Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
480/22.3T8SRE-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
FIANÇA
BENEFÍCIO DO PRAZO
EFEITOS DA CITAÇÃO PARA A EXECUÇÃO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA, COM VOTO DE VENCIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 781.º E 782.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O disposto no art. 782 do Código Civil não é um direito indisponível. As partes têm a faculdade de, contratualmente, prescindirem do benefício do prazo.
Apesar dos fiadores não terem sido interpelados extrajudicialmente para pagar o montante dado à execução, em virtude do incumprimento do contrato por parte do devedor principal, a citação para a execução, neste caso, desempenha eficazmente essa função, na medida em que aqueles acordaram que a falta de pagamento de qualquer das prestações importaria a extinção do plano prestacional, sem necessidade de aviso prévio aos devedores.
Perante o acordo, os fiadores deixaram de ter a faculdade de, em caso de incumprimento do devedor principal, poder substituir-se a ele no cumprimento do contrato seguindo o esquema prestacional.
Decisão Texto Integral: *

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

AA, BB, CC e DD vieram, por apenso aos autos de execução nº 480/22...., movidos por A..., Lda., deduzir embargos, alegando, em síntese (no que agora importa ao recurso, interposto apenas pelos fiadores contratuais):

Quanto aos fiadores AA e BB: estão a ser acionados na qualidade de fiadores do “acordo de reconhecimento de dívida e obrigação de pagamento” junto como título executivo ao requerimento executivo apresentado, pelo que, deveriam ter sido notificados para poderem pagar a dívida, sob pena do benefício do prazo de que detêm antes da resolução contratual, sendo que só souberam da pretensão da exequente de resolução/vencimento de todas as prestações, com a citação para a acção executiva; são cumpridores da sua parte, pois, na sua perspetiva, as únicas prestações que lhes são diretamente imputáveis são as previstas nas alíneas a) e b) da cláusula 3.ª do título executivo apresentado, sendo que a primeira foi paga e a segunda só se venceria em 30 de junho de 2022, tendo a acção executiva dado entrada em 03 de Março de 2022.

Notificada, a Exequente contestou, em síntese, quanto aos fiadores:

Os mesmos foram interpelados telefonicamente com vista ao pagamento da dívida; eles assumiram pessoal e diretamente o pagamento da dívida nos mesmos termos que os restantes devedores (com a inerente perda do benefício do prazo), tendo sido estipulado o vencimento imediato da dívida, em caso de não pagamento de uma prestação.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar parcialmente procedentes, por parcialmente provados, os embargos, reduzindo-se a quantia exequenda quanto aos executados AA e BB para o montante de € 125.801,45 de capital, acrescido dos juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal, a contar desde a data da citação dos referidos executados (08.04.2022) até efetivo e integral pagamento.


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           Inconformados, AA e BB recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

A)Reconhece a douta sentença que “…considera o Tribunal que, face à inexistência de qualquer prova no sentido de que os fiadores tenham sido previamente interpelado…” dando mesmo este facto como não provado, que “No que diz respeito ao facto não provado vertido na alínea (A) considera o Tribunal que a Exequente não fez qualquer prova de ter interpelado os fiadores AA, BB para pagamento das quantias em dívida, previamente à instauração da acção executiva de que os presentes constituem apenso. Com efeito, não foi produzida prova testemunhal nesse sentido, nem junta qualquer carta de interpelação.

B) Porém os recorrentes ficaram vinculados por força da cláusula Sétima do “acordo de reconhecimento de divida e obrigação de pagamento”, sendo garantes/fiadores da referida divida, de onde consta expressamente “… como quartos outorgantes fiadores”. E onde assumem “…expressa renúncia a qualquer benefício de divisão ou excussão prévia.”.

C) Ora de acordo com a douta sentença diz-se que “Na cláusula referente à fiança prestada (cláusula 7.ª) em nenhuma parte é referido que os fiadores renunciam ao benefício do prazo, considerando o Tribunal que, contrariamente ao alegado pela Embargada em sede de contestação, do clausulado contratual não se retira que os fiadores tenham renunciado ao benefício do prazo. Acresce que, resultou como não provado que «Que, previamente à instauração da presente acção executiva, os Embargantes AA e BB tenham sido interpelados pela Exequente para procederem ao pagamento das quantias em dívida» (cf. facto não provado vertido na alínea A).”.

D) Sempre deveriam os fiadores ter sido notificados para poderem pagar a divida, antes da resolução contratual, sob pena da perda do benefício do prazo que os fiadores detinham, mas não aconteceu pois estes só souberam da pretensão da resolução/vencimento de todas as prestações, com a presente execução.

E) Neste sentido o douto Ac. da Relação de Coimbra, no proc. 1049/11.3T8PMS.C1 de 04/04/2017, (…)

F) E ainda o douto Ac. do S.T.J., de 11/05/2022, no processo 151119.0T8STB-A-E1-SI, (…)

G) E ainda o douto Ac. do S.T.J. de 14-01-2021, no processo 1366/18.1T8AGD-A.P1-S1, (…)

H) Pelo que os fiadores/recorrentes, antes da acção executiva, teriam de ser citados para pagar as prestações em atraso e dar cumprimento ao plano de pagamentos acordados, o que não aconteceu e como ficou provado, pelo que, nunca a acção executiva poderia correr contra si, como aconteceu.

I) Além de que as prestações imputadas aos fiadores são duas, nos termos da cláusula Terceira, alínea a) e b), a primeira vencida e paga e a segunda só se venceria em 30 de Junho de 2022, logo estavam os fiadores cumpridores da sua parte, nessa data.

J) Assim nunca poderia a Meritíssima Juiz do tribunal a quo decidir a validade da execução, contra os fiadores/recorrentes, nos termos em que o fez, não dando porém a possibilidade aos fiadores de cumprir com qualquer prestação que eventualmente estivesse em atraso.

L) A interpelação não dispensa interpelação autónoma do fiador, pois para o art. 781 do CC, só resulta a mera exigibilidade das prestações e não o vencimento automático, pois estas só se vencem depois da interpelação, como estabelece o douto Ac. do T.R.G., de 03-10-2019, no processo 3646/18.7T8GMR-C.G1.

M) Pelo exposto fica prejudicado a responsabilidade dos recorrentes pelo pagamento do valor peticionado pelos recorridos, já que a acolher-se a posição do douto tribunal a quo sempre ficariam prejudicados os direitos dos fiadores.

Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte vencida e proferindo decisão que, acolhendo as posições sustentadas pelos recorrentes e plasmadas nas suas conclusões, julgue a acção improcedente, quanto a estes e, em consequência, absolvendo-os.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            Questões a decidir, no âmbito da fiança contratual:

            Conferência da renúncia ao benefício do prazo, pelos fiadores;

Consequências da falta de interpelação destes fiadores.


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Factos provados:

1. Em 03 de Março de 2022 a Exequente A..., Lda. instaurou

contra B..., Lda., CC, DD, AA e BB, execução ordinária para o pagamento de quantia certa, ascendendo o montante da quantia exequenda peticionada a € 125.801,45.

2. No Requerimento Executivo apresentado, a Exequente invocou, nomeadamente, o seguinte:

«1.º A aqui Exequente arrendou o estabelecimento comercial de restauração "C..." à ora primeira executada;

2.º Sucede que não foram pagas as rendas do supra aludido estabelecimento, pelo

que o aqui Exequente intentou as competentes acções executivas para pagamento de quantia certa, que correram os seus termos no Juízo de Execução ..., sob os números

880/19.... e 1850/21....;

3.º Em consequência das diligências executivas promovidas nos processos supra, os ora Executados, em 30 de Novembro de 2021, celebraram uma confissão de dívida e acordo de pagamento prestacional, através do qual ficaram obrigados a pagar ao aqui Exequente o montante global de € 126.551,45 (cento e vinte e seis mil quinhentos e cinquenta e um euros e quarenta e cinco cêntimos) (…) Sucede que, até à presente data, os Executados não procederam ao pagamento dos valores supra indicados, encontrando-se vencidas e não pagas as prestações (de € 750,00 cada) referentes aos meses de Janeiro de 2022 e Fevereiro de 2022(…) Ora, mais prevê a cláusula quinta do acordo firmado que: "A falta de pagamento de qualquer uma das prestações nos prazos supra fixados, implicará o imediato vencimento da dívida pendente e ainda o pagamento de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de penalidade, sendo facultado à credora o direito de reclamar judicialmente juntos dos devedores o saldo a seu favor, sem necessidade de aviso ou diligência prévia, constituindo assim este documento, devidamente autenticado, título executivo." (…) Destarte, pretende a Exequente haver dos Executados o capital já vencido, que ainda permanece em dívida, no montante de € 120.801,45 (cento e vinte mil oitocentos e um euros e quarenta e cinco cêntimos) (…) Ao capital em dívida acresce ainda a cláusula penal estipulada no contrato, no montante global de € 5.000.00 (cinco mil euros)(…)Às quantias supra descritas acrescem ainda os juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento da quantia em dívida, bem como as demais despesas de cobrança, efetuadas pela Exequente».

3. Apresentou como título executivo um documento intitulado de “Acordo de Reconhecimento de Dívida e Obrigação de Pagamento”, datado de 30 de novembro de 2021, autenticado por advogado, no qual constam como outorgantes: - B..., Lda., representada pelo então sócio gerente, CC como «primeira outorgante devedora»; - DD, como «segundos outorgantes devedores»; - A..., Lda. como «terceira outorgante credora»; - AA e BB como «quartos outorgantes fiadores».

4. Nos termos do referido “Acordo de Reconhecimento de Dívida e Obrigação de Pagamento” acordaram as partes o seguinte:


5. Devido à situação pandémica, o estabelecimento comercial de restauração “B...” esteve vários meses encerrado, não tendo os devedores CC e DD auferido rendimentos.

6. A sociedade “B..., Lda.” foi declarada insolvente em 27 de novembro de 2020.

7. O Embargante CC é economista de formação.

8. Os devedores CC e DD não liquidaram as prestações acordadas referentes aos meses de janeiro e fevereiro de 2022, o que determinou o vencimento de todas as demais.

9. AA e BB foram citados na acção executiva principal no dia 08 de abril de 2022.


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Factos não provados:

A) Que, previamente à instauração da presente acção executiva, os Embargantes AA e BB tenham sido interpelados pela Exequente para procederem ao pagamento das quantias em dívida.


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Dos factos apurados, retirou o Tribunal recorrido duas conclusões:

Do clausulado contratual não se retira que os fiadores tenham renunciado ao benefício do prazo.

Mas, a ausência de interpelação aos fiadores não afasta a relevância da posterior citação destes para a execução, considerando-se realizada a necessária interpelação admonitória dos fiadores com essa citação, dessa forma afastando a regra do artigo 782.º e fazendo funcionar o regime do artigo 781.º, com exigibilidade, a partir da citação, de todas as prestações em dívida e devidas até ao final dos prazos dos contratos, contando-se os juros moratórios, apenas, a partir daí.

Os Recorrentes não concordam com a 2ª conclusão.

Nós, concordando com a relevância da citação neste caso, divergimos da primeira conclusão.

Em face de todo o clausulado, em especial das cláusulas 5ª e 7ª do acordo, os fiadores, da mesma forma que os devedores principais, também concordaram desde logo que a falta de pagamento de qualquer das prestações, pelos devedores principais, importaria a extinção do plano prestacional, sem necessidade de aviso prévio.

Os fiadores obrigaram-se ao pagamento da dívida, como própria, diretamente, aceitando a desnecessidade de aviso prévio, aceitando assim que, em caso de incumprimento do devedor principal, deixava de se poder recorrer ao esquema prestacional.

Perante o acordo, os fiadores deixaram de ter a faculdade de, em caso de incumprimento do devedor principal, poder substituir-se a ele no cumprimento do contrato seguindo o esquema prestacional.

Por isso, apesar dos fiadores não terem sido interpelados extrajudicialmente para pagar o montante dado à execução, a sua citação para a execução, neste caso, desempenha eficazmente a função de comunicar a extinção do plano prestacional e a exigibilidade imediata da divida já devidamente concretizada.

(Neste sentido, acórdão do STJ, de 16.3.2023, proc.1669/17, em www.dgsi.pt.)


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            Decisão.

           Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelos Recorrente, vencidos.

2024-02-20


(Fernando Monteiro)

(Luís Cravo)

(Rui Moura)


Declaração de voto:

Voto vencido por duas ordens de razão que passo a explicitar, muito em síntese:

- O primeiro aspeto tem a ver com o entendimento de que resulta das cláusulas 5ª e 7ª do acordo que os “fiadores” também concordaram desde logo que a falta de pagamento de qualquer das prestações importaria a extinção do plano prestacional, sem necessidade de aviso prévio.

  Acontece que não perfilho essa interpretação, na medida em que no contrato figura uma clara distinção entre "devedores" e "quartos outorgantes", sendo que através da cláusula 5ª apenas se obrigam/responsabilizam literalmente os "devedores", pelo que, estender a extinção do plano prestacional, sem necessidade de aviso prévio, aos "quartos outorgantes" (estes é que são os “fiadores” na circunstância) não me parece ajustado.

 Afirmação esta que não é postergada pela circunstância de os "quartos outorgantes"/ “fiadores” terem assinado, a final, o contrato, pois que tal não pode legitimar a conclusão de que subscreveram todo o clausulado

Dito de outra forma: a perda do benefício do prazo por parte dos “fiadores” apenas os vinculava se tal tivesse ficado estipulado de forma expressa e clara, pelo que, a perda do prazo de que beneficiavam os devedores principais por eles assumida na dita cláusula 5ª, não se estende automaticamente aos “fiadores”, quer por força do estatuído no art. 782º do C.Civil, quer porque nada foi expressamente convencionado/acordado nesse sentido.

- O segundo aspeto tem a ver com a interpelação para pagamento.

 Consabidamente, para que a exigência de pagamento (da totalidade de dívida) pudesse ser feita aos “fiadores”, necessário era que a credora/ora exequente tivesse previamente interpelado para o efeito aqueles, mais concretamente, intimando-os para pôr termo à mora (no pagamento da dívida), a fim de obstarem ao vencimento antecipado de todas as prestações e ao consequente pagamento de todas elas.

  Sustenta-se no acórdão que é relevante/suficiente para esse efeito a citação dos “fiadores” para a execução.

Ora, nesse particular, em dissentimento com esse entendimento, entendo que a citação judicial dos “fiadores”, levada a efeito pela credora/ora exequente na ação executiva que contra aqueles instaurou, não tem a virtualidade, por não ser o meio idóneo para o efeito, de substituir a interpelação (prévia) que, no caso, se impunha que aquela levasse a efeito junto dos últimos, no sentido de estes perderem o benefício de prazo de que gozam (à luz do citado art. 782º do C.Civil - neste sentido, vide, inter alia, o acórdão do STJ de 29-11-2016, proferido no proc. nº 100/07.6TCSNT-A.L1.S1 e demais jurisprudência nele citada – disponível em www.dgsi.pt/jstj.

 Na linha desta posição e entendimento, no caso vertente julgaria os embargos parcialmente procedentes, apenas permitindo a prossecução da execução quanto aos mesmos por valor correspondente às prestações vencidas (pelo decurso do prazo contratualmente estabelecido), e ainda não pagas, aquando da instauração da execução, acrescido dos respetivos juros de mora a elas respeitantes, vencidos e vincendos.

Luís Filipe Cravo