Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
466/14.1T8CTB-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: ACÇÃO DE CESSAÇÃO DE ALIMENTOS
REQUISITOS
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1880.º E 2013.º, 1, C), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O art. 2013, nº 1, al. c), do Código Civil, relativo à cessação da obrigação alimentar, exige que o credor dos alimentos viole gravemente os seus deveres para com o obrigado.
No caso, não preenche essa gravidade a circunstância do filho, decorridos 8 anos de falta de relacionamento, recusar falar com o pai.
Decisão Texto Integral: *

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

AA pediu a cessação da prestação de alimentos contra o seu filho, BB, invocando que o requerido lhe falta continuamente ao respeito, estuda sem aproveitamento, e que dispõe de meios de subsistência, pois se encontra a trabalhar.

O requerido contestou, sustentando que a situação se mantém inalterada desde o divórcio dos pais, separação que teve influência no seu equilíbrio emocional e psicológico e que apenas decidiu trabalhar em part-time para aliviar a sua mãe nas despesas inerentes à sua formação.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar o pedido improcedente, mantendo-se a obrigação alimentar.


*

           Inconformado, o Autor recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

I.Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou improcedente, o pedido formulado pelo aqui recorrente no sentido de ser declara judicialmente a cessação da prestação de alimentos ao seu filho maior, aqui recorrido, BB.

II- Na, aliás, douta sentença, objecto do presente recurso foram considerados provados os seguintes factos: (…)

III. Para além destes factos, resultam provados nos autos os seguintes factos:

-- O recorrido reprovou no ano letivo de 2022/2023.

-- A responsabilidade pelos factos e comportamento descritos nos nºs 2 a 8 supra, são da única e exclusiva responsabilidade do filho, aqui recorrido.

-- O recorrido desloca-se numa viatura cuja propriedade não foi apurada.

-- O recorrente desde janeiro de 2015, sempre pagou a pensão de alimentos fixada no montante de 175,00 € mensais, até novembro de 2022, inclusive.

Conforme sustentado e justificado supra.

IV. Os factos provados, no entender do recorrente, fundamentam, a sua pretensão de cessação da obrigação alimentar para com o seu filho, aqui recorrido. Com efeito: E socorrendo-nos do entendimento perfilhado pelo Desembargador Tomé Ramião, que citamos de seguida: (…)

VI. Contrariamente ao decidido na sentença recorrida, existem nos autos elementos de facto suficientes para considerar excluída a obrigação alimentar do recorrente por força do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 2013º.

VII. Como é sabido e consabido os filhos estão sujeitos ao poder paternal (hoje, responsabilidades parentais) até à maioridade ou emancipação — artigo 1877.º

VIII. No exercício desse poder-dever os pais devem prover ao sustento, saúde, segurança e educação dos filhos, promovendo, de acordo com as suas possibilidades, o seu desenvolvimento físico, intelectual e moral — n.º 1, do artigo 1878. º e n. º 1, do artigo 1885. º.

IX. Todavia, esse dever não cessa necessariamente com a sua maioridade, dado que se nessa altura o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação de prestar alimentos na medida em que seja razoável erigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete. como decorre expressamente do artigo 1880.º.

X. Porém, a obrigação alimentar cessa (entre outros) desde que o credor viole gravemente os seus deveres para com o obrigado — al. c), do n.º 1 do artigo 2013.

XI. Este normativo foi introduzido pelo Decreto-Lei n. 0 496/77, de 25 de novembro, pois que na primitiva versão do texto legal se prescrevia que a obrigação de alimentos cessava quando se verificasse algum dos factos que legitimavam a deserdação, factos esses que, tal como atualmente, justificam a deserdação, estão taxativamente elencados no artigo 2166.º.

XII. O legislador pretendeu. deste modo, ampliar a causa de cessação da obrigação alimentar, nela abrangendo qualquer violação grave, por parte do alimentando, dos deveres gerais de abstenção, para com o obrigado. Com essa alteração normativa visou alargar o âmbito da referida causa de cessação da obrigação de alimentos, embora através de um conceito vago e impreciso — o de grave violação pelo credor dos seus deveres para com o devedor — cf. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. V.- p. 604.

XIII. O dever mútuo ou reciproco de respeito é entendido como dever de consideração pela vida, pela integridade física e pela personalidade moral de duas pessoas e nada tem de característico ou de diferente do dever de respeito recíproco que preside às relações entre marido e mulher. do artigo 1672. nas palavras de P. Lima e Antunes Varela, ob. citada, p. 318 e 319.

XIV. E assim foi entendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, 22/03/2007, processo n.º 86/07-3 (www.dgsi.pt/) onde se escreveu que "o legislador de 1977, tal como claramente exprimiu, pretendeu, manifestamente, abandonar os efeitos taxativos diretos de uma condenação penal, para introduzir uma ideia mais vasta e genérica de violação grave e genérica dos deveres (éticos) para com o obrigado”

XV. Entendimento que tem vindo a ser seguido pela jurisprudência, como se pode ver no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. de 15/12/2005, processo n. º 0584101, disponível em www.dgsi.pt/, no qual se entendeu que "o dever recíproco de respeito a que alude o n.º 1, do artigo 1874. reporta-se à consideração pela vida. Integridade física e moral, e o conceito de violação grave pelo credor de alimentos dos seus deveres para com o obrigado, a que se reporta a al. c). do n. 1 do artigo 2013.", deve ser prudencialmente densificado sem olvido do sentido mais restritivo do seu antecedente histórico e das atuais circunstâncias do modo de ser da vida familiar" (pelo mesmo caminho seguiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02/03/2010 Proc. n. 0 749/08. 0TMAVR.CI).

XVI. Ora, como flui do artigo 1874. º, pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência.

XVII. No caso concreto, os factos considerados assentes, revelam, sem dúvida, uma violação grave de respeito. por banda do requerente, aqui recorrido, relativamente ao requerido, aqui recorrente, seu pai, atentatória da sua personalidade moral. ofendem sua dignidade pessoal, o respeito e a consideração que lhe são devidos pela requerente.

XVIII. Com efeito, vem provado que os contactos entre o pai e o filho cessaram em janeiro de 2015, ou seja, há cerca de 9 anos, sendo que a requerente conta atualmente com 22 anos de idade.

XIX. Desde essa altura o recorrido, não passou um único dia com o pai, seja dia de semana, seja fim de semana, seja em férias recusando-se a fazê-lo, não obstante as tentativas do pai.

XX. O recorrido, filho, recusa-se a falar com o pai, recusando-se mesmo a cumprimenta-lo, mesmo quando ocasionalmente passa por si, não respondendo sequer aos cumprimentos do pai.

XXI: Não responde aos telefonemas que o pai efectua, nem às mensagens, nem mesmo às mensagens que o pai envia em dias festivos.

XXII. O filho aqui recorrido assume, e escreve, que desde janeiro de 2015, não existe qualquer relacionamento entre ele e o seu pai, aqui recorrente, o que ocorre por recusa dele, filho.

XXIII. O recorrido não apresenta outra justificação que não seja a separação e divórcio dos pais.

XXIV. Não imputando ao pai qualquer comportamento violador das obrigações do pai para com ele.

XXV. Perante esta factualidade, em especial a atitude do requerente, quando encontra o pai na rua, só ou acompanhado, não o cumprimenta, não responde aos cumprimentos do pai, não lhe telefona nem envia mensagens, não atende o telefone nem responde às mensagens do pai, no Natal ou noutras épocas festivas, revela total indiferença. senão desprezo, pelo pai, quando lhe era exigível outro comportamento, nomeadamente cumprimentar o pai, dirigir-lhe a palavra, manifestar sentimentos de apreço, estima, consideração e afeto.

XXVI. Ao adotar tal comportamento, consciente, voluntário, e sem qualquer justificação aceitável (pois dos autos não resultam elementos que o justifiquem), a requerente violou gravemente o dever de respeito devido ao requerido, com o conteúdo acima referido, sendo tal conduta censurável do ponto de vista ético-jurídico, fundamentando a cessação da obrigação alimentar deste.

XXVII. Os pais da requerente estão divorciados, desde janeiro de 2015, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais, por sentença de 15/01/2015, ficando o requerido obrigado a entregar à progenitora a quantia mensal de 175,00 €, a título de alimentos para o filho, aqui recorrido, e que o recorrente manteve o pagamento dessa quantia até novembro de 2022, inclusive, ou seja, até atingir mais de 21 anos de idade, pois que nasceu em ../../2001.

XXVIII. Portanto dos autos nada consta em desabono do pai do recorrido, nomeadamente que de alguma forma haja contribuído para a génese desse comportamento, que permitam justificar a sua atitude, ou pelo menos a tornar compreensível à luz do senso comum e, consequentemente, diminuam sensivelmente a sua culpa, sendo que conta atualmente com 22 anos de idade, não deve beneficiar dessa obrigação alimentar.

XXIX. Seguir outro caminho, é premiar o comportamento censurável da requerente, que apenas vê o pai como fonte de rendimento, como sujeito de deveres, desprezando ou Tribunal Judicial da Comarca ... ignorando outros valores, como o de respeito pela personalidade moral, a estima, a consideração e a solidariedade familiar, ou dito de outro, o filho só se lembra que tem um pai por necessitar dos alimentos deste para poder completar a sua formação profissional, o que o recorrente exprimiu e verbalizou em Tribunal.

XXX. E porque assim é, não parece razoável exigir que um pai continue a prover ao sustento, saúde e educação de um filho maior quando este não cumpre, em relação a ele, os apontados deveres de respeito, auxílio e assistência (neste sentido vide Acórdão da Relação do Porto de 17/02/1994, Col J., Ano XIX, T 1, p. 240.

XXXI. Acresce que, o recorrido, encontra-se a trabalhar e tem possibilidade de prover ao seu sustento.

XXXII. Não sendo razoável que venha dizer que o dinheiro que ganha é para fazer face a despesas que não dizem respeito ao seu sustento, alimentação, vestuário ou educação.

XXXIII. Despesas que não constam dos autos.

XXXIV. Conclui-se, assim, que o recorrido, violou gravemente o dever de respeito para com o pai, ora recorrente, não sendo razoável que este lhe continue a prestar alimentos atá completar os seus estudos, como decorre do disposto na al. c) do nº 1 do artigo 2013º e no artigo 1874º, ambos do Código Civil.


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            O Recorrido contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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            Questões a decidir:

            A reapreciação da matéria de facto impugnada;

A conferência da falta de respeito;

A desnecessidade alimentar do filho.


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A reapreciação da matéria de facto impugnada.

O Recorrente pretende o aditamento de 4 factos, sem que indique os meios de prova que os sustentam, sendo certo que a motivação do julgador assentou em prova pessoal.

Sem prejuízo dessa falta, a resposta à pretensão é simples, relativamente a cada um deles:

Conforme a prova documental, não está certificado que o recorrido tenha reprovado no ano letivo de 2022/2023. É apenas certo que ele não fez todas as disciplinas do 2º ano da licenciatura.

A proposta do segundo ponto (“A responsabilidade pelos factos e comportamento descritos nos nºs 2 a 8 são da única e exclusiva responsabilidade do filho”) esbarra na consideração de que não se trata de um facto, mas sim de uma conclusão jurídica.

Quanto ao 3º (O recorrido desloca-se numa viatura cuja propriedade não foi apurada), o mesmo é irrelevante, por não ter conteúdo patrimonial concreto.

O último (O recorrente, desde janeiro de 2015, sempre pagou a pensão de alimentos fixada no montante de 175,00 € mensais, até novembro de 2022, inclusive), no que ao objeto do processo interessa, tem já a útil consagração no fixado no ponto 23, infra.

Pelo exposto, julgamos a impugnação improcedente, mantendo a matéria de facto como já decidido, do seguinte modo:

Factos provados:

1.Por acordo celebrado na conferência de pais realizada no dia 14 de janeiro de 2015, homologado por sentença transitada em julgado, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais relativas ao requerente BB, então menor nos termos dele constantes.

2.O filho não passou um único dia com o pai, seja dia da semana, seja fim de semana, seja em férias.

3.Recusando-se a fazê-lo, não obstante as tentativas do pai.

4.Situação que se arrastou e se mantém inalterada.

5.O filho recusa-se a falar com o pai, recusando-se mesmo a cumprimentá-lo, mesmo quando ocasionalmente passa por si, nem respondendo aos cumprimentos do pai.

6.Não responde aos telefonemas que o pai efectua, nem às mensagens.

7.O pai envia SMS em alguns dias festivos, e o seu filho não responde.

8.Tal comportamento causa grande sofrimento e mágoa ao requerido.

9.O filho reprovou a algumas disciplinas do curso que frequenta na Escola Superior ....

10.O requerido encontra-se a trabalhar e auferindo a correspondente retribuição.

11.A separação dos pais teve influência no equilíbrio emocional e psicológico do Requerido filho.

12.Surgiram conflitos, familiares.

13.Não mais conseguindo, pai e filho, ter um relacionamento salutar.

14.O relacionamento entre ambos está como sempre esteve (desde a separação do casal).

15.O R. não maltratou física ou verbalmente o pai.

16.Nunca atentou contra a vida do mesmo.

17.Não há contactos pessoais entre ambos de janeiro de 2015 em diante, e também não existe outro género ou nível de relação entre eles.

18.O R. frequenta o curso de Agronomia no Instituto Politécnico ....

19.No ano letivo 2021/2022, obteve aproveitamento escolar, tendo transitado de ano.

20.Encontra se a frequentar o 2º ano do curso de Agronomia.

21.O R. encontra se a trabalhar no hipermercado ..., em regime de “part-time”.

22.O R. decidiu fazer este “part-time” para não sobrecarregar a mãe com todas as suas despesas.

23.Desde dezembro (inclusive) que o A. não paga a pensão de alimentos, nem comparticipa nas propinas.

24.O R. aufere como salário líquido 356,00€

25.Para além das despesas normais com alimentação, vestuário, saúde, propinas, combustível, tem outras próprias da idade.

26.E é com o que ganha no “part-time” que o R. faz frente a esse tipo de despesas.


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A rutura da relação afetiva entre as partes vem já de 2015, fruto da separação dos pais do Requerido, referindo o Requerente, a esse respeito, que “eu sei que o BB foi quem mais sofreu” (cfr. motivação da matéria de facto e facto 11).

Essa rutura não foi obstáculo ao cumprimento da obrigação alimentar ao longo destes 8 anos.

Sendo certo que o Requerido não fala com o seu pai, mas sem que se assegure a causa do silêncio e a sua motivação, no limitado contexto adquirido, a consideração daquela falta de resposta às solicitações verbais do pai não tem um sentido negativo grave, que possa ser apenas imputado ao credor, como a lei exige no art. 2013, nº 1, al. c), do Código Civil, para que agora cesse, 8 anos depois, por esse motivo, a obrigação alimentar.

(Neste sentido, acórdãos das Relações de Lisboa, Évora, Guimarães e Coimbra, de 13.4.2023 (proc.3755/18), 8.3.2012 (proc.287/10), 17.3.2022 (proc.6080/15) e de 21.5.2019 (proc.279/07), respetivamente, este último subscrito pelo relator, todos em ECLI, jurisprudência.csm.org.pt.)

Segunda questão levantada pelo Recorrente (conclusão 31): o recorrido encontra-se a trabalhar e tem possibilidade de prover ao seu sustento.

Diga-se que este sustento compreende tudo o que é indispensável à alimentação, habitação e vestuário do alimentando, incluindo ainda a finalização da instrução ou formação profissional daquele, nos limites do art.1880 do Código Civil.

O Recorrente não discute a aplicação ou não desta norma, alegando apenas que o filho tem possibilidade de prover ao seu sustento.

Provou-se que o Recorrido, com 22 anos de idade, além de estudar, trabalha em part-time, quatro horas diárias, e aufere 356 € mensais, ou seja, aquele, com a pensão, dispõe de 531€ mensais.

Tem despesas normais com alimentação, vestuário, saúde, propinas, combustível, e outras próprias da idade. Ele decidiu fazer o “part-time” para não sobrecarregar a mãe com todas as suas despesas.

As despesas não tiveram uma concretização financeira, mas temos um sentido mínimo para elas, no contexto de vida do Recorrido.

A componente habitacional, sem referência, não deve ser desconsiderada.

Encontra-se o Recorrido a frequentar o 2º ano do curso de Agronomia (numa licenciatura de 3 anos).

Em face do alegado pelo Recorrente, quem tem o ónus de demonstrar o fundamento para a pedida cessação da obrigação alimentar, e no contexto do que ficou provado, não nos é possível dizer que o Recorrido tem agora capacidade económica para ter uma vida financeira autónoma e que deixou de ter necessidade do apoio dos 175€ mensais do pai.

Em conclusão, não merece censura a decisão recorrida


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            Decisão.

           Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelo Recorrente, vencido.

2024-02-20


(Fernando Monteiro)

(Fonte Ramos)

(Carlos Moreira)