Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2447/18.7TBSTB.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
DECLARAÇÃO EXPRESSA
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
1. A assunção de dívida prevista no art.º 595.º/1 do C. Civil pode revestir uma de duas modalidades: por contrato celebrado entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor (al.ª a); ou por contrato celebrado entre o novo devedor e o credor, com ou sem o consentimento do antigo devedor ( al.ª b)).
2. Constitui fator comum de ambas as modalidades a intervenção do credor da obrigação, na primeira, através da ratificação, sem a qual o contrato não produz efeitos em relação a si, ou assumindo-se parte contratante, com o novo devedor, na segunda modalidade.
3. A circunstância de eventualmente se considerar assente que “o 2.º Réu afirmou, em reunião mantida nas instalações da Autora, que assumiria pessoalmente o pagamento da dívida no caso de a 1ª Ré não o conseguir fazer”, só por si, é insuficiente para se concluir que as partes (Autora e 2.º Réu) celebraram um contrato de transmissão singular de dívidas, dada a ausência de declaração de vontade manifestada ou exteriorizada pela Autora quanto à celebração desse acordo.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora
***

I. Relatório.
1. BB (Portugal), SA intentou a presente ação declarativa comum condenatória contra CC, Lda., e DD, com os sinais dos autos, pedindo a condenação dos Réus, solidariamente, no pagamento da quantia de €68.240,71.
Alegou, em síntese, que no âmbito da sua atividade comercial forneceu mercadoria à R. CC, Lda., que esta não pagou, tendo o R. DD assumido pessoalmente o pagamento do montante em dívida, o que não fez até ao momento.
A R. CC, Lda., devidamente citada, não apresentou contestação.
O R. DD deduziu contestação, alegando, em suma que não assumiu pessoalmente o pagamento da dívida da R. CC, da qual era gerente, tendo toda a negociação ocorrido sempre entre as empresas A. e R..
Foi realizada audiência prévia, com fixação do objeto do litígio e indicação dos temas de prova.
Realizado o julgamento, foi proferida a competente sentença, que julgou a ação procedente e condenou solidariamente os Réus no pagamento da quantia peticionada pela A. no montante de € 66.254,10, acrescida dos juros de mora vencidos no montante de € 1.986,61, num total de € 68.240,71 (sessenta e oito mil, duzentos e quarenta euros e setenta e um cêntimos).
Inconformado com esta sentença veio o Réu interpor o presente recurso, formulando, após alegações, as seguintes conclusões:
1. É entendimento do recorrente que o douto despacho recorrido viola o disposto no n.°3 do artigo 3.° do Cód. de Proc. Civil, integrando a violação do princípio do contraditório, o que, salvo melhor opinião, consubstancia a prática de uma nulidade processual, que influiu no exame ou decisão da causa. A douta sentença em crise refere na sua fundamentação um documento denominado e-mail que não foi apresentado ao Réu nem com a contestação nem na audiência de julgamento coartando assim a sua defesa ao impedir que o mesmo se pudesse pronunciar sobre o referido documento impugnando-o até no que respeita á sua genuinidade.
2. Na verdade, dispõe o n° 3 do art.° 3.° do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo licito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem...”
3. Ora, a não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constituiu uma nulidade processual nos termos do artigo 201.° 1 do CPC, obedecendo a sua arguição á regra geral prevista no artigo 205.° do CPC (Ac. ReI. Évora de 1.4.2004).
4. Assim, antes de proferir a decisão o juiz deve conceder às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre todas as questões, ainda que de direito e de conhecimento oficioso, sendo proibidas as decisões surpresas.
5.º No caso vertente, compulsados os autos, constata-se especificamente em relação ao documento junto em audiência, não ser admitidas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas conforme art.º 415.º CPC
6. Deste modo, entendemos, salvo o devido respeito, que ao Tribunal da Relação deverá revogar a sentença do tribunal da primeira instancia por esta ser nula em virtude de violação de normas substantivas do direito processual civil designadamente dos art.º 423º nº3, 427.º 415º, art.º 3º e art.º 4º CPC imperioso é concluir que, considerando o apelante ( como considera ) que, de alguma forma, o Juiz a quo, aquando da sua decisão de 17/01/2019 , alegadamente cometeu uma nulidade porque nela conheceu de questão que não devia conhecer, violando assim o princípio do contraditório e consubstanciando tal decisão, em rigor, uma decisão-surpresa, estando a pretensa nulidade cometida sancionada/coberta por uma decisão judicial , só através de interposição do competente recurso pode ela ser alterada, o que tudo decorre do disposto no artº 613º, do Cód. de Processo Civil, quanto mais não seja revogada para que o contraditório seja então respeitado.
7.º O conjunto dos factos provados e dos demais aspetos perscrutáveis no teor dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento eram suficientes para permitir que o Tribunal a quo pudesse ter concluído que aos factos na nossa modesta opinião e atenta a toda a prova produzida pela Ré deveriam ter sido dado como não provado o seguinte facto: a) O facto descrito na sentença com nº 31-O R. DD afirmou, em reunião mantida nas instalações da A. com Paulo S… e Tiago H…, que assumiria pessoalmente o pagamento da dívida, no caso de a 1ª Ré não o conseguir fazer”.
8.º Este facto deveria ter sido julgado não provado atentos os depoimento da testemunha Carlos O…, Tiago H… pois nunca tal foi assumido pelo Réu.
9. A contradição entre os factos e a fundamentação é notória se por um lado a
sentença refere perentoriamente que não existiram quaisquer reuniões em que o réu, na sua capacidade de sócio e gerente, tenha assumido qualquer dívida pessoalmente, por outro lado refere que numa determinada reunião, já desprovido de qualquer qualidade jurídica ou ligação á Ré CC, assume a dívida sendo esta conclusão desprovida de qualquer prova sendo que atenta as contradições entre os factos e a fundamentação e ao abrigo do artº 615 nº1 al c ) CPC devera a sentença em crise ser nula.
10. Nunca o réu DD disse que assumiria o pagamento da divida no caso da 1ºRe não o conseguir fazer nem existe qualquer prova, depoimento ou indício nesse sentido, aliás temos como FACTO NÃO PROVADO "O R. por diversas vezes em reuniões com os órgãos sociais da A. afirmou que assumiria pessoalmente o pagamento da divida" e como FACTOS PROVADOS “Até à data de 27/11/2017 o Réu sempre atuou como gerente da 1ºRé e "O R. DD afirmou, em reunião mantida nas instalações da A. com Paulo S… e Tiago H…, que assumiria pessoalmente o pagamento da dívida, no caso de a 1ª Ré não o conseguir fazer ", configurando esta uma contradição entre os factos e a fundamentação ao abrigo do artº 615 nº1 al c ) CPC devera a sentença em crise ser nula.
11. Nos termos do artigo 595º, nº 1, alienas a) e b), do Código Civil, a assunção da dívida pode ter lugar em duas circunstâncias, por contrato entre o antigo e o novo devedor ou por contrato entre o novo devedor e o credor.
12. Consagrando a regra segundo a qual, a ninguém deve ser imposto um benefício contra a sua vontade, exige-se no 1º caso a retificação pelo credor e no 2º o
consentimento do antigo devedor. Neste caso não era vontade do Reu assumir a dívida.
13. A questão suscitada pelo Recorrente cinge-se ao invocado erro na subsunção jurídica dos factos, nomeadamente por falta dos pressupostos legais de assunção da dívida previstos no artº 595 CC e ainda violando os art 219º, 268 nº2 e 262 nº2 do CC.
14. Em suma, o recorrente estriba a sua discordância no argumento de que a matéria de facto provada é insuficiente para, por um lado, traduzir uma assunção de dívida pelo réu, pessoa singular, e insuficiente para consubstanciar uma obrigação de dívida ou garantia de pagamento do débito á sociedade autora BB.
15. Entendemos, salvo o devido respeito, que ao Tribunal da Relação devera revogar a sentença do tribunal da primeira instância por esta ser nula, em virtude de violação de normas substantivas do direito processual civil designadamente dos art 423º nº3, 427º 415º art 3º e art 4º CPC aplicando-se o disposto no artº 613º, do Cód. De Processo Civil, quanto mais não seja revogada para que o contraditório seja então respeitado ou caso Vª Exª assim o entendam a existência da contradição entre os factos e a fundamentação da sentença e ao abrigo do artº 615 nº1 al c ) CPC devera a sentença em crise ser nula alterando-se o facto provado nº31 dos factos provados para não provados entendendo ainda o reu a não aplicabilidade da assunção de divida prevista no art 595º do CC.
***
A Autora não contra alegou.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
***
II. Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) Nulidade da decisão proferida em 9/01/2019, por violação do princípio do contraditório;
b) Nulidade da sentença nos termos da alínea c) do n.º1 do art.º 615.º do CPC;
c) Alteração do ponto 31 da matéria de facto;
d) Assunção de dívida pelo 2.º Réu e sua responsabilidade pelo pagamento.
***
III. Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Matéria de facto.
A matéria de facto a considerar é a seguinte:
1- A Autora é uma sociedade anónima que se dedica à comercialização e assistência técnica em tintas para navios e ainda o fabrico de tintas, diluentes e produtos afins.
2- A Ré CC, Lda. é uma sociedade por quotas e dedica-se à atividade de revestimentos e tratamentos de metais, nomeadamente, pintura dos mesmos, exploração de gabinetes de engenharia, nomeadamente, elaboração de projetos elétricos, construção civil e instalações elétricas de baixa tensão.
3- Por sua vez, o Réu DD foi sócio e gerente da Ré CC, Lda. até 27-11-2017, data em que renunciou a gerência;
4- No âmbito da sua atividade, a Autora forneceu bens e serviços à 1ª Ré, no valor total de €73.070,61 (setenta e três mil e setenta euros e sessenta e um cêntimos).
5- Com emissão das seguintes faturas: Fatura n.º FT 01/68036, datada de 05-04-2017 e com vencimento em 05-07-2017, no valor de €8.464,86;
6- Fatura n.º FT 01/68847, datada de 27-04-2017 e com vencimento em 27-07- 2017, no valor de €7.035,60;
7- Fatura n.º FT 01/68898, datada de 28-04-2017 e com vencimento em 28-07-2017, no valor de €552,27;
8- Fatura n.º FT 01/68996, datada de 28-04-2017 e com vencimento em 28-07-2017, no valor de €4.425,54;
9- Fatura n.º FT 01/69120, datada de 03-05-2017 e com vencimento em 03-08-2017, no valor de €7.116,78;
10- Fatura n.º FT 01/69804, datada de 18-05-2017 e com vencimento em 18-08-2017, no valor de €7.076,19;
11- Fatura n.º FT 01/70184, datada de 26-05-2017 e com vencimento em 26-08-2017, no valor de €1.639,59;
12- Fatura n.º FT 01/70332, datada de 29-05-2017 e com vencimento em 29-08-2017, no valor de €3.571,92;
13- Fatura n.º FT 01/70439, datada de 31-05-2017 e com vencimento em 31-08-2017, no valor de €3.050,40;
14- Fatura n.º FT 01/70508, datada de 31-05-2017 e com vencimento em 31-08-2017, no valor de €457,56;
15- Fatura n.º FT 01/70701, datada de 06-06-2017 e com vencimento em 06-09-2017, no valor de €3.977,82;
16- Fatura n.º FT 01/70738, datada de 07-06-2017 e com vencimento em 07-09-2017, no valor de €3.612,51;
17- Fatura n.º FT 01/71047, datada de 13-06-2017 e com vencimento em 13-09-2017, no valor de €4.248,42;
18- Fatura n.º FT 01/71299, datada de 20-06-2017 e com vencimento em 20-09-2017, no valor de €2.976,60;
19- Fatura n.º FT 01/72384, datada de 17-07-2017 e com vencimento em 17-10-2017, no valor de €3.571,92;
20- Fatura n.º FT 01/72850, datada de 28-07-2017 e com vencimento em 28-10-2017, no valor de €3.712,14;
21- Fatura n.º FT 01/72856, datada de 28-07-2017 e com vencimento em 28-10-2017, no valor de €135,30;
22- Fatura n.º FT 01/73285, datada de 08-08-2017 e com vencimento em 08-11-2017, no valor de €3.571,92;
23- Fatura n.º FT 01/73296, datada de 09-08-2017 e com vencimento em 09-11-2017, no valor de €3.571,92;
24- Fatura n.º FT 01/73300, datada de 09-08-2017 e com vencimento em 09-11-2017, no valor de €301,35;
25- A R. interpelada por diversas vezes para pagamento das faturas descritas, em 5) a 24), quer telefonicamente, quer por carta, apenas pagou a quantia de €6.140,72, relativamente à primeira fartura (FT 01/68036) e a quantia de €675,79, relativamente à segunda fartura (FT 01/68847).
26- Encontrando-se ainda em dívida para com a Autora, no montante global de €66.254,10 (sessenta e seis mil, duzentos e cinquenta e quatro euros e dez cêntimos).
27- Montante que, novamente interpelada para pagamento, por diversas vezes, nunca pagou à Autora até à presente data.
28- Na data dos referidos fornecimentos de bens e serviços a 1ª Ré tinha como seu gerente o Réu DD.
29- O Réu em representação e na qualidade de gerente da 1º Ré solicitou à Autora o fornecimentos de produtos e serviços para a obra Ikea Loulé.
30- Até à data de 27/11/2017 o Réu sempre atuou como gerente da 1ºRé.
31- O R. DD afirmou, em reunião mantida nas instalações da A. com Paulo S… e Tiago H…, que assumiria pessoalmente o pagamento da dívida, no caso de a 1ª Ré não o conseguir fazer (eliminado).
***
2. Nulidade da decisão de 9/01/2019.
O recorrente veio recorrer do despacho proferido em audiência de julgamento, que teve lugar em 9 de janeiro de 2019, no qual a senhora Juíza ordenou a junção aos autos de um documento na posse da testemunha Paulo S…, relativo a um e-mail enviado pelo recorrente DD, no qual se anexa cópia de um depósito bancário efetuado pela Ré “CC”, os quais foram exibidos às partes.
Entende o recorrente que o despacho é nulo porque “viola o disposto no n.°3 do artigo 3.° do Cód. de Proc. Civil, integrando a violação do princípio do contraditório, o que, salvo melhor opinião, consubstancia a prática de uma nulidade processual, que influiu no exame ou decisão da causa. A douta sentença em crise refere na sua fundamentação um documento denominado e-mail que não foi apresentado ao Réu nem com a contestação nem na audiência de julgamento, coarctando assim a sua defesa ao impedir que o mesmo se pudesse pronunciar sobre o referido documento, impugnando-o até no que respeita á sua genuinidade”.
Ora, reza o art.º 644.º, n.º2, alínea d) do CPC: “Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância: Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova”.
Como refere Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4.ª edição, pág. 198, o anterior art.º 691.º, n.º2, al. i), do CPC de 1961, já continha a possibilidade de apelação autónoma do despacho de admissão ou rejeição de meios de prova, sendo que “tal regime foi alargado, por razões facilmente compreensíveis, às decisões que admitem ou rejeitem algum articulado”.
Como bem chama a atenção Paulo Faria e Ana Luísa Loureiro, 2014, in “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma”, Vol. II, Almedina, pág. 68., “Há que distinguir a rejeição do articulado da pretensão nele formulado. (…) Há rejeição do articulado quando o tribunal, sem analisar a causa – isto é, o conteúdo do articulado sobre a relação material controvertida, ou sobre a relação processual, decide sobre os pressupostos formais da sua admissibilidade“.
O recurso do despacho que admite determinado meio de prova, ao abrigo dessa disposição legal, deve ser interposto autonomamente, no prazo de 15 dias, com subida em separado e imediatamente, como flui dos art.ºs 638.º/1, 645/2 e 647.º/1 do C. P. Civil.
E só as decisões que não admitem recurso autónomo, nos termos do n.º1 e 2 do art.º 644.º, podem e devem ser impugnadas com o recurso que venha a ser interposto da decisão final, como expressamente estatui o seu n.º 3.
Como é consabido, só as decisões interlocutórias taxativamente identificadas no n.º2 do art.º 644.º do C. P. Civil, admitem recurso autónomo e com subida imediata. Quanto às demais decisões interlocutórias só podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão que ponha termo à causa - n.º3 do art.º 644.º.
E não sendo interposto recurso desta decisão final, podem essas decisões interlocutórias ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito em julgado dessa decisão, desde que tenham interesse autónomo para o recorrente, independentemente do resultado dessa sentença – n.º 4 do citado art.º 644.º. do atual CPC.
O recurso interposto tem por objeto decisão proferida pela Senhora Juíza que ordenou oficiosamente a junção nos autos de dois documentos na posse da testemunha (um e-mail e um doc. comprovativo de um depósito bancário), por os considerar relevantes para a boa decisão da causa e estar conexionado com o tema prova, decisão que lhe é permitida nos termos do art.º 411.º do C. P. Civil, do qual decorre o poder-dever de ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, nomeadamente requisitar e ordenar a junção de documentos (art.º 436.º) – cf. Paulo Pimenta, in “Processo Civil Declarativo”, 2.ª edição, Almedina, págs. 370/371.
Assim, é manifesto que, no caso concreto, o tribunal de 1.ª instância admitiu determinado meio de prova, decisão que era recorrível autonomamente, a interpor no prazo de 15 dias, nos termos da alínea d) do n.º2 do art.º 644.º citado.
Sendo essa decisão proferida em 9/1/2019, o termo normal do prazo de recurso (15 dias) ocorreu em 24/01/2019, pelo que tendo o recorrente apresentado o recurso em 7/3/2019, aquando do recurso interposto da decisão final, transitou em julgado a decisão em causa, ou seja, tem força de caso julgado formal, sendo obrigatória dentro do processo – art.º 620.º/1 do C. P. Civil.
Decorrentemente, porque essa decisão transitou em julgado, é inadmissível o recurso interposto, rejeitando-se o recurso, o que se decide.
***
3. Nulidade da sentença nos termos da alínea c) do n.º1 do art.º 615.º do CPC.
O recorrente defender a nulidade da sentença ao abrigo do disposto no art.º 615.º/1, al. c), do CPC, por considerar haver contradição entre os factos e a fundamentação de facto, pois por um lado a “sentença refere perentoriamente que não existiram quaisquer reuniões em que o réu, na sua capacidade de sócio e gerente, tenha assumido qualquer dívida pessoalmente, por outro lado refere que numa determinada reunião, já desprovido de qualquer qualidade jurídica ou ligação á Ré CC, assume a dívida, sendo esta conclusão desprovida de qualquer prova”.
Mas sem razão.
Nos termos da alínea c) do n.º1 do art.º 615.º do C. P. Civil, a sentença é nula quando“ os fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou ocorra ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
A nulidade prevista na 1.ª parte da alínea c) do referido preceito legal remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos.
Como escrevem Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, “Dos Recursos”, Quid Júris, pág. 117: “A observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão … E a verdade é que por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”. No mesmo sentido o Ac. do S, T. J. de 30/9/2010, Proc. n.º 341/08.9TCGMR.G1.S2, in www.dgsi.pt/jstj, quando refere “o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error júris), para que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa”.
Porque assim é, as nulidades da decisão, são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjetivo) aplicável. Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito (cf. Ac. RC de 15.4.08, Proc.1351/05.3TBCBR.C1).
Assim, no que respeita a esta nulidade, é evidente a sua inexistência, pois que o raciocínio lógico seguido na decisão teria de conduzir à improcedência da ação nessa parte e precisos termos exarados, não se vislumbrando, a não ser aos olhos do recorrente, qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.
Efetivamente, a pretensa nulidade reduz-se apenas a eventual o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação do direito ( error in judicando), pois está em causa, segundo o recorrente, contradição entre factualidade dada como provada e a considerada não provada.
E sendo impugnada a matéria de facto nos termos do art.º 640.º/1 e 2 do C. P. C., será nessa sede que a questão será apreciada.
Improcede, pois, a invocada nulidade.
***
3. Reapreciação da matéria de facto.
3.1. Alteração do ponto 31 da matéria de facto.
O recorrente considera ter havido erro de julgamento no que respeita ao ponto 31 da matéria de facto dada como provada, o qual devia ser dado como não provado, tendo em conta os depoimentos das testemunhas Carlos O… e Tiago H…, sendo que o Réu DD nunca disse que assumiria o pagamento da dívida no caso da 1.ª Ré não o conseguir fazer, e não foi produzida nem existe qualquer prova nesse sentido.
O mencionado ponto da matéria de facto tem a seguinte redação:
O R. DD afirmou, em reunião mantida nas instalações da A. com Paulo S… e Tiago H…, que assumiria pessoalmente o pagamento da dívida, no caso de a 1ª Ré não o conseguir fazer”.
Na decisão recorrida, quanto à fundamentação da matéria de facto, escreveu-se:
Depoimento de testemunha Paulo S… («credit controler» na A. desde final de Outubro de 2016; exerce as funções de controlar os pagamentos dos clientes e cobrança das faturas, conhece a R. como cliente da BB.
Relativamente à divida da R. CC, o R. apresentou plano de pagamentos em Outubro de 2017 para pagar a dívida da CC: 3 mil euros por mês até regularização integral da divida mas não foi cumprido porque depois de Outubro de 2017 não foram pagos três meses seguidos e a testemunha sempre a insistir junto do R. e somente em Fevereiro de 2018, o R. pagou a única prestação desse plano de pagamento.
Mais referiu a testemunha que em Janeiro de 2018 conseguiu descobrir que as quotas da R. foram alienadas e a gerência transmitida a outra pessoa ou seja antes do único pagamento que o R. fez , pelo que depois de transferência de quotas é que ocorreu o único pagamento de três mil euros .
Depois de saber que a empresa mudou de mãos, fizeram em Fevereiro de 2018 uma reunião com o R. ( e estava presente o Carlos O… pela FF e o engenheiro Tiago) e a testemunha interpelou o R. sobre esse facto pois o R. não os tinha informado e o R. disse que não tinha que dar essa informação mas que assegurava que a divida da R. iria ser paga e queria continuar a trabalhar com a A. e que iria pagar a dívida, que não seria por causa dessa quantia que deixaria de manter relações comerciais com a A. e assegurava que a dívida iria ser paga e que iria assumir o pagamento da dívida, a A. aceitou porque confiou na palavra do R. ; os contactos com a R. foram sempre e só com o R. DD e foi este que deu a sua palavra que a dívida da R. era mesmo para pagar, mesmo quando já não era socio nem gerente da R. CC.
A testemunha referiu, ainda, que o R. apresentou-se na reunião e pessoalmente deu a sua palavra de que iria pagar a dívida. O R. dizia: «podem confiar em mim eu estou aqui a dar a cara esta dívida é para pagar eu assumo a responsabilidade da divida. Eu quero continuar a trabalhar com a BB e a dívida é para pagar», até disse que «poderia dizer que já nada tinha a ver com a dívida porque vendi a empresa mas não, a dívida é para ser paga e responsabilizo-me pelo pagamento». Mais dizia que não queria pôr em causa a relação da A. com a FF que queria prosseguir e que iria fazer os pagamentos de acordo com o plano de pagamentos; e garantindo que o plano de pagamentos da CC era para ser cumprido.
Mais esclareceu a testemunha que se o R. tivesse dito que nada tinha a ver com a dívida porque vendeu a empresa então já mais nada iria ser fornecido à FF pois a relação de confiança ficaria comprometida.
Depois em Fevereiro ocorreu o único pagamento desse plano de pagamento e manteve-se o fornecimento à FF e atualmente a dívida totalmente vencida da FF são 40.000, e mantém conta corrente com a A.
Esclareceu, por último, que foi feito um pagamento de 3.000 mil euros por depósito bancário em numerário, tendo o R. enviado o talão de depósito por mail para si com indicação de CC, mais referiu que a forma de pagamento não estava estabelecida no plano de pagamentos da dívida da CC e que antes ou após tal depósito nada mais foi pago.

Ora, compulsados os documentos juntos aos autos resulta efetivamente que o R. renunciou à gerência da R. em 27.11.2017, tendo desde então deixado de exercer funções de gerência na R. CC, não se afigurando minimamente razoável ou convincente a justificação que apresentou em sede de declarações de parte para o facto de, após ter cessado funções como gerente da R., ter enviado à A. o talão de depósito em numerário da quantia de três mil euros referente ao pagamento de parte da divida que a R. mantem para com a A.. Na verdade, declarou o R. que quem comprou a empresa não conhecia ninguém da BB, não tinha qualquer contacto com a A. e pediu-lhe que enviasse o talão de deposito.
Ora, a falta de razoabilidade de tal declaração prende-se desde logo com a estranheza de uma empresa pedir ao anterior socio gerente para praticar ato que cabia aos novos sócios e que se prendia com o pagamento de uma divida da empresa, a que acresce o evidente interesse do R. em manter as relações comerciais com a A. no tocante à nova empresa que criara com o socio Carlos O…, sendo que a manutenção dessas relações estava intimamente relacionada com o pagamento desta divida da R. para com a A., assim se entendendo que o R. afirmasse na reunião mantida com a A. de que se responsabilizava pelo pagamento da divida, vindo agora, no entanto, declarar que se referiam as suas afirmações ao pagamento da divida pela nova administração da R. e não por si , o que choca com o envio por si do talão de pagamento de 3.000 euros quando já não era gerente da R. e com a falta de contacto da nova gerência da R. com a A..
Aliás, como poderia o R. sem ser gerente da R. garantir o pagamento da dívida da CC senão pela assunção pessoal da divida.
A testemunha prestou depoimento credível, isento, coerente e espontâneo, demonstrando conhecimento direto dos factos sobre que depôs.
A testemunha Tiago H… (engenheiro químico na A. desde Julho 2010; exerce funções de acompanhamento técnico e comercial de clientes; conhece a R. como cliente e o R. por ser o responsável da R.) já trabalhava na A. quando a R. iniciou as relações comerciais com a A., a conta corrente da R. era gerida pela testemunha.
….
Nas instalações da A. tiveram lugar muitas reuniões com o R. enquanto representante legal (gerente) da R. e em Fevereiro de 2018, após tomarem conhecimento de que o R vendera a empresa e renunciara a gerência, teve lugar uma reunião nas instalações da A., em que estiveram presentes Tiago, Paulo S…, Carlos O… e DD e o Paulo S… confrontou o R. com a venda da empresa pelo R. e o plano de pagamentos anteriormente apresentado e que ainda não tinha sido iniciado.
O R. disse que era verdade que a empresa já não era dele mas que não queria que isso atrapalhasse as relações comerciais com a A. e a FF; e o R. disse que não iria deixar de pagar essa divida e existia até um plano de pagamento que iria pagar mas não pagou. Acrescentou a testemunha que o R. disse nessa reunião que não seria por sessenta mil euros que iria comprometer as relações comerciais com a FF. Entendeu nessa reunião que quem iria pagar a divida era o R.
…..
Acresce que o Paulo S… referiu que somente foi concedido um plafond de crédito à FF, e se manteve o mesmo porque o R. garantia que essa divida iria ser paga, assim que garantia poderia ser dada pelo R. que a divida iria ser paga, senão pessoal, se já nada mandava na empresa que vendeu? O que conjugado com a sua atitude de envio de talão de depósito de três mil euros corrobora o depoimento das duas primeiras testemunhas em detrimento do depoimento da testemunha Carlos O…”.
Como é consabido, não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do art.º 607.º/5, do C. P. Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova [1].
Por outro lado, não podemos ignorar que o Juiz da 1.ª instância tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, cujo contato direto com a prova testemunhal possibilita uma melhor perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida, da firmeza e prontidão dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou elevada probabilidade dos factos terem ocorrido tal como são relatados.
Como ensina Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
E já lembrava Alberto dos Reis [2] que a prova livre não quer dizer prova arbitrária ou irracional. Quer dizer prova apreciada com inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas em perfeita conformidade com as regras da experiência e as leis que regulam a atividade mental. Não estamos perante um sistema da prova livre pura, mas de livre apreciação motivada da prova, ou seja, o que conduz à prova de um facto em juízo é o efeito que as provas, em conjugação com as regras da lógica e as máximas da experiência, produzem na convicção do juiz – cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 471.
Como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág.435, a prova é “ a atividade tendente a criar no espírito do juiz a convicção (certeza subjetiva) da realidade de um facto”. “Para que haja prova é essencial que esse grau especial de convicção, traduzido na certeza subjetiva”, esclarecem.
E estabelecem a distinção entre prova e verosimilhança, sendo que a prova “assenta na certeza subjetiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto; a verosimilhança, na simples probabilidade da sua verificação”.
Ora, nas palavras de Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, 2.ª edição, Coimbra, 1976, podem ser objeto de prova os factos do foro íntimo ou interno das pessoas, que serão realidades abstratas e pessoais que já não poderão ser apreciadas com o mesmo grau de certeza que os factos externos (por exemplo o dolo, a dor física, estados psicológicos, o facto de se conhecer determinada realidade) – cf. Pedro Trigo Morgado, “ Admissibilidade da Prova Ilícita em Processo Civil”, 2016, pág. 23.
Na verdade, os factos interiores, do tipo subjetivo (elemento volitivo), podem resultar, e resultam normalmente (para além da prova por confissão) dos factos exteriores provados, pois por respeitarem à vida psíquica do agente dificilmente se provam diretamente.
No caso dos autos, e depois de auditada a gravação com os depoimentos das testemunhas Paulo S…, Tiago H… e Carlos O…, cujo teor está suficientemente mencionado na decisão recorrida e transcritos pelo recorrente, conjugados com os documentos juntos em audiência, não permitem chegar à mesma conclusão que a 1.ª instância, ou seja, a enorme probabilidade da realidade desse facto – o Réu afirmou, em reunião mantida nas instalações da A. com Paulo S… e Tiago H…, que assumiria pessoalmente o pagamento da dívida, no caso de a 1ª Ré não o conseguir fazer”.
Com efeito, a testemunha Paulo S…, empregado da Autora, onde exerce as funções de controlador de crédito, declarou que o Réu, na reunião havida em fevereiro de 2018, nas instalações da Autora, afirmou que a dívida da 1.ª Ré era para pagar, e assegurava que a dívida da Ré iria ser paga e que queria continuar a trabalhar com a Autora, não seria por causa dessa quantia que deixaria de manter com ela relações comerciais e que iria assumir o pagamento da dívida. E mais disse que o Réu, nessa reunião, deu a sua palavra que iria pagar a dívida, que disse: “podem confiar em mim eu estou aqui a dar a cara, esta dívida é para pagar eu assumo a responsabilidade da dívida. Eu quero continuar a trabalhar com a BB e a dívida é para pagar”.
Mais referiu a testemunha que perante essas palavras, sempre interpretou que o Réu se responsabilizava pelo pagamento da dívida, e que o Réu sempre assumiu em nome da empresa a responsabilidade da dívida.
A testemunha Tiago H…, empregado da Autor, presente nessa reunião, disse que o Réu referiu que a empresa ( 1.ª Ré) já não era dele mas que não queria que isso atrapalhasse as relações comerciais com a Autora e a “FF” (nova empresa do Réu) e não iria deixar de pagar essa dívida, existindo até um plano de pagamento. E acrescentou, a testemunha, ter entendido nessa reunião que quem iria pagar a dívida era o Réu.
Por sua vez, a testemunha Carlos O…, presente nessa reunião para tratar de assuntos da empresa “FF”, da qual é sócio juntamente com o Réu, disse que o responsável pelas cobranças da Autora “BB” (testemunha Paulo S…) estava muito zangado com o DD (réu), porque ele não tinha transmitido que tinha vendido a empresa a outra pessoa e quem é que iria pagar a dívida, tendo o Réu dito que fez um acordo com o Sr. José O… em que a empresa que vendeu iria continuar a fazer os pagamentos.
E mais disse que nunca ouviu o Réu afirmar que assumia pessoalmente essa dívida até porque isso não fazia qualquer sentido.
Os documentos juntos em audiência consubstanciam um e-mail enviado pelo Réu DD, através do mail da “CC”, datado de 6 de fevereiro de 2018, para Paulo S…, dizendo o seguinte:
Bom dia, Dr. Paulo S…,
Junto remetemos depósito conforme proposta de pagamento realizado anteriormente.
Será realizado um depósito mensal até liquidação do valor em aberto.
Atentamente”.
E desse depósito, a que se refere o documento anexo, consta ter sido feito pela “CC, Lda”, em 6/2/2018, um depósito no Millennium BCP, no valor de €3.000,00, em benefício da BB Portugal , Lda.
Ora, do depoimento das testemunhas mencionadas, conjugadas com os documentos juntos em audiência e supre mencionados, não resulta, com elevado grau de probabilidade, a verificação dessa factologia.
A verdade é que o depoimento da testemunha Paulo S… não se revela isento e imparcial, evidenciando contradições, sendo incoerente e tendencioso e, por isso, pouco credível.
Com efeito, a testemunha diz que o Réu sempre afirmou que a dívida era para pagar, que assumia pessoalmente a dívida, interpretando essas declarações em como o Réu se comprometia e assegurava, pessoalmente, o pagamento dessa dívida, e ao mesmo tempo afirmou que “o Réu sempre assumiu em nome da empresa a responsabilidade da dívida”. Ora, se assumia em nome da empresa como podia interpretar que o Réu pretendia “assumir pessoalmente o pagamento da dívida”?
Depois, o facto de o Réu afirmar, nessa reunião, “podem confiar em mim eu estou aqui a dar a cara, esta dívida é para pagar eu assumo a responsabilidade da dívida. Eu quero continuar a trabalhar com a BB e a dívida é para pagar”, não permite concluir que o Réu quisesse assumir com o seu património a responsabilidade do pagamento da dívida da 1.ª Ré, da qual foi sócio gerente, e que nessa data o não era.
A testemunha afirma que na sua opinião o facto de um gerente de uma empresa assinar um e-mail significa a sua assunção a nível pessoal da dívida.
Porém, tal depoimento não é corroborado pelos dois documentos juntos em audiência, pois o citado e-mail enviado pelo Réu tem o endereço da 1.ª Ré e consta do depósito bancário ter sido feito pela “CC, Lda”, a 1.ª Ré, não pelo próprio Réu, a título pessoal, como declarou a testemunha Paulo S….
E o depoimento da testemunha Tiago H… foi no mesmo sentido, ou seja, entendeu que, face às declarações do Réu, era este quem iria pagar a dívida.
Por sua vez, a testemunha Carlos O…, presente nessa reunião, negou que o Réu haja dito ou garantido que assumia pessoalmente o pagamento dessa dívida, afirmando apenas que tinha vendido a empresa e que esta iria continuar a fazer os pagamentos.
Nesse sentido, importa dar essa factualidade como não provada, tendo presente o regime prescrito no art.º 414.º do C. P. Civil.
Concluindo, decide-se excluir da factualidade provada esse ponto da matéria de facto, procedendo, nesta parte, a apelação.
Todavia, como melhor se explicitará de seguida, ainda que se entendesse, como na decisão recorrida, dar como assente esse ponto da matéria de facto, a verdade é que a ação sempre teria de improceder quanto ao pedido formulado contra o Réu/recorrente, por ser insuficiente, só por si, para lhe imputar qualquer responsabilidade no pagamento da quantia reclamada.
4. O Direito.
4.1. Da assunção de dívida pelo Réu/recorrente.
A impugnação judicial assentou, desde logo, no pressuposto de se não ter provado o ponto n.º 31 da matéria de facto e que demonstrava a responsabilidade do Recorrente no pagamento da quantia peticionada pela Autora.
Procedendo a pretendida alteração sobre a matéria de facto terá de proceder a apelação, pois não demonstrou a recorrida, como lhe competia, nos termos do art.º 342.º/1 do C. Civil, os respetivos factos constitutivos do seu direito de crédito em relação ao recorrente.
Mas a impugnação judicial teve igualmente por fundamento a incorreta aplicação do art.º 595.º/1, al. b), do C. Civil, alegando o recorrente ter havido erro na subsunção jurídica dos factos dados como provados, nomeadamente por falta dos pressupostos legais de assunção da dívida previstos no artº 595.º do C. C., ou seja, considera que a factualidade dada como provada é insuficiente para consubstanciar uma obrigação de dívida ou garantia de pagamento do débito á sociedade autora BB.
Ora, a procedência da impugnação da matéria de facto, só por si, conduz à procedência da apelação, dispensando outras considerações sobre o objeto do recurso (art.º 608.º/2 do CPC, ex vi art.º 663.º/2).
Porém, entende-se acrescentar que a manter-se intocada a matéria de facto descrita na decisão recorrida ( incluindo o seu ponto n.º31), a verdade é que tem inteira razão o recorrente no que tange ao âmbito de aplicação do art.º595.º/1, al. b), do C. Civil.
Como é consabido, o art.º 595.º do C. Civil prevê a transmissão singular de dívidas, à qual corresponde o instituto da assunção de dívida que, como refere Mário Almeida Costa, “consiste no ato pelo qual um terceiro (assuntor) se vincula perante o credor a efetuar a prestação devida por outrem”, tendo como subjacente “a transferência da dívida do antigo para o novo devedor, mantendo-se a relação obrigacional” (in “Direito das Obrigações”, 12.ª ed. revista e atualizada, págs. 828 e seguintes).
Como se refere no Acórdão do STJ, de 28/3/2019, proc. n.º 281648/11.7YIPRT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt: “IV. A assunção de dívida é a aceitação por parte de um terceiro (assuntor) do pagamento de um passivo de um devedor perante o credor deste. V. Na assunção de dívida, o credor continua a ser o titular do mesmo crédito que detinha sobre o primitivo devedor, operando-se apenas, por força do contrato celebrado entre o antigo e o novo devedor ou entre o novo devedor e o credor, uma mudança na pessoa do devedor, mas sem que haja alteração do conteúdo nem da identidade da obrigação. VI. A cessão de créditos consiste na sucessão num crédito por efeito de um negócio jurídico inter vivos, através do qual o credor transmite a um terceiro o seu direito.
Nas palavras de Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 4.ª edição, pág. 361: “Como o próprio nome indica, a assunção de dívida é a operação pela qual um terceiro (assuntor) se obriga perante o credor a efetuar a prestação devida por outrem. A assunção opera uma mudança na pessoa do devedor, mas sem que haja alteração do conteúdo, nem da identidade da obrigação.”
A assunção de dívida pode revestir uma de duas modalidades: pelo contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor (al.ª a) do n.º 1 do art.º 595.º); ou por contrato celebrado entre o novo devedor e o credor, com ou sem o consentimento do antigo devedor ( al.ª b)).
No primeiro caso, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. II, 2011, 8.ª edição, pág. 53 e segs, designa por assunção interna, e por assunção externa, no segundo caso, a qual prescinde do consentimento do antigo devedor.
O fator comum de ambas as modalidades é a intervenção do credor da obrigação, na primeira, através da ratificação, sem a qual o contrato não produz efeitos em relação a si, ou assumindo-se parte contratante, com o novo devedor, na segunda hipótese.
E adianta o Autor (ob. cit. pág. 55/56), “Na assunção externa a transmissão da dívida resulta apenas de um único negócio jurídico: o contrato entre o novo devedor e o credor, ao qual o antigo devedor pode ou não dar o seu consentimento. Nesta forma de assunção de dívidas o consentimento do devedor é assim irrelevante, sendo apenas o acordo entre o credor e o novo devedor que desencadeia a transmissão da dívida para este último, com ou sem exoneração do antigo devedor”.
Em qualquer das citadas modalidades de transmissão de dívidas “é sempre necessário o consentimento do credor”, sendo que esse consentimento, na assunção externa, é feita “através da celebração pelo próprio credor do contrato com o novo devedor, além de se exigir em qualquer dos casos a declaração expressa de exoneração do credor para par que o primitivo devedor possa ficar liberado” – ibidem.
No mesmo sentido esclarece Antunes Varela, ob. cit. pág. 362, que “Quando a assunção se realiza por contrato entre o novo devedor e o credor (art.º 595.º, n.º1, al. b)), a necessidade de consentimento deste é preenchida através das exigências da perfeição do contrato”.
E acrescenta que a validade da dívida transmitida depende da validade do próprio contrato de transmissão de dívida; de contrário este pode ser declarado nulo ou anulado - art.º 597.º do C. Civil.
Não impondo a lei uma forma especial para a celebração do contrato de transmissão singular de dívida, pode ser feito por mero acordo verbal, pois a sua validade formal não depende de redução a escrito – art.º 219.º do C. Civil.
Assim, parece claro que para haver contrato de transmissão de dívida, são necessárias duas declarações de vontade: uma do novo devedor e outra do credor.
Como ensina Inocêncio Galvão Telles, “Manual dos Contratos em Geral”, 4.ª edição, págs. 74 e segs., o primeiro e fundamental elemento do contrato, consiste no encontro e fusão das manifestações de vontade das partes, é preciso que as partes queiram celebrar um contrato com certo conteúdo. O acordo, adianta, “forma uma unidade resultante das concordes manifestações de vontade das partes”.
Ora, a circunstância de na sentença recorrida se ter considerado provado que “O R. DD afirmou, em reunião mantida nas instalações da A. com Paulo S… e Tiago H…, que assumiria pessoalmente o pagamento da dívida, no caso de a 1ª Ré não o conseguir fazer”, só por si, é manifestamente insuficiente para se concluir que as partes ( Autora e 2.º Réu) celebraram um contrato de transmissão singular de dívidas, desde logo pela ausência, na matéria de facto, de declaração de vontade manifestada ou exteriorizada, de forma expressa ou tácita, pela Autora/recorrida, nesse sentido, através dos seus representantes legais, cuja intervenção, como se deixou dito, era essencial para a configuração legal desse instituto jurídico.
Aliás, a própria autora não invocou na petição inicial a celebração desse contrato ou qualquer acordo com o 2.º Réu, limitando-se a afirmar que o réu “sempre afirmou, por diversas vezes, em reuniões com órgãos sociais da Autora, que assumiria pessoalmente o pagamento da dívida, no caso de a 1.ª Ré não o conseguir fazer” ( art.º 16.º).
Assim, ainda que o Réu houvesse manifestado essa vontade e intenção perante um simples funcionário da Autora (Paulo S…), é insuficiente para a perfeição do contrato de transmissão de dívida, razão pela qual não pode ser subsumível à figura jurídica de assunção de dívida a que alude a al. b) do n.º1 do art.º 595.º do C. Civil.
Daí entender-se que mesmo que se mantivesse provado o ponto 31 da matéria de facto, não podia o Réu ser responsabilizado, com fundamento nessa disposição legal, pelo pagamento da peticionada quantia, por não demonstração, pela Autora, como lhe competia, de ter celebrado com o Réu o mencionado contrato de transmissão de dívidas.
Procede, pois, a apelação.
Vencida no recurso, suportará a apelada/autora as custas respetivas – art.º 527.º/1 e 2 do C. P. C.
***
IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. A assunção de dívida prevista no art.º 595.º/1 do C. Civil pode revestir uma de duas modalidades: por contrato celebrado entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor (al.ª a); ou por contrato celebrado entre o novo devedor e o credor, com ou sem o consentimento do antigo devedor ( al.ª b)).
2. Constitui fator comum de ambas as modalidades a intervenção do credor da obrigação, na primeira, através da ratificação, sem a qual o contrato não produz efeitos em relação a si, ou assumindo-se parte contratante, com o novo devedor, na segunda modalidade.
3. A circunstância de eventualmente se considerar assente que “o 2.º Réu afirmou, em reunião mantida nas instalações da Autora, que assumiria pessoalmente o pagamento da dívida no caso de a 1ª Ré não o conseguir fazer”, só por si, é insuficiente para se concluir que as partes (Autora e 2.º Réu) celebraram um contrato de transmissão singular de dívidas, dada a ausência de declaração de vontade manifestada ou exteriorizada pela Autora quanto à celebração desse acordo.
***
V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o 2.º Réu, ora recorrente, absolvendo-o do pedido contra si formulado.
Custas devidas na 1.ª instância, na proporção do decaimento, pela Autora e 1.ª Ré, sendo as da apelação a cargo da Autora.

Évora, 2019/10/24
Tomé Ramião
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

__________________________________________________
[1] Como defende Remédio Marques, Ação Declarativa, à Luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 638 -641, criticando a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto.
[2] Código de Processo Civil, anotado, Vol. III, 247.