Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3515/21.3T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE
CESSAÇÃO DAS MEDIDAS DECRETADAS
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 5.º E 12.º DA CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
ARTIGOS 373.º; 891.º, 1 E 2 E 988.º, DO CPC
ARTIGOS 138.º; 139.º, 2; 140.º, 2; 155.º E 1874.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A L 49/2018 de 14/8 procedeu à revogação dos institutos da interdição e inabilitação e introduziu, em substituição, o do maior acompanhado, que assenta nos princípios da não discriminação, autodeterminação, subsidiariedade e proporcionalidade, pretendendo-se dar primazia aos modelos de apoio em detrimento dos modelos de substituição, visando assegurar os direitos, as vontades e preferências da pessoa discapacitada, em vez dos melhores interesses desta, passando-se assim do critério do “melhor interesse” (best interests), para o da “vontade e preferência”.
II - A impossibilidade do acompanhado exercer direitos ou cumprir deveres, enquanto causa subjectiva que é do acompanhamento, nos termos do nº 1 do art 138º CC, pressupõe que o mesmo não tenha aptidão para tomar decisões consistentes de acordo com a sua livre vontade, não tendo plena consciência das suas responsabilidades.

III – Todos os exames médicos constantes dos autos – quatro – concluem por essa aptidão no que se reporta à Requerida, embora recomendem o regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico em unidade multidisciplinar direcionada para o tratamento deste tipo de quadros (anorexia nervosa), enfatizando que a colaboração no tratamento desta patologia, ainda que possa ser obtido transitoriamente por meios coercivos, não é sustentável coercivamente.

IV – Em função do principio da subsidiariedade decorrente do disposto no art 140º do CC, só se pode recorrer ao regime do maior acompanhado quando se deva concluir na situação concreta que as limitações de que padece o maior não podem ser colmatadas através dos deveres de cooperação e assistência aplicáveis ao caso.

V – Devendo concluir-se na situação dos autos que as medidas provisórias e urgentes aplicadas cautelarmente aquando do internamento da Requerida já não se justificam e que as limitações desta que sobejam podem ser ultrapassadas em função do dever de auxilio e assistência que impende sobre o Requerente relativamente à mesma, há que as julgar cessadas.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I - AA, veio, em 27/08/2021, requerer o acompanhamento da maior, sua filha, BB.

Requereu, ao abrigo do disposto nos arts 891º/2 do CPC e 139º/2 do CC, como medida cautelar, que fosse nomeado provisoriamente acompanhante da sua filha até ser proferida decisão definitiva, e lhe fosse conferida legitimidade, para, em nome dela, tomar todas as medidas provisórias que o estado de saúde e o bem estar e equilíbrio da mesma  exijam, incluindo a decisão de internamento, e de limitar o seu direito pessoal, fixar domicílio e residência e de se relacionar com pessoas que ponham em risco a sua saúde e integridade física e/ou mental, designadamente, com a sua mãe, bem como a sua capacidade de disposição patrimonial.

Por último, requereu o acompanhamento da Requerida como maior e as medidas adequadas à sua recuperação física e emocional.

Por decisão proferida a 10/09/2021, foram determinadas as seguintes medidas provisórias:

- Acompanhamento provisório da requerida BB, pelo requerente AA, seu pai, ficando este incumbido de, provisoriamente e na qualidade de acompanhante provisório:

 - Administrar o património da requerida, por forma a salvaguardar a sua saúde, designadamente, controlando a aquisição de laxantes e outros produtos diuréticos ou de emagrecimento, a admissão em ginásios, a aquisição de equipamento desportivo desgastante, como seja, passadeiras, elíticas e outro de natureza semelhante;

- Promover a educação e formação intelectual, da requerida, a sua socialização, de modo a alcançar o equilíbrio e bem-estar consigo própria e com a sociedade e limitando o seu direito pessoal de estabelecer domicilio, escolher residência e relacionar-se por qualquer meio com pessoas que possam pôr em risco a sua saúde e equilíbrio psicológico/mental;

- Tomar todas as medidas que o estado de saúde, o bem-estar e equilíbrio da requerida exijam, nomeadamente o seu internamento em instituição hospitalar ou similar.

No dia 27/10/2021 a Requerida foi citada para a presente acção.

O Ministério Público foi citado, tendo apresentado resposta.

Entretanto, foram juntos aos autos vários documentos médicos, requerimentos, vários emails remetidos por CC, mãe da Requerida.

No dia 12/01/2022, foi ouvida a beneficiária e realizou-se o exame pericial, tendo os Srs. Peritos concluído pela necessidade de fazer uma entrevista àquela, na Delegação do Centro do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, a fim de prosseguirem o exame pericial.    

Concluído o exame pericial, foi junto aos autos o relatório pericial psiquiátrico forense, datado de 21/03/2022, o qual concluiu que:

1. A requerida padece de Anorexia Nervosa (F50.0 da CID-10).

2. Este quadro não a impossibilita (atualmente) de exercer plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

3. Contudo, é recomendável que continue a beneficiar de regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico em unidade multidisciplinar direcionada para o tratamento deste tipo de quadros, tal como já vem sendo o caso.

Na sequência das informações prestadas pela equipa multidisciplinar subscritora da informação clínica junta aos autos a 19/04/2022, nomeadamente no tocante à recusa da colaboração da Requerida com o plano de tratamento que lhe foi proposto, solicitaram-se esclarecimentos aos Srs. Peritos subscritores da perícia.

No dia 1 de Junho de 2022, os Srs. Peritos juntaram aos autos novo relatório, no qual concluíram que “… Apesar do aparente retrocesso da requerida na sua evolução clínica (que, aliás, é frequente nestes casos) com ausência de colaboração no tratamento que é preconizado, incluindo na intervenção psicoterapêutica, colaboração essa que não é possível estabelecer coercivamente, continuamos a afirmar que, em bom rigor clínico e psiquiátrico forense, não existem razões de natureza psiquiátrica que a impeçam de exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres, não se nos afigurando que estejam reunidos pressupostos clínicos para que possa beneficiar do instituto do Maior Acompanhado. ”

           O Requerente, não concordando com o relatório pericial, veio solicitar vários esclarecimentos.

          Os Srs. Peritos elaboraram novo relatório, datado de 28 de Setembro de 2022, no qual referem que, “continuamos a afirmar que, em bom rigor clínico e psiquiátrico forense, não existem razões de natureza psiquiátrica que interfiram com a capacidade cognitiva da requerida (cujo funcionamento clinicamente aferido é normativo, permitindo-lhe atuar finalizadamente e com propósito) e a impeçam de exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres, continuando a não se nos afigurar que estejam reunidos pressupostos clínicos para que possa beneficiar do instituto do Maior Acompanhado…” .

Mais uma vez, o requerente, não concordando com o resultado da perícia médico legal, veio requerer a realização de segunda perícia, a qual foi deferida pelo tribunal.

Entretanto, em 10 de Julho de 2023, foi proferido o seguinte despacho:

 «Adverte-se que nos presentes autos foram ao abrigo do disposto nos arts. 891º, nº 2 do CPC, e 139º, nº 2 do CC., decretadas, ademais, as seguintes medidas provisórias e urgentes: - Acompanhamento provisório da requerida BB, pelo requerente AA, seu pai, ficando este incumbido de, provisoriamente e na qualidade de acompanhante provisório: - Promover a educação e formação intelectual, da requerida, a sua socialização, de modo a alcançar o equilíbrio e bem-estar consigo própria e com a sociedade e limitando o seu direito pessoal de estabelecer domicílio, escolher residência e relacionar-se por qualquer meio com pessoas que possam pôr em risco a sua saúde e equilíbrio psicológico/mental; - Tomar todas as medidas que o estado de saúde, o bem-estar e equilíbrio da requerida exijam. Medidas essas que se mantém vigentes, e que deverão ser cumpridas e acatadas nos precisos termos decididos.»

            O despacho em causa foi notificado as partes.

A nova perita apresentou relatório de perícia médico-legal – perícia psiquiátrica, datada de 4 de Agosto de 2023, no qual concluiu que:

«… Em suma, no presente, não nos é possível invocar razões de natureza estritamente psiquiátrica que impossibilitem o exercício autónomo e pleno, quer no âmbito pessoal quer patrimonial, dos seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, bem como a sua capacidade de tomada de decisões ou de exprimir/formar a sua vontade de forma congruente.

Face ao exposto, e considerando os pressupostos médico-legais previstos no artigo 138.º do Código Civil para beneficiar do regime do maior acompanhado, do ponto de vista estritamente pericial, somos de opinião que a examinanda não cumpre os mesmos para beneficiar das medidas de acompanhamento aí elencadas.

 Por último, somos de opinião que a examinanda deverá manter o acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico especializado que tem vindo a beneficiar, com vista à manutenção da abstinência e para evitar novas recaídas».

 

O Requerente reclamou desta nova perícia, pedindo esclarecimentos, que foram prestados.

A Requerida constituiu mandatário e veio requerer a cessação imediata das medidas cautelares.           

A Exmª Magistrada do Ministério Público veio também requerer a cessação imediata das medidas provisórias decretadas e o arquivamento dos autos.

 O Requerente respondeu, pedindo que as medidas cautelares se mantivessem.

           Foi proferida decisão que determinou a imediata cessação das medidas provisórias decretadas pelo despacho proferido no dia 10/09/2021, com a imediata entrega à Requerida do seu passaporte, dos seus documentos e dos seus bens pessoais.

II – Do assim decidido, apelou o Requerente que concluiu as respectivas alegações, nos seguintes termos:

1-Em 10 de Julho de 2023, por promoção do M.P., foi proferido despacho a manter vigentes e a ordenar o seu cumprimento e acatamento as medidas provisórias que, cinco meses depois, foram revogadas pelo despacho recorrido.

2- O despacho recorrido contradiz absolutamente aquele despacho de 10 de Julho de 2023, transitado em julgado.

3- O despacho recorrido desconsidera despacho anterior com o mesmo objeto, em desrespeito do artº. 620º nº 1 do Código de Processo Civil que preceitua que os despachos e sentenças que recaiam sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, sendo ineficaz decisão posterior sobre a mesma questão.

4- Tal determina a revogação do despacho recorrido por violação do artº. 625º do Código de Processo Civil.

5- Caso assim se não entenda, o que não se concede,

6- O Tribunal recorrido sobrepõe as medidas provisórias que revogou com o mérito da causa quanto ao acompanhamento de maior.

7- Para o levantamento das medidas cautelares, tornava-se imperioso que a recorrida tivesse demonstrado nos autos a ocorrência do facto extintivo, o que não se verificou, violando o despacho recorrido o disposto no artº. 373º do Código de Processo Civil e o artº. 3º nº 3 do Código Civil, pois sustenta-se de factualidade para a qual foi negado ao recorrente o direito do contraditório.

 8- Fazer recair sobre o recorrente o ónus do decurso de mais de dois anos após a instauração da ação sem que tenha sido proferida decisão de mérito é desconhecer a tramitação do processo, as promoções do MP e os despachos que acolheram a razão destas e do recorrente.

9- Não pode o despacho recorrido estribar-se na iniciativa do recorrente quanto aos esclarecimentos e pedido de segunda perícia, para revogar as medidas provisórias quando tais pedidos mereceram promoção e acompanhamento do M.P. e foram ratificados judicialmente, tornando-se aquisição processual e não desiderato da parte que os promoveu.

10- O despacho recorrido assenta exclusivamente em razões subjetivas da recorrida, sem qualquer respaldo probatório e contradiz conduta livre e consentida desta.   11- O despacho recorrido invoca que a continuidade deste processo lesa a imagem e gera preconceitos e estigma à recorrida não se alcançando, contudo, de que modo as medidas provisórias instituídas possam produzir esse alegado dano. A não ser que seja a própria Apelada a publicitar essa situação.

12-Ao abrigo do disposto no artº. 425º do Código de Processo Civil requer-se a junção aos autos do blogue da autoria da recorrida acessível em https://www..., onde a mesma publicita factos da sua intimidade e pormenores do seu internamento, 17 em contradição com o alegado dano de imagem que aparentemente quer preservar.        

13- Neste escrito da sua autoria, a recorrida reconhece a falta de insight, ou seja, falta de consciência para a doença, aspeto que aparece versado nos relatórios periciais juntos aos autos e que assume alto relevo clínico para a análise da necessidade de acompanhamento.

14- Para além destes aspetos, a Apelada denigre o SNS e a equipa do CHUC que a tratou durante os longos meses de internamento, deturpando a realidade, apenas para se vitimizar e colher do público que a leia a justificação para a magreza extrema que a Apelada ostenta e que para qualquer cidadão comum, é entendida como anorexia. Aliás, é apenas por essa razão que a Apelada não pretende a realização do julgamento, escapando deste modo ao olhar atento do julgador relativamente à sua magreza extrema, mesmo disfarçada com vestes largas e enchumaçadas!

 15- O Tribunal não soube coar sob o crivo da objetividade e não interpretou criticamente os factos ocorridos até Setembro de 2023 para efetuar uma valoração adequada de todas as imputações sobre o recorrente que a Apelada passa a fazer nos autos recentemente, mesmo daqueles factos para o qual o recorrente não foi convidado a pronunciar-se.

16- Tais imputações contrastam com a atitude que anteriormente a recorrida manifestara fora do raio de ação do seu pai, como acima referido e, por isso livremente, sobre a atuação deste.

 17- No n/ requerimento de 20 de Novembro de 2023 focou o efeito mimético da Apelada quanto ao comportamento da mãe desta e de todos os imputs que aquela constantemente levou a este processo, mesmo depois de ser advertida pela Senhora Juiza Titular que não era parte no processo e que, portanto, o Tribunal ignorou aquela abundante correspondência, ordenando a sua devolução (despacho de 10-11-2021 e de 17-03-2022).

18- Foi evidenciado no nosso requerimento a influência do comportamento da mãe sobre a filha, sendo que esta utilizou nos presentes autos e estratégia que a mãe sempre seguiu: à mingua da satisfação das suas pretensões, aquela subia o patamar da realidade e entrou na mentira e na ignorância para alcançar os seus objetivos. Veja-se, a título de exemplo, os requerimentos do recorrente de 19/10/2021, de 11/03/2022, de 16/03/2022, de 24/03/2022, de 31/03/2022 e documentos que o acompanham, lembrando aqui o pedido de habeas corpus que a mãe da recorrida fez junto do Tribunal Criminal ... (vide e-mail desta de 7/10/2021 e os demais que lhe estão anexos), além de todas as atitudes, que não adjetivamos, bem patentes nos documentos por esta juntos aos autos, recordando ainda a queixa endereçada à Ordem dos Médicos e à ERS contra o Psiquiatra Dr. DD, conforme correspondência da mesma em 25/07/2023 e 7/08/2023, médico que a recorrida agora diaboliza, depois de lhe ter pedido que continuasse a acompanhá-la perante aquela conduta inapropriada da mãe.

19- Analisada a correspondência da mãe da recorrida os requerimentos desta constituem o decalque das mesmas ideias, que a crónica da recorrida também evidencia

 20- O discurso da coação, da violência doméstica, da autodeterminação conflue em uníssono nos requerimentos da mãe e da filha, acrescentados na crónica desta.

21- O Tribunal recorrido acolheu acriticamente a pretensão da recorrida, não a sopesou com todos os antecedentes dos autos, ignorou as suas próprias afirmações, exaradas livremente, e verteu no despacho sob censura a ideia grotesca e soez que, de forma inovadora e contrastando com o passado, a recorrida vem dar de seu pai.

 22- Equiparado o despacho recorrido a sentença que extingue as medidas cautelares, está vedado ao Tribunal decidir sem provas, pois só mediante a prova pode o Juiz formar a sua prudente convicção e decidir de acordo com esta em conformidade com o disposto no artº. 607º do Código de Processo Civil.

 23- Conforme documento nº 4 junto pelo recorrente no seu requerimento do passado dia 20 de Novembro, que aqui se dá por integralmente reproduzido, documento esse que consiste numa reprodução de mensagem de telemóvel que endereçou à sua filha, os bens desta continuam à sua disposição em casa do pai, tendo inclusivamente a recorrida a chave da casa, pelo que não se justifica também a condenação neste segmento.

24- Pelas razões expostas deve ser revogado o despacho em crise, mantendo-se as medidas provisórias decretadas.

A Exma Magistrada do Ministério Público contra-alegou, concluindo nestes termos :

 1.º - As medidas provisórias requeridas, foram aplicadas a 10.09.2021.

 2.º - Decorridos, mais de dois anos, e tendo tido lugar a audição da beneficiária a 12.01.2022, seguida de exame pericial, ainda não foi proferida decisão, mercê da sistemática discordância dos relatórios periciais e com sucessivos pedidos de esclarecimentos por parte do requerente aos senhores peritos médicos subscritores dos relatórios.

3.º - A lei prevê a possibilidade de modificar ou levantar as medidas aplicadas ao beneficiário, nos termos do art.º 149.º, n.º 3 do CC.

4.º - Todos os relatórios médico-periciais juntos aos autos referem que a requerida padece de Anorexia Nervosa (F50.0 da CID-10).

5.º - Contudo, todos eles referem que o aludido quadro clínico não a impossibilita de exercer de forma plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou de, nos mesmos termos cumprir os seus deveres.

 6.º - Referindo-se e reafirmando-se, sucessivamente, não estarem reunidos os pressupostos clínicos para que BB possa beneficiar do estatuto de maior acompanhado.

7.º- Sendo que, no último relatório pericial se refere taxativamente que a requerida tem capacidade para tomar decisões, bem como para exprimir/formar a sua vontade de forma congruente, não reunindo os pressupostos médicolegais para beneficiar do regime de maior acompanhado,

8.º - Sem embargo, da requerida necessitar de acompanhamento médicopsiquiátrico em unidade multidisciplinar direcionada para este tipo de quadros, restringe-se tal necessidade à tentativa de debelar a doença de que padece, atendendo à natureza e cronicidade do quadro, e o risco de agravamento futuro

 9.º - A necessidade de tratamento da doença, que deverá ser voluntária e não coerciva, encontra similitude com a necessidade de tratamento de quem padece de qualquer outra doença que, a não ser tratada, por certo agravará, podendo mesmo levar a um infeliz desfecho.

10.º - Contudo, tal constatação não implica a necessidade de manutenção das medidas provisórias aqui decretadas,

11.º - Que, em última análise, até poderão não se mostrar benéficos, pois, como alegou a requerida, os seus projectos de vida, que passam por terminar a sua licenciatura em Jornalismo e Comunicação Social da Faculdade ..., seguida de estágio e mestrado podem ser prejudicados pela continuidade deste processo, que considera lesivo da sua imagem, gerador de preconceitos e estigma, sentindo-se sempre dependente do pai.

 12.º - Ademais, alega a requerida que se sente estranha em casa do pai, não fala com a madrasta desde finais de Novembro de 2022 e que tem medo do pai, factos que vê como lesivos para a sua vida pessoal.

 13.º - Assim, entende-se não se encontrarem reunidas as condições para a manutenção das medidas provisórias aplicadas, e em consequência, determinada a sua cessação.

Também contra-alegou a Requerida, apresentando as seguintes conclusões:

a) O presente recurso não pode ser admitido por violação das regras constantes dos artigos 639º e 640º do C.P.C. conforme exposto;

 b) Todos os supostos vícios alegados pelo recorrente, não se verificam;

 c) O recorrente em notória litigância de má fé, confunde processos de jurisdição voluntária com processos de jurisdição contenciosa;

 d) Inexiste qualquer violação quer de caso julgado formal e muito menos material;

 e) A sentença recorrida, pela razão acima exposta, de forma alguma contradiz o despacho de 10 de julho de 2023, porque a noção de trânsito em julgado não se pode aplicar nestes tipo de procesos de jurisdição voluntária;

 f) As medidas cautelares, foram decretadas num outro processo e cautelar; neste, o objeto do presente recurso, as mesmas foram consideradas após toda a prova pericial – exaustiva – como desadequadas e determinada a sua cessação; não houve nem podía existir, conforme alegado pelo recorrente, nem se entende o que pretende com tal arrazoado, qualquer “sobreposição” “O Tribunal recorrido sobrepõe as medidas provisórias que revogou com o mérito da causa quanto ao acompanhamento de maior.” 6ª conclusão do recurso

g) A sentença recorrida deve ser mantida e confirmada, nos precisos termos em que foi proferida.

III – Com base nas contra-alegações do Ministério Público, que faz uma resenha fidedigna da evolução do processo, e com base nos documentos com que o recurso veio instruído, considera-se relevante o seguinte circunstancialismo fáctico e processual:

- No dia 12.01.2022, foi ouvida a beneficiária e realizou-se o exame pericial.

- Relativamente à referida audição, consta da respectiva acta:

   «Após, passou à audição da requerida, tendo a mesma respondido a todas as perguntas que lhe foram formuladas, tendo dito, em síntese, que evoluiu positivamente da doença que padeceu, porque aderiu ao processo médico e terapêutico, tomando a medicação prescrita, encontrando-se bem a nível físico, necessitando ainda de apoio familiar e médico a nível psicológico, estando em processo de adaptação ao seu “novo eu”, já não vivendo para a doença que padeceu, entendendo não se justificar a aplicação de quaisquer medidas de acompanhamento de maior.

Questionada pela Mmª Juiz de, em caso de virem a ser decretadas medidas de acompanhamento, quem entende reunir as condições para ser nomeado seu acompanhante, respondeu que é o seu pai, porque a sua mãe não se encontra psicologicamente em estado de o ser, e o pai está no pleno uso das suas faculdades mentais, tendo bom relacionamento com o mesmo».

- Os Srs. Peritos concluíram após essa audição pela necessidade de fazer uma entrevista à requerida, na Delegação do Centro do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, a fim de prosseguirem o exame pericial.

- O que teve lugar em 24/1/2022, de que resultou o relatório pericial psiquiátrico forense datado de 21/03/2022.

- Neste relatório, os Srs Peritos,  depois de analisada toda a documentação clínica constante nos autos, que lhes foi remetida -  nomeadamente, relatório de alta referente a internamento da beneficiária no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de ..., que terá decorrido de 28 de Maio a 23 de Julho de 2012, por quadro de Anorexia Nervosa; Relatório de Avaliação no Serviço de Urgência do Hospital ..., datado de 9 de Julho de 2021, de onde resultou indicação de transferência para o Serviço de Urgência do CHUC; Relatório Completo de Episódio de Urgência do CHUC, onde a requerida foi admitida no dia 10 de Julho de 2021, por quadro clínico de Anorexia Nervosa;  Informação Clínica, datada de 10 de Janeiro de 2022, assinada pela Psicóloga Assistente do CHUC; cópias de vários e-mails enviados pela progenitora da beneficiária bem como de participações à PSP- referiram:

 Da discussão e parecer psiquiátrico-forense:

 “… No seguimento da douta audição pessoal e direta da requerida e da avaliação clinico psiquiátrica efetuada, numa perspetiva psiquiátrico-forense, e reunidos os elementos indispensáveis à apreciação do presente caso, quer em termos de história pregressa, quer os apurados pelo exame mental propriamente dito, resulta inequívoco que a mesma padece de Anorexia Nervosa, enquadrável no código F50.0 da 10.ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde da Organização Mundial de Saúde (CID-10).

 Esta perturbação do comportamento alimentar caracteriza-se pela restrição do aporte energético, relativamente às necessidades do individuo, conduzindo a um peso significativamente baixo atendendo à idade, sexo e fase de desenvolvimento. Os indivíduos afetados por esta doença têm medo intenso de ganhar peso, com comportamentos persistentes que interferem com o ganho ponderal, e perturbação da própria apreciação do peso e/ou forma corporal, com ausência de reconhecimento da gravidade do seu baixo peso.

Considera-se um peso significativamente baixo quando o peso corporal está abaixo do limite inferior da normalidade, o que, na população adulta, corresponde a um IMC inferior a 18,5Kg/m2.

Os quadros de Anorexia Nervosa são classificados, mediante o padrão de comportamento alimentar manifestado, em: tipo restritivo quando a perda de peso é atingida com dieta, jejum e/ou exercício físico excessivo; tipo purgativo quando o individuo recorre a comportamentos purgativos recorrentes, como o vómito ou o uso inapropriado de laxantes, diuréticos ou enemas; tipo misto quando existem características de ambos.

Quanto à gravidade, pode dividir-se em quatro graus: ligeiro, moderado, grave e extremo… … atualmente a beneficiária apresenta um quadro clínico do tipo misto e atualmente de gravidade ligeira (IMC de 18,3 Kg/m2) … … De acordo com o conhecimento atual, o prognóstico de estes quadros é variável. No entanto, a maioria tende para a evolução favorável, especialmente se identificados e tratados precocemente. São também fatores de bom prognóstico a recuperação ponderal, a melhoria da autoestima, e a presença de insight, como aparentemente se tem vindo a verificar no caso em apreço. Cerca de um quatro dos casos pode evoluir para a cronicidade, sendo considerados fatores de mau prognóstico a presença de hospitalizações prolongadas e/ou múltiplas, a existência de conflitos parentais, e a presença de comportamentos purgativos, como o recurso ao vómito autoinduzido ou abuso de laxantes.

Esta condição clínica, ainda que de evolução crónica, é passível de tratamento, ao qual neste momento a requerida se encontra a aderir, verificando-se melhoria significativa do seu estado clinico e da gravidade do mesmo… …

 Em bom rigor clínico-psiquiátrico e psiquiátrico-forense, este quadro clinico não a impossibilita, atualmente, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

 Pelo exposto, do ponto de vista psiquiátrico forense, não se nos afigura que possa beneficiar de medidas de acompanhamento.

 Finalmente, atendendo à natureza e cronicidade do quadro, e o risco de agravamento futuro, é recomendável que continue a beneficiar de um regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico (na sua tripla vertente, psicofarmacológica, psicoterapêutica e psicossocial), em unidade multidisciplinar direcionada para o tratamento deste tipo de quadros, tendente a promover a adequada recuperação ponderal e o ganho de insight.

 Concluindo,

1. A requerida padece de Anorexia Nervosa (F50.0 da CID-10).

2. Este quadro não a impossibilita (atualmente) de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

 3. Contudo, é recomendável que continue a beneficiar de regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico em unidade multidisciplinar direcionada para o tratamento deste tipo de quadros, tal como já vem sendo o caso».

- Na sequência das informações prestadas pela equipa multidisciplinar subscritora do relatório junto a 19 de Abril de 2022, nomeadamente no tocante à recusa de colaboração da beneficiária com o plano de tratamento que lhe foi proposto, solicitaram-se esclarecimentos aos senhores peritos subscritores da perícia.

-Em 1 de Junho de 2022, os senhores peritos vieram esclarecer as dúvidas colocadas, juntando novo relatório, que terminaram com a seguinte conclusão:

 “… Apesar do aparente retrocesso da requerida na sua evolução clínica (que, aliás, é frequente nestes casos) com ausência de colaboração no tratamento que é preconizado, incluindo na intervenção psicoterapêutica, colaboração essa que não é possível estabelecer coercivamente, continuamos a afirmar que, em bom rigor clínico e psiquiátrico forense, não existem razões de natureza psiquiátrica que a impeçam de exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres, não se nos afigurando que estejam reunidos pressupostos clínicos para que possa beneficiar do instituto do Maior Acompanhado.”

- O requerente, pai da requerida, veio aos autos manifestar a sua discordância com o relatório pericial, considerando que, na sua perspectiva, o relatório evidencia “uma contradição insanável nos seus termos ao afastar a necessidade de acompanhamento da requerida, com base em pressupostos que já não se verificam (…) aconselhando, apesar disso, que a requerida beneficie de um regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico, em unidade multidisciplinar”, por isso solicitando  outros/vários esclarecimentos aos senhores peritos.

-E mais uma vez, os senhores peritos, a solicitação do Tribunal, elaboraram novo relatório, datado este de 28 de Setembro de 2022.

Desse relatório consta: «(…) Apesar do aparente retrocesso da requerida na sua evolução clinica (como é frequente nestes casos) com ausência de colaboração no tratamento que é preconizado, incluindo na intervenção psicoterapêutica, reforçamos uma vez mais (sublinhado nosso) que a colaboração no tratamento desta patologia, ainda que possa ser obtido transitoriamente por meios coercivos, não é sustentável coercivamente. Aliás, o conhecimento científico atual nas patologias de comportamento alimentar, e concretamente na Anorexia Nervosa, depurado em guidelines internacionais que moldam a leges artis neste domínio da Psiquiatria, sustenta inequivocamente que a abordagem terapêutica é instituída em colaboração com a pessoa doente, e não em oposição a esta.

Adicionalmente, continuamos a afirmar que, em bom rigor clínico e psiquiátrico forense, não existem razões de natureza psiquiátrica que interfiram com a capacidade cognitiva da requerida (cujo funcionamento clinicamente aferido é normativo, permitindolhe atuar finalizadamente e com propósito) e a impeçam de exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres, continuando a não se nos afigurar que estejam reunidos pressupostos clínicos para que possa beneficiar do instituto do Maior Acompanhado (…)».

-  Os senhores peritos ainda esclareceram directamente algumas questões apresentadas pelo requerente, nomeadamente:

« (…) Atendendo à gravidade do quadro de Anorexia Nervosa evidenciado pela requerida, o acompanhamento por equipa multidisciplinar é condição necessária para qualquer recuperação que se venha a verificar futuramente, não sendo este, contudo, capaz de eliminar por completo o risco de agravamento futuro da patologia. O mero diagnóstico de uma patologia psiquiátrica como a do caso em apreço, ainda que com mau prognóstico, não releva para a necessidade de acompanhante, atendendo a que no caso em apreço não existem razões de natureza psiquiátrica que interfiram com a capacidade cognitiva da requerida (cujo funcionamento clinicamente aferido é normativo, permitindo-lhe atuar finalizadamente e com propósito) e a impeçam de exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres…a requerida, de forma inequívoca, à data da nossa avaliação mantém conservadas as funções cognitivas que lhe permitem tomar decisões sobre os variados aspetos da sua vida, incluindo a capacidade de aceitar (e não de se submeter) ou recusar acompanhamento médico psiquiátrico (…).»

- Uma vez mais o Requerente, «… por discordar do resultado da perícia médico-legal que, (na sua óptica) desconsidera a realidade e a vivência da requerida na última década, a sua relação com a mãe e a influência desta e por tal perícia não responder à inquietação do requerente que é o cerne, o principio e o fim do presente processo de acompanhamento de maior, vem requerer a realização de 2.º perícia médico-legal devendo o Senhor Perito responder se pode assegurar ao Tribunal que, sem acompanhamento e supervisão de terceiro, a requerida consegue impor a si própria a disciplina necessária à pratica de todas as vertentes referidas psicofarmacológica, psicoterapêutica, psicossocial e nutricional e sujeitar-se à supervisão da equipa multidisciplinar».

- O tribunal deferiu a pretensão do requerido ordenando nova perícia.

-A nova perita, apresentou relatório de perícia médico legal – perícia psiquiátrica datada de 4 de Agosto de 2023- onde refere, em conclusão:

«(…) Em suma, no presente, não nos é possível invocar razões de natureza estritamente psiquiátrica que impossibilitem o exercício autónomo e pleno, quer no âmbito pessoal quer patrimonial, dos seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, bem como a sua capacidade de tomada de decisões ou de exprimir/formar a sua vontade de forma congruente.

Face ao exposto, e considerando os pressupostos médico-legais previstos no artigo 138.º do Código Civil para beneficiar do regime do maior acompanhado, do ponto de vista estritamente pericial, somos de opinião que a examinanda não cumpre os mesmos para beneficiar das medidas de acompanhamento aí elencadas. (Sublinhado nosso) Por último, somos de opinião que a examinanda deverá manter o acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico especializado que tem vindo a beneficiar, com vista à manutenção da abstinência e para evitar novas recaídas».

- O requerente reclamou desta nova perícia, e mais uma vez se pediram  à senhora perita, esclarecimentos adicionais.

-A Requerida constituiu mandatário, juntando procuração forense.

- Entretanto, outros requerimentos foram juntos aos autos por parte do Requerente, dando conta das faltas da sua filha às consultas de psiquiatria com o Dr. DD, na Clínica ..., em ..., requerendo que o tribunal notifique a Requerida, com carácter urgente, para comparecer na consulta de psiquiatria na Clínica ....

-Aquando do inicio dos presentes autos, em 27/08/2021, a Requerida  encontrava-se internada no CHUC, internamento que ocorreu em 10 de Julho de 2021 e se prolongou ate 3/3/2022, na Unidade de Endocrinologia, sob a supervisão do serviço de psiquiatria, registando então um IMC de 10.8 e não reconhecia a gravidade do seu quadro clinico.

-Já tinha sido internada em 2012 igualmente no CHUC com Aneroxia Nervosa (tinha 15 anos).

-Aquando do internamento de 2021 vivia com o pai e a madrasta e depois de ter alta continuou a viver com eles, referenciando ter os mesmos uma relação conflituosa.

- À data , encontrava-se a frequentar, desde ../../2022 , o 1º ano do Curso de Jornalismo e Comunicação da Faculdade ..., tendo actualmente já concluído o 2º ano.

-Durante 2022 começou a tirar a carta de condução, tendo passado no exame de código e tendo reprovado 2 vezes no de condução, mas, entretanto, já o conseguiu realizar.

- A Mãe não aceitou a intervenção.

- Foi a mesma objecto de internamento compulsivo em Outubro de 2023.

- A Requerida tem vindo a ser acompanhada em consulta de Psiquiatria no Centro Medico ... desde ../../2022.

- Já não vive com o Requerente desde Julho de 2023.

IV – Do confronto das conclusões das alegações com a decisão recorrida, resultam para apreciação as seguintes questões, que constituem o objecto do presente recurso:

- se a decisão recorrida violou o caso julgado decorrente do despacho de 10/7/2013;

- se, ao contrário do decidido, se devem manter as medidas provisórias decretadas;

- se não havia motivo para se ordenar ao apelante a entrega dos bens pessoais da Requerida.

Antes da apreciação das referidas questões, impõe-se apreciar se deverão ser juntos os documentos cuja junção às respectivas alegações o pretendem, por um lado, o apelante, por outro, a apelada.

Aquele, requer que este Tribunal admita, e subsequentemente valore para apreciação do recurso,  um documento datado de 3/12/2023,  que corresponde a um Blog da Requerida  - segundo refere, publicitado nas redes sociais da mãe da mesma – onde, nas palavras do apelante, «a mesma publicita factos da sua intimidade e pormenores do seu internamento», com  o mesmo pretendendo contrariar o referido pela Requerida de  este  processo lesa a  sua imagem e gera preconceitos e estigmas,  quando, em função do dito Blog, é a  própria, afinal, a publicitar “essa situação”.

Por sua vez, a Requerida pretende juntar ao presente recurso novo Relatório Psicológico elaborado em 19/12/2023 que tem por objecto a «enorme ansiedade que a perseguição do pai lhe tem gerado», e um outro Relatório da sua autoria,  «em que relata toda a sua vivência com aquele», um e outro, datados de 19/10/2023.

Decorre dos artigos 651º e 425.º do CPC que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: em função da superveniência do documento, ou da necessidade do mesmo revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância, sendo que no tocante à superveniência, há que distinguir a objectiva da subjectiva, aquela decorrendo da produção posterior do documento, esta, do conhecimento ou acesso posterior ao mesmo.

Na situação dos autos, quer no que respeita ao apelante, quer no que respeita à  apelada, está em causa a superveniência objectiva – os três documentos em apreço foram  produzidos posteriormente à decisão recorrida.  

Relativamente à superveniência objectiva  tem sido evidenciado que não basta que  o documento tenha sido produzido depois do encerramento da discussão em 1ª instância, ou, não tendo esta ocorrido, como é a caso, da decisão recorrida, devendo exigir-se  ao apresentante a prova de que a sua produção só foi possível depois daqueles momentos [1].

           No caso dos documentos juntos pela Requerida, quer um quer outro, podiam ter sido produzidos antes da decisão recorrida – a ansiedade daquela é, obviamente, anterior à decisão, as reflexões da mesma a respeito da sua vivência familiar, no que aos autos importa, seriam passíveis de ser produzidas antes daquela decisão. Podendo aqui dizer-se que  o “acesso” pela Requerida  a estes  documentos estava  ao seu alcance, pelo que a instrução do recurso com a sua apresentação se configurava como um ónus, devendo sofrer a consequência negativa da sua não observância atempada. A jurisprudência tem acentuado que a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte não pode justificar a junção do documento com as alegações de recurso,  «sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador».           Já no caso do Blog da Requerida, tendo sido produzido e, consequentemente,  publicitado em momento posterior à decisão, não o tendo sido com o objectivo de ser junto ao recurso – o que tudo leva a crer sucedeu com os documentos que a Requerida pretendeu juntar – pois que se trata, como dele resulta, de trabalho escolar por ela apresentado, contendo matéria que oferece relevância  para o processo, admite-se a sua junção.

           I – Do ponto de vista do Apelante o despacho proferido em 10 de Julho de 2023, reproduzido no relatório do presente acórdão, tendo sido notificado às partes, fez caso julgado processual, não podendo ser posto em causa pela decisão recorrida, invocando, para assim concluir, os arts 620º/1 e 625º CPC.

Relembre-se aqui o despacho em causa:

 «Adverte-se que nos presentes autos foram ao abrigo do disposto nos arts. 891º, nº 2 do CPC, e 139º, nº 2 do CC., decretadas, ademais, as seguintes medidas provisórias e urgentes: - Acompanhamento provisório da requerida BB, pelo requerente AA, seu pai, ficando este incumbido de, provisoriamente e na qualidade de acompanhante provisório: - Promover a educação e formação intelectual, da requerida, a sua socialização, de modo a alcançar o equilíbrio e bem-estar consigo própria e com a sociedade e limitando o seu direito pessoal de estabelecer domicílio, escolher residência e relacionar-se por qualquer meio com pessoas que possam pôr em risco a sua saúde e equilíbrio psicológico/mental; - Tomar todas as medidas que o estado de saúde, o bem-estar e equilíbrio da requerida exijam. Medidas essas que se mantém vigentes, e que deverão ser cumpridas e acatadas nos precisos termos decididos.»

É difícil sustentar perante um despacho que se inicia com «adverte-se» que esteja em causa um despacho com carácter autónomo.

Desconhecendo-se o contexto processual em que se insere – a instrução do presente recurso, que subiu em separado, não o abrangeu -  dir-se-á que foi mero propósito do Exmo Juiz lembrar a alguma entidade o que tinha sido decidido em 10/9/2021, essa decisão, sim, tendo feito caso julgado formal e material.

Duvida-se, pois, inclusivamente, que o despacho a que a apelante se reporta, tenha recaído, sequer sobre a relação processual  e, por assim ser,  lhe caiba caso julgado formal [2]

De todo o modo, a questão irreleva, desde o momento em que por expressa intenção do legislador se aplica ao processo de acompanhamento de maior, «com as necessárias adaptações, o disposto no processo de jurisdição voluntária, no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento a à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes», como o dispõe o art 891º/1 CPC.

 O que nos remete, no que a estas respeita – circunstâncias supervenientes – para o disposto em sede dos processos de jurisdição voluntária  no  art 988º que, a propósito do «valor das resoluções», dispõe que «nos processos de jurisdição voluntária as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão  como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso» .

Parece, efectivamente, o apelante esquecer, pelo menos em certos momentos, que se está perante um processo essencialmente de jurisdição voluntária, com o que um processo desta natureza implica – a inexistência de um litigio.  Segundo Castro Mendes, o que caracteriza os processos de jurisdição voluntária ou graciosa  é o seu  objecto – uma situação anómala de interesses diferente de um litigio [3],  ao contrário do que sucede na  jurisdição contenciosa ou litigiosa em que se pressupõe um litigio.   

Por outro lado, é inegável que entre a decisão de 10/9/2021 que determinou a aplicação das medidas provisórias, e a decisão de que agora se recorre, que as considerou extintas, ocorreram circunstâncias supervenientes.

Mesmo entre o despacho acima referido que a apelante, como se viu, inadequadamente, autonomizou, e a decisão de que se recorre, verificaram-se circunstâncias supervenientes, necessariamente que relevantes, ainda que de índole processual – os resultados da 2ª perícia, os esclarecimentos ao relatório desta segunda perícia e, acima de tudo, a constituição de mandatário pela Requerida e o seu requerimento da cessação das medidas provisórias acompanhado que foi pelo do Ministério Publico.

Acresce, ao que já se ponderou, que as medidas provisórias, porque o são, estão por vocação sujeitas a serem  alteradas, por isso não podendo surpreender que sejam alteradas ou extintas,  mais ainda quando se estabelece no art 155º do CC, relativamente às medidas de acompanhamento, estarem as mesmas sujeitas a revisão periódica, que, «no mínimo», se deverá fazer de cinco em cinco anos se outra peridiocidade não resultar da sentença, critério este, de necessária revisibilidade, que não poderá deixar de se aplicar às medidas provisórias que, por razões várias, como sucedeu nos autos, se vão arrastando como tal.

Improcede, pois, a 1ª questão.

II – Mais séria nos parece ser a segunda, que acima se condensou na de saber se se devem manter as medidas provisórias de acompanhamento.

Não sendo, salvo o devido respeito, muito claras as razões invocadas pelo  apelante para assim concluir, crê-se que as suas  considerações se podem, apesar de tudo, reconduzir a razões de ordem processual e a razões de fundo para aquela conclusão- a da manutenção por ora das medidas provisórias.

Pretendendo que o Tribunal recorrido «sobrepõe as medidas provisórias que revogou com o mérito da causa quanto ao acompanhamento de maior» – conclusão 6ª –, e fazendo menção aos factos extintivos constantes do art 373º CPC (referentes à caducidade da providência cautelar), parece o apelante pretender que a decisão recorrida foi prematura e que a extinção das medidas provisórias só poderia ocorrer, em termos processuais, em função de uma sentença de mérito que não chegou a existir.  Entende que, ao assim proceder, para além de ter violado o principio da prova, cometeu erro de julgamento, pois, do seu ponto de vista, resulta do documento que juntou com as alegações –  e cuja junção se admitiu nos termos acima referidos – que a Requerida não tem o suficiente o insight, quer dizer, não tem a necessária noção da existência da doença e o reconhecimento da necessidade de tratamento, para se suster sem acompanhamento.

Vejamos.

Como é sabido, em 2018, com a introdução no nosso regime da figura do acompanhamento de maior, o Estado Português visou cumprir a vinculação assumida em 2009 de adequar legislativamente a regulação da capacidade dos adultos às exigências da Convenção das Nações Unidas dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), a que aderira sem reservas.

Assim, com a L 49/2018 de 14/8 procedeu à revogação dos institutos da interdição e inabilitação e introduziu em substituição, o do maior acompanhado.

Independentemente da maior ou menor absorção do espirito daquela Convenção  que se entenda que a nossa lei traduz, o certo é que a CDPD «deve ser convocada como um importante elemento de interpretação do novo regime plasmado inovatoriamente no CC e o art 12º da CDPD assume particular relevância neste contexto, uma vez que encerra nas suas disposições o novo paradigma da capacidade universal e do modelo de apoio».[4]

Este novo paradigma, desde logo por referência aos arts 5º e 12º da Convenção, assenta nos princípios da não discriminação, autodeterminação, subsidiariedade e proporcionalidade, pretendendo-se  com a nova legislação dar primazia aos modelos de apoio em detrimento dos modelos de substituição (tutela plena, interdição judicial, tutela parcial) visando assegurar os direitos, as vontades e preferências da pessoa discapacitada, em vez dos melhores interesses desta, passando-se assim do critério do “melhor interesse” (best interests), para  o da “vontade e preferência” e, quando tal não seja possível, pela sua “melhor interpretação possível”»[5].

Dispõe o art 138º CC que «o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código».

Costumam distinguir-se as causas subjectivas das objectivas, do acompanhamento ou, noutra perspectiva [6], os requisitos quanto à causa e os quanto à consequência.

As causas objectivas são as razões de saúde, deficiência, ou  comportamento, as subjectivas, a impossibilidade de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os  direitos  ou de, nos mesmos termos, cumprir os  deveres.

A respeito da saúde enquanto causa objectiva do acompanhamento – sendo essa que aqui nos interessa - refere  Joaquim Correia Gomes [7]:

«Assim, começamos por constatar que o legislador foi desajeitado na enunciação desta causa objetiva, porquanto certamente queria referir-se à privação ou escassez de saúde, ou seja, à doença. E não propriamente a toda a doença, mas àquela que influencia a capacidade jurídica de uma pessoa, o exercício do seus direitos e cumprimentos dos seus deveres. E isso passa pela sua livre vontade, enquanto agente autónomo de governar e autodeterminar a sua vida, de acordo com os seus desejos e desígnios. Desde modo e fazendo uma interpretação consentânea com o âmbito e o programa da norma, os quais estão inseridos na regulação da capacidade jurídica, sendo este o horizonte do contexto jurídico que pretende ser disciplinado, a alusão a saúde dever ser referenciada à ausência de saúde, mais precisamente da saúde mental, nas suas variantes psíquica, cognitiva, neurológica e emocional».

 Referindo a  respeito da impossibilidade de exercer direitos ou cumprir deveres, que, «o que está em causa é a aptidão para uma pessoa tomar decisões consistentes de acordo com a sua livre vontade,  tendo plena consciência das suas responsabilidades».

No Ac R P 26/9/2019, em que é Relator, refere ainda a propósito dos apontados requisitos: «Uma medida de acompanhamento de uma pessoa maior só se justifica quando esta revelar uma inaptidão básica para autogovernar a autodeterminar a sua vida, tanto pessoal, como patrimonial, existindo factores que, de um modo global ou particular, reduzem ou eliminam a voluntariedade e consciência dos seus actos, em função dos seus juízos de capacidade, os quais devem ser aferidos em concreto e não em abstracto» .

Nas palavras de Conde /Bruno Trancas/ Fernando Vieira [8] «não basta, contudo, que o putativo beneficiário possa ser enquadrado numa destas “razões”. Terá que ser demonstrado que é em consequência daquelas que os requeridos deixam de ser capazes para exercer (plena, pessoal e conscientemente) os seus direitos e cumprir os seus deveres. Não basta, também, que se evidencie uma “razão” e que por essa razão haja impacto no exercício dos direitos ou no cumprimento dos deveres. O legislador introduziu outra condicionante: o putativo beneficiário tem de estar “impossibilitado” de o fazer».

Feitas estas referências genéricas a respeito do figurino legal do maior acompanhado, revertamos à questão colocada pelo apelante – a de saber se é possível fazer cessar as medidas provisórias estabelecidas no inicio do processo sem se ter alcançado uma sentença de mérito.

Antes de mais, tentando definir o conteúdo de medidas provisórias, sabendo-se que o Tribunal pode decretar, oficiosamente, ou a requerimento, medidas provisórias e urgentes, como o designa o nº 2 do art 139º CC, e medidas cautelares, como o refere o art 891º2 CPC.

 Teixeira de Sousa distingue umas e outras, referindo que  «uma medida cautelar [nos termos do artigo 139.º do Código Civil], é uma medida que antecipa uma medida de acompanhamento; por exemplo: o tribunal pode sujeitar, desde já́, a celebração de certa categoria de negócios à autorização de uma outra pessoa (que pode vir a ser o futuro acompanhante); [u]ma medida provisória e urgente [nos termos do artigo 891.º, n.º 2, do Código de Processo Civil], é uma medida que o tribunal impõe para proteção da pessoa ou do património do beneficiário; por exemplo, o tribunal pode impor o congelamento das contas bancárias do beneficiário ou que alguém, em representação deste beneficiário, trate da obtenção, junto dos serviços da segurança social, de uma pensão ou procure regularizar a situação sucessória do beneficiário junto de outros herdeiros»[9]

Geraldo Rocha Ribeiro[10] parece não acompanhar a utilidade da distinção, acentuando que, «contudo, tais medidas são, por natureza, processuais e sempre circunscritas ao processo de constituição, modificação ou revisão da medida de acompanhamento. Neste sentido, são sempre dependentes do pedido principal que circunscreve o objeto do acompanhamento, pelo que há que aferir da subsidiariedade e proporcionalidade da medida. Daí, salvo a diferente inserção sistemática, não há, no âmago das medidas, uma diferente substancialidade, ao não se admitir medidas de acompanhamento temporárias que se esgotem por si ( …) não é possível decretar estas medidas fora do quadro da medida institucional de acompanhamento».

Acolhe este autor a ideia a que o apelante faz apelo – a de que entre as medidas provisórias/urgentes/cautelares e o processo de acompanhamento, por um lado, e entre as providências cautelares e o processo principal, por outro, intercede uma relação semelhante, ao referir:

 «As medidas provisórias, que assumem uma matriz administrativa, atenta a sua natureza de jurisdição voluntária … não deixarão de ter, em tudo o que não se encontre especialmente previsto e não ponha em causa a finalidade própria da providência, o regime dos procedimentos cautelares. Desde logo, terão uma relação de dependência face à ação de acompanhamento, o que significa que as medidas terão de pressupor, na medida da prova sumária e indiciária produzida, a verificação dos pressupostos do artigo 138.º do Código Civil».

Acrescentando:

«Um primeiro momento de valoração será comprovar, com uma probabilidade séria, a existência de uma situação que funde a constituição da medida de acompanhamento, ou seja, que se verifica o fumus boni iuris, por referência, aqui, aos pressupostos positivos e negativos para a constituição da medida de acompanhamento (artigos 138.º, 140.º e 141.º do Código Civil). Firmado este juízo, passar-se-á ao segundo momento: a verificação da existência de um fundado receio de que a situação de incapacidade em que se encontra a pessoa ponha em causa, de forma grave e irreparável, os seus interesses pessoais e/ou patrimoniais, logo, da existência de um perigo. Só a existência de um iminente perigo é apta a fundar uma atuação preventiva na esfera jurídica do incapaz, por outras palavras, só aquele é que justifica um juízo de necessidade da intervenção».

E evidencia constituir «outra nota relevante», «o facto de as medidas não serem uma versão transitória da medida de acompanhamento, apenas se justificando se forem proporcionais face a um particular tipo de perigo — o perigo que o decurso do tempo importa ao nível do efeito útil da ação principal».

Esta patenteada ligação das medidas provisórias/urgentes/cautelares  ao processo de maior acompanhado em que se hão-de necessariamente inserir, mantendo com ele uma relação em tudo semelhante à relação que as providências cautelares decretadas assumem em face do processo principal e só sendo implementadas em função da necessidade de se fazer face ao perigo que a demora normal deste processo implique,  há-de acarretar que à semelhança do que sucede com as providências cautelares relativamente ao processo de que são dependência, se possam extinguir à margem da ultimação do processo de acompanhamento.

Resultado este que não significa, como nos parece óbvio, que haja de se extrapolar para a cessação das medidas provisórias/urgentes a disciplina que advém do disposto no art 373º para a caducidade das providências, como o parecem inculcar as considerações do apelante. Pela simples razão de ali se pressuporem dois processos autónomos que há que interligar em face da dependência da providência cautelar em face da acção pela qual se faz valer o direito ou o interesse acautelado, a qual, como é sabido, pode ser interposta depois de decidida a providência cautelar ou o pode ter sido antes, e aqui, aquelas medidas se inserirem no próprio processo de acompanhamento.

Apenas o fundamento da al e) daquele preceito –a extinção do direito acautelado – tem virtualidade para ser utilizado nesta matéria, sendo indiscutível a conclusão de que, se a situação que despoletou o processo de acompanhamento a maior vier a ser tida em função da prova produzida como não justificando aquele processo, o mesmo deverá ser julgado extinto, e com ele as medidas provisorias/urgentes despoletadas no seu decurso.

Ora, é a situação da aqui Requerida.

De todo o modo, porque o processo de acompanhamento ainda não foi julgado extinto – entendeu a Exma Juíza a quo aguardar a junção do pedido de esclarecimentos solicitados ao INML - está apenas em causa a cessação das medidas provisórias decretadas,  por se ter entendido «não estarem actualmente reunidas as condições para a sua manutenção», sendo este o juízo que aqui se sindica.

Não pode, à luz do principio da proporcionalidade, que deve iluminar segundo os arts 5º e 12º da Convenção a utilização deste novo instituto, manterem-se medidas, ainda que provisórias, quando o material probatório reunido nos autos de acompanhamento de maior as não justifique. Não pode  esquecer-se que o controlo da actualidade das medidas de acompanhamento provisórias se impõe por se estar na presença  de um «instrumento potencialmente restritivo de direitos fundamentais».[11]

Refere Paulo Távora Vitor a este propósito [12]: «Para além das garantias quanto à determinação da medida, a CDPD destaca, ainda, a dimensão temporal destas, que também é iluminada pelo princípio da proporcionalidade, na medida em que se impõe um critério minimalista na determinação da duração (“período de tempo mais curto possível”), reforçado por um controlo periódico, o que permite conservar a sua atualidade e adequação, a cargo de um “órgão judicial competente, independente e imparcial».

Do que se veio de ponderar, há que concluir que não assiste razão ao apelante quando pretende que a circunstância do processo de acompanhamento não ter ainda chegado ao seu final impediria que se fizessem extinguir as medidas provisórias/urgentes que foram tomadas na decorrência do internamento da Requerida.

Ponto é, como acima já se afirmou, que o material probatório aportado aos autos até agora, permita concluir, com a necessária segurança, que a aqui Requerida não esteve, nunca, em situação -  ou, de todo o modo, já a ultrapassou -  de merecer os juízos que subjazem ao já referido art 138º CC – o de estar impossibilitada, por razões de saúde, de exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

Estão em causa juízos necessariamente periciais.

Ora, os autos dispõem de quatro juízos deste tipo e absolutamente  concordantes, abrangendo um espaço temporal significativo – de Março de 2022 a Agosto de 2023.

O do primeiro exame realizado, que justificou o relatório pericial psiquiátrico forense  de 21/03/2022, de que consta que:

1. A requerida padece de Anorexia Nervosa (F50.0 da CID-10).

2. Este quadro não a impossibilita (atualmente) de exercer plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

3. Contudo, é recomendável que continue a beneficiar de regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico em unidade multidisciplinar direcionada para o tratamento deste tipo de quadros, tal como já vem sendo o caso.

Mais tarde, em 1/6/2022, no relatório de esclarecimentos, justificados em face da advinda recusa da colaboração da Requerida com o plano de tratamento que lhe fora proposto, em que se concluiu, com enorme clareza:

 “… Apesar do aparente retrocesso da requerida na sua evolução clínica (que, aliás, é frequente nestes casos) com ausência de colaboração no tratamento que é preconizado, incluindo na intervenção psicoterapêutica, colaboração essa que não é possível estabelecer coercivamente, continuamos a afirmar que, em bom rigor clínico e psiquiátrico forense, não existem razões de natureza psiquiátrica que a impeçam de exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres, não se nos afigurando que estejam reunidos pressupostos clínicos para que possa beneficiar do instituto do Maior Acompanhado. ”

De novo, e pedidos esclarecimentos pelo Requerente, novo relatório, este de 28 de Setembro de 2022, no qual se refere:

«Continuamos a afirmar que, em bom rigor clínico e psiquiátrico forense, não existem razões de natureza psiquiátrica que interfiram com a capacidade cognitiva da requerida (cujo funcionamento clinicamente aferido é normativo, permitindo-lhe atuar finalizadamente e com propósito) e a impeçam de exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres, continuando a não se nos afigurar que estejam reunidos pressupostos clínicos para que possa beneficiar do instituto do Maior Acompanhado…»

Por fim, teve lugar uma segunda perícia, em 4 de Agosto de 2023, em cujo relatório se re(afirma):

“… Em suma, no presente, não nos é possível invocar razões de natureza estritamente psiquiátrica que impossibilitem o exercício autónomo e pleno, quer no âmbito pessoal quer patrimonial, dos seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, bem como a sua capacidade de tomada de decisões ou de exprimir/formar a sua vontade de forma congruente.

Face ao exposto, e considerando os pressupostos médico-legais previstos no artigo 138.º do Código Civil para beneficiar do regime do maior acompanhado, do ponto de vista estritamente pericial, somos de opinião que a examinanda não cumpre os mesmos para beneficiar das medidas de acompanhamento aí elencadas.

 Por último, somos de opinião que a examinanda deverá manter o acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico especializado que tem vindo a beneficiar, com vista à manutenção da abstinência e para evitar novas recaídas”.

Não se vê como se possa insistir na necessidade de processo de acompanhamento a maior como, salvo o devido respeito, o vem fazendo, obstinadamente, o Requerente.

Conhece-se, e reconhece-se na Requerida, a fragilidade e a vulnerabilidade que a anorexia nervosa implica para quem dela padeça, constituindo as flutuações do insigt delas reflexo, e os peritos não o escamoteiam nos relatórios, como resulta particularmente claro, talvez,  do primeiro dos mesmos : «Os indivíduos afetados por esta doença têm medo intenso de ganhar peso, com comportamentos persistentes que interferem com o ganho ponderal, e perturbação da própria apreciação do peso e/ou forma corporal, com ausência de reconhecimento da gravidade do seu baixo peso».

Mas a anorexia nervosa não afecta as  capacidades intelectuais ou, no essencial, as volitivas – quem dela sofre compreende o alcance dos atos que pratica e é capaz de determinar o seu comportamento de acordo com esse entendimento.

Como é referido no Ac R P atrás citado – de 26/9/2019 - «o decretamento de qualquer medida de acompanhamento deve ter como referência a existência de um padrão constitucional de capacidade civil, preservando-se a dignidade da pessoa humana, não só no sentido desta não ser reduzida a um meio, sendo antes um fim em si mesmo, mas também de preservarem-se e alavancarem-se as suas capacidades humanas (artigo 1.º Constituição). Mas também assegurando-se o princípio da igualdade, proibindo-se qualquer prática discriminatória no âmbito da capacidade civil (artigos 13.º, n.º 1 e 2; 26.º, n.º 1 Constituição), mormente em relação às pessoas em situação de vulnerabilidade (artigos 71.º, n.º 1 e 72.º, n.º 1 Constituição), designadamente em razão da deficiência ou da discapacidade, bem como de qualquer patologia susceptível de originar um risco agravado do seu estado de saúde (artigo 1.º, n.º 1 da Lei 46/2006) – a existência de uma discapacidade mental ou de uma doença neurológica só por si não é fundamento de acompanhamento legal.

 Mas o tribunal também deve ter presente o actual paradigma dos direitos humanos da personalidade e capacidade jurídica, mormente o seu reconhecimento em qualquer lugar e em igualdade com as demais pessoas, concedendo-se ainda primazia às medidas de apoio em detrimento das medidas de substituição (12.º CDPD).
Tal implica que o decretamento de uma medida de acompanhamento decorra de uma impossibilidade suficientemente forte e não meramente indiciária de uma pessoa maior encontrar-se de modo pleno, pessoal e consciente impedida de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres no âmbito da sua capacidade jurídica e relativamente aos seus interesses pessoais (130.º; 138.º Código Civil).

Para o efeito, o tribunal deve partir da presunção de que toda a pessoa adulta está habilitada a governar a sua pessoa e os seus bens, tendo as medidas de acompanhamento um carácter excepcional, de acordo com o princípio da intervenção mínima no âmbito da restrição dos direitos fundamentais (18.º, n.º 2 Constituição). Deste modo, uma medida de acompanhamento de uma pessoa maior só se justifica quando esta revelar uma inaptidão básica para autogovernar e autodeterminar a sua vida, tanto pessoal, como patrimonial, existindo factores que, de um modo global ou particular, reduzem ou eliminam a voluntariedade e consciência dos seus actos, em função dos seus juízos de capacidade, os quais devem ser aferidos em concreto e não em abstracto. Assim, sempre que uma pessoa tenha a capacidade mental mínima para tomar decisões racionais e desempenhar tarefas como um agente racional, não se justifica qualquer medida limitadora da sua capacidade jurídica, podendo até serem implementadas outras medidas de apoio, mas fora do âmbito do acompanhamento legal, como a assistência pessoal, os cuidados informais ou o acolhimento familiar.»

Num dos acima referidos relatórios médicos juntos aos autos, diz-se : «O mero diagnóstico de uma patologia psiquiátrica como a do caso em apreço, ainda que com mau prognóstico, não releva para a necessidade de acompanhante, atendendo a que no caso em apreço não existem razões de natureza psiquiátrica que interfiram com a capacidade cognitiva da requerida (cujo funcionamento clinicamente aferido é normativo, permitindo-lhe atuar finalizadamente e com propósito) e a impeçam de exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres…a requerida, de forma inequívoca, à data da nossa avaliação mantém conservadas as funções cognitivas que lhe permitem tomar decisões sobre os variados aspetos da sua vida, incluindo a capacidade de aceitar (e não de se submeter) ou recusar acompanhamento médico psiquiátrico (…).»

Há que referir ainda que os relatórios médicos a que atrás se fez referência não apenas excluem a Requerida das pressupostos cumulativos a que se reporta o art 138º CC para beneficiar de acompanhamento, como o não recomendam : «…  reforçamos uma vez mais que a colaboração no tratamento desta patologia, ainda que possa ser obtido transitoriamente por meios coercivos, não é sustentável coercivamente. Aliás, o conhecimento científico atual nas patologias de comportamento alimentar, e concretamente na Anorexia Nervosa, depurado em guidelines internacionais que moldam a leges artis neste domínio da Psiquiatria, sustenta inequivocamente que a abordagem terapêutica é instituída em colaboração com a pessoa doente, e não em oposição a esta.»

Na verdade, desde o momento em que se conclua que a Requerida está habilitada a governar a sua pessoa, tem que se lhe permitir que se oponha ao acompanhamento  e que assuma os riscos decorrentes da sua condição.

O que não significa que não se esteja atento ao que em todos os relatórios é  enfatizado: «É recomendável que continue a beneficiar de regular e adequado acompanhamento médico-psiquiátrico em unidade multidisciplinar direcionada para o tratamento deste tipo de quadros, tal como já vem sendo o caso.» . «Por último, somos de opinião que a examinanda deverá manter o acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico especializado que tem vindo a beneficiar, com vista à manutenção da abstinência e para evitar novas recaídas».

Do art 140º CC – cuja epigrafe é, algo distorcidamente, “Objectivo e supletividade” - decorre, e claramente  do seu nº 2, que no regime do maior acompanhado  vigora o princípio da subsidiariedade. E esta significa, no mínimo, que só se possa recorrer ao regime do maior acompanhado quando se deva concluir  na situação concreta   que  as limitações de que padece o maior não podem ser  colmatadas através dos deveres de cooperação e assistência aplicáveis ao caso.

De que emergem, na situação dos autos, e tal como o concluiu a decisão recorrida, o dever de auxilio e assistência que impende sobre os pais relativamente aos filhos – cfr art 1874º CC.

É no âmbito destes deveres que o aqui Requerente deve zelar, e sempre em colaboração com a Requerida, que a mesma não abandone o acompanhamento médico-psiquiátrico e psicoterapêutico que a situação dela exige.

           Quer crer-se, que, pese embora a posição do mesmo neste autos de recurso evidencie uma atitude quase de litigio com a filha, a mesma se deva ao cansaço decorrente da preocupação com que vive há anos relativamente à mesma, ao que parece, não passível de ser partilhada com a mãe desta, e que a Requerida o saiba reconhecer, certo como é, que em diferentes momentos deste processo soube enaltecer o apoio do pai pela sua  colaboração e supervisão, bem sabendo que dela necessita.

            Cabe, por fim, fazer referência à 3ª questão acima evidenciada como objecto do recurso, para, desde logo, a ter como falsa questão. Como é evidente, cabe à Requerida recolher os seus bens pessoais na casa que habitou com o pai e a madrasta, não tendo, aliás, havido nenhuma condenação deste a entregar tais bens à Requerida.

            V - Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelo apelante.

                                               Coimbra, 5 de Março de 2024

 (Maria Teresa Albuquerque)                                                                                                (Henrique Antunes)                                                                                                              (Falcão de Magalhães)

(…)

            [1] - Costumando dizer-se que «se se junta uma certidão emitida depois do encerramento da discussão, deve reclamar-se do apresentante a prova de que pediu a sua emissão»

[2] - Cfr Manuel de Andrade, «Noções Elementares de Processo Civil»1979, p 304/305
           
            [3] - «Lições de Direito Processual Civil», AAFDL, 1978-79. I vol, p 89
                [4] -Paula Távora Victor, «O Maior Acompanhado à Luz do Art 12º da CDPD», Revista Julgar 41, p 47.

[5] -Paula Távora Victor, no artigo referido, p 4, chama a atenção para o facto  de que «o  padrão que é eleito pelo artigo 146º do CC para a atuação do acompanhante — “a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada” — se identifica  mais facilmente com o padrão objetivo dos “melhores interesses” do que com os desejos do acompanhado», não deixando, no entanto, de referir, que «o respeito pela CDPD, e pela sua eleição das “vontades e preferências” do acompanhado, deve convocar um esforço no sentido de reinterpretar esta referência», acrescentando a p 45, que «há que interpretar a disposição do artigo 146.º do CC em conformidade com a CDPD, num sentido favorável ao princípio da autonomia, e, portanto, à consideração das “vontade e preferências” do acompanhado, considerando, assim, que esta atuação do acompanhante obedecerá àqueles ditames de diligência se tiver uma adequada consideração da vontade do acompanhado», fazendo notar  que a «consagração que é feita pelo n.º 2 do artigo 146.º a um dever de contacto com a pessoa acompanhada pode favorecer esta consideração»
                [6] -Ac R P 13/1/2020 (Carlos Querido)
                [7] - Ainda a Revista Julgar nº 41, p 57 do artigo, «Os Direitos Humanos e o Maior (Des)acompanhado: causas e medidas de capacitação»
                [8]  - «O maior (Des)acompanhado e as perícias médicas», Revista Julgar, p 131

[9] - «O Novo Regime do Maior Acompanhado», E-Book, Lisboa: CEJ, 2019 [disponível em “http://www.cej. mj.pt/cej/recursos/ebook_civil.php”], pp. 43-43.
                [10] - «Os deveres de cuidado e a responsabilidade do acompanhante perante o beneficiário – um primeiro ensaio», Revista Julgar em referência
         [11]-  Neste sentido, Geraldo Rocha Ribeiro, artigo citado,  p. 101
                [12] - Artigo citado, p 43