Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ISABEL VALONGO | ||
Descritores: | LEI 38-A/2023 ÂMBITO PENA ÚNICA SUPERIOR A 8 ANOS CONSTITUCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 03/06/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J4) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 2º, N.º 1, 3º, N.ºS 1 E 4, DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2.8. | ||
Sumário: | 1- O limite da pena inferior a 8 anos previsto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, é aplicável à pena única em resultado de cúmulo jurídico de várias penas parcelares, ainda que cada uma delas seja de medida inferior a 8 anos. II - Os n.ºs 1 e 4 do artigo 3.º da citada Lei 38-A/2023 não são inconstitucionais por violação do princípio da igualdade, pois a conduta de quem comete vários crimes em situação de concurso é mais gravosa de quem comete crimes inferiores àquele teto ou sem estar em situação de concurso, que o legislador não entendeu merecedor de medida de clemência. III- Não é ainda inconstitucional a limitação da idade prevista no art. 2º, n.º 1, da mesma Lei | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I- RELATÓRIO 1. Decisão recorrida “Às penas cumulatórias únicas de prisão aplicadas nos presentes autos aos arguidos AA (17 anos de prisão), BB (17 anos de prisão), CC (14 anos de prisão), DD (9 anos e 6 meses de prisão) e EE (10 anos de prisão) não é cabida a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2/8, precisamente pelo quantum dos cúmulos jurídicos em causa, superiores a 8 anos de prisão, sendo que o perdão previsto no referido diploma legal é de 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos (relativas a crimes e situações não excepcionados – cfr. art. 7º da mesma Lei), incidindo o perdão, em caso de condenação em cúmulo jurídico, sobre a pena única (e desde que não superior a 8 anos de prisão) (n.os 1 e 4 do art. 3º do apontado diploma legal). Como dissemos, as penas únicas em questão nos presentes autos são superiores ao limite estabelecido pelo n.º 1 (em conjugação com o n.º 4) do art. 3º da Lei n.º 38-A/2023. Consequentemente, aos arguidos AA, BB, CC, DD e EE não é aplicável o perdão de penas previsto na aludida Lei n.º 38-A/2023.” * 2. Recurso Inconformado com o referido despacho, do mesmo interpôs o arguido BB recurso motivando-o e delimitando-o no objecto com as conclusões que se transcrevem: “1. Por acórdão preferido nestes autos o arguido foi condenado numa pena inferior a 8 anos de prisão pela prática de vários crimes não excecionados pelo artigo 7º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto; 2. Em cúmulo jurídico, foi fixada a pena única de 17 anos de prisão; 3. Todos os crimes pelos quais o arguido foi condenado, à exceção de um, considerando a sua pena parcelar, são passíveis de merecer o perdão previsto na referida Lei; 4. O douto despacho datado de 10-10-23 entendeu “o perdão previsto no referido diploma legal é de 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos (relativas a crimes e situações não excecionados – cfr. art. 7º da mesma Lei), incidindo o perdão, em caso de condenação em cúmulo jurídico, sobre a pena única (e desde que não superior a 8 anos de prisão) (nº 1 e 4 do art. 3º do apontado diploma legal).” 5. Discordamos deste entendimento; 6. Nos termos do artigo 3º nº 1 e nº 3 da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, não obstante o perdão incidir sobre a pena única, deverá ter-se em consideração as penas parcelares para a verificação dos requisitos do perdão; 7. Ora, a nenhum dos crimes pelos quais o arguido foi condenado - e que reportam a situações contempladas pelo perdão da lei 38-A/2023 de 2 de agosto - foi aplicada qualquer pena parcelar superior a 8 anos; 8. A lei diz que o perdão terá de incidir sobre a pena aplicada em cúmulo, ou seja, aos 17 anos de prisão, deverá ser perdoado 1 ano de prisão; 9. Por outras palavras, o desconto de 1 ano - caso o haja - há-de ser sobre a pena aplicada em cúmulo; 10. O que a lei não diz, de todo, é que as penas superiores a 8 anos (em cúmulo jurídico) não são abrangidas pelo perdão; 11. Ainda que a pena cumulatória se afigure superior a 8 anos, o facto de esta ser composta por crimes que sejam abrangidos pela Lei do perdão e sobre os quais não tenha sido aplicada uma pena superior a 8 anos, tem forçosamente de importar o perdão de 1 ano de pena de prisão; 12. Diferente entendimento revela um manifesto atropelo ao princípio da igualdade consagrado no artigo 13º CRP, na medida em que duas pessoas condenadas pelo mesmo crime, na mesma pena podem ter tratamento diferente perante a lei; 13. Pelo, que deverá ser descontado 1 ano de prisão à pena única aplicada ao arguido; 14. Uma interpretação do art.º 3º nº4 da lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, segundo a qual se entenda que uma pena única (cumulatória) superior a 8 anos de prisão, não merece o perdão previsto nessa lei, ainda que a mesma seja integrada por crimes que sejam abrangidos pela mesma e sobre os quais não tenha sido aplicada uma pena – parcelar – superior a 8 anos, inquina de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 13º e 32º da CRP. NORMAS VIOLADAS: - Artigo 13º e 32º da CRP; - Artigo 3º nº1 e nº4 da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso obter provimento, e em consequência, ser perdoado 1 ano de prisão à pena única do arguido.” * 3. Respondeu ao recurso o Ministério Público, concluindo: “1- É hoje entendimento da jurisprudência e da doutrina que as leis de amnistia e de perdão são providência de ocasião e de excepção, que se interpretam e aplicam nos seus precisos termos sem ampliação nem restrição que não venha expressamente consignada. 2- A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto é clara ao determinar que, na conjugação do n.º 1, com o n.º 4, do artigo 3.º, o perdão se aplica, no caso de cúmulo jurídico, à pena única, desde que a mesma não seja superior a oito anos de prisão. 3- No n.º 1, do artigo 3.º, manda perdoar todas as penas de prisão -seja qual for o número de processos, uma vez que não há qualquer limitação nesse sentido, desde que não sejam superiores a oito anos de prisão (n. º1, do artigo 3.º). 4- No n.º 4, do artigo 3.º, determina que quando ocorre uma situação de cúmulo jurídico o perdão incida sobre a pena única, isto é, sobre a pena obtida a partir do cúmulo jurídico de todas as penas parcelares, desde que não seja superior a oito anos de prisão. 5- Ao recusar aplicar a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto ao arguido recorrente o tribunal "a quo", deu uma interpretação à Lei que se coaduna com a letra e com o espírito da mesma. 6- Não há violação do princípio da igualdade porque a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, trata de modo diferente situações que são essencialmente diferentes. 7- Havendo sucessão de penas aplica-se o perdão a cada uma das condenações (desde que verificados os requisitos previstos nesse diploma legal (artigos 1.º, 2.º, n.º 1 e 3.º, n.º 1 e n.º 2); existindo concurso superveniente de crimes, que determine a formulação de cúmulo jurídico de penas, aplica-se o perdão à pena única resultante desse cúmulo desde que não seja superior a oito anos de prisão (artigos 1.º, 2.º, n.º 1 e 3.º, números 1, 2 e 4). 8 - O douto despacho recorrido não interpretou deficientemente qualquer preceito legal e, designadamente, os mencionados pelo recorrente. Nestes termos e pelo mais que, V.as Ex.as, Venerandos Juízes Desembargadores, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, julgando-se improcedente o recurso interposto e, consequentemente, confirmando-se o douto despacho recorrido, far-se-á Justiça.” * 4 - O recurso foi admitido por despacho. * 5 – A Sra Procurador-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer: “(…) Como se sabe, do Direito de Graça, de natureza excecional, tem de fazer-se interpretação declarativa. Isto significa que não comporta ele aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas. Atendendo à excepcionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação delas deverá conter-se no texto do respectivo diploma legal; não são, portanto, e repetindo, susceptíveis de interpretação extensiva - não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria - e de interpretação restritiva - entendendo-se que o legislador disse mais do que queria -, sendo absolutamente afastada a possibilidade de analogia. O Direito de Graça - indulto, comutação, perdão e amnistia -, sendo o reverso do direito de um Estado a punir quem comete crimes, consubstancia uma via para obviar a incorrecções legislativas, a erros judiciários ou para propiciar condições favoráveis a modificações profundas da legislação de carácter penal e, também, para a socialização do condenado. O perdão genérico, como figura próxima da amnistia, constitui uma medida de carácter geral, que tem como efeito a extinção de certas penas - amnistia imprópria. Assim, se a amnistia, de carácter geral, é aplicada em função do tipo de crime, o perdão genérico é uma medida de graça geral, aplicada em função da pena. E, sendo genérico e aplicado em função da pena, tem a particularidade de poder ser total ou parcial, conforme seja perdoada a totalidade ou apenas uma parte da pena. No perdão genérico, atenta-se apenas na gravidade da pena e no sacrifício que o seu cumprimento implica para o condenado, podendo ela ser total ou parcialmente perdoada. (vide, a propósito, o acórdão de fixação de jurisprudência nº 2/2023, de 1/02, do Supremo Tribunal de Justiça, ainda que a propósito de perdão distinto) Voltando ao caso, e considerando o acima enunciado, cremos que a lei n.º 38-A/2023 é inequívoca quanto à aplicação do perdão sobre a pena única, tendo havido cúmulo jurídico, com a condição dessa pena única não ser superior a 8 (oito) anos. Subscrevemos, pois, a resposta do Ministério Público e, por conseguinte, concorda-se, com o decidido. O despacho recorrido está fundamentado, fez acertada interpretação da lei e não viola quaisquer normas leais ou constitucionais ou quaisquer princípios do Direito, máxime o princípio da igualdade. Em conclusão, aderindo à contra-argumentação contida na bem fundamentada resposta do Ministério Público, e porque não houve violação de lei, somos de parecer que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente.” * 6. Foi cumprido o disposto no n.º 2, do artigo 417.º, do CPP. 7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência. 8. Cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Objecto do recurso 1. Delimitação do objecto do recurso O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a decidir pelo tribunal ad quem. Tendo presente as referidas conclusões, importa decidir se é admissível a medida de perdão, no âmbito da Lei 38-A/2023-2agosto, numa pena única superior a 8 anos de prisão. 2. Apreciação do recurso O arguido BB nasceu em ../../1987. Não se suscitam nos autos dúvidas quanto à verificação dos pressupostos referentes à idade do arguido BB à data da prática dos factos (pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto) tendo os ilícitos sido praticados “ …até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023 - art 2.º, nº 1, da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto. Os crimes por que BB foi condenado - 35 crimes de explosão, pp art 272º, nº1, b) e c) do CP e 17 crimes de falsificação de documento agravado pp art 256º, nº 1 e) e nº 3, do CP (cfr fls 220 e verso destes autos ) - não integram as excepções previstas no artigo 7º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto. Por acórdão datado de 30-09-2023,transitado em julgado, foi o arguido BB, condenado na pena única de 17 (dezassete) anos de prisão. A referida pena única englobou as seguintes penas parcelares: - de 2 anos e 6 meses de prisão pelo crime de detenção de arma proibida; - de 1 ano e 3 meses por dois crimes de furto qualificado na forma tentada; - de 1 ano e 6 meses de prisão para cada um dos 11 crimes de furto qualificado; - de 3 anos de prisão para cada um de quatro crimes de furto qualificado na forma tentada; - de 3 anos e 6 meses de prisão para cada um de 18 crimes de furto qualificado na forma consumada; - de 4 anos de prisão por cada um dos 35 crimes de explosão, na forma consumada; - de 1 ano e três meses de prisão por cada um dos 17 crimes de falsificação de documento agravado Posto isto. 2.1 Conforme as disposições conjugadas dos arts. 2º, n.º 1 e 3º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 agosto (diploma legal que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – cf. art.º 1º), é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas - únicas - de prisão até 8 anos, relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, com excepção dos elencados no art.º 7º, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos (inclusive) de idade à data da prática do facto. Ora, no caso presente, pese embora à data da prática dos factos o arguido tivesse menos de 30 anos de idade, encontrando-se aqueles igualmente abrangidos pelo período temporal a que alude o art.º 2º, n.º 1 da Lei n.º 38A/2023, de 2 de agosto, para além da respectiva aplicabilidade não excluir os crimes supramencionados, a verdade é que a aplicação do perdão se mostra desde logo excluída, in totum, pelo quantum da pena única aplicada - 17 anos de prisão - claramente superior a 8 anos. É manifesto que foi objectivo do legislador português afastar a aplicação desta medida de clemência às situações de criminalidade grave (cf. art.º 7º, a contrario) e às penas de prisão de elevada duração, de tal forma que é expressa na afirmação de que apenas são objecto do perdão de 1 ano de prisão as penas únicas fixadas em medida não superior a 8 anos – art.º 3º, n.ºs 1 e 4, in fine, da Lei n.º 38/2023, de 2 de agosto. O que no caso presente não se verifica. A pretendida interpretação do recorrente - de que “…a lei não diz, de todo, é que as penas superiores a 8 anos (em cúmulo jurídico) não são abrangidas pelo perdão …” não é sequer concebível, atenta a natureza excepcional de tais normas que, como se assinala no Ac de fixação de jurisprudência de 25-10-2001 «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).” Suficiente é a interpretação literal do artigo 3.º, nº 1, da lei n.º 38A/2023, de 2 de agosto “ é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos - Artigo 3.º, nº 1, da lei referida. Sendo que em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única - nº 4. Obviamente que a pena única de prisão terá como limite os 8 anos referidos naquele nº 1. E não se suscita qualquer dúvida de que em caso de condenação em concurso real de crimes o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares. Presumindo-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. art.º 9, nº 3, do C. Civil), se fosse outro o seu propósito, não deixaria de afastar o limite dos oito anos de prisão para o caso de condenação em pena única. Assim é evidente que se o perdão incide sobre a pena única - até 8 anos de prisão - não incide sobre cada uma das penas parcelares até 8 anos de prisão. No mesmo sentido se pronuncia Ema Vasconcelos (in “Amnistia e perdão – Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto”, Revista Julgar, online, janeiro2024) ao afirmar “[vale isto por dizer que, ainda que uma pena parcelar seja objecto de perdão, caso a mesma venha, posteriormente, a integrar um cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, tal perdão poderá deixar de ser aplicável, por força da pena única que venha a ser aplicada [p. ex: superior a 8 anos, no caso da actual Lei n.º 38-A/2023, de 2.8], ou passar a ser aplicável em diferente medida [vide, artigo 1.º, n.º 1 da Lei n.º 29/99, de 12.05].” Também no mesmo sentido, Ac Rel de Lisboa de 23-01-2024, relator Des. Ramos da Fonseca, onde se esclarece: “(…) no caso de diferentes condenações em penas de prisão de cumprimento sucessivo terá que se atender à medida de cada pena de prisão aplicada em cada decisão e, em caso de condenação em cúmulo jurídico, à pena única, independentemente da medida fixada para as penas parcelares, dado que, neste caso, o perdão incide não sobre as penas parcelares, mas sobre a pena única. (sublinhado nosso) Dos trabalhos preparatórios resulta que, de resto, foi assim que a norma foi interpretada, ou seja, que em caso de condenação em cúmulo jurídico, para beneficiar do perdão de penas, a pena única de prisão não pode exceder 8 anos. Na verdade, consta do parecer do Conselho Superior da Magistratura: “Nestes casos, a aplicação da lei não suscita dificuldades: o perdão incidirá sobre a pena única, sendo perdoado um ano, com o limite previsto no n.º 1 do art.º 3.º (a pena não exceda 8 anos de prisão) ”. Neste sentido também o Acórdão da RPorto, de 10-01-2024, em cujo sumário se escreve: “uma vez que o perdão incide sobre a pena única, em caso de concurso de crimes, se a duração da pena única imposta for superior a 8 anos de prisão, não pode a mesma pena ser objeto de perdão. “ esclarecendo que “definidas com precisão, como estão na lei, as regras aplicadas, nos seus precisos termos, concretamente que o perdão só tem lugar se a pena de prisão a que possa ser aplicado for até 8 anos [art.º 3.º, n.ºs 1 e 4], índice inultrapassável de gravidade de comportamento do agente adoptado pelo legislador, a interpretação da lei nos exactos termos em que se mostra redigida veda in casu a aplicação do pretendido direito de graça. Se assim não fosse, careceria, aliás, de sentido a fixação daquele limite”. Ainda no mesmo sentido Ac Rel Guimarães de 23-01-2024; acórdão do TRP de 11.10.2023, proc. nº 31/21.7SPPRT.P1. Tanto basta para se afirmar que no caso não tem aplicação o regime do perdão previsto na Lei 38-A/2023, de 02.08, atento o disposto no seu Artigo 3.º, nºs 1 e 4. Lembrar que a Lei 3/81-13março, não previa norma para o caso de haver concurso de infrações e inerente cúmulo jurídico, o que provocou divergência jurisprudencial, dando origem ao Assento 5/83, de 21outubro1983 (in DR, 1.ª Série, de 11novembro1983, p. 3798 e 3799), com o seguinte teor: “No caso de concurso real de infracções em que, nos termos do artigo 102.º do Código Penal de 1886, tem de aplicar-se ao réu uma pena única, é sobre esta, e não sobre as penas parcelares que o § 2.º do mesmo artigo manda também indicar, que deve incidir o perdão previsto pelo artigo 2.º da Lei nº 3/81, de 13 de Março.” - Ac Rel de Lisboa de 23-01-2024, relator Des Ramos da Fonseca. Concluindo, apesar de verificada a delimitação subjectiva de idade do agente e a delimitação objectiva do tempo do ilícito, no caso presente a aplicação da medida de perdão mostra-se pelo quantum da pena única aplicada, manifestamente superior a 8 anos. * 2.2 Da violação do princípio da igualdade Defende o arguido/recorrente que “um indivíduo que seja condenado pelos mesmos crimes que o arguido, ora requerente, mas se encontre a cumprir as referidas penas sucessivamente, gozará do referido perdão em todas elas, vendo assim 1 ano descontado em cada pena. E conclui “Ainda que a pena cumulatória se afigure superior a 8 anos, o facto de esta ser composta por crimes que sejam abrangidos pela Lei do perdão e sobre os quais não tenha sido aplicada uma pena superior a 8 anos, tem forçosamente de importar o perdão de 1 ano de pena de prisão. Diferente entendimento revela um manifesto atropelo ao princípio da igualdade consagrado no artigo 13º CRP, na medida em que duas pessoas condenadas pelo mesmo crime, na mesma pena podem ter tratamento diferente perante a lei.” O direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de Direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, já que permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, função atribuída apenas ao poder judicial. Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam. A propósito do direito de graça, vem o Tribunal Constitucional entendendo que - nos parâmetros do Estado de direito democrático, - a liberdade de conformação legislativa “goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d'Etat.» Discricionariedade normativo-constitutiva que, contudo, tem de respeitar as normas e os princípios constitucionais, nomeadamente o princípio da igualdade (perante a lei e na lei - cf. Pedro Duro, “Notas sobre alguns limites do poder de amnistiar”, in Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, FF, nº. 3, 2001, p. 323 et seq.; e Francisco Aguilar, Amnistia e Constituição, Almedina, p. 37 e seg.) ). e a proibição de arbitrariedade, como limites à actividade legiferante do órgão constitucionalmente competente para dispor sobre a matéria. Assim, o Tribunal Constitucional nº 25/00, publicado no Diário da República, II Série, nº 71, de 24 de Março de 2000: "De acordo com a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional, as soluções normativas relativas às chamadas medidas de graça ou de clemência não estão subtraídas ao crivo do princípio da igualdade. Como se afirmou no acórdão nº 444/97 (Diário da República, II Série, de 22 de Julho de 1997, sobre a Lei nº 9/96, de 23 de Março, 'o princípio de igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados – como são restringidos pela aplicação das sanções – impede desigualdades de tratamento'. A diferenciação de tratamento que por elas seja estabelecida não deve ser arbitrária, materialmente infundada ou irrazoável (cf. o acórdão nº 42/95, Diário da República, II Série, de 27 de Abril de 1995, a propósito da exclusão de certas infracções do âmbito do perdão de penas concedido pela Lei nº 15/94; v. também os acórdãos 152/95, Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995, e 160/96, não publicado, ambos sobre normas extraídas da mesma Lei). Por outro lado, situações substancialmente diferentes exigem um regime diverso. A desigualdade de tratamento para diferentes situações é ainda uma dimensão essencial do princípio da igualdade - art 13º CRP. Do mesmo modo, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da República 1.ª série-A, de 17 de Junho de 2003), assumindo em diversos passos da sua fundamentação abundante argumentação de jurisprudência anterior: [...] Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da "atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição) (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990). O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, «razoável, racional e objectivamente fundadas», sob pena de, assim não sucedendo, «estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes», no ponderar do citado Acórdão n.º 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299). Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como «princípio negativo de controlo» ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos n.º s. 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados n.º s. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial («tertium comparationis»). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão n.º 330/93). Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da «diferença» de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.” Não obstante a diferença na aplicação do perdão aos casos de condenados em penas sucessivas e em pena única, - verificados que estejam os pressupostos da respectiva aplicação - não se vislumbra qualquer afronta aos princípios de equidade e igualdade, em especial na vertente constitucional, decorrente da não aplicação ao caso concreto da medida de perdão. Em rigor, trata-se de uma opção legislativa de considerar merecedores do perdão somente aqueles que, nas demais condições previstas, tenham sido condenados numa pena de prisão não superior a 8 anos. Ora, na hipótese invocada pelo recorrente, qualquer uma das ditas penas sucessivas é necessariamente inferior a 8 anos de prisão. O que obsta a que se conclua que o beneficiário do perdão está condenado numa pena de longa duração, ou seja, numa pena superior a 8 anos de prisão. O que justifica a conclusão de que a limitação não é política - criminalmente infundada. Com efeito, posto que uma pena de prisão de 8 anos é uma pena grave, não se afigura arbitrário considerar que um agente condenado numa pena de prisão de duração superior a 8 anos não é merecedor de qualquer medida de graça, tenha tal pena sido aplicada apenas por um crime ou se trate de uma pena única em cúmulo jurídico de várias penas parcelares porventura, cada uma delas, de medida inferior. Os n.ºs 1 e 4, do artigo 3.º da citada Lei 38-A/2023 não são inconstitucionais. A lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos/condenados que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado. Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da lei está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável. O legislador soube exprimir-se e quis aplicar o perdão de um ano às penas únicas até 8 anos de prisão, sem que isso fira o princípio da igualdade, pois a conduta de quem comete vários crimes em situação de concurso é mais gravosa de quem comete crimes inferiores àquele tecto ou sem estar em situação de concurso, que o legislador não entendeu merecedor de medida de clemência. Esta interpretação não viola qualquer direito do recorrente, nomeadamente o princípio da igualdade. Apesar de se referir à questão da idade (30 anos), valem aqui os mesmos fundamentos relativos ao princípio da igualdade, pois analisada a lei 38-A/2023, de 02 de Agosto entendemos em conformidade com o Ac desta Relação, de 22-11-2023, relator Des João Abrunhosa a Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, que “…a delimitação do âmbito de aplicação da lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, portanto em número indeterminado, está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não padece de inconstitucionalidade a limitação constante do n.º 1 do artigo 2.º.” Com idêntica reserva, “Não cabe duvidar de que as medidas de clemência, como outras quaisquer com que o legislador delimite direitos ou deveres dos cidadãos perante o Estado, devem ser por ele conformadas em obediência aos ditames do princípio da igualdade, por conseguinte sem mácula de arbítrio, mas isso não tem de supor uma irrestrita homogeneidade de soluções, implicando somente que a diversidade delas não seja materialmente infundada ou desrazoável – como é doutrina comum e na resposta ao recurso e no parecer junto deste tribunal enfatiza o MP, citando pertinente jurisprudência do Tribunal Constitucional, “situações substancialmente diferentes exigem um regime diverso; a desigualdade de tratamento para diferentes situações é ainda uma dimensão essencial do princípio da igualdade” - Ac Rel Coimbra, de 21/02/2024 relator Des Pedro Lima, Proc nº 331/13.0JALRA-A.C1. Sobre a questão, veja-se Ac do TC nº 510/98, que contém um estudo desenvolvido do instituto da amnistia, da sua história e da sua justificação no Estado de direito da Constituição e o respectivo voto de vencido onde se assinala “Ao apreciar a conformidade de uma decisão descriminalizadora com os princípios e normas constitucionais, o Tribunal deve averiguar, nomeadamente, se não há violação do princípio da igualdade (por exemplo, através de uma descriminalização de crimes mais graves, como o homicídio, associada à persistência da incriminação de crimes menos graves, como as ofensas corporais) ou até mesmo da exigência de segurança jurídica derivada do princípio do Estado de direito democrático (mediante a desprotecção sem apelo a meios alternativos de política criminal dos bens jurídicos de primordial dignidade que, afinal, não podem ser negligenciados pelo legislador penal sem que o sistema seja posto em causa no seu conjunto). Logo, perfilhando este entendimento expresso com muita clareza, também se nos afigura que a aplicação do perdão à pena única - e já não às parcelares inferiores a 8 anos de prisão - encontra uma justificação material razoável e constitucionalmente relevante, tendo em conta, desde logo, a gravidade global da conduta ilícita do condenado, não sendo arbitrária, nem irrazoável, tratando de forma igual todos os que se encontram na mesma situação. Em suma, a norma em questão mostra-se de acordo com os princípios constitucionais vigentes. Improcede assim na totalidade o recurso interposto pelo arguido BB. * III- Dispositivo Nestes termos, em conferência, acordam os Juízes que integram a 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido BB e, consequentemente, confirmar na íntegra a decisão do Tribunal a quo. Custas criminais a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC, Processado informaticamente e revisto pela relatora Coimbra, 06-03-2024 Isabel Valongo Cristina Branco Pedro Lima |