e vantagens da prática do facto ilícito típico . Na verdade , em particular neste último caso      se no decurso do processo      , não forem tomadas          as devidas cautelas patrimoniais , o veredictum será inexequível tornando-se contraditório e incompreensível     pois pune o crime mas      permite que o condenado mantenha , algures os seus proveitos intactos , prontos para serem usufruídos mais tarde – cfr. Conde Correia , Comentário Judiciário do Código Penal , tomo III , p. 600 .
Saliente-se que há que distinguir o arresto preventivo previsto no artº 228.º do C.P.Penal, enquanto mecanismo de garantia patrimonial que opera no âmbito da denominada perda clássica, do arresto previsto pela Lei nº 5/2002, de 11.01, aplicável no domínio da perda alargada e que se destina a garantir a preservação do valor a declarar perdido a favor do Estado da vantagem presumida em que se traduz o património incongruente do agente.
“O arresto com vista à perda alargada é decretado pelo juiz se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1.º da Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro. Para além disso, embora a lei não o refira diretamente, parece-nos apodíctico que devem também ser exigidos fortes indícios da desconformidade do património do arguido.
À semelhança das restantes medidas de garantia patrimonial, também o arresto para garantia da perda alargada está sujeito aos princípios da necessidade, da adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade. O único requisito que o Ministério Público está dispensado de demonstrar é um periculum in mora substancial”- cfr. João Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada, INCM, pág.186/187. Com relevância nesta matéria dispõe o CPP. Artigo 228.º

Arresto preventivo

1- Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial. 2- O arresto preventivo referido no número anterior pode ser decretado mesmo em relação a comerciante.

3- A oposição ao despacho que tiver decretado arresto não possui efeito suspensivo.

4- Em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil, mantendo-se entretanto o arresto decretado.
5- O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta.

6- Decretado o arresto, é promovido o respetivo registo nos casos e nos termos previstos na legislação registal aplicável, promovendo-se o subsequente cancelamento do mesmo quando sobrevier a extinção da medida.


Verifica-se,     pois e com relevância no caso dos autos que o arresto é destinado a garantir qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime , como da perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente .

Com relevância estabelece o artigo 110.º, n.º 1, alínea b) e n.º 6 do CP que são declarados perdidos a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem, salvaguardando-se os direitos do ofendido.


Note-se que perante      actual redacção    do n.º 1 do art.º 228º do CPPenal, introduzida pela Lei n.º 59/98 pode o arresto ser decretado , independentemente da caução económica , desde que verificados todos os pressupostos previstos na lei processual civil – cfr. Ac. Relação de Lisboa de 22-05-2007 relatado pelo Exmº juiz desembargador Dr. José Adriano e acessível in www.dgsi.pt .
Dispõe o art.º 228º , n.º 1 do CPP que a requerimento do Ministério Público ou do lesado , pode o juiz decretar o arresto , nos termos da lei de processo civil .
E como no caso dos autos não foi requerida previamente a prestação de caução económica o requerente do arresto tem de comprovar o fundado receio de perda da garantia patrimonial .

As providências cautelares revelam-se como meios de tutela provisória da aparência de direitos, e têm justificação no princípio processual de direito civil, segundo o qual a demora de um processo não deve prejudicar a parte que tem razão. Por outras palavras, tais providências visam acautelar o periculum in mora( Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol.III p. 83).

Assim, a decisão deve ser tomada de modo célere, mas de igual modo ponderada, até pela circunstância do requerido não ter sido previamente ouvido.
Em conformidade deve o julgador ter em conta, na apreciação, que tem de ser forçosamente sumária- “summaria cognitio”, e decisão do processo, os requisitos gerais desta providência, a considerar:

1º. A existência da aparência de um direito, ou seja de uma séria probabilidade da existência do direito invocado pelo requerente(Ac.R.E. 4/11/75, B.M.J. 252º, 203) , ou no caso vertente destinada a garantir a futura condenação de declaração de perda a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico

2ºA verificação do periculum in mora, isto é, a justificação de que o receio de que a natural resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação( perigo de insatisfação do aludido direito).

O arresto, constitui um importante meio de conservação da garantia patrimonial do credor e que, com essa característica, vem regulado nos artºs 619º e ss. do Código Civil. Ele consiste numa apreensão judicial de bens do devedor com eficácia semelhante à penhora e que pode ser decretada antes de ser instaurada   como preliminar ou incidente de acção declarativa ( cfr. A. dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. I., pág. 637 e 683; Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 235 ).Arrestados os bens do devedor, os actos de disposição desses bens são ineficazes em relação ao credor ( art.º 622º do Código Civil ).
O arresto preventivo constitui um instrumento destinado a acautelar o credor contra perda da garantia patrimonial constituída pelos bens do devedor. O arresto dos bens do devedor constitui uma garantia de que, em princípio, os bens apreendidos à ordem do tribunal e por iniciativa de um credor se irão manter na esfera jurídica de um devedor .
São requisitos da decretação da providência de arresto com relevância para a situação dos autos :

1º.A existência de um crédito ou a probabilidade séria de ocorrer uma condenação no valor de perda a favor do Estado das vantagens de crime como se verifica no caso concreto pois o MP , já em sede de acusação , portanto já em sede de suficiente e forte indiciação promoveu ,consequentemente, a declaração de perda a favor do Estado do valor que aqui se reproduz que corresponde à vantagem da actividade criminosa desenvolvida pelos Requeridos, nos termos do artigo 110.º n.º 1, alínea b), 2, 3, 4, 5 e 6 do Código Penal, requerendo a condenação dos mesmos no pagamento do montante respetivo sem prejuízo dos direitos dos ofendidos pelo que se encontra reunido este primeiro requisito .

2º. A verificação de um justificado receio de perda da garantia patrimonial de tal crédito ou valor de declaração de perda a favor do Estado no caso concreto e pressupõe a alegação e prova, ainda que sumária, de um circunstancialismo que faça antever o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança de tal valor . Como salienta A.Varela, Código Civil Anotado, Vol.I, p. 560, “ não é necessário que a perda se torne efectiva com a demora, basta que haja um receio justificado”.

Para aquilatar deste requisito não bastam simples conjecturas, mas antes factos ou circunstâncias que, de acordo com as regras da experiência permitem inferir da necessidade de uma decisão cautelar imediata, sob pena de total ineficácia da procedência do pedido de indemnização ou a sua execução .


            O justo receio de perda da garantia patrimonial verifica-se sempre que o devedor tenha o propósito de adoptar ou adopte uma conduta, indiciada por factos concretos, relativamente ao seu património suscetível de fazer temer pela sua solvabilidade do devedor para satisfazer o direito do credor.
Como decidiu o Ac. da R.Coimbra de 30/4/2002, proc. nº 1448/02, in www.dgsi.pt, “O justo receio de perda da garantia patrimonial do credor tem que assentar em factos reais, em índices apreensíveis pelo comum das pessoas, que mostrem que o alegado receio é objetivamente fundado. Para que seja decretado o arresto é indispensável que o devedor tenha praticado atos ou assumido atitudes que inculquem a suspeita de que ele pretende subtrair os seus bens à acção dos credores.”
Em conformidade com o plasmado no acórdão da Relação do Porto, de 18.NOV.13 (pr. 1196/12.4TTBCL-A.P1), “Como refere Abrantes Geraldes, o justo receio de perda da garantia patrimonial “é o que no arresto preenche o periculum in mora que serve de fundamento à generalidade das providências cautelares.

Se a probabilidade quanto à existência do direito é comum a todas as providências, o justo receio referente à perda de garantia patrimonial é o factor distintivo do arresto relativamente a outras formas de tutela cautelar de direitos de natureza creditícia”.

Segundo o mesmo autor, este requisito “pressupõe a alegação e a prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito” e o critério da sua avaliação “não deve assentar em juízos puramente subjetivos do juiz ou do credor (isto é, em simples conjecturas, como refere Alberto dos Reis), antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como factor potenciador da eficácia da ação declarativa ou executiva".
O justo receio no caso concreto resulta da conjugação das seguintes circunstâncias objectivas que levam uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito» [LEBRE DE FREITAS-MONTALVÃO MACHADO-RUI PINTO in “Código de Processo Civil notado”, vol. 2º, 2001, pp. 119-120]. o periculum in mora pode “tratar-se do receio de insolvência do devedor (a provar através do apuramento geral dos seus bens e das suas dívidas) ou do da ocultação, por parte deste, dos seus bens (se, por exemplo, ele tiver começado a diligenciar nesse sentido, ou usar fazê-lo para escapar ao pagamento das suas dívidas), mas pode igualmente tratar-se do receio de que o devedor venda os seus bens (como quando se prove que está tentando fazê-lo” ou “os transfira para o estrangeiro (está, por exemplo, ameaçando fazê-lo, ou transferiu alguns”) ou “de qualquer outra atuação do devedor que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito”.
As circunstâncias normalmente referidas pela doutrina e pela jurisprudência para sustentar o receio de perda da garantia patrimonial são, por um lado, meramente exemplificativas (não estando excluídas outras que, de forma idêntica, preencham o referido requisito) e, por outro lado, não têm de se verificar de forma cumulativa (bastando que se verifique algum ou alguns para que, de acordo com as circunstâncias, o periculam in mora se ache preenchido).

No que respeita ao propósito de venda do ativo, não é necessário que os atos delapidatórios se tenham desencadeado - sobretudo se o ativo se consubstancia na existência de um único bem (o estabelecimento comercial) -, bastando que se evidenciem manobras ou ameaças de preparação desses atos.”.
Ainda neste sentido a    jurisprudência : no Ac.R.Lisboa de 4/11/2009, processo n.º3944/08.8TDLSB-B.L1-5, “(…) para que se verifique o justo receio de perda da garantia patrimonial a que aludem os art. 619º nº 1 do C.Cv. e 406º nº 1 do C.P.C. (atual art.391.º do C.P.Civil) é necessário que se alegue e prove que o devedor já praticou ou se prepara para praticar actos de alienação ou oneração, relativamente ao seu património que, razoavelmente interpretados, inculquem a suspeita de que se prepara para subtrair os seus bens à ação dos credores”.
Também no Ac. deste Tribunal da Rel. Porto de 25.11.2010, Proc. nº 93/10.2TBMAI.P1, disponível in www.dgsi,pt “(...) Não são as convicções do credor, nem os seus próprios e meros receios ou as conjecturas que porventura formule, nem os demais juízos subjetivos que sustente, nem a mera recusa de cumprimento da obrigação, nem mesmo os juízos subjetivos do Juiz que têm virtualidade para sustentar a existência do justo receio de perda da garantia patrimonial, mas antes a alegação e prova, ainda que indiciária, de factos ou de circunstâncias, que, de acordo com as regras da experiência, façam antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do provável crédito já constituído.” E ainda em sentido análogo o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 01.04.2020, Proc. nº 328/14.2TELSB-C.P1 todos em www.dgsi.pt ;
Ora no caso concreto se se comprova o primeiro requisito de uma séria probabilidade da existência do direito invocado pelo DMMP requerente destinada a garantir o valor da futura condenação de declaração de perda a favor do Estado das vantagens de facto ilícito típico imputado aos requeridos , porém , e salvo melhor opinião não se encontra reunido                                                                 o requisito de “ fundado receio “ de perda da garantia patrimonial.

                                                      No caso concreto o MP optou pelo arresto com base no art.º 228º do CPP e não do art.º 10º da Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro que pressuporia uma liquidação de património incongruente ,   pelo que tem de comprovar nestes autos ainda que indiciariamente o “ fundado receio “ da perda da garantia patrimonial nos termos expostos e tal não se verifica em relação a qualquer um dos requeridos .


Em primeira linha não se alega nem comprova a existência de quaisquer actos objectivos em relação a qualquer um dos requeridos que aponte no sentido de que qualquer um destes tenha praticado actos ou assumido atitudes que inculquem a suspeita fundada     de que pretendem subtrair os seus bens à acção de qualquer credor.
Não se comprova que qualquer dos requeridos está em fundado receio previsível de insolvência o que só seria possível concluir pela análise  total do seu património , de bens e outras dividas . Também não se evidencia que qualquer dos requeridos demonstre reais e objectivos comportamentos de ocultação, de bens ou mesmo de venda dos mesmos ou que esteja a tentar transferi-los designadamente para fora do normal alcance como                        para o estrangeiro e isto apesar do valor muito elevado do       “ crédito” em causa nos autos de mais de dois milhões de euros , da declaração de perda a favor do Estado dos aludidos valores, que correspondem às vantagens das actividades criminosas desenvolvidas pelos arguidos e sociedade beneficiária A... .

Alega o Digno Requerente que :

No que diz respeito à arguida AA, verifica-se que mantém a sua inscrição nas listas oficiais de administradores judiciais (cfr. fls. 2016/2017 e esclarecimentos de fls. 2315) e havendo, como se constata da acusação, indícios fortes da prática de crimes de peculato, participação económica em negócio e abuso de poder, foi promovida a aplicação de medida de coação de proibição de exercício de funções, pelo que, em face dos graves factos pelos quais se encontra acusada e tendo em mente a pena acessória que poderá ser aplicada, a darem-se como provados os factos, certamente não voltará a exercer a actividade de administradora judicial/fiduciária ou até de advogada, reduzindo-se assim as suas possibilidades de angariar quantias suficientes para fazer face aos valores peticionados a título de perda clássica das vantagens da atividade criminosa.

Apreciando esta questão concorda-se com os professores Manuel da Costa Andrade e Maria João Antunes, quando referem que o «[O] arresto preventivo configura, a todos os títulos e na plenitude das suas implicações normativas e prático-jurídicas, uma figura, se se quiser, uma “instituição” do processo penal português. No sentido de que tem se ser interpretada e aplicada à luz e em conformidade com os axiomas e os princípios estruturais do processo penal. Tem, noutros termos, de ser interpretada, tal como ele se revela e mostra, tanto na Constituição como na lei processual penal ordinária.” (…) “o alcance da remissão é sempre ditado pela norma e pelo ordenamento a quo. É ela que determina se, em que medida, para que fins e sob que pressupostos opera a remissão; se e em que medida comete à norma ad quem a disciplina das questões cuja resposta ela deixa intencionalmente em aberto. A norma ad quem que in casu é o regime processual-civilístico preordenado ao estabelecimento do regime de arresto civilístico e aqui convocado para responder a aspetos parcelares do arresto preventivo do processo penal. Por ser assim (…) as normas da lei processual civil terão (…) de ser aplicadas sem pôr em causa nem contrariar as imposições de direito processual penal. Direito a que cabe: definir o lugar do arresto preventivo na tipologia dos meios coercivos, em geral, e das medidas de garantia patrimonial em particular, precisar a sua intencionalidade e programa político criminal e desenhar o travejamento basilar do respetivo regime jurídico.” E concluem : “Brevitatis causa, o arresto preventivo é uma medida de garantia patrimonial de natureza processual penal, aplicada de acordo com o disposto no CPP, sendo subsidiariamente aplicável a lei do processo civil em tudo o que este Código não preveja e se harmonize com os princípios gerais do processo penal.” Cfr. Manuel da Costa Andrade/ Maria João Antunes, “Da natureza processual penal do arresto preventivo” RPCC, 27, I. pág. 143 e 144.

Ora e voltando ao caso concreto , pelo princípios do processo penal onde o contraditório em relação a uma concreta medida de coacção constituem direitos fundamentais e inalienáveis constitucionalmente consagrados , há que distinguir duas realidades completamente diversas . A suspensão efectiva                  do exercício de funções da arguida que estando em vigor e no contexto de mais elementos quanto ao valor do seu património real , dividas e activos, podem legitimar um maior receio . Coisa diversa é apontar a previsível suspensão de tal exercício de funções , mesmo sem esta ter exercido o contraditório por declarações e contra os argumentos em causa , que se considera pois uma realidade ainda “ subjectiva “ apesar da especial e intensa gravidade dos factos        descritos na acusação                                         não se podendo concluir de momento em qualquer dos sentidos e ainda que a arguida tenha negado a prática dos factos imputados . Só após o contraditória da arguida quanto aos seus requisitos e tomada de posição pelo seu ilustre defensor quanto aos requisitos e fundamentos se pode concluir da probabilidade da mesma vir a ser decretada . Não se alega em relação ao seu património real e efectivo de passivo e activo um concreto e actual valor mas também não se alega nem se comprova concretos actos objectivos de ocultação e de dissipação de bens .


Em relação à arguida DD, alega-se que vive de esquemas criminosos auferindo actualmente apenas o valor de 760€ mensais (cfr. informações da Segurança Social retiradas do sistema Citius de fls. 2420 e seguintes)mas não se alega em concreto nem se comprova  qualquer conduta objectiva de ocultação – despediu-se ou tem em vista despedir-se para ocultar o seu rendimento - , ou mesmo de dissipação de bens ainda que o valor em causa seja muito elevado .

Já em relação aos restantes arguidos alega-se que em face aos valores elevados em causa, não são conhecidos rendimentos suficientes e que os façam ter robustez financeira futura de fazer face ao pagamento dos valores peticionados (cfr. informações da Segurança Social retiradas do sistema Citius de fls. 2420 e seguintes) mas não se alega nem se comprova o seu património real e efectivo ( activos e passivos) nem actos objectivos de ocultação ou de dissipação nos termos já referidos .

Por fim , e em relação à sociedade beneficiária dos valores provenientes de crime , a A..., Lda., alega-se que tem acções judiciais que, a fazem incorrer em responsabilidade civil, que juntamente com os factos da acusação do MP , quando conhecidos, geradoras de séria desconfiança quanto à sua seriedade e capacidade, levando a que seja muito provável vir a ter uma diminuição considerável de receitas e, consequentemente capacidade de fazer face aos elevados valores peticionados (cfr. fls. 1938 e ANEXO 4 “Sentenças proferidas na Acção de Processo Comum 3165/20.... e ... 3165/20.... e sentença proferida na acção de processo comum 17264/15....”, constituído a fls. 2022/2026/2028 .

Ora da prova documental reunida nos autos , designadamente do Anexo 4 consta que por sentença proferida e que transitou em julgado em 6-4-2022 , a A..., Lda., foi condenada a pagar a quantia de 897 281 , 24 euros a favor de “ Cofre de Previdência dos Funcionários e Agentes do Estado” sendo que esta ultima veio instaurar o competente procedimento de arresto contra a mesma mas igualmente veio a fls. 28 do referido apenso,                                                                                                               desistir de tal procedimento e que veio a ser homologado indiciando-se portanto que o referido credor deixou de ter receio por falta de garantia do seu crédito , pois caso contrario não teria desistido do mesmo sendo tal argumento em favor da A..., Lda.,                                                                           Já em relação à                                                                                                             acção processo comum 17264/15.... mesma veio a ser julgada improcedente pelo Tribunal com a absolvição do pedido formulado contra A..., Lda.,pelo que não se indicia a existência de fundado receio , tanto mais que se desconhece a sua actual e real situação patrimonial em termos de activos e passivo e nos termos do demais referido .

Ora e na vertente situação não resulta que o Digno Requerente do arresto tenha alegado e provado factos positivos e concretos que, objectivamente, façam admitir como razoável a ameaça de perda próxima da garantia patrimonial do “crédito” , que o receio invocado é justificado e que a providência é necessária nos termos da lei consabido que não tem aplicação ao caso o disposto no art.º 10º da Lei 5/2003 , já referida .

Improcedem os demais argumentos do Digno Requerente .


IX - Dispositivo


Pelo exposto, nos termos das disposições legais, julgo improcedente o pedido de arresto preventivo formulado pelo Ministério Público por não indiciariamente comprovado o requisito de “ fundado receio” . Cfr. art.º 228º do CPP “ a contrario”.

(…)

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O Ministério Público insurge-se contra o indeferimento do seu pedido de arresto preventivo, argumentando que se mostram preenchidos todos os requisitos, incluindo o periculum in mora; que este requisito não é exigível em face da Directiva nº  2014/42/EU do Parlamento Europeu e do Conselho e, por fim, sugere que seja accionado o mecanismo do reenvio prejudicial    

4.1.  Preenchimento do requisito periculum in mora :

O recorrente deduziu acusação nos autos contra seis arguidos, imputando-lhes :

- À arguida GG, a prática, em concurso real, de 4 crimes de participação económica em negócio, 2 crimes de peculato, 1 crime de falsificação de documentos na forma continuada e 1 crime de abuso de poder;

- Ao arguido BB, a prática, em concurso real, de 3 crimes de participação económica em negócio;

- À arguida DD, a prática, em concurso real, de 3 crimes de participação económica em negócio, 1 crime de peculato, 1 crime de falsificação de documentos na forma continuada e 1 crime de abuso de poder;

- Ao arguido CC, a prática de 1 crime de participação económica em negócio;

- Ao arguido FF, a prática de 1 crime de participação económica em negócio;

- Ao arguido EE, a prática de 1 crime de participação económica em negócio.

Pelos mesmos factos, pediu que sejam declarados perdidos a favor do Estado os valores correspondentes às vantagens das actividades criminosas desenvolvidas pelos arguidos e sociedades beneficiárias, nos termos dos artigos 110º, nº 1, al. b) e nºs 2, 3, 4, 5, e 6 e 111º, nº 2 , al. a) do C.P..

E, com base no disposto nos artigos 228º do C.P.P. e 110º do C.P., solicitou o arresto preventivo de todos os saldos das contas bancárias de depósitos à ordem tituladas ou co-tituladas pelos arguidos e sociedades beneficiárias, bem assim cofres e contas de que sejam beneficiários efectivos, incluindo as contas de depósito a prazo e outras aplicações financeiras de qualquer natureza, incluindo warrants, que estejam associadas àquelas, e que não constituam garantias de contratos de mútuo que os arguidos e sociedade beneficiárias possuem nas instituições, até ao limite do valor que se pretende acautelar, salvaguardando um valor adequado e indispensável às necessidades de cada um; bem como de todos os créditos que existam e sejam devidos à arguida AA no âmbito dos processos de insolvência de que é/foi administradora judicial e fiduciária, até ao limite do valor que se pretende acautelar.

Conforme consta da transcrição efectuada supra, este pedido foi julgado improcedente, por não estar indiciariamente comprovado o requisito de «fundado receio».

Sob o título III – Das medidas de garantia patrimonial, o código de processo penal prevê a caução económica e o arresto preventivo, ambos visando acautelar o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime, ou a perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente.

Reza assim o artigo 228º do C.P.P., sob a epígrafe «Arresto preventivo» :

«1 - Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial.

2 - O arresto preventivo referido no número anterior pode ser decretado mesmo em relação a comerciante.

3 - A oposição ao despacho que tiver decretado arresto não possui efeito suspensivo.

4 - Em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil, mantendo-se entretanto o arresto decretado.

5 - O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta.

6 - Decretado o arresto, é promovido o respetivo registo nos casos e nos termos previstos na legislação registal aplicável, promovendo-se o subsequente cancelamento do mesmo quando sobrevier a extinção da medida.

7 - O arresto preventivo é aplicável à pessoa coletiva ou entidade equiparada.».

Já a outra norma invocada pelo recorrente, o artigo 110º do C.P., sob a epígrafe «Perda de produtos e vantagens», estabelece :

«1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.

3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.

4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.

5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.

6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.».

O arresto preventivo pode ser hoje – após a Lei nº 59/98 de 25/8 – ou uma medida substitutiva da caução económica  («; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica …»), ou uma medida de garantia patrimonial autónoma .

Seja como for, está sujeito às condições prévias mencionadas no artigo 192º do C.P.P., ou seja, à existência de um processo criminal já instaurado, à constituição como arguido da pessoa visada e à inexistência de fundados motivos para crer na verificação de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal.

Relativamente à prévia constituição como arguido da pessoa visada, a própria lei excepciona a situação em que esta envolve o sério risco de frustrar o fim ou a eficácia do arresto – cfr. o artigo 192º, nºs 3 e 5 do C.P.P..

Como resulta do nº 1 do artigo 193º do C.P.P., o arresto preventivo está sujeito aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.

Assim, o princípio da necessidade impõe que o fim visado pelo arresto preventivo não possa ser obtido através de outro meio menos oneroso para os direitos do visado.

Nas palavras de Maia Costa, in Código de Processo Penal comentado, 2022 - 4ª edição revista, Almedina, p. 800, o princípio da adequação exige que a medida de garantia patrimonial seja idónea para a promoção dos fins cautelares prosseguidos e o princípio da proibição do excesso (ou princípio da proporcionalidade em sentido restrito) exige que a medida de garantia patrimonial deva ser proporcional à responsabilidade que visa garantir.

Relativamente ao princípio da adequação, refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume I, 5ª edição atualizada, p. 888, que uma das suas consequências é a de que «As medidas cautelares são impostas em função da situação de facto tal e qual ela se apresenta à data da respetiva decretação e não em função de uma situação de facto futura…».

No que toca ao princípio da proibição do excesso, acompanhamos João Conde Correia, in  Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, Almedina, p. 625, quando afirma que é irrelevante a gravidade do ilícito em causa. Na verdade, o que importa assegurar é a proporcionalidade entre o que se arresta e o valor que será presumivelmente declarado perdido a favor do Estado .

Resulta claramente do artigo 228º do C.P.P. que no caso de o arresto preventivo ser requerido autonomamente, isto é, sem ser em substituição da caução económica não prestada, que o mesmo é decretado pelo Juiz «nos termos da lei de processo civil».

Assim sendo, nitidamente, fica dependente da verificação dos pressupostos previstos no artigo 391º do C.P.C., onde avulta o justificado receio da perda da garantia patrimonial, que é o que está em causa no presente recurso .

É que, quanto ao outro requisito – o da existência de um crédito do Estado quanto ao valor das vantagens do crime – a decisão recorrida afirma a sua verificação em concreto, o que subscrevemos, pois o despacho de acusação justifica factual, jurídica e quantitativamente o montante em causa.

O justificado receio da perda da garantia patrimonial, ou periculum in mora corresponde ao perigo de que a demora na obtenção de uma decisão ou providência judicial com carácter definitivo possa influir negativamente na sua eficácia, de modo que aquela decisão ou providência já não tenha qualquer efeito útil.

«O arresto sustenta-se numa situação excecional de perigo de lesão do direito de crédito, em que o dano receado se concretiza na frustração da execução para pagamento de quantia certa por falta ou insuficiência de bens no património do devedor, sendo esta a ameaça específica a que os direitos de créditos pecuniários estão sujeitos» - cfr. Carolina dos Santos Sequeira, in Do Arresto como Meio de Conservação da Garantia Patrimonial, Almedina, 2020, p. 242-243.

Esta função do arresto, de eliminar o periculum in mora, de defender o presumido titular do direito contra os prejuízos que lhe podia causar a demorada formação da decisão definitiva, também é salientado por Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, volume II, p. 130, e por Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 390 .

No arresto, o justo receio está direcionado à perda de garantia patrimonial, que consiste na inexistência ou insuficiência dos bens na esfera patrimonial do devedor para satisfazer o direito de crédito do credor.

Nas palavras de Marco Carvalho Gonçalves, in Providências Cautelares, 2015, Almedina, p. 229, «Com efeito, o periculum in mora inerente à providência cautelar de arresto consubstancia-se no perigo de serem praticados atos de ocultação, disposição, alienação ou oneração do património do devedor – não sendo necessária a prova de qualquer conduta dolosa ou fraudulenta nesse sentido – até que o credor obtenha um título executivo de reconhecimento do seu crédito que lhe permita agredir o património do devedor. Fundamentalmente, o receio de perda da garantia patrimonial do crédito mostra-se justificado quando “está criado um perigo de insatisfação do crédito, por o seu titular se deparar com a ameaça de estar a ser lesado aquilo que lho garantia : o património do devedor”».

Este requisito deve ser alegado e provado pelo requerente do arresto, descrevendo factos dos quais resulte o perigo de ser difícil ou mesmo impossível a cobrança do crédito. E tal não se basta com a formulação de juízos puramente subjectivos do requerente, meras convicções ou desconfianças – a lei fala em receio «justificado».

Neste sentido, ver Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, volume I, p. 637; Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, volume IV, p. 193; Marco Carvalho Gonçalves, op. cit. p. 230-232; e Acórdãos do S.T.J. de 20/1/2000, processo 99B1201, relatado pelo Conselheiro Dionísio Correia; da Relação de Lisboa de 12/6/2012, processo 14067/11.2t2snt-A.L1-1, relatado por António Santos; e da Relação de Guimarães de 11/7/2013, processo 403/13.0tbbrg-B.G1, relatado por Manso Raínho, in www.dgsi.pt.

Ou seja, o requerente tem de alegar (e provar) factos concretos que consubstanciem o receio de perda da garantia patrimonial, que, de acordo com as regras da experiência, sejam idóneos a provocar num homem normal tal receio. Ou, na síntese de Ana Carolina dos Santos Sequeira, op. cit p. 250, «O justo receio de perda da garantia patrimonial pode definir-se, então, como o conjunto de circunstâncias de facto suscetíveis de, à luz de uma prudente apreciação, fazer prever a incobrabilidade do crédito».

Sem qualquer preocupação de sermos exaustivos, têm sido considerados reveladores do periculum in mora :

- a manifesta superioridade do passivo relativamente ao activo, a provar através do apuramento dos seus bens e das suas dívidas (cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa de 2/4/2019, processo 959/11.2idbgc-B.L1-5, relatado por Luís Gominho, in www.dgsi.pt);

- o património do devedor encontrar-se onerado para garantia de um passivo elevado;

- o abandono da actividade profissional do devedor, que constituía a sua única fonte de rendimento, sendo insuficiente o seu património conhecido;

- o devedor ter começado a dissipar ou a ocultar os seus bens, ou costumar fazê-lo para fugir ao pagamento das suas dívidas, aqui se incluindo a constituição de ónus reais sobre os bens a favor de terceiros (cfr. os Acórdãos da Relação do Porto de 23/6/2004, processo 0346840, relatado por Torres Vouga e da Relação de Guimarães de 28/6/2018, processo 2536/18.8t8brg.G1, relatado por Maria João Matos, in www.dgsi.pt;)

- a pendência de vários processos executivos contra o devedor e/ou a oneração do seu património com penhoras;

- o risco concreto de insolvência do devedor (cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa de 31/10/2013, processo 5246/13.9tclrs.L1-2, relatado por Teresa Albuquerque, in www.dgsi.pt);

- o devedor tentar proceder à venda dos seus bens, transferi-los para o estrangeiro ou ameaçar fazê-lo;

No que toca a este último motivo, «Não é necessário que os actos delapidatórios se tenham já desencadeado, mas, ao menos, que se evidenciem manobras ou ameaças de preparação desse actos» - cfr. o Acórdão desta Relação de 15/5/2007, processo 120/07.0tbpbl.C1, relatado por Freitas Neto, in www.dgsi.pt.

Relativamente às pessoas colectivas, verificar-se-á  o periculum in mora , por exemplo, se a sociedade se encontra em situação económica difícil e se prepara para encerrar a sua actividade, pretendendo os sócios constituir uma nova sociedade para não pagar aos credores, como já duas vezes fizeram anteriormente, analisado no Acórdão da Relação do Porto de 13/2/2006, processo 0556938, relatado por Pinto Ferreira,  in www.dgsi.pt.

    Como é evidente, a ponderação dos motivos alegados e provados tem de ser efectuada casuisticamente e avaliando a globalidade da situação concreta : «Concluindo, diremos que o requisito do justo receio de perda da garantia patrimonial envolve uma avaliação global de factos e circunstâncias concretos relativos à situação objetiva e subjetiva do devedor, só podendo considerar-se preenchido quando, perante os elementos fácticos provados, o juiz adquira a convicção de que existe um perigo objetivo, real e concreto, de o crédito não venha a ser satisfeito em sede executiva por falta ou insuficiência de bens penhoráveis (ou sem que essa satisfação exija esforços consideráveis e desproporcionados por parte do credor)» - Ana Carolina dos Santos Sequeira, op. cit. p. 261-262.

 Por força da remissão do nº 1 do artigo 228º do C.P.P. para a lei de processo civil, a factualidade consubstanciada nos requisitos do arresto deve ser alegada pelo Ministério Público no seu requerimento (cfr. o artigo 392º, nº 1 do C.P.C.), pois recai sobre aquele o ónus de alegar e provar os elementos demonstrativos da plausível existência do crédito do Estado, com os quais preenche o primeiro dos requisitos exigidos pela norma legal; bem como lhe cumpre demonstrar os factos que justificam o justo receio da perda de garantia patrimonial desse crédito, assim preenchendo o segundo dos requisitos.

 

Analisando o requerimento do recorrente em que pede que seja decretado o arresto preventivo, vemos que assenta o  periculum in mora na gravidade dos factos imputados à arguida GG, integradores dos crimes de peculato, participação económica em negócio e abuso de poder; e na circunstância de ter sido pedida a aplicação da medida de coacção de proibição de exercício de funções e da pena acessória correspondente, o que acarretará que não volte a exercer as funções de administradora judiciária/fiduciária ou até de advogada.

No que toca à gravidade dos crimes imputados, já atrás se deixou antever que a gravidade dos crimes imputados não é critério para aferir do respeito pelo princípio da proibição do excesso (ou princípio da proporcionalidade em sentido restrito) na aplicação das medidas de garantia patrimonial, antes se devendo reportar ao montante da indemnização a salvaguardar.

Por outro lado, não é pelo facto de os dois primeiros ilícitos implicarem a dissimulação indevida de bens ou valores, que se pode automaticamente concluir estar verificado o receio de perda de garantia patrimonial – ver, a propósito os Acórdãos do S.T.J. de 15/4/2021, processo 19/16.0yglsb-J.S3, relatado pelo Conselheiro António Gama, e da Relação do Porto de 31/5/2023, processo 4907/19.1t9prt-C.P1, relatado por Jorge Langweg, in www.dgsi.pt.

Depois, foi pedida a aplicação da mencionada medida de coacção, bem como a aplicação, a final, da pena acessória de proibição do exercício de profissão/função de administradora judicial e de fiduciária, mas nem aquela, nem esta foram sequer ainda aplicadas .

Ora, como se expôs anteriormente, o juízo feito quanto à verificação dos requisitos do arresto preventivo deve reportar-se à situação de facto actual, e não em função de uma possível situação futura… - ver ainda, a este propósito, António Gama, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, § 4º da anotação ao artigo 193º.

Relativamente à arguida DD, o recorrente baseou o periculum in mora no facto de a mesma, de acordo com a informação prestada pela Segurança Social, apenas auferir 760 euros mensais.

Contudo, este facto, desacompanhado de outros indicadores, como o conteúdo do seu património e a prática ou o anúncio da prática de actos de dissipação ou ocultação do  mesmo, não faz suspeitar que a arguida se prepara para subtrair o seu património à acção dos credores.

O mesmo se diga quanto aos demais arguidos, em relação aos quais o recorrente funda o periculum in mora no desconhecimento de rendimentos suficientes e bastantes para procederem ao pagamento dos valores elevados em causa !

Por último, no que à sociedade A... diz respeito, o periculum in mora radicaria na pendência de acções judiciais contra a mesma, que a fazem incorrer em responsabilidade civil, aliada à desconfiança quanto à sua seriedade e capacidade quando forem conhecidos os factos descritos na acusação, levando a que seja muito provável vir a ter uma diminuição considerável de receitas .

Ora, além do resultado de dois desses processos contradizerem esta alegação, pois a sociedade em causa foi absolvida do pedido formulado num dos processos e a credora de outro dos processos veio desistir do procedimento de arresto que contra ela instaurara, temos que o que demais é alegado pelo ora recorrente, nesta parte, não passa de meras conjecturas, de uma hipótese teórica . 

Em suma, concordamos com a decisão recorrida quando afirma :

«Em primeira linha não se alega nem comprova a existência de quaisquer actos objectivos em relação a qualquer um dos requeridos que aponte no sentido de que qualquer um destes tenha praticado actos ou assumido atitudes que inculquem a suspeita fundada de que pretendem subtrair os seus bens à acção de qualquer credor.

Não se comprova que qualquer dos requeridos está em fundado receio previsível de insolvência o que só seria possível concluir pela análise  total do seu património , de bens e outras dividas . Também não se evidencia que qualquer dos requeridos demonstre reais e objectivos comportamentos de ocultação, de bens ou mesmo de venda dos mesmos ou que esteja a tentar transferi-los designadamente para fora do normal alcance como para O Novo Regime de Recuperação de Ativos à luz da Directiva 2014/42/mais de dois milhões de euros, da declaração de perda a favor do Estado dos aludidos valores, que correspondem às vantagens das actividades criminosas desenvolvidas pelos arguidos e sociedade beneficiária A....».

Deste modo, não vislumbramos que o recorrente tenha alegado factos objectivos que permitam concluir de forma razoável que está próxima a perda da garantia patrimonial do crédito do Estado, que o receio dessa perda é justificado e que, por isso, seja de decretar o arresto preventivo. 

Ou seja, improcede esta parte do recurso.

4.2. Não exigibilidade do requisito  periculum in mora em face da Directiva nº  2014/42/EU do Parlamento Europeu e do Conselho:

O recorrente defende que, sempre que esteja em causa garantir o confisco do valor das vantagens do crime, não é exigível para aplicação do arresto a demonstração do receio de perda da garantia patrimonial, pois o crime não é título aquisitivo da propriedade e o arguido não pode dispor, ainda que temporariamente, desse incremento patrimonial .

Para tanto, invoca que a imposição legal da sua verificação viola os objectivos do legislador da União Europeia, pois não facilita o confisco das vantagens da actividade criminosa. Mais alega existir uma contradição entre os requisitos da perda clássica e os da perda alargada, pelo que há necessidade de efectuar uma interpretação conforme ao direito da União Europeia no arresto preventivo .

 A Directiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 3 de Abril de 2014 sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, visou neutralizar os produtos do crime na criminalidade internacional organizada (cfr. o considerando (1)), aqui se incluindo não só o produto direto das atividades criminosas, mas também todos os seus ganhos indiretos, incluindo o reinvestimento ou a transformação posterior de produtos diretos, abrangendo quaisquer bens, inclusive os que tenham sido transformados ou convertidos, no todo ou em parte, noutros bens, e os que tenham sido misturados com bens adquiridos de fonte legítima, no montante correspondente ao valor estimado do produto do crime que entrou na mistura, assim como o rendimento ou outros ganhos derivados do produto do crime, ou dos bens em que esse produto tenha sido transformado, convertido ou misturado (cfr. o considerando (11)).

No que respeita à salvaguarda dos bens ou valores tendo em vista a sua perda, consta do considerando (26) da Directiva em questão que «A perda conduz à privação definitiva de um bem. Contudo, a salvaguarda dos bens pode constituir uma das condições prévias da perda, podendo ser importante para a execução de uma decisão de perda. Os bens são salvaguardados por meio de congelamento. A fim de evitar o desaparecimento dos bens antes de a decisão de congelamento poder ser proferida, deverão ser conferidos às autoridades competentes dos Estados-Membros poderes para tomarem medidas imediatas destinadas a salvaguardar esses bens.».

Depois, no seu texto, a Directiva define como «Congelamento» a proibição temporária de transferir, destruir, converter, alienar ou movimentar um bem ou de exercer temporariamente a guarda ou o controlo do mesmo – cfr. o artigo 2º, nº 5 – e determina que «Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para permitir o congelamento de bens, tendo em vista uma eventual decisão de perda subsequente. Tais medidas, que devem ser impostas pela autoridade competente, incluem uma atuação urgente quando necessário para preservar os bens.» - cfr. o artigo 7º, nº 1.

É aqui que se inscreve o arresto preventivo, de que cuidamos nestes autos, bem como o arresto tendo em vista a «perda alargada».

Analisando as normas transcritas e as restantes que constam da Directiva, não vemos que esta impeça o legislador de cada Estado-membro de sujeitar o arresto ou congelamento de bens à verificação de determinados requisitos, como sucede com o periculum in mora !

Acresce que as Directivas são actos destinados aos Estados-Membros, fixando-lhes objetivos. Os Estados-Membros devem transpor as Directivas para o direito interno, mas cabendo a cada país organizar as suas próprias leis para alcançar aqueles objectivos.

Foi através da Lei nº 30/2017 de 30 de Maio que Portugal procedeu à transposição da Directiva 2014/42/EU para o nosso direito, alterando, não só a Lei nº 5/2002 de 11 de Janeiro, que estabelecia medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, bem como os artigos 109º a 111º do C.P.  e os artigos 227º e 228º do C.P.P., entre outros.

E, através desta Lei, o legislador português manteve a diferença entre o arresto preventivo previsto no artigo 228º do C.P., visando a perda clássica, também no que toca às vantagens do crime; e o arresto previsto no artigo 10º da Lei nº 5/2002, tendo em vista a perda alargada.  Isto é, enquanto que para a perda das vantagens do artigo 110º do C.P., o  requerente do arresto preventivo não beneficia de qualquer presunção, pelo que deve demonstrar o periculum in mora; no caso do arresto regulado na Lei nº 5/2002, o requerente beneficia de condições mais favoráveis, estando dispensado de demonstrar o fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias – cfr. o artigo 10º, nº 3 deste último diploma legal.

 O entendimento defendido no presente recurso pelo recorrente corresponde ao entendimento de Hélio Rigor Rodrigues, O Confisco das Vantagens do Crime : entre os direitos dos homens e os deveres dos Estados – A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em matéria de confisco, in O Novo Regime de Recuperação de Ativos à luz da Diretiva 214/42/EU e da lei que a transpôs, INCM, 2018, p. 81-82.

Porém, esse entendimento não foi acolhido pelo nosso legislador ordinário, sendo que, como já afirmamos, cabe a cada Estado encontrar as soluções concretas que cumpram os objectivos das Directivas .

Re-afirma-se que a Directiva 2014/42/EU não proíbe que o decretamento do arresto para garantir a eventual declaração de património perdido a favor do Estado, em resultado de ser o produto ou vantagem do crime (perda clássica), exija a verificação do requisito do periculum in mora .

Depois, se é  verdade que o Tribunal de Justiça reconheceu às Directivas força vinculativa quando o país não as tiver transposto no prazo estipulado e quando as suas determinações forem incondicionais, suficientemente claras e precisas e não requererem medidas complementares – o que não sucede, no caso -, também é verdade que as suas disposições não podem ser impostas pelo Estado contra os particulares, estes é que podem invocá-las para fazer valer os seus direitos .

Deste modo, não colhe o argumento de que deve ser interpretado o artigo 228º do C.P.P., no que ao arresto preventivo das vantagens do crime diz respeito, à luz do que no artigo 10º, nº 3, aquando da transposição da Directiva 2014/42/EU, foi previsto para o arresto que precede a perda alargada .

Relativamente ao argumento de que o crime não é título aquisitivo da propriedade e o arguido não pode dispor, ainda que temporariamente, do incremento patrimonial proporcionado pelas vantagens do crime, subscrevemos o que a propósito se escreveu no Acórdão da Relação de Guimarães de 27/9/2021, processo 140/12.3telsb-M.G1, relatado por Cândida Martinho, in www.dgsi.pt. : «… caberá apenas lembrar ao recorrente que os bens imóveis e valores arrestados são lícitos, em relação aos quais foi decretado o arresto para garantia do eventual confisco de valores, esses sim produto de eventuais atividades delituosas.».

Pelo exposto, improcede esta parte do recurso, sendo exigível, para decretar o arresto preventivo previsto no artigo 228º do C.P.P., a demonstração do periculum in mora. 

Aliás, neste sentido tem vindo a decidir a nossa Jurisprudência, mencionando aqui, por lapidar, o Acórdão do S.T.J. de 15/4/2021, processo 19/16.0yglsb-J.S3m, relatado pelo Conselheiro António Gama, in www.dgsi.pt.

   

    

4.3. Mecanismo do reenvio prejudicial:    

Sugeriu o recorrente o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, para pronúncia sobre a seguinte questão:

« Uma correta interpretação do artigo 7.º da Diretiva 2014/42/EU opõe-se a uma legislação como a portuguesa, prevista no artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro e artigos 227.º e 228.º do Código de Processo Penal, que exigem, para o decretamento de uma medida de garantia patrimonial (arresto ou arresto preventivo) sobre as vantagens/produtos provenientes de infração penal, para além dos indícios da prática do crime, a condição adicional da verificação da existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais (periculum in mora), ou seja, um perigo de dissipação de bens e perda da garantia patrimonial, dessa forma permitindo que o agente se mantenha na posse das vantagens da prática de crime, mesmo que não tenha intenção de as dissipar, contrariando assim os objetivos da Diretiva 2014/42/UE, mais concretamente o objetivo de privar os agentes dessa atividade das vantagens provenientes do cometimento de infrações penais, através dos mecanismos de confisco previstos nos artigos 4.º e 5.º da Diretiva?».

A figura do reenvio prejudicial é um mecanismo processual criado para dar exequibilidade ao primado da ordem jurídica comunitária, uma ferramenta de que o juiz nacional se pode socorrer, e que vai produzir uma interpretação do direito comunitário, ao nível da União.

Dado que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem competência jurisdicional para definir o sentido da interpretação das normas comunitárias, impondo-se às ordens jurídicas nacionais, a possibilidade de auscultar a sua interpretação antes de ser proferida uma decisão ao nível da jurisdição nacional, assegura a unidade do direito comunitário.

O mecanismo do reenvio prejudicial é passível de ser accionado quando um tribunal nacional, cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso jurisdicional interno, se veja confrontado com uma questão de interpretação de uma norma comunitária relevante para a decisão que tem em mãos.

Ou seja, é necessário que a questão em causa seja relevante para a decisão a proferir pelo tribunal nacional, e que se suscitem dúvidas pertinentes quanto à interpretação da norma comunitária.

Apenas o Juiz nacional pode desencadear o procedimento de reenvio prejudicial, estabelecendo-se assim uma ligação entre as duas jurisdições: a nacional e a europeia.

O artigo 7º do C.P.P. consagra o princípio da suficiência da acção penal, segundo o qual esta tem jurisdição autónoma para decidir todas as questões que possam obstaculizar uma decisão penal. No fundo, procurou o legislador salvaguardar a pretensão punitiva do Estado, de forma a não permitir que sejam usados mecanismos que retardem a decisão em processo penal, nomeadamente recorrendo a decisão externas que demorem a ser conhecidas.

Mais, o reenvio prejudicial implica a suspensão da instância nacional (cfr. o nº 2 do artigo 7º do C.P.P.), e decorre do artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, que determina : «O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados ;

b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.»

Seguindo de perto o Acórdão da Relação de Évora de 2/7/2013, processo 4/08.5faevr.E3, relatado por Renato Barroso, in www.dgsi.pt,  diremos que «Do citado Artº 267º do TFUE, resulta que o reenvio prejudicial apenas tem em vista levar ao TJUE qualquer questão relativa à interpretação ou à apreciação da realidade de um acto de direito comunitário.

Nessa medida, nas questões de reenvio prejudicial por efeito do disposto na aludida normas, não estão em causa questões relativas à interpretação ou apreciação das normas legislativas ou regulamentares de direito interno, nem matérias relacionadas com a compatibilidades destas normas ou regulamentos com o direito comunitário e muito menos, as questões respeitantes à validade ou interpretação das decisões dos tribunais nacionais.

Na verdade, o aludido reenvio prejudicial, apenas pode/deve acontecer, quando um tribunal nacional, se vê confrontado com uma situação de interpretação de uma norma comunitária cuja resolução se torne necessária para o julgamento do caso sub judice, pois só aí se justifica a submissão dessa questão prejudicial ao Tribunal de Justiça.

Acrescente-se, que mesmo no domínio do reenvio obrigatório - ou seja, nos casos em que a decisão do tribunal nacional não é passível de recurso - se vem entendendo que perante norma comunitária cuja interpretação não suscite nenhuma dúvida razoável, por respeitar a um caso em que, embora outras interpretações sejam possíveis, qualquer jurista ainda que pouco informado sempre optaria pela solução do juiz nacional, será caso de dispensa da obrigação de reenvio.»

Este acórdão explica com clareza o mecanismo do reenvio prejudicial : se solicitado, o Tribunal de Justiça da União Europeia  irá produzir uma interpretação abstracta da regra comunitária, pronunciando-se sobre a interpretação ou a validade do direito comunitário aplicável ao caso concreto, e não do direito nacional.

Ou seja, o Tribunal de Justiça da União Europeia não se pronuncia sobre a compatibilidade de uma norma nacional com o direito comunitário, nem sobre a sua interpretação.

Por isso, o Juiz nacional deve rejeitar o pedido de reenvio prejudicial se o caso não implicar a aplicação de direito comunitário, mas apenas de direito nacional.

No caso em apreço não está a ser aplicada legislação comunitária, mas apenas legislação nacional, pelo que, sem necessidade de mais explicações, indefere-se o pedido de reenvio prejudicial formulado pelo recorrente.

V. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos:

Julga-se totalmente improcedente o recurso interposto, confirmando-se o despacho recorrido.

Sem custas (cfr. o artigo 522º, nº 1 do C.P.P.).

Coimbra, 24 de Janeiro de 2024


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(Helena Lamas - relatora)



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(João Abrunhosa)



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(Fátima Sanches)