Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
768/21.0T8VIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
ÂMBITO DA ALEGAÇÃO E PROVA
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
PERDA TOTAL
EQUIDADE
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 566.º, N.º 3, DO CÓDIGO CIVIL, 378.º, N.º 2, 609.º, N.º 2, E 661º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – A requerente não estava impedida, para efeitos da liquidação dos danos, de alegar e fazer a prova de todas as circunstâncias que permitissem quantificar esses danos, ainda que algum desses aspetos possa já ter sido alegado na ação e dado como não provado.
II – Não sendo a requerente associada da ANTRAM (Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias), o acordo subscrito por esta organização e pela APS (Associação Portuguesa de Seguros) não lhe pode ser aplicado diretamente.

III – Ainda que se aplicasse, os valores constantes do anexo I deste acordo estão previstos para períodos de paralisação curtos, situados entre o acidente ou a sua participação e o reconhecimento da perda total do veículo e não para situações em que está em causa a indemnização pela privação do uso durante cerca de 13 meses.

IV – O valor venal dos veículos, em caso de prova do uso intensivo do veículo, não obstante não constituir um limite ao valor da indemnização pela privação do uso, não pode deixar de ser ponderado, com o fim de se evitar um enriquecimento ilegítimo da requerente.

V – Não se tendo provado qualquer prejuízo concreto que a requerente haja sofrido em consequência da privação do uso, mostra-se adequado a ressarcir este dano, segundo a equidade, mostrando-se adequada uma indemnização no montante de 17.500,00, atento o uso intensivo dos veículos que era feito pela apelante, o tempo de privação, a circunstância de não ter considerado necessário requerer um veiculo de substituição, continuando a prosseguir a sua atividade e o valor venal dos veículos.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Adjuntos: Catarina Gonçalves
Arlindo Oliveira

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

A... Unipessoal Lda,  intentou ação declarativa contra Companhia de Seguros B... Plc sucursal em Portugal, pedindo a condenação da ré, em consequência de acidente de viação imputável a culpa exclusiva da condutora do veículo seguro na R.,  no pagamento do total de 60.496,89 € (35.000,00 pela perda do veículo pesado + 8.000,00 pela perda total do semi-reboque + 12.177,12 pela paralisação de ambos os veículos até à data em que foram considerados pela seguradora como sem reparação + 5319,77 pela perda da carga não recuperada, mais o lucro visado com a mesma) e juros desde a citação até integral pagamento, mais indemnização a título de privação do uso, no valor mínimo diário (fora os domingos) de 253,69 €, para cada um dos 2 veículos, desde 22.1.2021 (data em que a R. declinou a responsabilidade da sua segurada pelo acidente) até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição destes veículos, acrescida de juros de mora, a liquidar em execução de sentença.

Contestou a seguradora ré, dizendo desconhecer os termos em que ocorreu o acidente, bem como os prejuízos sofridos pela autora, mas pugnando por ter sido a sua segurada a ser embatida na sua mão de trânsito, sendo que o atraso na peritagem não lhe é imputável e que a autora nunca esteve a aguardar pela reparação, mas sim pelo ressarcimento pecuniário, tanto que nunca solicitou veículo de substituição.

A final, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, pelo que condenou a R. no pagamento à A. das seguintes quantias:

1- 13.000 €, a título de perda total do veículo articulado (tractor e semi-reboque);

2- 2.500 €, a título de paralisação do veículo;

3- 5.319,77 €, a título de perda da carga transportada;

4- juros, à taxa legal, sobre cada uma das referidas quantias, desde a citação quanto às quantias mencionadas em 1 e 3, e desde a data desta decisão quanto ao demais, referido em 2, sempre até integral pagamento; e absolveu a R. de tudo o mais pedido, designadamente da indemnização pela privação do uso relativa ao período que decorreu desde 22.01.2021, data em que a R. declinou a responsabilidade pelo sinistro participado, até à data do pagamento da indemnização pela perda total dos veículos.

A A. interpôs recurso da sentença e, por acórdão de 08.03.2022, foi decidido julgar a apelação parcialmente procedente e em consequência, modificou-se a parte 2- do segmento decisório, fixando-se o valor indemnizatório em 4.800 € (relativamente ao período de paralisação dos veículos entre a data do sinistro e as datas em que foi considerada a sua perda total) e condenando-se, ainda, a R. a pagar à A., desde 22.1.2021, o valor que se liquidar em sentença, a título de privação do uso, até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição dos veículos da A.

Posteriormente, A... Unipessoal Lda  instaurou incidente de liquidação contra B... Plc sucursal em Portugal, pedindo a fixação do valor a pagar pela ré no montante de € 85.493,53 ou, subsidiariamente, € 80.880,00.

 Justificou o pedido, por, no primeiro dos casos, ele corresponder ao período de privação dos veículos acidentados, de acordo com os valores fixados pelo acordo celebrado entre a Associação Portuguesa de Seguradores (APS), da qual a requerida é associada e a Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM),e, no segundo caso, por ser esse o valor que resulta da multiplicação do valor  120,00 para cada veículo perdido (valor esse considerado no acórdão que julgou parcialmente procedente a apelação para indemnizar a requerente no período decorrido entre a data do acidente e a data em que foi reconhecida a sua perda total), multiplicado pelos 337 dias (403 dias, menos domingos e feriados) em que os veículos não puderam ser utilizados pela A., desde a data em que a requerida declinou a responsabilidade pelo seu pagamento (22.01.2021) até ao efetivo pagamento da indemnização pela perda dos veículos (01.03.2022) e por ter sido  esse o valor que a autora deixou efetivamente de auferir pela paralisação dos mesmos veículos, face à estimativa dos lucros médios que a requerente não obteve, por ter sido privada do uso dos seus veículos para transportar os bens que comercializou durante os referidos 337 dias, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.

Contestou a requerida, alegando que os valores peticionados corresponderiam, em pouco mais de um ano, a um rendimento de 657% sobre o valor dos veículos, proporcionando-lhe um enriquecimento ilegítimo.

Após produção de prova foi proferida sentença que liquidou a quantia a pagar pela requerida à requerente, R. à A., no montante de € 44.986,05.

Ambas as partes interpuseram recurso.

A requerente, A..., Unipessoal, Lda., conclui as suas alegações do seguinte modo:

(…).

          E a  Companhia de Seguros B... concluiu as suas alegações do seguinte modo:

(…).

II – Objeto do recurso

Tendo em atenção as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

Da apelação da requerente

. se a indemnização pela privação do uso dos veículos relativa ao período entre 22.01.2021 e 01.03.2022, deve ser aumentada para 85.493,53, ou, no mínimo 80.880,00  em vez 44.986,05 como foi liquidada na sentença recorrida.

Da apelação da requerida

. se a indemnização deve ser diminuída para o montante de 6.500,00, com base na equidade, atento o valor venal dos veículos à data do sinistro.

III - Fundamentação

Na primeira instância, no incidente de liquidação,  foram considerados provados e não provados os seguintes factos (aos quais se atribuiu a numeração que lhes coube nos articulados do incidente):

I – Factos provados

.7. A R pagou o valor da indemnização referente à perda destes dois veículos à A.

.8. Fê-lo em 01-03-2022.

.16. (…) Entre a ANTRAM e APS foi celebrado acordo, denominado, “acordo de paralisação”, o qual obriga os representado das segunda, em caso de acidente de viação, a liquidar, aos associados da primeira, as importâncias constantes do Anexo I deste acordo pela paralisação dos seus veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias.

.17. O valor diário para a paralisação de um veículo pesado superior a 26 até 40 toneladas, afeto a serviço internacional, é de € 253,69.

.21. A R é uma representada pela APS.

.23. A A não é associada da ANTRAM.

.25. O peso bruto do conjunto dos veículos da A é de 37,5 toneladas.

II – Factos não provados

.7. Só por força da condenação na 1ª Instância, e pendente o recurso, nesta parte, (…).

.16. A fim de uniformizar critérios sobre o custo de paralisação desta categoria de veículos (…).

.33. Valor que a A deixou de realizar na sua atividade económica em virtude da privação do uso dos seus veículos.

.38. A margem bruta do negócio em cada carga é de € 1639,77 (5.139,77 -3.500)

.39. Os custos médios do transporte são de € 500 para combustível e pneus e da mão-de-obra de embalagem e peso no seu armazém e sacos são de € 380 para mão de obra + € 120 para os sacos.

.40. A A obtém em cada carga um lucro médio líquido de € 639,77 (1639,77 – 1000,00).

.41. Comercializando por semana duas cargas, a A obtém um lucro médio de € 1278,54 (639,27 x 2).

.42. A A obtém um rendimento (lucro) líquido médio mensal de € 5.114,16 (1278,54 X 4).

Está apenas em causa no incidente de liquidação fixar o valor da indemnização pela privação do uso dos veículos  da requerente – trator e semi-reboque -  entre 22.01.2021 (data em que a requerida declinou a responsabilidade da sua segurada) e 01.03.2022 (data em que acabou por pagar a indemnização pela perda dos veículos).

Nos termos do artº 609.º, n.º 2, do CPC, se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.

A interpretação desta norma não tem sido uniforme, sobretudo quando não é formulado um pedido genérico.

A condenação em montante a liquidar posteriormente tem como pressuposto a prova da existência do direito, mas a impossibilidade de, na audiência de discussão e julgamento, se apurar o objeto ou a quantidade do concretamente devido.

O entendimento dominante jurisprudencial é no sentido da condenação genérica ter lugar sempre que esteja apurada a existência de danos, mas não haja elementos para concretizar a prestação devida, ainda que tenha sido formulado um pedido específico, entendimento que sufragamos e foi seguido no acórdão de 08.03.2022.

Nos termos do nº 2 do artº 378º do CPC  o incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do nº 2 do artigo 661º do CPC, como se verificou no caso em análise, e, caso seja admitido, a instância extinta considera-se renovada.

O incidente de liquidação destina-se pois a tornar líquido o montante de determinada obrigação que alguém foi condenado a suportar. Neste incidente não há que discutir se o requerente teve ou não determinados prejuízos e qual a sua origem, mas apenas é  permitido alegar e provar o montante dos prejuízos cuja existência ficou já demonstrada na ação declarativa. A existência do dano e o nexo de causalidade entre os facto e o dano, como pressupostos da obrigação de indemnizar, têm de ser provados na ação declarativa, só se podendo deixar para liquidação a determinação quantitativa do valor do dano. A condenação em montante a liquidar posteriormente tem como pressuposto a prova da existência do direito, mas a impossibilidade de, na audiência de discussão e julgamento, se apurar o objeto ou a quantidade do montante concretamente devido.

A liquidação da sentença destina-se tão somente a ver concretizado o objeto da sua condenação (genérica), mas, obviamente, sempre respeitando (ou nunca ultrapassando) o caso julgado formado na mesma sentença condenatória a liquidar (cfr. se defende no Ac. do STJ de 16.12.2021, Proc. 970/18.2T8PFR.P1.S1 e no Ac. do STJ de 22.5.2014[1]). No caso em apreciação, tem de obedecer ao que foi decidido no acórdão de 08.03.2022, proferido na sequência de recurso da sentença e que a alterou parcialmente.

Na fixação da indemnização o tribunal deve atender à factualidade dada como provada na ação e à factualidade dada como provada no incidente. Obviamente que não é suficiente a   factualidade alegada na ação e que se deu como provada, até porque se o fosse, não seria necessário o  incidente de liquidação, fixando-se logo na sentença ou no acórdão o quantum indemnizatório.   Mas ainda que a prova produzida seja insuficiente para fixar a quantia devida, a liquidação não pode findar com sentença de improcedência, competindo ao juiz proceder à respetiva fixação, recorrendo, como última ratio, à equidade (artº 566º, nº 3, do CC; Acórdãos do STJ de 29-06-17, proc. 4081/14, do TRP de 28-03-12, 55/2000 e do TRL de 01-10-14, 2656/14 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2019, reimpressão,  pág. 416).

Pretende a apelante que seja fixado em 263,59 o valor diário pela privação do uso dos veículos - valor estabelecido no acordo celebrado entre a APS e a ANTRAM - ou, no mínimo em 120,00 euros diários para cada veículo, agora pelo período de 337 dias (valor diário atendido  no acórdão para o período que decorreu entre a data do acidente e a declaração de perda dos veículos, a título de indemnização pela paralisação). 

No acórdão de 08.03.2022 entendeu-se, a propósito, da fixação da indemnização pela paralisação dos veículos entre a data do sinistro (09.12.2020) e data em que a apelada os considerou totalmente perdidos (05.02.2021 para o reboque e 12.01.2021 para o Scania, o veículo trator), que não seria de aplicar o valor diário estabelecido pela APS e a ANTRAM pelas seguintes razões: “  Averiguemos, então, se o acordo APS - ANTRAM pode ser considerado para, através da equidade, fixar um valor indemnizatório. E avançamos já que não, por várias razões.

Constata-se, em primeiro lugar, que a A. não demonstrou nos autos os termos do alegado acordo entre a ANTRAM e a APS. Efetivamente, prova documental sobre tal acordo, pela A., é zero. Desconhecem-se, pois, quais os termos desse acordo e tabelas com valores pecuniários.

Em segundo lugar, a A. não demonstrou ser associada da ANTRAM, caso em que o acordo vigente ao tempo do acidente lhe seria diretamente aplicável. Aliás até confessou não ser associada da ANTRAM (cfr. art. 77º, da p.i.).

Em terceiro lugar, sendo certo que para nós um tal acordo, desde que demonstrado nos autos depois de sujeito ao devido contraditório, seria relevante para a fixação da indemnização por privação do uso, era necessário conhecê-lo em toda a sua extensão, pois só assim se conseguiria alcançar a justiça do caso concreto.

Em quarto lugar, para decidir com recurso à equidade não se pode considerar elementos cujos contornos e enquadramento se desconhecem por completo. Isso já seria uma justiça discricionária, em que tanto faz que seja “mais” como “menos”.

Tudo isto para dizer que A. não desenvolveu qualquer esforço probatório no sentido de demonstrar a existência de um acordo e quais os seus termos relevantes para servirem de referência à fixação da indemnização com recurso à equidade. Tal demonstração estava perfeitamente ao alcance da A. pelo que não há qualquer justificação para ser considerado como referência o valor de 253,69 € por cada dia de privação do uso do veículo.”

          E fixou-se o valor do prejuízo pela paralisação dos veículos mediante recurso a casos análogos da jurisprudência que se citaram, considerando a existência de dois veículos autónomos - o trator e o semi-reboque – em 120,00 euros diários por cada um, no total de 4.800,00 euros (tendo procedido ao desconto do período que ficcionou de 8 dias, durante o qual a A. atrasou a peritagem dos veículos por ter entendido solicitar a uma outra oficina uma outra estimativa de reparação).

           Relativamente à indemnização a título de privação do uso entre 22.01.2021 até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição destes veículos, que é a que se liquidou na sentença recorrida, escreveu-se no acórdão em causa:

           “A R. seguradora por carta de 22.1.2021 declarou que não assumia qualquer responsabilidade pelo acidente – doc. 25 junto à p.i. Por isso, até hoje, não disponibilizou à A. o equivalente em dinheiro à perda total dos seus veículos (e pelo qual vai ser condenada).

Porém, segue-se o e entendimento jurisprudencial que no caso de perda total do veículo, operando-se uma indemnização ou restituição por equivalente, traduzida na entrega de uma quantia em dinheiro, a privação do uso subsiste até ao momento em que ao lesado seja satisfeita a indemnização correspondente, pois só neste momento é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que o substitua.

Como se refere no Ac. do STJ de 21.4.2005, Proc.03B2246, no indicado sítio, também indicado pela recorrente: “... o específico dano da privação do uso do veículo destruído subsiste, com autonomia indemnizatória, até que o lesado seja ressarcido, nomeadamente, por mero equivalente (em dinheiro) da perda total.

Apenas a partir desse momento, deixa de poder falar-se de privação do uso do veículo posto que reconstituída – por equivalente - a situação que existiria se não fosse o facto do lesante e a perda do automóvel (artºs 562º e 566º do CC).”.

No mesmo sentido, o Ac. do STJ de 15.11.2011, Proc.6472/06.2TBSTB-E1., no mesmo sítio, que textua o seguinte: “Mas, a destruição e perda total do veículo e a correspondente obrigação de indemnizar o A. em dinheiro, não contende com a obrigação de indemnizar pela privação do uso.

É que essa privação mantém-se enquanto o responsável não reparar o veículo, quando for caso disso, ou não indemnizar o lesado, pelo respetivo valor …”.

Na verdade, só com a reparação ou com a indemnização cessará o dano e, por isso, só nessa altura pode deixar de falar-se em privação do uso”.

Ora em face da factualidade provada, designadamente que a A. utilizava a Scania e o semirreboque para transportar batata e cebola que compra em Espanha na terça, quinta e sexta-feira, comportando cada carga 25 toneladas, para, depois de embalar e pesar no seu armazém em ... (...), a transportar e vender no mercado abastecedor do Porto, na segunda e quarta-feira, ficou a mesma privada de uso dos seus veículos desde a aludida data de 22.1.2021 até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição destes veículos.

Recaindo, por isso, sobre a R. seguradora o dever de reparar todos os danos o que até à data não fez para mitigar os prejuízos deste acidente (art. 562º do CC).

Verificado o dano, pretendia e pretende a A. obter o valor diário da tabela APS – ANTRAM, no valor de 253,69 €, a liquidar em execução de sentença (vide conclusão de recurso 29ª). Sobre a mencionada tabela e acordo APS – ANTRAM, já dissemos antes que não pode ser considerado.

Resta, pois, condenar a R. a pagar à A. o valor que se liquidar em sentença, como peticionado por esta, dentro do limite máximo pedido.”

             E, no segmento decisório condenou-se “a R. a pagar à A., desde 22.01.2021  , o valor que se liquidar em execução de sentença, a título de privação do uso, até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição dos veículos da A.”

             Na sentença que procedeu à liquidação deste dano, ora recorrida, para a fixação do valor concreto da indemnização, entendeu-se que o julgador estava vinculado ao valor de 120,00 diários para cada um dos veículos da requerente, valor que o acórdão de 08.03.2022 tinha adotado para a fixação do valor da paralisação até à declaração de perda total e atendeu-se ao número de dias que decorreram posteriormente, desde 22.01.2021 até ao pagamento da indemnização pela requerida (403 dias), liquidando-se a indemnização mediante a adoção de uma regra de “três simples”. Consignou-se assim: “Fixemos, então, e nesta base, os danos que, provenientes de condenação em montante não liquidado, foram diferidos para a fixação no momento presente. Contudo, como facilmente se depreende, a prova neste incidente produzida em nada permite alterar o anteriormente decidido, pois que ela não permite, com rigor, ser mais explícito. Assim, e aqui chegados, importa, à face dos factos provados, liquidar as importâncias devidas, com respeito pelo que vem ordenado pelo Tribunal superior, cujos considerandos sou obrigado a aceitar. Logo, nada se tendo provado que me leve a retirar, acrescentar ou (de qualquer outra forma) modificar o que dei como provado na audiência final, e que levaram a Relação a fixar o valor de € 4.800,00 pelo período que decorre de até 22 de Janeiro de 2021, afigura-se-me que nada me permite – sem desobedecer hierarquicamente – alterar este montante, a não ser proporcionalmente, considerando o resto do período que se definiu ser de indemnizar. Assim, e com fundamento numa regra de três simples, se pelos 43 dias, de 9 de Dezembro de 2020 a 21 de Janeiro de 2021, o tribunal superior determinou o valor de € 4.800,00, então, pelos 403 que medeiam entre 22 de Janeiro de 2021 e 1 de Março de 2022, será de considerar o valor de € 44.986,0465.

Assim, atendendo aos limites permitidos pelos factos provados – dentro daqueles que, anteriormente, foram fixados pela sentença ilíquida – tenho por correspondente ao ordenado pelo Tribunal superior fixar a quantia em liquidação no montante total de € 44.986,0465 ou, arredondando, € 44.986,05.”.

            A apelante veio insistir, tal como defendera na petição inicial e no recurso que interpôs, que seja atendido, pelo menos como valor de referência,  o valor diário fixado pela convenção celebrada entre a APS e a ANTRAM. O facto de tal valor não ter sido levado em conta no acórdão de 08.03.2022,  não impede, em seu entender, que tal valor seja tido agora em consideração, atenta a nova factualidade dada como provada nos pontos de facto provados nºs 16, 17, 21, 23 e 25 do incidente de liquidação.

           Ainda que assim não se entenda, defende ainda a apelante,  haverá sempre que considerar a paralisação de dois veículos e não um e o valor de 120,00 diários para cada um, o qual,  multiplicado por 403 dias, atinge o valor de 96.720,00, a reduzir para o valor do pedido – 85.493,53 e não o valor arbitrado pela sentença recorrida que, ao fixar o valor da indemnização em 44.986,05, fixou-o ainda num valor inferior diário ao atendido pela Relação, pois dividindo tal montante fixado por 403 dias, obtém-se o valor de 111,58 para os dois veículos, inferior ao considerado pela Relação de 120,00, para cada veículo.

           Efetivamente, quando foi proferido o acórdão que condenou a R. a pagar à A. a indemnização que a sentença recorrida liquidou, não estava junto aos autos o acordo celebrado entre a APS e a ANTRAM, o que foi feito apenas durante o processamento do incidente de liquidação.

          O acórdão de 08 março de 2022 não partiu do pressuposto que o valor pela privação do uso, desde a data em que a R. declinou a responsabilidade no sinistro até ao pagamento da indemnização pela perda, era de 120,00 diários. Se o tivesse feito, teria condenado em conformidade, o que não fez. Se se tivesse sido entendido no referido acórdão que era esse o valor diário a considerar, não deixaria de se ter condenado a R. a pagar à A. esse valor diário desde 22.01.2021 até à data do pagamento da indemnização por perda total. E a R. foi condenada a pagar desde 22.1.2021, o valor que se liquidar em sentença, a título de privação do uso, até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição dos veículos da A.

             O valor de 120,00 foi o considerado para a fixação da indemnização por paralisação dos veículos apenas até à declaração de perda total.

             Não estava assim o Mmo Juiz a quo adstrito, sob pena de violar o caso julgado formado pelo acórdão a atribuir o referido valor diário, como se afirma na sentença recorrida.

A requerente não estava impedida, para efeitos da liquidação dos danos reconhecidos no acórdão de março de 2022, de alegar e fazer a prova de todas as circunstâncias que permitissem quantificar esses danos, ainda que algum desses aspetos possa já ter sido alegado na ação, como foi no caso, relativamente à celebração do acordo e à sua subscrição pela APS e aí tenha sido julgado não provado (o que no caso não ocorreu), dando designadamente causa à remessa da quantificação dos danos para ulterior liquidação (cfr. se decidiu no Ac. do TRP de 26 de janeiro de 2023, proc. 805/16.0T8VLG.1.P1).

Nada impede, portanto, a autora de tentar demonstrar que a liquidação do dano relativo à privação do uso deve ser feita, considerando o valor fixado pelo referido acordo, o que exige, como é óbvio, desde logo, a prova da sua existência e o conhecimento do seu texto. Impedi-lo seria afinal impedir a própria liquidação determinada por sentença transitada em julgado.

E é de aplicar o disposto no referido acordo?

Na sentença recorrida deu-se como provado que:

. Entre a ANTRAM e APS foi celebrado acordo, denominado, “acordo de paralisação”, o qual obriga os representado das segunda, em caso de acidente de viação, a liquidar, os associados da primeira, as importâncias constantes do Anexo I deste acordo pela paralisação dos seus veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias.

. O valor diário para a paralisação de um veículo pesado superior a 26 até 40 toneladas, afeto a serviço internacional, é de € 253,69.

. A R é uma representada pela APS.

. A A não é associada da ANTRAM.

. O peso bruto do conjunto dos veículos da A é de 37,5 toneladas.

Ora, desde logo como a A. confessa, esta não é associada da ANTRAM (Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias), pelo que o referido acordo não lhe pode ser aplicado diretamente.

E como referência? No acórdão de 8.03.2022 entendeu-se que tal acordo, “desde que demonstrado nos autos depois de sujeito ao devido contraditório, seria relevante para a fixação da indemnização por privação do uso, era necessário conhecê-lo em toda a sua extensão, pois só assim se conseguiria obter a justiça do caso concreto(sublinhado nosso).

Admitindo o acórdão que em princípio o estabelecido no acordo seria relevante para a fixação da indemnização,  fez depender essa aplicação do conhecimento do mesmo em toda a sua extensão.

E lido o referido acordo junto aos autos, no decurso da incidente de liquidação, verifica-se que o mesmo não dispõe para situações como a que está em causa nestes autos – indemnização pela privação do uso entre a data da não assunção da responsabilidade pela seguradora e o pagamento da indemnização pela seguradora pela perda dos veículos, mas sim para o período que medeia entre o sinistro ou da data de receção da participação na empresa de seguros até à data em que a empresa de seguros comunique ao associado a situação de perda total, ou seja, para um período mais curto do que aquele que está em causa nos autos. Atento o contexto da sua criação, os interesses que serve e o seu texto, concluiu-se que a tabela em que a requerente se fundamenta foi pensada para paralisações de duração relativamente curtas, em que se mantêm todos os custos operacionais do veículo sinistrado, os quais, em regra, deixam de se verificar em caso de paralisação de longa duração.

A indemnização do dano  pela privação do uso vai aumentando com o tempo até à entrega do veículo reparado ou de veículo de substituição ou de disponibilidades monetárias adequadas para a aquisição de outro equivalente.  Não reposta a situação anterior ao evento lesivo, as consequências da privação do uso serão tanto maiores quanto maior for o período em que o lesado se mostre impedido de utilizar um veículo de características idênticas ao acidentado. Mas não tem de haver correspondência e muito menos correspondência total entre o valor de referência fixado para a paralisação dos veículos até à data da declaração de perda total e o valor de referência a ter em conta para o período posterior de privação do uso.

Na fixação da indemnização, não tendo sido alegados nem provados factos relativos a ter a apelante efetuado despesas para suprir  a falta dos veículos, nem se tendo provado os alegados prejuízos decorrentes da paralisação dos veículos, há que fixar a indemnização recorrendo à equidade, como se entendeu na decisão recorrida (artº 566º, nº 3 do CC).

No caso concreto, apurou-se que a requerida dava aos veículos um uso intensivo (cfr. factos constantes dos artigos 39º, 40º, 46º, 55, 63, 64 e 65 da petição inicial dados como provados na sentença proferida em 20.12.2021, parcialmente confirmada pelo acórdão de 08.03.2022 e que manteve inalterada a matéria de facto, a qual não foi impugnada pela apelante).

A Companhia de Seguros B... pugna pela redução do valor da indemnização para o montante de 6.500,00 euros, por o valor arbitrado constituir enriquecimento ilegítimo da requerente, alegando que a requerente acabaria, assim, a ganhar muito mais com a perda do conjunto de veículos do que com a manutenção do mesmo no seu património, atento o valor dos mesmos fixado na sentença liquidada - 9.500,00 do veículo trator e 3.500,00 do reboque - referindo, designadamente, que a requerente dispunha de outro veículo articulado e de um pesado com capacidade para três mil e quinhentos quilos de carga para substituir os dados como perdidos, os lucros declarados pela requerente   nos anos de 2019 a 2021e o valor da perda da sua  faturação, com fundamento em depoimentos, declarações e documentos.

Ora, não foram dados como provados tais factos nem a requerida Companhia de Seguros os alegou na sua oposição à alegação. Se a requerida entendia que estes factos se provaram, tendo resultado da discussão da causa, e que se compreendiam dentro dos limites constantes do artº 5º, nº 2 do CPC, teria de ter requerido o seu aditamento à matéria de facto, o que não fez.

No caso, apenas se deu como provado o valor dos veículos à data do sinistro – 13.000,00 no seu conjunto.

Ora, o valor venal do veículo tem sido ponderado na fixação da indemnização, como defende a Companhia de Seguros. Assim, no acórdão do STJ de 05.07.2018, proc. 176/13.72AVR.P1.S1, em que estava em causa a indemnização da privação do uso com base em responsabilidade extracontratual, como no caso presente, entendeu o STJ ser de diminuir a indemnização fixada pela Relação que tinha atribuído ao A. a quantia de 25.092,00 correspondente ao valor de 104,55 diários durante os 8 meses em que o A. esteve privado de veículo, tendo adquirido nessa data um novo, fixando-a no montante de 15.000,00, tendo ponderado “que o  valor que foi declarado pela Relação a título de privação do uso [€ 25.092,00 (€ 104,55 x 8 meses)] ficou bem perto do valor venal do mesmo veículo, circunstância de ordem objetiva que não pode deixar de ser compaginada com as regras da equidade a que temos de recorrer nesta situação.” Nesse acórdão apurou-se que o A. era  exclusivamente nesse veículo que se deslocava para todas as suas atividades pessoais e profissionais, designadamente conduzindo-o até ao seu local de trabalho, bem como para se deslocar às aulas em horário pós-laboral do Mestrado em Direito, que à data do sinistro se encontrava a frequentar e cujo prazo para apresentação de dissertação se encontrava pendente. Era também com esse veículo, pela sua configuração estrutural que permitia o reclinar total de todos os bancos (com exceção do banco do condutor), que o A. transportou livros, móveis e pequenos eletrodomésticos entre o local da sua residência e a nova habitação que o A. tinha acabado de construir.

No entanto, não estava em causa neste acórdão a afetação do uso do veículo à própria atividade exercida pelo A., como se verifica no caso.

A Companhia de Seguros veio invocar em abono da sua tese, o Ac. do STJ de 13.07.2017, proc. 188/14.3T8PBL.C1.S1. Neste acórdão não estava em causa uma indemnização pela privação do uso com base em responsabilidade extracontratual, mas sim com base em responsabilidade contratual, uma vez que estava previsto no contrato de seguro a atribuição de  um veículo de substituição. Fixou-se uma indemnização  correspondente à verba diária de 30,00 euros que era o valor previsto no contrato que seria pago pela seguradora, no caso de não atribuir ao lesado um veículo de substituição, desde a data do acidente até à data em que se tiver verificado ou se verificar a efetiva entrega ao A. da indemnização, tendo como limite máximo o valor de 41.000,00, correspondente ao valor de um veículo novo nos últimos anos em que foi produzido, num caso em que o valor devido pela perda total do veículo sinistrado era de € 14.478,74, pelo que se condenou  num valor muito superior ao valor devido pela perda do veículo, não se tendo limitado a indemnização pelo valor venal do veículo, fator que a apelada B... pretende que seja tido em consideração, mas sim pelo valor do veículo em novo, o qual no caso em análise se desconhece. No caso deste acórdão apenas se apurou que o A. utilizava o veículo para se deslocar no âmbito da sua vida pessoal e profissional e para transportar os seus filhos e outros familiares.

Há que ter presente que o valor liquidado no acórdão de 08.03.2022, teve em conta um curto período de paralisação – de 20 dias -, durante o qual,  em regra,  se mantém os custos operacionais com os veículos, custos que tenderão a atenuar com o decurso do tempo.

A questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso tem sofrido ao longo do tempo uma evolução jurisprudencial que aponta num sentido de maior abertura na reparação de tal dano.

Num entendimento mais exigente para o lesado, para que o dano da privação do uso da coisa danificada seja indemnizável, exige-se a prova de factos demonstrativos da repercussão negativa dessa privação no património do lesado.

Outra corrente jurisprudencial, mais favorável ao lesado, basta-se com a prova de que o lesado usaria normalmente a coisa danificada para que o dano da privação do uso seja indemnizado. 

Finalmente, numa posição ainda mais favorável ao lesado, defende-se a ressarcibilidade do dano da privação do uso mesmo que não seja feita prova de uma utilização quotidiana do bem, indemnização a fixar com recurso à equidade e com ponderação das concretas circunstâncias de cada caso (cfr. se defende no Ac. do TRP de 08.03.2021, proc. 3822/19.5T8MAI.P1).

Mas independentemente da posição que se adotar, está sempre em causa o ressarcimento do dano causado pela impossibilidade de usar o bem, sendo que não se entende necessário o apuramento concreto de danos resultantes da privação do uso.

Os veículos em causa neste caso tinham  um valor comercial reduzido, mas mesmo assim encontravam-se aptos a satisfazer as necessidades do seu proprietário. Assim, os danos sofridos não poderão ser satisfeitos com a indemnização de 6.500,00 euros proposta pela Companhia de Seguros, pelo que não obstante o valor venal dos veículos, não se entende que, no caso concreto, em que está provada a utilização intensiva dos veículos, ela possa constituir um limite à fixação da indemnização. Mas também na falta de alegação e prova da realização de despesas pela apelante/requerente para suprir a falta dos veículos e da factualidade alegada, o valor de indemnização por esta proposto, mostra-se totalmente desajustado.

O valor venal não obstante não constituir um limite, não pode deixar de ser ponderado,  com o fim de se evitar um enriquecimento ilegítimo da apelante/requerente. No caso, além do valor, há que ponderar  o uso intensivo dos veículos pela requerente, o tempo que ficou privada do seu uso – cerca de 13 meses - e a circunstância de não ter considerado necessário requerer um veiculo de substituição, continuando a prosseguir a sua atividade. Na ponderação de todos os factos, entende-se adequada, de acordo com a equidade, liquidar a indemnização em 17.500,00.

Sumário:

(…).

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedentes a apelação da requerente e parcialmente procedente a apelação da requerida e, consequentemente, revogam a sentença recorrida, liquidando a indemnização em 17.500,00.

Custas da  apelação da requerente, pela requerente.

Custas da apelação da requerida, por ambas as partes na proporção  do decaimento, fixando-se em 30% para a apelante e 70% para a apelada.

Notifique.

Coimbra, 5 de março de 2024


[1] Acessíveis em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser referidos.