Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | PROVIDÊNCIA CAUTELAR DE ARROLAMENTO INCIDENTE DA AÇÃO DE DIVÓRCIO DISPENSA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA | ||
Data do Acordão: | 03/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CASTRO DAIRE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 409.º, N.ºS 1 E 3, E 366.º, N.ºS 1 E 2, CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
Sumário: | Alegando a requerente que, após o divórcio, o requerido mudou a fechadura das portas exteriores de casa que é bem comum do casal, impedindo-a de aceder a tais bens e à casa, justifica-se a dispensa de audiência prévia do requerido na providência cautelar de arrolamento dos bens móveis aí existentes, a fim de acautelar a eficácia de tal providência. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
Decisão Texto Integral: | Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Catarina Gonçalves 2º Adjunto: Helena Gomes Melo
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I – RELATÓRIO AA intenta o presente procedimento cautelar de Arrolamento, como incidente da ação de divórcio, contra BB, pedindo o arrolamento de parte dos bens comuns do casal. Alega para o efeito, e em síntese: por decisão proferida a ../../2023 foi decretado o divórcio entre os cônjuges; a requerente não tem acesso ao recheio do prédio urbano sito em ..., que identifica, porquanto, há largos meses que o requerido mudou as fechaduras das portas exteriores daquele prédio, bem comum do casal, impedindo o acesso da Requerente aos seus bens e ao uso de referido prédio; pelo que se indicia o receio de extravio ou dissipação de bens, em especial quanto aos bens móveis não sujeitos a registo, de fácil dissipação ou ocultação. * Foi proferido despacho a decretar a audiência prévia do Requerido. Não se conformado com o mesmo, a requerente dela interpor recurso de Apelação, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões: QUESTÃO PRÉVIA: 1. No dia 02 de Setembro de 2023, BB, aqui Recorrido, intentou Ação de Processo Especial de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge contra AA, aqui Recorrente. 2. No dia ../../2023, foi o processo convolado em divórcio por mútuo consentimento, tendo sido homologado os acordos dos cônjuges, tendo o Tribunal declarado dissolvido por divórcio o casamento do recorrente e recorrido. 3. Declaram existir bens comuns a partilhar, fazendo menção de um Prédio urbano, sito na Freguesia ..., concelho ..., matriz predial urbana n.º ...72, a que atribuem o valor patrimonial de 42.305,20€ (quarenta e dois mil, trezentos e cinco euros e vinte cêntimos). 4. Os ex-cônjuges são emigrantes há largos anos e era naquela moradia que gozavam as suas férias quando se encontravam em Portugal. 5. Por conseguinte, há largos meses que a recorrente não consegue aceder àquele prédio, tendo o recorrido mudado as fechaduras com o propósito de impedir o acesso da recorrente àquela moradia, bem como ao recheio daquela. 6. Atenta à postura assumida pelo ex-cônjuges da aqui recorrente e por se tratarem de bens móveis de fácil dissipação, com receio de extravio do recheio daquele prédio, a recorrente requereu como incidente da ação de divórcio, que fosse decretado o arrolamento dos bens descritos no requerimento e daqueles que viessem a ser identificados na sequência da concretização do arrolamento por não ser possível discriminá-los na sua totalidade. 7. Por despacho com a referência Citius 94495394, foi a recorrente surpreendida com a notificação do despacho (ref. 94415854) que ordenou a audição prévia do requerido, bem como da frustração da citação do requerido. 8. Não pode a recorrente conformar-se com aquele despacho nem tampouco com a fundamentação do mesmo. 9. O tribunal ao ordenar a audição do requerido antes de decretado o arrolamento vai pôr em causa a eficácia da providência cautelar requerida.
10. Dispõe o art. 409°, n° 1 do CPC que, como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou de anulação de casamento a instaurar pelo/a requerente, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro. 11. Nestas situações, requerente não carece de alegar e provar o justo receio de extravio e de dissipação dos bens que pretende ver arrolados, conforme decorre do disposto no art. 409°, n° 3 do CPC,. 12. Tal facto justifica também a não audição do requerido ao abrigo do disposto no art. 366°, n° 1 do CPC, uma vez que a audiência do mesmo, nestas situações de rutura e de crise da vida conjugal, é suscetível de pôr em risco o fim ou a eficácia da providência, atenta a presunção, implícita no art. 409°, n° 3 do CPC, da existência de fundado receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens. 13. O justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens não constitui requisito a alegar e demonstrar para o decretamento da providência. 14. Enquanto preliminar ou incidente de ação de divórcio, a providência de arrolamento, nos termos do artigo 409.°, visa acautelar o direito à justa partilha do património comum. 15. A recorrente e o recorrido foram casados no regime da comunhão de adquiridos, integrando-se na comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei nos termos do art. 1724.° do CC, presumindo-se comunicáveis os bens móveis relativamente aos quais seja duvidosa a comunicabilidade nos termos previstos nos art. 1725.° do CC, e verificando-se que, tendo sido decretado o divórcio, ainda não foi efetuada a partilha dos bens comuns do casal, e é peticionado apenas o arrolamento de bens móveis, torna-se inútil a produção de qualquer meio de prova em virtude de a lei dispensar a prova, nestas situações, dos restantes requisitos necessários ao decretamento da providência requerida. 16. Entende que o interesse da requerente só pode ser acautelado sem prévia citação do requerido. Nestes termos, ao abrigo dos preceitos legais supra-referidos, requer, pois, e mui respeitosamente, com a urgência devida, que seja revogado aquele despacho e, consequentemente, seja decretado e levado a cabo aquele arrolamento dos bens móveis (identificados no requerimento e que venham a ser identificados no momento da realização da diligência a efetuar através do Agente de Execução indicado para o efeito), sem prévia audiência do requerido, aqui recorrido pois poderá estar em causa a sua utilidade, se a outra parte tiver conhecimento de tal incidente deste procedimento à respetiva ação. * II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só: 1. Se o tribunal errou ao decretar a audiência prévia do requerido III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO 1. Se era de dispensar a audiência prévia do requerido O Juiz a quo fundamentou a necessidade de proceder à audiência prévia do requerido, nos seguintes termos: “A requerente intentou, como incidente da ação de divórcio, o presente procedimento cautelar de arrolamento (art. 409.º, n.º 1 do CPC). O procedimento cautelar de arrolamento não é daqueles em que o legislador excluiu a audição prévia ao decretamento da providência. Em regra, o requerido deve ser sempre ouvido salvo se existir risco sério para o fim ou a eficácia da providência (art. 366º, nº 1 do CPC). “Quando a providência se destine a evitar uma lesão e a apreciação objectiva do circunstancialismo determine a inadmissibilidade de qualquer dilação, o juiz deve dispensar a audiência do Requerido, valorando o fim da providência (razões objectivas). O factor da eficácia poderá ligar-se preferencialmente a razões de ordem subjectiva inerentes à pessoa do Requerido, à semelhança do que ocorre no arresto” (ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA in Código de Processo Civil Anotado, p. 445). Assim, há que aferir se a audiência prévia do requerido, capaz de eliminar o efeito surpresa da medida cautelar, permitirá àquele inutilizar todo o interesse da medida cautelar, tendo sempre presente que a regra estabelecida é a da sua audição. Na verdade, não se olvide que o arrolamento consubstancia uma providência cautelar onde se verifica, per si, um perigo e que o legislador estipula expressamente que dispensa de audição prévia do Requerido há-de ser a excepção e não a regra. Na apreciação do risco da audiência do requerido, o juiz não está dependente da iniciativa do requerente da providencia: mesmo que este assim não tenha requerido, os factos por ele alegados e provados podem levar o juiz a dispensar oficiosamente a audiência imediata do requerido. Ora, volvendo aos autos, além de não ter sido requerida essa dispensa, entende este Tribunal que nada justifica a mesma. Isto porque, não obstante estarem em causa bens móveis, de fácil dissipação, a verdade é que além de o casal já ter dissolvido o casamento em ../../2023, por mútuo consentimento, alega a Requerente que “há largos meses que o Requerido mudou as fechaduras das portas (..) impedindo o acesso da aqui Requerente aos seus bens e ao uso do referido prédio”, não sendo, assim, descrita nenhuma conduta actual e iminente do requerido que justifique a sua dispensa. Em conformidade com o exposto, deverá prosseguir-se a tramitação ulterior dos autos, com audição do requerido.” Insurge-se a Apelante contra o decidido, com os seguintes fundamentos: - há largos meses que a recorrente não consegue aceder àquele prédio, tendo o recorrido mudado de fechaduras com o propósito de impedir o acesso da requerente àquela moradia; - ao ordenar a audição do requerido antes do decretamento do arrolamento vai por em causa a eficácia da providencia cautelar requerida; - no arrolamento como preliminar ou incidente da ação de divórcio, o requerente não carece de alegar e provar o justo receio de extravio e de dissipação de bens comuns ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro – artigo 409º, nº3, CPC; - tal facto justifica também a não audição do requerido ao abrigo do disposto no art. 366º, nº1, CPC, uma vez que a audiência do mesmo, nestas situações de rutura e de crise da vida conjugal, é suscetível de pôr em risco o fim ou a eficácia da providência, atenta a presunção, implícita no art. 409°, n° 3 do CPC, da existência de fundado receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens. Desde já adiantamos ser de dar razão à Apelante. Encontrando-nos perante um procedimento cautelar de arrolamento, instaurado pela requerente por apenso a um processo de divórcio (já findo), ao abrigo do disposto nos nºs. 1 e 3, do artigo 409º, do Código Civil, sob a epígrafe, “Arrolamentos Especiais”: “1. Como preliminar do divórcio ou incidente de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento dos bens comuns ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro. 3. Não é aplicável aos arrolamentos previstos nos números anteriores o disposto nº nº1do artigo 403º. Se, durante anos, a jurisprudência e a jurisprudência vinham sustentando que nos arrolamentos especiais a que se reportava, o então artigo 427º – como preliminar do divórcio ou incidente de separação judicial e bens, declaração de nulidade ou anulação de casamento –, não referindo aquela norma o justo receio de extravio ou dissipação de bens, ele não tinha de ser alegado nem provado no processo, não constituindo requisito de tal tipo de arrolamento, o DL nº 329-A/95, aditando um nº3 a tal artigo veio a consagrar legalmente essa interpretação[1]. No procedimento cautelar de arrolamento – seja no arrolamento geral, seja nos arrolamentos especiais a que se refere o artigo 409º CC – o legislador nada diz quanto à necessidade de audiência prévia do requerido, levantando-se a questão de saber se é de aplicar a regra geral do nº2 do artigo 366º CC, segundo a qual o tribunal deve, em princípio ouvir o requerido, exceto se a audição puser em risco o fim ou a eficácia da providência, ou se o contraditório dever ser dispensado, atenta a natureza e as finalidades desta providência cautelar. Segundo Marco Carvalho Gonçalves, visando o arrolamento impedir o extravio, a ocultação ou a dissipação de bens ou de documentos, considerando as finalidades desta providência, a mesma deve, por norma, ser decretada sem o contraditório prévio do requerido, sob pena de se comprometer, de forma irremediável, o efeito útil do arrolamento. “Na verdade, conhecendo o requerido de antemão a pretensão do requerente, corre-se o risco de aquele praticar os atos de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou de documentos que o requerente pretendia precisamente evitar através do recurso a esta providência cautelar[2]”. Contudo, ainda segundo tal autor, nada dispondo o Código de Processo Civil quanto à dispensa de audição prévia do requerido, impõe-se aplicar o regime geral do artigo 366º, nº1, devendo o juiz, através de despacho fundamentado, decidir dispensar ou não essa audição prévia consoante entenda que a mesma é ou não suscetível de comprometer a urgência ou o efeito útil da providência[3]. A dispensa de audição prévia do requerido pressupõe, a verificação de três tipos de circunstancias: a) que exista risco para o efeito útil do processo a acautelar; b) que tal risco seja sério; c) que o efeito útil seja posto em causa pelo facto de o exercício imediato do contraditório (audição do requerido) contender com o fim ou eficácia da providência[4]. O arrolamento é uma medida de carater conservatório que se pode apresentar como medida destinada a assegurar a manutenção de certos bens litigiosos, enquanto a titularidade do direito sobre eles estiver em discussão na ação principal, ou destinada a garantir a persistência de documentos necessários para provar a titularidade do direito sobre as coisas arroladas[5]. E, tratando-se de arrolamento como preliminar ou na sequência de divórcio visa assegurar a conservação do património comum até à partilha. No caso em apreço, tendo em vista as especiais finalidades desta providência, o circunstancialismo fáctico alegado pela requerente satisfaz os três referidos requisitos: alega a requerente que, após o divórcio, o requerido mudou a fechadura das portas exteriores da casa que possuem em Portugal (bem comum de ambos), impedindo a requerente do acesso aos seus bens e ao uso da casa, peticionando o arrolamento dos bens móveis que aí se encontrem por recear o extravio ou dissipação de tais móveis do património conjugal. Tal factualidade, é de molde a recear que, a ser cumprido o contraditório prévio, o requerido se apresse a ocultar ou desfazer dos bens móveis que aí se encontram, antes que tal arresto venha a der decretado – face à natureza dos mesmos –, diminuindo, ou inutilizando, o efeito inútil da providência que viesse a ser decretada. A decisão recorrida, apesar de reconhecer encontrarem-se em causa bens móveis, de fácil dissipação, considerou não se justificar a dispensa de audição prévia, pelo facto de o casal já ter sido dissolvido o casamento em ../../2023, alegando a Requerente que há largos meses que o requerido mudou a fechadura das portas (…) impedindo o acesso da aqui requerente aos seus bens e ao uso do prédio”, não sendo descrita nenhuma conduta atual e eminente do requerido que justifique tal dispensa. Contudo, as razões que aqui justificam a dispensa da audição prévia não se prendem com a urgência no arrolamento, mas, com o facto de que, se lhe for dado conhecimento prévio da instauração do procedimento, o ponha em situação de alerta, dando-lhe oportunidade de, rapidamente, e antes de ser proferida decisão na providência, ocultar ou se desfazer de alguns dos bens do património comum. O juiz deve optar pela dispensa do contraditório, independentemente da iniciativa do requerente, se se convencer de que a audição do requerido coloca em perigo a utilidade ou a eficácia da providência, tendo o risco, de o contraditório provocar maiores danos ao requerido do que benefícios ao requerente, de ser sério. Deve afastar-se o contraditório prévio sempre que o seu imediato exercício seja suscetível de afetar o efeito útil do procedimento, mesmo que só para o diminuir[6]. No arrolamento em questão, o decretamento sem a sua audição prévia, em princípio, não acarretará prejuízos relevantes ao requerido, uma vez que tal providência não visa o desapossamento dos bens, mas tão só a sua descrição, sendo o mesmo nomeado o seu fiel depositário. Com efeito, recaindo o arrolamento sobre bens móveis ou imóveis, o requerido, sendo nomeado depositário desses bens (e ao contrário do que acontece com a penhora) pode continuar a utilizá-los, já que essa utilização não é incompatível com a natureza do arrolamento[7]. Justifica-se, assim, no caso em apreço, a dispensa de audição do requerido, a fim de acautelar a eficácia da providência[8]. A apelação será de proceder, sem outras considerações. * IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em, julgando a Apelação procedente, revogar a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos com dispensa de audição prévia do requerido. Custas a suportar pela parte vencida a final. Coimbra, 19 de março de 2024
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