Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
181/21.0T8LGA-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ARRESTO
JUSTO RECEIO DE PERDA OU DIMINUIÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O arresto constitui uma providência cautelar de natureza especificada, que se destina a garantir um direito de crédito sempre que o credor tenha o fundado receio de que o devedor possa alienar, ocultar ou dissipar o seu património, frustrando, dessa forma, a satisfação patrimonial desse direito.
2 – No que concerne à probabilidade da existência de um crédito, o legislador não exige a prova efectiva desse crédito, mas tão só que seja provável a existência do mesmo, nem tão pouco que a obrigação seja certa, exigível e líquida ou que já se encontre reconhecida pelos Tribunais.
3 – A determinação do justo receio de perda da garantia patrimonial não pode basear-se em conjecturas, suspeições, simples juízos de valor ou temores de índole subjectiva do requerente do arresto e há-se ser feita com recurso ao critério do bom pai de família, do homem comum, que colocado nas circunstâncias daquele, e em face da conduta do requerido relativamente ao seu património, houvesse de temer por tal perda.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 181/21.0T8LGA-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Comércio de Lagoa – J2
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Recurso com efeito e regime de subida adequados.
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Decisão nos termos dos artigos 652.º, n.º 1, alínea c) e 656.º do Código de Processo Civil:
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I – Relatório:
Por apenso e como dependência da acção especial de Inquérito Judicial, (…) instaurou o presente procedimento cautelar de arresto contra “(…) F…, Lda.”, “(…) S…, Lda.” e (…). Proferido despacho de indeferimento liminar, a requerente veio interpor recurso de apelação.
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A requerente pretendia o arresto de:
a) contas bancárias das sociedades requeridas “(…) F…, Lda.” e “(…) S…, Lda.”.
b) um conjunto de nove imóveis registados a favor do requerido … (melhor identificados nos pontos II a X da parte 3 da petição inicial, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido).
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Para tanto, a requerente alega que tanto ela como o requerido (…) são detentores de quotas iguais representativas da totalidade do capital de cada umas das supra identificadas sociedades. Mais assinala que nunca houve distribuição de dividendos societários.
Na sua perspectiva, existe um sério risco de ver impossibilitada a satisfação do crédito que se vier apurar em sede de distribuição de dividendos, pois receia pela dissipação do parco património societário e do património do requerido.
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Entre a requerente e o requerido (…) corre termos um processo de divórcio registado sob o n.º 1876/20.0T8PTM do Juízo de Família e Menores de Portimão – J2.
Por sentença datada de 01/06/2021 foi decretada a dissolução do casamento celebrado entre ambos e o requerido interpôs recurso da referida decisão.
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Na parte que releva a decisão recorrida tem o seguinte conteúdo:
«(…) o arresto depende da verificação de dois requisitos: a) probabilidade da existência de um crédito contra o arrestado; b) e justo receio da perda de garantia patrimonial desse crédito.
Da análise do requerimento inicial resulta que a requerente não alega factos que nos permitam concluir, ainda que de forma indiciária, nem pela existência de um concreto crédito sobre os requeridos nem pelo justificado receio de perda de garantia patrimonial desse seu eventual crédito.
Com efeito, a requerente alega, de forma conclusiva, que tem o receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito, mas não concretiza qual o seu crédito, referindo-se a um eventual crédito futuro relacionado com a distribuição de dividendos, sendo certo que peticiona o presente arresto por apenso a uma ação especial de inquérito judicial a sociedade no âmbito da qual não invoca qualquer crédito concreto sobre as sociedades requeridas.
Por outro lado, não concretiza a requerente porque razão receia a perda de garantia já que não refere um único acto por parte do requerido que faça indiciar que o mesmo se encontre a dissipar o património das sociedades e, por outro lado, requer o arresto de 9 (nove) imóveis todos registados em nome do requerido.
Assim, a falta de verificação dos respetivos requisitos necessariamente conduz ao indeferimento liminar da sua pretensão formulada pela requerente».
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Inconformada com tal decisão, a recorrente apresentou recurso de apelação e formulou as seguintes conclusões:
«I – Existe uma impossibilidade objetiva de quantificação de um crédito sobre as referidas sociedades e/ou o respetivo sócio-gerente por culpa única e exclusiva deste último e impossibilidade não deveria obstar a que a requerente possa salvaguardar, preventivamente, os créditos que vierem a ser apurados no decorrer do referido Inquérito Judicial. Na acção principal e no requerimento, a Requerente/Recorrente alegou que o Requerido marido logrou, a título pessoal, com património societário, comprar imóveis diversos, as sociedades contabilizaram, relativamente aos sócios, remunerações e dividendos que não foram entregues.
II – O decretamento de uma providência cautelar de arresto está dependente do preenchimento de dois requisitos cumulativos: (i) a probabilidade da existência do crédito invocado e (ii) a existência de justo receio de perda da garantia patrimonial.
III – Quanto ao primeiro requisito, o crédito que se venha a apurar existir a favor da requerente respeitante à distribuição de dividendos nunca poderá ser considerado um "crédito futuro", já que os dividendos em causa dizem respeito aos exercícios de 2007 a 2021 e 2012 a 2021, das sociedades “(…) F…, Lda.” e “(…) S…, Lda.”, respetivamente estando apenas o seu valor dependente de apuramento por parte dos Peritos nomeados pelo Tribunal.
IV – Os artigos 391.º e 392.º do Código de Processo Civil não dispõem que o crédito invocado pela Requerente da Providência Cautelar de Arresto tenha de ser certo líquido e exigível, bastando somente que se prove indiciariamente a sua existência [Vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo n.º 57/16.2T80RM.E1, de 19/05/2016]. Tendo sido decretado o divórcio e existindo uma contabilidade "falseada", justificadora da acção principal em que existem dados (remunerações e dividendos) que, embora contabilizados, não foram, de facto, entregues, então, não se vê, a não ser por erro de julgamento de facto e errónea interpretação do artigo 391.º, n.º 1, do NCPC 2013, é que aqui, se pode justificar o indeferimento.
V – Estranha-se e é até contraditório, que as sociedades em causa nunca tiveram lucros que permitissem a distribuição de dividendos, mas permitiram ao Requerido (…) "amealhar" o suficiente para adquirir 8 (oito) bens imóveis com um valor patrimonial tributário global de € 1.487.284,10 EUR (Um Milhão, Quatrocentos e Oitenta e Sete Mil, Duzentos e Oitenta e Quatro Euros e Dez Cêntimos), isto sem mencionar o efetivo valor de mercado.
VI – A informação prestada e a documentação entregue pelo Requerido (…) não espelha a real "vida contabilística" de ambas as sociedades, sendo altamente provável que a Requerente seja detentora de um crédito, sob a forma de dividendos não distribuídos, sobre ambas as sociedades e indiretamente, sobre o Requerido (…), o qual se locupletou à custa da Requerente.
VII – O decretamento da providência cautelar de arresto está igualmente dependente do preenchimento de um segundo requisito: a existência de justo receio da perda de garantia patrimonial ou o "periculum in mora".
VIII – A presente providência cautelar de arresto é meramente instrumental, estando relacionada com a Ação Especial de Inquérito Judicial à Sociedade e tem por objeto a salvaguarda do crédito acima identificado – nos termos e para efeitos do disposto no artigo 1050.º do Código de Processo Civil – e a factualidade respeitante à dissipação foi concretizada na Petição Inicial da Ação Especial à qual estes autos correm por apenso.
IX – Nos artigos 11.º-A e B, 12.º, 15.º, 16.º, 38.º e 39.º da Petição Inicial da Ação Especial de Inquérito Judicial à Sociedade são concretizados os factos que permitem concluir pela existência de justo receio de perda da garantia patrimonial da Requerente.
X – As contas bancárias de ambas as sociedades, no período compreendido entre 1 de Junho de 2020 e 24 de Novembro de 2020, foram descapitalizadas, tendo delas sido transferido para terceiros e para o próprio Requerido (…) um montante global de € 107.460,62 EUR (Cento e Sete Mil, Quatrocentos e Sessenta Euros e Sessenta e Dois Cêntimos), deixando as contas bancárias desaprovisionadas.
XI – Este facto, por si só, é indiciador do justo receio da perda de garantia patrimonial. Para efeitos do artigo 639.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e b), do NCPC 2013, o artigo 391.º, n.º 1, a comprovação do receio e da perda da garantia patrimonial e a existência do crédito, deve ser entendido, por um lado como um receio que é plausível à luz das regras da experiência bem como também é plausível e verosímil a existência de crédito da Requerente, quer porque diz que não recebeu dividendos, quer porque diz que não recebeu remuneração societária.
XII – O Douto Tribunal a quo concluiu erroneamente pela não verificação dos requisitos cumulativos exigíveis para o decretamento da providência cautelar de arresto, devendo a Douta Sentença que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar ser revogada e substituída por outra que decrete o procedimento cautelar de arresto nos termos peticionados.
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Do pedido:
Nestes termos e nos demais de Direito que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deve o Tribunal: admitir o presente recurso de apelação, considerando-o procedente por provado, nos termos peticionados e, consequentemente, revogar-se a douta sentença proferida, substituindo-a por sentença que decrete a providência cautelar de arresto dos bens indicados, nos termos peticionados.
Nesse sentido, Vossa Excelência realizará a mais lídima Justiça!».
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da questão da existência de erro de direito.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:
A matéria com interesse para a justa resolução da causa está descrita no relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
O património do devedor constitui a garantia geral das obrigações por ele assumidas, tal como se retira da interligação entre os princípios gerais precipitados nos artigos 601.º[1] e 817.º[2] do Código Civil.
De harmonia com a disciplina estabelecida nos artigos 391.º[3] e 392.º[4] do Código de Processo Civil, o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto dos bens do devedor ou dos bens adquiridos por um terceiro do devedor.
O arresto constitui uma providência cautelar de natureza especificada, que se destina a garantir um direito de crédito sempre que o credor tenha o fundado receio de que o devedor possa alienar, ocultar ou dissipar o seu património, frustrando, dessa forma, a satisfação patrimonial desse direito[5] [6] [7].
Neste contexto, o arresto visa acautelar o perigo de subtracção ou de ocultação do património do devedor em prejuízo do direito do credor, designadamente nos casos em que seja previsível a penhora desse património num processo de execução[8] [9] [10] [11][12] [13] [14] [15] [16] [17].
Esta providência visa assegurar o efeito útil da respectiva acção declarativa de condenação, a ser intentada ou já pendente contra o alegado devedor, porquanto, em caso de procedência dessa acção, fica garantida a execução do seu património, mediante a conversão do arresto em penhora[18] [19].
Na sua essência o arresto tem assim lugar para assegurar a execução coerciva sobre o património mobiliário ou imobiliário quando esteja em causa uma obrigação pecuniária ou uma pretensão que possa converter-se numa obrigação dessa natureza.
Para o deferimento da pretensão, torna-se necessário o preenchimento cumulativo de dois requisitos; a probabilidade da existência do crédito e o justo receio de perda da garantia patrimonial desse direito, cabendo o ónus de alegação e prova da verificação dos mesmos a cargo do requerente.
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Segundo a lição precursora de Calamandrei «as providências cautelares representam uma conciliação entre as duas exigências, que estão frequentemente em conflito: a da celeridade e da ponderação. Entre o fazer depressa e o fazer bem, mas tardiamente, as providências cautelares visam, antes de tudo, a fazer depressa, permitindo que o problema do bem e do mal, isto é, da justiça intrínseca da decisão seja resolvido ulteriormente, com a necessária ponderação, segundo os trâmites vagarosos do processo ordinário. Dão, assim, ensejo a que este processo funcione com calma, porque dispõem e ordenam preventivamente os meios idóneos para que a providência definitiva, quando chegar a ser pronunciada, possa ter a mesma eficácia e o mesmo rendimento prático que teria, se fosse proferida imediatamente»[20].
A jurisprudência também afiança que a tutela processual provisória decorrente das decisões provisórias e cautelares é instrumental perante as situações jurídicas decorrentes do direito substantivo, porque o direito processual é meio de tutela dessas situações. A composição provisória realizada através da providência cautelar não deixa de se incluir nessa instrumentalidade, porque também ela serve os fins gerais de garantia que são prosseguidos pela tutela jurisdicional (…). A composição provisória que a providência cautelar torna disponível pode visar uma de três finalidades: aquela composição pode justificar-se pela necessidade de garantir um direito, de definir uma regulação provisória ou de antecipar a tutela requerida. Sempre que a tutela provisória se legitime pela exigência de garantir um direito, deve tomar-se uma providência que garanta a utilidade da composição definitiva, quer dizer, uma providência de garantia[21].
Na sua dissertação de mestrado, Rita Lynce Faria defende que «as providências cautelares existem com uma função muito específica. E esta não se traduz na exclusão do genérico risco do dano jurídico, que consiste no perigo de violação do direito, a que se encontra sujeito o respectivo titular. Tal perigo não encontra tutela especial nos procedimentos cautelares, podendo, em certas circunstâncias, ser ultrapassado através de outros instrumentos judiciais de natureza preventiva, apenas caracterizáveis como cautelares num sentido muito amplo.
Na verdade, as medidas cautelares visam prevenir um dano muito concreto. Aquele que é causado pelo decurso do tempo. O correr do tempo que é necessário para a conclusão de um processo judicial. Tal dano consiste na inutilidade prática, total ou parcial, da sentença final favorável e, consequentemente, na inefectividade do direito do requerente. A este risco deste dano concreto, surgido pela demora da acção judicial, chama unanimemente a doutrina, seguindo Calamandrei, periculum in mora»[22].
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No que concerne à probabilidade da existência de um crédito, o legislador não exige a prova efectiva desse crédito, mas tão só que seja provável a existência do mesmo, nem tão pouco que a obrigação seja certa, exigível e líquida ou que já se encontre reconhecida pelos Tribunais[23].
Na verdade, a lei basta-se com a mera aparência do direito de crédito e esta traduz-se na alegação de factos que, ainda que perfuntoriamente, demonstrem de forma sumária ser razoável a titularidade do invocado direito de crédito.
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O receio da perda de garantia patrimonial mostra-se justificado quando está criado um perigo de insatisfação do crédito, por o seu titular se deparar com a ameaça de estar a ser lesado aquilo que lho garantia: o património do devedor[24].
Relativamente à perda da garantia patrimonial, na respectiva exemplificação, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre avançam que se trata de qualquer causa idónea a provocar num homem normal esse receio é concretamente invocável pelo credor, constituindo o periculum in mora: pode tratar-se do receio de insolvência do devedor (a provar através do apuramento geral dos seus bens e das suas dívidas) ou da ocultação, por parte deste, dos seus bens (se, por exemplo, ele tiver começado a diligenciar nesse sentido, ou usar fazê-lo para escapar ao pagamento das suas dívidas); mas pode igualmente tratar-se do receio de que o devedor venda os seus bens (…), mas é-o quando o devedor emite cheques que não obtêm provisão[25].
No fundo, importa apurar se foram praticados actos de ocultação, disposição, alienação ou oneração do património do devedor que indiciem a existência de um quadro de periculum in mora. E na jurisprudência são apresentados como exemplos índices desse perigo o montante elevado do crédito, associado à falta de liquidez do devedor[26]; a dificuldade considerável ou acrescida na recuperação do crédito[27]; a circunstância do património do devedor se encontrar onerado para garantia de um passivo elevado[28]; o facto do devedor estar acumulado com dívidas; a redução acentuada do património do devedor, associada à existência de dívidas de valor superior aos seus activos[29]; a desproporção acentuada entre o montante do crédito exigido e o valor do património conhecido, sendo este facilmente ocultável[30], a alienação de bens por valores inferiores aos habitualmente praticados no mercado; a pendência de diversas execuções contra o devedor ou a oneração do seu património com penhoras[31]; a frustração de contactos com o credor ou, por fim, entre muitos outros, o risco concreto de insolvência.
A perda da garantia patrimonial não pressupõe necessariamente que tenham já sido praticados pelo devedor actos de ocultação, disposição ou oneração do seu património em termos que ameacem a garantia patrimonial do direito de crédito, bastando a probabilidade séria de que isso venha a ocorrer[32].
Trata-se apenas de comprovar um juízo de probabilidade séria[33], que é dirigido para o futuro, necessariamente regido por critérios de probabilidade[34]. Assim, conforme já foi decidido, haverá que atentar, principalmente, na expressão pecuniária do crédito a proteger, no confronto com o valor do património que será chamado a responder por ele, na natureza das responsabilidades do devedor perante terceiros, que poderá impedir o credor de chegar a tempo ao rateio do activo em disputa, na actividade concreta desenvolvida com vista a defraudar das expectativas da satisfação do crédito, de que constitui paradigma a dissipação ou ocultação de bens, a insolvência dolosa, o despojamento fictício em favor de familiares ou amigos de confiança[35].
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Centra-se agora a atenção nas concretas questões incluídas no thema decidendum.
Quanto à conclusão X, da leitura da petição inicial de arresto ressalta que se trata de matéria incorporada ex novo no recurso interposto. Na verdade, os recursos são instrumentos de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas e assim o Tribunal da Relação não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados.
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Relativamente ao património imobiliário inscrito a favor do requerido cujo valor matricial ascende a € 1.487.284,10 (um milhão e quatrocentos e oitenta e sete mil e duzentos e oitenta e quatro euros e dez cêntimos) não é alegado nenhum ponto relevante que permita concluir que exista qualquer sinal – ainda que mínimo ou meramente suspeito – ou risco de dissipação do mesmo. E, além do mais, em sede de processo de divórcio, a requerente dispõe de meios que lhe permitem acautelar o seu direito ao património comum, se for caso disso.
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A determinação do justo receio de perda da garantia patrimonial não pode basear-se em conjecturas, suspeições, simples juízos de valor ou temores de índole subjectiva do requerente do arresto e há-se ser feita com recurso ao critério do bom pai de família, do homem comum, que colocado nas circunstâncias daquele, e em face da conduta do requerido relativamente ao seu património, houvesse de temer por tal perda[36].
O justo receio de perda da garantia patrimonial verifica-se sempre que o requerido adopte, ou tenha o propósito de adoptar, conduta (indiciada por factos concretos) relativamente ao seu património que coloque, objectivamente, o titular do crédito a recear ver frustrado o pagamento do mesmo[37].
Na situação vertente, a requerente do arresto não alegou as razões de facto que justificavam a imediata apreensão dos bens das sociedades requeridas ou do seu consorte nem transporta para a lide qualquer elemento que sustente a ideia que poderá ocorrer a perda relevante de garantias e, por último, também não carreia para o procedimento factos de suporte que assegurem a existência de uma expectativa de recebimento de créditos de dividendos.
Isto é, no plano casuístico não estão enunciados acontecimentos ou sequer meras expectativas que viabilizem a formulação da conclusão que está indiciada a possibilidade de ocultação de património ou de alienação do mesmo ou qualquer outro dado de onde se infira que, a nível indiciário, existe a finalidade de incumprir as suas obrigações para a titular da participação social.
Não existe qualquer dado de facto que permita formular a conclusão que as sociedades requeridas têm a sua contabilidade falseada com o intuito de prejudicar e causar prejuízo à recorrente e que o requerido se locupletou à custa da requerente.
A requerente alega que a matéria referida nos artigos 11º-A e B, 12º, 15º, 16º, 38º e 39º da petição inicial da acção especial de inquérito judicial à sociedade reúne os requisitos necessários à procedência do pedido de arresto. Porém, aquilo que interessa são os factos alegados na petição de arresto e não outros. Tal como é perspectivado pela decisão recorrida não existem sinais claros do justo receio de perda da garantia patrimonial nem mesmo da existência de qualquer crédito.
Da leitura da petição inicial e dos demais elementos de provado a esta anexos é assim de concluir que a requerente «não invoca qualquer crédito concreto sobre as sociedades requeridas», nem mesmo a título potencial com elementos descritivos minimamente sólidos e, bem assim, «não concretiza a requerente porque razão receia a perda de garantia já que não refere um único acto por parte do requerido que faça indiciar que o mesmo se encontre a dissipar o património das sociedades» ou capitais e bens próprios.
Não existe a alegação mínima demonstrativa, ainda que de forma sumária, ser razoável a titularidade do invocado direito de crédito nem tampouco está descrito um juízo de probabilidade séria de justo receio da perda de garantia patrimonial desse crédito.
Nesta ordem de ideias, em jeito de síntese final, ao realizar um juízo perfunctório com base na inexistência de qualquer aparência não é possível decifrar um quadro onde se verifica a ideia da insuficiência económica da parte contrária, das dificuldades de garantir o pagamento das suas obrigações creditícias, da diminuição acentuada dos respectivos patrimónios ou de qualquer factor que se possa integrar na esfera de protecção da norma.
Neste cenário, em face das particularidades do caso concreto, a posição expressa no despacho recorrida corresponde a uma visão correcta quando considera não liminarmente preenchidos os requisitos necessários para o decretamento da providência cautelar especificada requerida. E, por conseguinte, confirma-se a decisão recorrida.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da requerente, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 539.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 13/01/2022

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


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[1] Artigo 601.º (Princípio geral)
Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.
[2] Artigo 817.º (Princípio geral):
Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis de processo.
[3] Artigo 391.º (Fundamentos):
1 - O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.
2 - O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção.
[4] Artigo 392.º (Processamento):
1 - O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência.
2 - Sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduz ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação.
[5] Marco Carvalho Fernandes, Providências cautelares, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 222.
[6] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, págs. 13-14.
[7] António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. IV, pág. 189.
[8] Frederico Del Giudice, Codice de Procedura Civile, pág. 774.
[9] José Alberto dos reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, reimpressão de 1980.
[10] Adriano Vaz Serra, Responsabilidade patrimonial, Boletim do Ministério da Justiça, pág. 146.
[11] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Associação Académica da Faculdade de Direito, Lisboa, 1987.
[12] Eurico Lopes Cardoso, Código de Processo Civil anotado, Almedina, Coimbra, 1967.
[13] Moitinho de Almeida, Do arresto, Studia Iuridica, tomo XIII, nº67, Braga, Maio-Junho de 1964, pág. 292.
[14] Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 13.
[15] Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à face do código Revisto, Almedina, Coimbra, 2000.
[16] Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, Principia, Cascais, 2007.
[17] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 141-162.
[18] Marco Carvalho Fernandes, Providências cautelares, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 223.
[19] Miguel Teixeira de Sousa, As providências cautelares e a inversão do contencioso, disponível on line.
[20] Pierro Calamandrei, Introduzione allo studio sistemático dei provvedimenti cautelari, Padova, Cedam, 1936, pág. 20.
[21] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/04/2000, in www.dgsi.pt.
[22] A Função Instrumental da Tutela Cautelar Não Especificada, Universidade Católica Editora, Lisboa 2003, pág. 32.
[23] Marco Carvalho Fernandes, Providências cautelares, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 227.
[24] Marco Carvalho Fernandes, Providências cautelares, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 230.
[25] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 144.
[26] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12/02/2008, publicado em www.dgsi.pt.
[27] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/07/1987, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[28] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15711/2011, pesquisável em www.dgsi.pt.
[29] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/04/2018, divulgado em www.dgsi.pt.
[30] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11712/1973, in Boletim do Ministério da Justiça 232-110.
[31] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/01/2001, cuja consulta pode ser realizada em www.dgsi.pt.
[32] Maria de Fátima Ribeiro, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 738.
[33] Rita Barbosa da Cruz, O Arresto, O Direito, ano 132º, 2000, I-II, pág. 157.
[34] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 31/01/2012, que se encontra na plataforma www.dgsi.pt.
[35] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/01/2010, depositado em www.dgsi.pt.
[36] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/05/2016, publicitado em www.dgsi.pt.
[37] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/06/2000, Agravo n.º 365/00 - 7.ª Secção, disponível in www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.