Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Relator: | ANA CAROLINA CARDOSO | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Descritores: | PERDÃO CONDIÇÃO RESOLUTIVA PAGAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Data do Acordão: | 03/20/2024 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Votação: | UNANIMIDADE | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Tribunal Recurso: | VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J1) | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Texto Integral: | S | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Decisão: | REVOGADA | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Legislação Nacional: | ARTS. 3º, N.º 4, E 8º, N.º 2, DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2.8 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Sumário: | Não cabe ao julgador aferir se perante as circunstâncias do caso é de condicionar ou não o perdão à pena única: se o arguido foi condenado num dos processos englobados no cúmulo no pagamento de uma indemnização ao ofendido, a condição resolutiva prevista no n.º 2 do art. 8º da Lei n.º 38-A/2023 opera de forma automática. Sumário elaborado pelo relator | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Decisão Texto Integral: | *
RELATÓRIO Da aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto: Por seu turno, eram as seguintes condenações nos processos englobados nos cúmulos: Do cúmulo I.
Relativamente aos crimes supra elencados em I. g) e II. a), foram ainda julgados procedentes pedidos de indemnização civil deduzidos e, em consequência, condenado o arguido a pagar, respetivamente, a quantia de € 1.100,00 ao demandante BB (condenação solidária com dois outros coarguidos), e a quantia de € 3.400,00 acrescida de juros de mora ao demandante CC (condenação solidária com outro coarguido). A pena única de multa aplicada ao arguido foi declarada extinta por prescrição, razão pela qual não há, nesta parte, que ponderar a aplicação da amnistia ou perdão. Já quanto às penas únicas de prisão, verifica-se que à data dos factos, o arguido, nascido em ../../1988, contava entre 16 e 18 anos de idade, situando-se, por isso, na faixa etária alvo das medidas de clemência previstas na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto – art. 2.º, n.º 1. Impondo-se ponderar primeiro a aplicação da amnistia, constata-se que, de entre os crimes imputados ao arguido, só o crime de introdução em lugar vedado ao público é abstratamente punível com pena situada dentro dos limites previstos no art. 4.º da mesma Lei (com pena de prisão até 3 meses ou multa até 60 dias, conforme previsto no art. 191.º do Código Penal). Razão pela qual, tendo o arguido praticado tais factos quando tinha 17 anos de idade, impõe-se declarar amnistiado tal crime. Por seu turno, no tocante à aplicação do perdão, constata-se que as penas únicas concretamente aplicadas, em cúmulo, ao arguido (a mais elevada foi de 7 anos e 3 meses de prisão) situam-se abaixo do limite máximo previsto no art. 3.º, n.º 1 in fine para o perdão E de todos os crimes por que o arguido foi condenado, só foram excecionados pelo legislador quanto à possibilidade de beneficiar do perdão: - o crime de roubo (cumulo II b) e c)) – art. 7.º, n.º 1 al. g) da Lei n.º 38-A/2023 e art. 67.º-A, n.º 1 al. b) e n.º 3, por referência ao art. 1.º al. l), ambos do Código de Processo Penal; - o crime de roubo agravado (cúmulo II d)) – art. 7.º, n.º 1 al. b) i) da Lei n.º 38-A/2023; - o crime de violência depois da subtração (cúmulo II f)) – art. 7.º, n.º 1 al. g) da Lei n.º 38-A/2023 e art. 67.º-A, n.º 1 al. b) e n.º 3, por referência ao art. 1.º al. l), ambos do Código de Processo Penal. E entendeu o legislador fixar dois tipos de condições resolutivas do perdão: i) uma genérica e aplicável a todos os crimes perdoáveis, prevista no n.º 1 do art. 8.º: “O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada”; e ii) outra, específica, relativamente a condenações que, para além da matéria penal, julgassem igualmente matéria cível, tal como previsto no n.º 2 do art. 8.º: “O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado”. Ora, no caso, como se viu, estando em causa acórdão cumulatório, nos termos do qual o arguido foi condenado a duas penas únicas sucessivas, por referência a dois blocos de cúmulo, o que se verifica é só relativamente a um dos crimes englobados em cada um dos blocos de cúmulo, foi julgada matéria cível e fixada uma indemnização. E aquilo que cabe apurar é se o perdão de um ano a aplicar à pena única deve ou não ficar sujeito à condição resolutiva que só estaria prevista relativamente a uma das penas parcelares englobada em cada um dos blocos de cúmulo. No caso concreto, é meu entendimento que não. Efetivamente, entendo que o arguido reúne já condições para beneficiar do perdão não sujeito à condição de pagamento, na medida em que as penas parcelares que nunca estariam sujeitas àquela condição excedem já a medida máxima do perdão aplicável na pena única. Segue-se, aqui, o mesmo raciocínio que se entende aplicável aos casos em que o cúmulo abrange penas por crimes perdoáveis e não perdoáveis, caso em que deverá ter-se em consideração, quanto à medida do perdão, que: - esta tem como limite máximo 1 ano de prisão – art. 3.º, n.º 1 – a incidir sobre a pena única – art. 3.º, n.º 4; - esta não pode ser superior à pena parcelar aplicada pelo crime que determina a aplicação do perdão; e . - o remanescente da pena única resultante da aplicação do perdão não pode ser inferior à pena parcelar aplicada pelo crime excluído do perdão. No caso em apreço, de entre as penas parcelares aplicadas ao arguido só o perdão de uma em cada um dos blocos poderia considerar-se condicionado ao pagamento da indemnização (e por isso passível de revogação em caso de não pagamento), sendo certo que quanto aos demais crimes perdoáveis, temos - no 1.º bloco, penas de 11 meses e (3x) 2 anos e 8 meses (por 4 outros furtos qualificados); e 8 meses, 6 meses e 6 meses de prisão (por mais 3 crimes de furto); - no 2.º bloco, penas de (3x) 6 meses de prisão (por 3 crimes de ofensa à integridade física qualificada) e de 20 meses de prisão (pelo crime de tráfico de menor gravidade). Podendo, por isso, a medida do perdão não condicionável ao pagamento, estender-se até ao limite máximo de um ano. Por outro lado, ainda que reduzindo cada uma das penas únicas em 1 ano, sempre as penas remanescentes (de 4 anos e 3 meses para o cúmulo I; e 6 anos e 3 meses para o cúmulo II) continuam a ser superiores às penas parcelares do crime passível de perdão com condição de pagamento (no cúmulo I) e às penas parcelares dos crimes não perdoáveis e perdoáveis sob condição de pagamento (no cúmulo II). Ou seja, entendo que não faz sentido, no caso concreto, em que o arguido, só por conta da pena parcelar de 2 anos e 8 meses aplicada pelo crime de furto (no cúmulo I) e da pena parcelar de 20 meses aplicada pelo crime de tráfico de menor gravidade (no cúmulo II), já poderia beneficiar do perdão sujeito apenas à condição resolutiva genérica do n.º 1 do art. 8.º, sujeitar a aplicação do perdão na pena única a uma condição específica de pagamento que só existiria quanto às penas (inferiores) aplicadas por factos que sustentaram a responsabilização civil a par da penal. É que, se em lugar destes crimes, o arguido tivesse sido condenado por crimes não perdoáveis, não sobrariam dúvidas na aplicação do perdão tout court (ou seja, sem condição de pagamento). E de outro passo, não faria sentido que, em caso de não pagamento da indemnização, por verificação da condição resolutiva, o arguido visse repristinado o cumprimento de um ano de prisão, precludindo a possibilidade de beneficiar do perdão relativamente a uma das penas parcelares cujo perdão não estava dependente desse pagamento. Isto porque – como se disse – resulta do art. 3.º, n.º 4 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto que o perdão incide sobre a pena única. E ao aludir o legislador a “pena única”, não se crê que se referisse à pena única dos crimes perdoáveis, mas à pena única de todos os crimes em concurso, quer sejam ou não passíveis de perdão e quer respeitem ou não a crimes cujo perdão esta dependente de condição resolutiva específica (para além da geral). Ou seja, sendo única a medida do perdão e o respetivo limite máximo, inexiste razão, face à letra desta Lei, para ficcionar um cúmulo de penas perdoáveis, antes se impondo verificar se, relativamente a cada um dos crimes em concurso, existem já razões para, sem prejuízo para as penas dos crimes não perdoáveis (ou não perdoáveis sem condição resolutiva específica) aplicar já o limite máximo de 1 ano perdão na pena única. Entendo, por todo o exposto, estarem reunidos os pressupostos para declarar perdoado (sem sujeição a condição resolutiva de pagamento da indemnização) um ano em cada uma das penas (única) sucessivas de prisão aplicadas ao arguido AA. Confirme decorre das comunicações dos TEP de 01/04/2022 e 08/04/2022, o arguido encontra-se atualmente em cumprimento remanescente da pena de prisão que lhe foi aplicada nestes autos, na sequência da revogação da liberdade condicional. Considerando o cômputo efetuado pelo TEP, tudo leva a crer que ainda esteja por cumprir parte desse remanescente (supõe-se que até 06/06/2024). O que, a confirmar-se, significará que o perdão a conceder antecipará o termo da pena ainda a cumprir à ordem destes autos. Em face de todo o exposto, e ao abrigo das suprarreferidas disposições legais: 2. Declaro perdoada a parte que ainda não haja sido cumprida pelo arguido AA do remanescente das penas únicas sucessivas que lhe foram aplicadas nestes autos de cumulo jurídico até ao limite de 2 anos (um ano por cada bloco de cúmulo), sob condição resolutiva de o arguido não praticar qualquer infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto. Notifique. *** 2- Recurso do Ministério Público (conclusões que se transcrevem integralmente):
1ª- Vem o presente recurso interposto da decisão da Mmª Juiz proferida em 03/11/2023, na medida em que não condicionou o perdão concedido ao condenado AA à condição resolutiva prevista no artigo 8, nº2 do Lei 38/A/2023 de 2/8, indeferindo, nessa parte, a promoção do MP de 17/10/2023, com o fundamento de que « arguido reúne já condições para beneficiar do perdão não sujeito à condição de pagamento, na medida em que as penas parcelares que nunca estariam sujeitas àquela condição excedem já a medida máxima do perdão aplicável.» 2ª – Assenta a sua decisão no pressuposto – que afirma – de que «resulta do art. 3.º, n.º 4 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto que o perdão incide sobre a pena única. E ao aludir o legislador a “pena única”, não se crê que se referisse à pena única dos crimes perdoáveis, mas à pena única de todos os crimes em concurso, quer sejam ou não passíveis de perdão…». 3ª- Adiantando que, se as penas que demandaram a condenação do agente em obrigação de pagamento aos ofendidos, em lugar de penas perdoáveis, fossem penas excluídas do perdão, não sobrariam dúvidas na aplicação do perdão tout court (ou seja, sem condição de pagamento), seguindo aqui o mesmo raciocínio. 4ª- Salvo o devido respeito, o entendimento da Mmª Juiz a quo, assenta em evidente erro de interpretação, violando de forma manifesta o disposto nos artigos 3, nº4, 7º, nº3 e 8, nºs 2 e 3 da Lei 38/A/2023 de 2/8. 5ª- A expressão, muitas vezes utilizada (sem rigor), deque o perdão incide sobre a pena única, reportando-se à pena única global abrangendo penas perdoáveis e não perdoáveis, tem um único significado: o de que é descontado nessa pena. Mas é descontado nessa pena depois de previamente determinado incidindo unicamente sobre a pena perdoável, ou a pena única correspondente às penas perdoáveis (a determinar necessariamente em alguns casos, mas a ficcionar noutros – e é o caso deste - em que é manifesto que a pena assim determinada permite a fixação do perdão máximo de 1 ano previsto na Lei). Só após essa prévia determinação e incidência sobre a pena única, consideradas unicamente as penas perdoáveis, se pode falar no desconto (muitas vezes, sem rigor, referido como incidência) desse perdão na pena única global (abrangendo penas perdoáveis e não perdoáveis). 6ª- Na verdade, se existem penas que estão excluídas do perdão, como pode afirmar-se que, ainda assim, o perdão incide, no sentido de ser determinado, sobre a pena única na sua totalidade, ou seja, também sobre as penas não perdoáveis? Esse entendimento é absurdo, encerrando, salvo o devido respeito por opinião contrária, uma contradição nos seus próprios termos. Ou bem que estão excluídas do perdão, ou bem que o perdão incide/ é determinado (também) sobre elas! 7ª-Oartigo3nº4daLei38/A/2023de2/8onde se refere que: «Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única» tem de ser conjugado com o artigo 7 da mesma Lei que exclui do beneficio do perdão as penas aplicadas relativamente a vários tipos de crime e condenações, e com o nº3 do mesmo artigo que prescreve «a exclusão do perdão …não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3 …relativamente a outros crimes cometidos». Conjugados estes normativos, outra conclusão não pode extrair-se senão a de que o perdão incide única e exclusivamente sobre a pena única correspondente às penas perdoáveis em concurso (sem prejuízo do seu desconto, a final, na pena única total abrangendo penas perdoáveis e não perdoáveis). 8ª – Assim, quando o artigo 8 da Lei 38-A/2023 de 2/8, nºs 2 e 3 prescreve que: «2 — O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado. 3—Acondiçãoreferidanonúmeroanteriordevesercumpridanos90dias imediatos à notificação do condenado para o efeito.», não pode deixar de concluir-se que a imposição dessa condição de pagamento abarca toda e qualquer condenação no pagamento de indemnização/restituição relativa a penas perdoáveis (pois que o perdão incide/abarca a globalidade de todas essas penas), mas já não a condenação no pagamento de indemnização/restituição relativa a pena que não é abrangida pelo perdão, porque dele está excluída. 9ª- Manifestamente e expressamente, tendo em conta os normativos vindos de citar, na concessão do perdão, o legislador quis conferir alguma proteção aos interesses dos ofendidos, sem cuidar de estabelecer qualquer critério de proporcionalidade entre o perdão (sempre com o limite máximo de 1 ano) e a obrigação de pagamento aos ofendidos (das penas a perdoar), não tendo deixado ao critério do julgador a ponderação de qualquer circunstancia que lhe permita, em contrário do por si determinado, deixar fora do condicionalismo de aplicação do perdão as condicionantes resultantes de algumas das penas perdoáveis. 10ª- E, tal como vem sendo entendido pela doutrina e pela jurisprudência, as medidas de graça (onde se incluem a amnistia e o perdão), como providências de exceção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas. 11ª- O legislador entendeu – e expressamente consagrou nos artigos 3, nº4, 7 nº3 e 8 nºs 2 e 3 da Lei 38/-A/2023 de 2/8 - que há penas que podem ser perdoadas e outras não e que, relativamente às penas perdoáveis, o perdão incide sobre a pena única, ou seja, é a globalidade das penas perdoáveis em concurso que é considerada para a aplicação do perdão (independentemente das medidas de cada uma delas e de per si, admitir, ou não, o perdão de 1 ano fixado na lei ), e sempre que o agente tiver sido também condenado, pela prática dos crimes que determinaram a aplicação da globalidade de tais penas, no pagamento de indemnização/reparação ao ofendido, terá de proceder a esse pagamento (sem prejuízo de poder vir a considerar-se satisfeita a condição de pagamento a posteriori nos termos do nº4do citado normativo) para beneficiar do perdão – a incidir sempre sobre a pena única, nos termos referidos, sem possibilidade de fazer incidir o perdão sobre uma, ou algumas das penas em concurso, em detrimento de outras, consoante seja mais favorável ao beneficiário do perdão - independentemente de qualquer critério de proporcionalidade entre as penas perdoáveis não condicionadas ao pagamento e as penas perdoáveis condicionadas ao pagamento, ou entre o pagamento e o perdão. 12ª- No caso dos autos, como é expressamente referido na douta decisão em recurso, todas as penas são perdoáveis, incluindo aquelas onde o condenado, na procedência dos pedidos cíveis deduzidos pelos demandantes ficou obrigado (solidariamente com outros coarguidos) a pagar, respetivamente, a quantia de € 1.100,00 acrescida de juros de mora (cfr. fls. 506 vº) ao demandante BB e a quantia de € 3.400,00 acrescida de juros de mora e a quantia que tenha sido liquidada em execução de sentença relativamente às outras despesa, se o tiver sido (cfr. fls.850 vº) ao demandante CC. 13ª- Pelo que, a Mª Juiz a quo não podia deixar de ter sujeitado a concessão do perdão á condição de pagamento de tais quantias, nos termos do artigo 8, nº2 da Lei 38/A/2023, tal como foi promovido pelo MP em 17/10/2023. Deve, pois, ser revogada a decisão proferida pela Mmª Juiz a quo em 03/11/2023, na parte em que indeferiu a promoção do MP datada de 17/10/2023 no sentido de que o perdão concedido ao condenado AA fosse condicionado à condição resolutiva prevista no artigo 8, nº2 do Lei 38/A/2023 de 2/8, e o beneficiário do perdão notificado para, no prazo (improrrogável) de 90 dias imediatos á sua notificação, proceder ao pagamento da indemnização que foi condenado (solidariamente com os coarguidos DD, EE e FF) a pagar ao ofendido BB, no processo 1553/04.... – cuja pena foi englobada no 1º bloco de cumulo jurídico-, na quantia de €1 100 acrescida de juros demora ( cfr. fls. 506 vº)e proceder ao pagamento da indemnização que foi condenado (solidariamente com o co-arguido HH a pagar ao ofendido CC,noprocesso 212/05.... - cuja pena foi englobada no 2º bloco de cumulo jurídico -, na quantia de € 3 400 acrescida de juros de mora e na quantia que tenha sido liquidada em execução de sentença relativamente às outras despesas, se o tiver sido (cfr. fls.850 vº) e, no mesmo prazo, juntar prova aos autos de terem sido pagas tais indemnizações no prazo que lhe foi concedido ou anteriormente, sob pena de, não o fazendo, ser revogado o perdão. * 3- O arguido não respondeu.
* *** - CONHECIMENTO DO RECURSO
O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995). São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente (v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336). Assim, a questão a decidir prende-se exclusivamente com a sujeição do perdão aplicado à pena única à condição prevista no art. 8º, n.º 2, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
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Conhecendo:
O art. 8º da Lei n.º 38-A/2023 (LAJMJ), subordinado à epígrafe “condições resolutivas”, estatui o seguinte: “1 - O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada. 2 - O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado. 3 - A condição referida no número anterior deve ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito. 4 - Considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 caso o titular do direito de indemnização ou reparação não declare que não foi indemnizado ou reparado. 5 - Quando o titular do direito de indemnização ou da reparação for desconhecido, não for encontrado ou ocorrer outro motivo justificado, considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 se a reparação consistir no pagamento de quantia determinada e o respetivo montante for depositado à ordem do tribunal.” (sublinhado nosso)
Nos autos foi proferido acórdão cumulatório, condenando o arguido a cumprir duas penas únicas sucessivas, por referência a dois blocos de cúmulo, sendo que relativamente a um dos crimes englobados em cada um dos blocos de cúmulo foi julgada matéria cível e fixada uma indemnização. Decidiu a Exma. Juiz a quo não sujeitar o perdão à condição resolutiva a que se refere o n.º 2 por entender que “o arguido reúne já condições para beneficiar do perdão não sujeito à condição de pagamento, na medida em que as penas parcelares que nunca estariam sujeitas àquela condição excedem já a medida do perdão aplicável na pena única”. Para concluir desta forma, considera a pena concreta aplicável ao crime individual a que seria aplicável aquela condição resolutiva em comparação com as restantes penas englobadas no cúmulo que não seriam sujeitas a tal condição, afirmando face à previsão do art. 3º, n.º 4, da Lei da Amnistia o seguinte: “…sendo única a medida do perdão e o respetivo limite máximo, inexiste razão, face à letra desta Lei, para ficcionar um cúmulo de penas perdoáveis, antes se impondo verificar se, relativamente a cada um dos crimes em concurso, existem já razões para, sem prejuízo para as penas dos crimes não perdoáveis (ou não perdoáveis sem condição resolutiva específica) aplicar já o limite máximo de 1 ano perdão na pena única”. É contra esta interpretação que se insurge o recorrente Ministério Público, da seguinte forma: “o artigo 3 nº4 da Lei 38/A/2023 de 2/8 onde se refere que: «Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única» tem de ser conjugado com o artigo 7 da mesma Lei, que exclui do beneficio do perdão as penas aplicadas relativamente a vários tipos de crime e como nº 3 desse artigo onde se prescreve que «a exclusão do perdão …não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3 …relativamente a outros crimes cometidos». Conjugados estes normativos, outra conclusão não pode extrair-se senão a de que o perdão incide única e exclusivamente sobre a pena única correspondente aos crimes perdoáveis.”
O direito de graça assume uma natureza excecional que, como tal, não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam «ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas. Nesta medida, «insuscetíveis de interpretação extensiva (não pode concluir -se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo -se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe -se uma interpretação declarativa. Como tal, atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei, adotando-se uma interpretação declarativa em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» ([1]). O art. 3º, n.º 1, da Lei 38-A72023 estabelece o perdão de penas da seguinte forma: “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”, acrescentando o n.º 4 que “Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”. Significa isto que em caso de cúmulo jurídico de penas operado nos termos do art. 78º ou 79º do Código Penal, preenchidos os demais requisitos, o perdão incide não sobre cada uma das penas individualmente considerada, mas sobre a pena única. Sobre esta questão não é suscitada qualquer dúvida na decisão recorrida. À semelhança de outras Leis de Amnistia anteriores, prevê a presente Lei a sujeição do perdão concedido à condição resolutiva de pagar a indemnização em que o arguido foi condenado, não sendo assim uma novidade. Na base desta condição está a necessidade de proteção das vítimas dos crimes, que o perdão da pena não deve menosprezar. Na verdade, a indemnização encontra justificação na prática do crime, sendo este o fundamento da condenação no pagamento da indemnização ao ofendido, constituindo ainda um efeito jurídico da prática do crime. Assim, se a pena visa satisfazer, no essencial, interesses do Estado, de reconstituição da paz jurídica entre a comunidade social e o criminoso, conseguida através de medida funcionalizada para a prevenção geral e para a sua ressocialização, a indemnização pretende “reparar um dano” provocado ao ofendido, procurando reconstituir a situação que existiria se não fora a verificação do “evento que obriga à indemnização” (arts. 483º e 562º do Código Civil) ([2]). Conforme foi afirmado pelo Tribunal Constitucional ([3]), «Sendo o perdão uma medida de clemência que extingue, total ou parcialmente, a pena do crime pelo qual o arguido foi condenado, mas não extinguindo a ilicitude criminal e a ilicitude civil dos factos praticados, bem se justifica que o legislador da clemência, dentro da sua discricionariedade ponderativa de todos os bens jurídicos ofendidos (penais e civis) entenda não ser ela de conceder quando existam efeitos civis indemnizatórios que tornam ainda presente a necessidade de paz jurídica com o lesado.» Assim, a condição resolutiva de pagamento da indemnização está diretamente relacionada com o mal do crime, tendo em vista a sua reparação ou compensação, sendo ditada por razões de justiça e de política criminal: a lei limita-se a exigir ao condenado, para que beneficie do perdão genérico, que restitua aquilo com que criminosamente se locupletou ou que compense o lesado dos prejuízos criminosamente causados. O perdão é um ato de clemência atribuído por lei. A sua aplicação é imperativa “ope legis”. O perdão genérico tem caracter geral é aplicado a todos os arguidos que tenham praticado uma infração no período de tempo abrangido pela amnistia e preencham os demais requisitos da lei de graça, de uma forma obrigatória e automática. Assim, os tribunais não podem, de forma alguma, tecer qualquer juízo sobre dever ser aplicado o perdão a um arguido individualmente determinado, decidindo pela não aplicação do perdão no caso concreto. De igual forma, as condições resolutivas previstas na lei excecional operam de forma obrigatória e automática, não podendo o julgador deixar de as aplicar ([4]). Retomando o caso dos autos, previu a Lei expressamente a aplicação do perdão em caso de cúmulo jurídico à pena única, não a cada uma das penas englobadas no cúmulo. Ora, consabidamente as penas individuais perdem a sua autonomia quando englobadas num cúmulo jurídico, fundindo-se numa mesma pena, a pena única. Tendo perdido a sua autonomia ao ser englobada no cúmulo, naturalmente que as condições que lhe sejam aplicáveis se transferem para a pena única. Pelo exposto, as condições resolutivas do perdão da pena previstas na Lei da Amnistia devem aplicar-se, de forma automática, à única pena que subsiste: a pena única. É apenas esta interpretação que resulta da conjugação dos preceitos da Lei n.º 38-A/2023 (arts. 3º, n.º 4, e 8º, n.º 2) com os princípios que regem as penas na nossa legislação penal. Não cabe, pois, ao julgador aferir se perante as circunstâncias do caso é de condicionar ou não o perdão à pena única: se o arguido foi condenado num dos processos englobados no cúmulo no pagamento de uma indemnização ao ofendido, a condição resolutiva prevista no n.º 2 do art. 8º opera de forma automática. No caso dos autos, o condenado AA foi condenado no pagamento das seguintes indemnizações: - solidariamente com os coarguidos DD, EE e FF), a pagar ao ofendido BB, no processo 1553/04.... (cuja pena foi englobada no 1º bloco de cumulo jurídico), a quantia de €1.100, acrescida de juros demora; - solidariamente com o coarguido GG) a pagar ao ofendido CC, no processo 212/05.... (cuja pena foi englobada no 2º bloco de cumulo jurídico), a quantia de € 3.400, acrescida de juros de mora, e a quantia que tenha sido liquidada em execução de sentença relativamente às outras despesas, se o tiver sido (cfr. fls.850 vº). Deverá, pois, ser notificado para os efeitos do n.º 3 do art. 8º da Lei da Amnistia. Impõe-se, pois, julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público.
*** - DECISÃO
Sem tributação.
Coimbra, 20 de março de 2024 Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi) João Novais (1º adjunto) Alcina da Costa Ribeiro (2ª adjunta) [1] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2023 de 01-02-2023 [2] Veja-se o Ac. do STJ de 14-12-2005, proc.º n.º 3561/03-3, rel. Cons. Oliveira Mendes (in SASTJ), [3] - Ac. n.º 488/2008, proc. n.º 35/08, 2.ª Secção, Rel. Conselheiro Benjamim Rodrigues, em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080488.html . Cf. ainda o recente Ac. da Rel. de Guimarães de 9-1-2024, proc.º n.º 75/20.6GCG-MR-K.G1, rel. Florbela Sebastião e Silva, em www.dgsi.pt [4] Cf. Acórdão desta Relação de Coimbra de 25.10.2006, proc. 1043/01.2TBVIS-B.C1, rel. Alice Santos, em www.dgsi.pt . Ver ainda o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 153/2007, no link http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070153.html?impressao=1 |