Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
471/21.1GBSSB.E2
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA PAI CONTRA FILHA
NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE EXAME CRÍTICO
DEVER DE CORREÇÃO
CONDUTAS ATÍPICAS
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Tendo o tribunal “a quo” decidido acolher a versão da ofendida, não podia deixar de explicar as razões pelas quais não se convenceu da negação dos factos ou dos factos alternativos ou paralelos apresentados pelo arguido nas suas declarações. Não o tendo feito, deixou dúvidas sobre o percurso lógico que conduziu à decisão. O que, na verdade, o tribunal recorrido fez, foi usar em excesso o seu subjetivismo na apreciação de meios de prova de carácter pessoal – concretamente os depoimentos das testemunhas e as declarações do arguido – olvidando-se da razão, ou não tendo exposto de que forma utilizou a razão na apreciação dos referidos meios de prova, o que se revela inadmissível, pois que a ausência da racionalidade corresponde à ausência total de fundamentação, evidenciando que a decisão sindicada continua a enfermar da nulidade prevista no artigo 379.º, nº 1.º, al. a) do CPP por referência ao artigo 374.º, nº 2 do CPP.
II - Continuando o tribunal de recurso impedido de sindicar o juízo crítico sustentador da convicção probatória – porquanto o tribunal recorrido não supriu a nulidade por falta de fundamentação declarada no anterior acórdão desta Relação relativamente à primitiva sentença – mais não haverá de que julgar procedente a impugnação da matéria de facto realizada pelo recorrente, mantendo nos factos provados apenas aqueles que pelo mesmo foram admitidos. Quanto aos demais, por falta de adequada fundamentação, não poderão deixar de ser conduzidos aos factos não provados, por não se revelar possível formar convicção probatória segura da sua veracidade. Assim determina o princípio do in dúbio pro reo que nas descritas circunstâncias se impõe convocar.

III - Só assume relevância criminal o castigo que, por se revelar desproporcionado e imoderado, ultrapassa o poder/dever de correção dos pais sobre os filhos socialmente aceite.

IV - As condutas imputadas ao recorrente na sentença – consubstanciadas em chamar à sua filha de quatro anos “porca”, em dizer-lhe “vais levar nas trombas, porca” e em ter-lhe desferido uma bofetada, que não lhe deixou quaisquer marcas, quando a mesma saiu a correr de casa em direção à estrada – passam os crivos da moderação e da proporcionalidade, pelo que sempre se encontrariam abrangidas pelo poder/dever de correção, devendo considerar-se socialmente adequadas, o que as tornaria penalmente atípicas.

V - Pese embora não ignoremos a posição doutrinária que coloca a situação a que nos reportamos a coberto da causa de justificação prevista no artigo 31º, nºs 1 e nº 2, alínea b) do CP, que excluiria a sua ilicitude, não subscrevemos tal linha de entendimento, afigurando-se-nos mais consentâneo com a dogmática penal e com o princípio da intervenção mínima que lhe subjaz, fazer recuar a exclusão da punibilidade destas situações ao nível do primeiro pressuposto da incriminação, ou seja, ao nível da tipicidade, pois que, a nosso ver, o direito penal não pode ser colocado ao serviço da evolução das mentalidades no que diz respeito a questões pedagógicas

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de …-J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º471/21.1GBSSB, por sentença datada de 10.10.2023 – proferida em cumprimento do acórdão desta Relação com data de 25.05.2023, que declarou a nulidade da primitiva sentença por falta de fundamentação e determinou a remessa dos autos à primeira instância para suprimento de tal vício – foi o arguido AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia do …, concelho do …, nascido em … de 1988, solteiro, residente na Rua …, lote …, fração …, …, portador do Cartão de Cidadão n.º …, condenado da seguinte forma:

- Pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e nºs 2, 4 e 5 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;

- Pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.ºs 2, 4 e 5 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

- Em cúmulo jurídico, condenado na pena única de 2 (dois) anos e 11 (onze) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos;

- Condenado no pagamento da indemnização de 1 500,00 € à vítima EE ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal e do artigo 5.º, n.º 1, al. a) da lei n.º 104/2009, de 14 de setembro, na sua versão atualizada pela lei n.º 121/2015, de 01.09;

- Condenado no pagamento da indemnização de 1.250,00 € à vítima DD, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal.

*

Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1- Por Sentença proferida a 25 de janeiro de 2023, no processo n.º 417/21.1GBSSB, que correu termos no Juízos de Competência Genérica de …, Comarca de …, o arguido foi condenado pela prática em autoria material, em concurso real e efetivo, de:

a) um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152. º, n.º 1, b) e n.º 2, 4 e 5 do Código Penal, sobre EE, na pena parcelar de dois e três meses anos de prisão e,

b) um crime de violência doméstica, revisto e punido pelo artigo 152.º n. º1, b) e n.º 2, 4 e 5 do Código Penal, na pena parcelar de dois anos e quatro meses de prisão,

c) Operando o cúmulo jurídico, condenado na pena única de três anos de prisão, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, suspensa na sua execução por um período de três anos, ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º 5 do Código penal;

d) Ao pagamento de indemnização de mil e quinhentos euros á vítima EE;

e) Ao pagamento de dois mil euros á vítima DD.

2- Desta decisão recorre o Arguido, ora recorrente, por com ela não concordar, tendo o recurso como objeto:

a) Nulidade na Sentença por insuficiência de exame critico das Provas, nos termos do artigo 379.º n.º1 a) por referência ao artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

b) Erro de julgamento da matéria de facto, quanto aos factos considerados provados 9,10, 13, 15, 16 da douta sentença recorrida, referente ao crime previsto e punido pelo artigo 152.º n.º1, b) e n.º 2, 4 e 5 do Código Penal, sobre a Menor DD;

c) Erro de subsunção jurídica do facto provados a 11 da sentença recorrida, referentes ao mesmo crime pelo qual o arguido foi condenado, violando do

3- A douta sentença recorrida dá como factos provados:

“4- O arguido AA e a ofendida EE viveram juntos, como se de marido e mulher se tratassem, durante cinco anos, desde de data não concretamente aturada de ano de 2016 até 18 de junho de 2021, na residência da rua …, lote …, fração …, …;

5- Do relacionamento entre o casal nasceu em … de 2017 a menor DD e, em … de 2020, FF;

6- Inicialmente o relacionamento entre o casal era bom, tendo começado a deteriorar-se aquando do nascimento da filha de ambos em 2017, a menor DD, situação que piorou após o nascimento de ambos, em 2020, FF;

9- O arguido sempre teve um comportamento agressivo e austero com a menor DD, sendo que quando a menor comia, se sujasse a roupa, a mesa ou o chão, chamava-lhe porca;

10-Se por qualquer motivo a menor DD, entrasse em casa e não trocasse os sapatos da rua pelos de casa, o arguido começava aos gritos com ela e dizia-lhe “vais levar nas trombas, porca”;

11- No dia 17 de Junho de 2021, em virtude da menor DD ter saído para a rua, pois tinha visto a avó no exterior, o arguido desferiu uma estalada na cara da menor;

13- A atuação do Arguido AA para com a sua filha menor, a ofendida DD, foi cruel e desproporcionada, tanto mais que é uma criança de tenra idade, pois ao agredi-la nos moldes em que o fez, bem sabia que atingiria, como atingiu, aquela e a molestaria fisicamente, conforme molestou, o que quis e conseguiu;

15- Com estas condutas que reiteradamente produziu, o arguido AA quis maltratar e ofender fisicamente a ofendida DD, sua filha, bem sabendo que a mesma é uma criança, e que de si dependia, o que quis e conseguiu:

16- Com as condutas supra descritas agiu sempre o Arguido de forma livre, deliberada e consciente de serem as mesmas proibidas e proibidas por lei;

17- O arguido não tem antecedentes criminais;

18- O arguido tem o 9.º ano de escolaridade e trabalha na área informática, auferindo mensalmente mil e tal euros líquidos;

19- A ofendida ex-companheira do arguido é administrativa em receção de uma clinica medica, licenciada em …, auferindo oitocentos euros líquidos por mês;

20-Ambos moram atualmente cada um na sua casa, sendo que a DD e um outro filho do ex-casal, mais novo que a irmã DD, residem com a mãe EE;

21- Ambos têm apoio familiar dos seus progenitores.”

4-Para formar a sua convicção, o tribunal a quo baseou-se no depoimento da ofendida, EE, no depoimento das testemunhas seus pais GG e HH e, nas informações da Comissão de proteção de crianças e jovens a fls. 56 e 75, assentos de nascimento e certidão de registo criminal respeitante ao Arguido.

5-Quanto aos pais e irmã do arguido, tribunal a quo considerou que apenas estavam presentes nas festas e reuniões familiares, pelo que nada contribuíram para a fixação dos factos e, ignorou as declarações prestadas pela testemunha II.

6- Considerando que não se fundamenta devidamente porque se considera o depoimentos das testemunhas da acusação corroborantes do testemunho da ofendida EE , se afasta a valoração de depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa e, não se faz referência a um depoimento de uma testemunha, procedendo sentença recorrida, como se o mesmo não tivesse existido, entende-se que a sentença é nula, retirando daí as devidas consequências.

7- Ainda que assim não se entenda, não se conforma o Recorrente com a sua condenação.

8- O Recorrente entende que as declarações prestadas pelas testemunhas GG, HH e II (que se encontra transcritas nas motivações do presente Recurso), levam a uma conclusão diversa, no que aos fatos provados diz respeito, no ponto 9, 10, 13, 15, 16.

9- As testemunhas GG e HH apesar de afirmar que o recorrente tinha um comportamento agressivo e autoritário com a menor, quando chegam á concretização de tais comportamentos, apenas descrevem situações normais de qualquer relacionamento pai/filho no que á educação diz respeito. Relatam episódios referentes a alimentação e, a tentativa do progenitor de que a menor desse primazia a alimentos saudáveis em detrimento de outros menos saudáveis; episódios em que o pai tenta fazer a criança compreender a figura de autoridade e impor regras de forma compreensível para a criança e adequada. Manifestam estas testemunhas uma visão bastante permissiva dos comportamentos da menor, sem a imposição de regras, nem respeito pelas regras imposta pelo progenitor.

10- Quanto á testemunha II, educadora da menor até aos 4 anos de idade, o seu depoimento foi ignorado, nem sequer se fazendo menção ao mesmo na sentença.

11-As suas declarações (transcritas nas motivações deste recurso e gravadas no sistema informático do tribunal) ao descrever a Menor DD antes da separação, levam a concluir que a menor não estaria teria sujeita ao que é considerado como provado na sentença recorrida.

12-A testemunha descreve a menor como extremamente alegre, extrovertida, bem-disposta, que não tinham baixa autoestima e, que conversava de forma natural e escorreita de episódios que se passariam em casa. Nunca a menor relatou qualquer episódio de agressão, quer física, quer verbal. Nunca reproduziu esses comportamentos com os pares e mantinha um bom relacionamento com o progenitor.

13- Da experiência da testemunha, uma criança sujeita a constante agressão verbal e psicológica, já para não referir física, demonstra isso no seu comportamento diário, o que não era o caso da menor. O comportamento da mesma sofreu uma modificação, tornando-a mais retraída e sem falar da família, após a separação dos progenitores e não antes.

14- Atendendo às declarações destas testemunhas, o tribunal a quo mal andou ao considerar provado os fatos descritos nos pontos 9,10, 13, 15, 16., devendo a sentença recorrida nessa parte ser revogada, pois muitas dúvidas temos que esses fatos efetivamente se tenham passado, aplicando-se o princípio do in dubio pro reo.

15- O facto descrito no ponto 11 dos factos provados foi admitido pelo arguido.

16-Embora baste uma mera situação para estarmos perante um crime de violência doméstica, nos termos do artigo 152.º do Código Penal, a situação descrita no ponto 11 não é subsumível neste tipo de crime, no nosso entendimento.

17-Para que uma só situação seja bastante para classificar como violência doméstica, esta tinha que ser tão intensa e censurável, que comprometa de forma grave o desenvolvimento da personalidade da vitima, pondo em causa a sua dignidade humana, o bem jurídico tutelado pelo crime em causa.

18- O que com o devido respeito, não é um caso. Foi uma situação, que aconteceu no âmbito de uma correção de comportamento (a menor saiu para a rua, quando sabia que não devia faze-lo). Uma situação isolada e sem grandes consequências para a menor.

19- Ainda que por hipótese académica, se entenda que esta ação do Recorrente possa preencher o tipo objetivo do crime de violência domestica, o tipo subjetivo não se encontra preenchido.

20- Defende a teoria da Adequação social que perante “uma conduta socialmente adequada, nunca se chegará a questionar a consciência do ilícito por parte do seu autor, uma vez que o próprio preenchimento do tipo legal do crime não subsiste perante uma ausência completa e generalizada de consciência social”

21- É o que acontece com o “ direito de correção” que apenas assiste aos pais.

22-E tanto este “direito de correção” está enraizado ainda na consciência social da comunidade, que a próprio a testemunha II, o defendeu quando questionada pelo Digníssimo Procurador, com ainda o terá transmitido ao Recorrente, quando este a questionou sobre métodos educacionais para gerir o comportamento mais traquina da sua filha DD.

23-Posto isto, não se pode afirmar sem sombra de dúvida que o arguido agiu com dolo. Pelo contrário, o Recorrente terá agido dessa forma com a sua filha na convicção que estava a exercer o seu dever/ direito de correção, subjacente ao seu dever de educar enquanto progenitor, devendo ser absolvido do crime violência doméstica sobre a Menor DD.

24- E tal falta de consciência de censurabilidade estende-se a qualquer tipo de crime que os fatos praticados pelo recorrente possam ser subsumidos.

25-Por tudo o quanto foi exposto, deverá o Recorrente ser absolvido de qualquer crime contra a sua filha DD.”

Termina pedindo a declaração de nulidade da sentença por insuficiência de exame crítico das provas e, subsidiariamente, a revogação parcial da mesma, solicitando a sua absolvição pela prática do crime de violência doméstica sobre a sua filha, DD e, bem assim, a sua absolvição do pagamento da indemnização a tal vítima.

*

O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1. A presente resposta vem na sequência do recurso interposto pelo arguido AA, no que concerne à decisão proferida pelo Tribunal a quo que o condenou, além do mais, pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da sua filha DD.

2. Alegou, em suma, que a sentença proferida estava ferida de nulidade por insuficiência de exame crítico das provas, nos termos do artigo 379.º n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 374.º n.º 2 do Código de processo Penal; que o Tribunal incorreu num erro de julgamento quanto aos factos 9, 10, 13, 15 e 16 e, ainda, que o Tribunal a quo violou o artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.ºs 2, 4 e 5 do Código Penal.

Consideramos que não assiste razão ao recorrente, porquanto:

3. O Tribunal a quo explicitou de forma clara, de acordo com as regras da experiência, os elementos probatórios relevantes no qual apoiou a sua decisão.

4. Consideramos que, a pretexto da impugnação da matéria de facto, o que verdadeiramente pretende o recorrente, é colocar em crise o processo de formação de convicção do julgador, tentando impor a sua leitura da prova.

5. Porém, tribunal estribou a sua decisão na prova produzida em audiência de discussão de julgamento a que fez menção, que apreciou segundo as regras da lógica e da experiência, de acordo o preceituado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, corolário do princípio da livre apreciação da prova, sendo que aquela prova só impunha o caminho da decisão que o tribunal proferiu e que coloca o arguido como autor do crime por que foi condenado.

6. Assim, não merece, a nosso ver, censura a decisão recorrida, na medida em que cumpre os requisitos legais a que deve obediência, resultando da mesma não apenas o processo de formação da convicção do tribunal a quo e o exame crítico das provas que a sustenta, com o recurso ao raciocínio lógico-dedutivo assente na credibilidade que lhe mereceu cada uma das provas relevantes que a sustentaram.

7. Os factos dados como provados não nos merecem qualquer reparo.

8. Factos esses que, na nossa opinião, consubstanciam a prática de um crime de violência doméstica.

9. E, assim sendo, pugnamos para que seja mantida a decisão recorrida.”

*

Tendo tido vista do processo, o Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso, atendendo às conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação e considerando as questões de conhecimento oficioso, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir:

A) Apreciar a sentença recorrida persiste no vício de nulidade por insuficiência do exame crítico das provas e por falta de exposição suficiente dos motivos de direito que fundamentaram a decisão, nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do CPP e, não existindo tal vício ou revelando-se possível saná-lo, determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, em desrespeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP.

C) Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de direito em virtude de os factos que resultaram provados não integrarem os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica praticado sobre a filha do recorrente.

*** II.II - A sentença recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados e não provados os seguintes factos:

“1.O arguido AA e a ofendida EE viveram juntos, como se de marido e mulher se tratassem, durante cinco anos, desde data não concretamente apurada do ano de 2016 até 18 de junho de 2021, na residência sita na Rua …, lote …, fração …, …;

2. Do relacionamento entre o casal nasceu em … de 2017 a menor DD, e em … de 2020, FF;

3. Inicialmente o relacionamento entre o casal era bom, tendo começado a deteriorar-se aquando do nascimento da filha de ambos em 2017, a menor DD, situação que piorou após o nascimento do filho menor de ambos em 2020, FF;

4. Frequentemente o arguido AA se dirigia à ofendida EE dizendo lhe que “és uma má mãe”, “não sabes fazer nada”, bem como na sequência de discussões ocorridas entre o casal dizia à ofendida “és uma puta, uma porca”;

5. Tais situações ocorriam quer na residência do casal como à frente dos familiares de ambos;

6.Depois do nascimento da menor DD, se a ofendida não quisesse ter relações sexuais, o arguido dizia-lhe “és uma puta” e insinuava que era porque tinha outra pessoa;

7. Sempre que a ofendida chamava a atenção do arguido para o modo agressivo como ele falava com a filha menor DD, este dizia-lhe “não te metas, senão quem levas és tu”;

8. Com o deteriorar da relação, e sempre que o arguido e a ofendida falavam de se separar, aquele dizia-lhe “sais, mas os meninos ficam” e que “lhe retirava os filhos”;

9. O arguido sempre teve um comportamento agressivo e austero com a menor DD, sendo que, quando a menor comia, se sujasse a roupa, a mesa ou o chão, chamava-lhe “porca”;

10. Se por qualquer motivo a menor DD, entrasse em casa, e não trocasse os sapatos da rua pelos de casa, o arguido começava aos gritos com ela e a dizer-lhe “vais levar nas trombas, porca”;

11.No dia 17 de junho de 2021, em virtude da menor DD ter saído para a rua pois tinha visto a avó no exterior, o arguido desferiu uma estalada na face da menor;

12. O arguido AA quis dirigir à ofendida EE, à data sua companheira, as palavras acima descritas, estando ciente que as mesmas atingiam a sua honra e consideração, e com as ameaças que proferiu, quis causar-lhe receio de ficar privada dos filhos, limitando-lhe a sua liberdade de agir, o que conseguiu;

13. A atuação do arguido AA para com a sua filha menor, a ofendida DD, foi cruel e desproporcionada, tanto mais que é uma criança de tenra idade, pois ao agredi-la nos moldes em que o fez, bem sabia que atingiria, como atingiu, aquela e a molestaria fisicamente, conforme molestou, o que quis e conseguiu;

14. Com estas condutas que reiteradamente produziu, o arguido AA, quis maltratar, torturar, humilhar e ofender a ofendida EE, sua companheira, bem sabendo que se encontrava na residência comum do casal, o que quis e conseguiu;

15. Com estas condutas que reiteradamente produziu, o arguido AA quis maltratar e ofender fisicamente a ofendida DD, sua filha, bem sabendo que a mesma é uma criança, e que de si dependia, o que quis e conseguiu;

16. Com as condutas supra descritas agiu sempre o arguido de forma livre, deliberada e consciente de serem as mesmas proibidas e proibidas por lei;

17. O arguido não tem antecedentes criminais;

18. O arguido tem o 9.º ano de escolaridade e trabalha na área da informática, auferindo mensalmente mil e tal euros líquidos;

19. A ofendida ex-companheira do arguido é administrativa em receção de clínica médica, licenciada em …, auferindo oitocentos euros líquidos por mês;

20. Ambos moram atualmente cada um na sua casa, sendo que a DD e um outro filho do ex-casal, mais novo que a irmã DD, residem com a mãe EE;

21.Ambos têm apoio familiar dos seus progenitores.

*

B) Factos Não Provados.

Com interesse para a decisão da causa não resultou provado que:

Único. O arguido, por vezes, deferia na menor DD uma chapada, como sucedida se deixasse cair algum objeto ao chão e partisse.”

* II.III - Apreciação do mérito do recurso.

De acordo com as regras da precedência lógica, aplicáveis às decisões judiciais – artigo 608.º, nº 1.º CPC, ex vi do artigo 4.º CPP – cumpre apreciar, primeiramente, os vícios formais da decisão recorrida.

A) Da nulidade da sentença por insuficiência do exame crítico das provas e por falta de exposição suficiente dos motivos de direito que fundamentaram a decisão e do erro de julgamento da matéria de facto.

A nulidade da sentença prevista no artigo 379º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do CPP, ocorre nos casos em que a decisão não contenha fundamentação que inclua o elenco dos factos provados e não provados, a motivação da convicção probatória realizada com o exame crítico das provas e, bem assim, os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão.

Por manterem atualidade e pertinência, reiteramos neste item as considerações que expusemos no acórdão desta Relação anteriormente proferido nos autos, que, por facilidade de apreensão, de novo aqui consignamos.

Como sabemos – e reiterando o que deixámos bem explícito no anterior acórdão – para além de a decisão sobre a matéria de facto dever enunciar todos os factos considerados relevantes para a apreciação dos autos – retirados da acusação, do pedido cível e da contestação ou resultantes da discussão – integrando-os expressamente no elenco dos factos provados e não provados, deverá a mesma, sob pena de nulidade, expor o juízo probatório do julgador em termos claros, coerentes e sem vícios ou contradições intrínsecas que a inquinem. O mesmo é dizer que na sentença deverão consignar-se os motivos de facto e de direito que sustentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal examinadas criticamente. Ou seja, o julgador deverá exarar na fundamentação da sentença os juízos e raciocínios que efetuou e que o levaram decidir quanto à factualidade relevante, devendo concretizar as razões estruturantes da sua convicção, de forma a permitir aos destinatários da decisão a reconstrução do percurso mental sustentador do juízo probatório, permitindo-lhes, ademais, verificar que a decisão tomada não foi arbitrária. (1).

O sistema da livre convicção consagrado no ordenamento jurídico português não é um sistema puramente subjetivo de apreciação probatória, mas sim um sistema assente na razão, em presunções probatórias racionalmente fundadas e nas regras de experiência da vida. Voltamos a convocar, pela sua pertinência, as eloquentes palavras do Desembargador Gomes de Sousa, no acórdão desta Relação, que relatou em 28.03.2023 (2):“(…) a fundamentação quer-se assente na razão e não numa apreciação subjetiva insindicável (...). Assim o princípio da livre convicção deve ser associado a uma discricionariedade do juiz na apreciação probatória mas apenas no sentido de o não vincular – como regra geral – a uma valoração probatória pré-definida, porque apenas nisso é livre. Mas não exime o juiz da busca da verdade através dos métodos epistemológicos aceites. E o método epistemológico, por excelência, aceite na busca da verdade dos factos é a razão. (…)

*

Após a remessa dos autos à primeira instância para sanação da nulidade por falta de fundamentação, o tribunal a quo proferiu a sentença recorrida, tendo reformulado, quer a fundamentação de facto, quer a fundamentação de direito (3). No entender do recorrente, a sentença continua a enfermar do aludido vício.

Atentemos, pois, no texto da sentença recorrida quanto:

a) À motivação da convicção probatória no que diz respeito à factualidade que constitui o objeto do recurso, ou seja, quanto aos factos que suportaram a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica praticado contra a sua filha:

“C) Motivação da Matéria de Facto.

O tribunal gizou a sua convicção no depoimento da ofendida, EE, que de modo escorreito e sem hesitação, e, por vezes, espontaneamente emocionada, até chorando, relatou a factualidade narrada na acusação.

A ofendida, EE, não deduziu pedido de indemnização civil nem se constituiu como assistente, donde se conclui não ter qualquer interesse monetário ou de condenação do arguido sem fundamento.

A corroborar o depoimento da ofendida tivemos as testemunhas seus pais, GG e HH, que, em certos factos, foram confirmativas do comportamento delituoso do arguido, embora só testemunharam o que observaram nomeadamente não viram o arguido a dar chapadas na face da menor, DD, pelo que revelaram imparciais.

EE revelou-se imparcial porquanto não confirmou o único facto não provado, ou seja, não afirmou que “o arguido, por vezes, deferia na menor, DD, uma chapada, como sucedida se deixasse cair algum objeto ao chão e partisse”. Este facto é naturalmente desfavorável ao arguido, do ponto de vista de a agravação da sua incriminação, e a ofendida EE não o confirmou, pelo que reforçou a isenção do depoimento da mesma.

Sempre que a ofendida chamava a atenção do arguido para o modo agressivo como ele falava com a filha menor, DD, este dizia-lhe “não te metas, senão quem levas és tu”, conforme foi afirmado na audiência de julgamento por EE. Da prova deste facto decorre, desde logo, que o arguido era agressivo na educação que exercia sobre a sua filha, DD, sendo que se tratava de uma criança, do sexo feminino, com menos de 4 (quatro) anos de idade, isto é, de tenra idade. A educação agressiva sobre uma menor desta idade constituiu um ponto de partida desadequado da conduta que o arguido praticava sobre a sua filha, uma criança de pouca idade.

Continuando o seu depoimento, EE disse que o arguido sempre teve um comportamento austero com a menor, DD, sendo que, quando a menor comia, se sujasse a roupa, a mesa ou o chão, chamava-lhe “porca”.

Ora, chamar de porca a uma menina de menos de 4 (quatro) anos de idade, ainda para mais sua filha; o que é antipedagógico, mesmo numa educação mais rígida e exigente, indo contra as regras da boa educação e poderá afetar psicologicamente a criança tratada desse modo. Tanto mais, quando, uma criança entra em casa e por não trocar os sapatos da rua pelos de casa, o progenitor começa aos gritos com ela e a dizer-lhe “vais levar nas trombas, porca”. Será que este tipo de conduta se poderá qualificar como educacional? A resposta só pode ser negativa. As expressões usadas são grosseiramente ofensivas da dignidade de uma criança e, no caso concreto, em especial porque expressas em contexto familiar e relacional entre pai e filha de, repita-se, tenra idade.

A, única, chapada na face provada foi-o através do depoimento de EE, mencionada no facto provado 11(onze) e que o arguido até certo ponto admitiu, dizendo que, nessa circunstância de tempo e lugar, tocou com a mãe aberta na cara da sua filha, DD.

O arguido negou a generalidade dos factos descritos na acusação, salvo a exceções aqui referidas.

Os motivos das injúrias e ameaças reiteradas, e chapada na face consistiram para o arguido o modo como o mesmo pretendia educar/corrigir a filha, mas, como já vimos, este tipo de correção sobretudo sobre uma filha ainda quase bebé, mas que já se apercebe e tem a perceção das coisas e dos acontecimentos ao seu redor e sobre o seu corpo e sua mente, foge aos princípios elementares e basilares de uma educação adequada, moderna, pedagógica e que zele pelo são equilíbrio psicológico de uma criança, pelo que não restam dúvidas que o arguido praticou conduta delituosa sobre a menor, DD.

Os motivos das injúrias e ameaças reiteradas sobre EE advieram do facto de aquela recusar, por vezes, praticar relações sexuais com o arguido e aquela não executar em casa as tarefas diárias que o arguido pretendia que executasse.

Temos, também, a corroborar o depoimento da ofendida em relação à filha que tem com o arguido, a menor DD, as informações Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de fls.56 e 75.

Mais, teve-se em consideração os assentos de nascimento (fls. 41 e 44) e a certidão do registo criminal respeitante ao arguido.

Face ao modo de execução dos crimes vemos que o arguido agiu com conhecimento e vontade de os praticar.

A factualidade provada respeitantes às condições pessoais atuais do arguido decorreram das suas declarações, assim como referiu as condições económicas da ofendida EE.

Os pais e irmã do arguido só estavam presentes em reuniões familiares para celebrações e festas, pelo que nada contribuíram para a fixação dos factos.”

b) À subsunção dos referidos factos ao direito:

“III. Fundamentação Jurídica.

O arguido vem acusado da prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e nºs 2, 4 e 5 do Código Penal, relativamente a EE, e de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.ºs 2, 4 e 5 do Código Penal, relativamente a DD.

Da relação marital ou de união de facto com a ofendida EE nasceu DD.

O bem jurídico a proteger no caso concreto é a pessoa da unida de facto e a pessoa da filha do arguido, quanto à saúde física e psíquica ou emocional, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida na realidade familiar do arguido, não só com agressões físicas, mas também com agressões psíquicas como injúrias, difamações, ameaças causando um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente/arguido e enquanto pessoa com quem ele já anteriormente coabitou.

O arguido cometeu dois crimes de violência doméstica, pois injuriou, humilhou e ameaçou a ofendida EE, o mesmo tendo sucedido com a filha de ambos de tenra idade sobre a qual desferiu agressão física.

Com a injúria “porca” e ameaça vais levar nas trombas, porca”, reiteradas, repetidas no tempo; e com a chapada o arguido cometeu o crime de violência doméstica pelo qual vem acusado contra a sua filha menor, nascida em 2017, de nome próprio DD.

O bem jurídico a proteger, no caso concreto, em que foi ofendida a DD, é, sobretudo, a saúde psíquica ou emocional, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida na realidade familiar do arguido e por ser pessoa especial indefesa e necessitada de proteção/carinho em face da sua, da vítima, idade. Com a referida agressão física, ainda que de menor gravidade (chapada), o arguido reforçou um clima de medo e intranquilidade, para a criança sua filha, ao contrário do que seria de esperar em prol da harmonia na infância e do superior interesse da menor.

O arguido atuou com conhecimento e vontade, nos dois casos, o da sua mulher e o da sua filha, considerando o modo de execução dos crimes que manifestamente excede o que se possa entender de regime educacional e de um relacionamento conjugal harmonioso.

No caso da menor ao arguido era exigível como pai outro tipo de comportamento, aceitando que a sua filha se sujava muito, deixava cair objetos ao chão e não calçava as pantufas/chinelas de andar por casa simplesmente por ser criança de pouca idade o que a naturalmente a incapacitava de ter noção da higiene e de ter um corpo formado, nomeadamente ao nível dos membros superiores – mãos – para não deixar cair coisas no solo.

Assim se conclui que o arguido cometeu os crimes pelos quais vem acusado.

Não existem causas de exclusão da ilicitude e da culpa.

Estão reunidas todas as condições de punibilidade.”

*

A leitura da sentença sob recurso torna evidente que o tribunal a quo não supriu a falta de fundamentação declarada relativamente à primitiva sentença, não tendo cuidado de corrigir as concretas situações que, a propósito da motivação da convicção probatória e da subsunção dos factos ao direito, assinalámos no anterior acórdão desta Relação. Com efeito, constatamos que:

- A prova dos factos em referência continuou a sustentar-se quase exclusivamente no depoimento da ofendida – que o tribunal considerou “que de modo escorreito e sem hesitação, e, por vezes, espontaneamente emocionada, até chorando, relatou a factualidade narrada na acusação” – ao qual foi atribuída total credibilidade, mas que não foi confrontado com as restantes provas produzidas em sentido contrário, mormente com as declarações do arguido.

- Não obstante os concretos reparos feitos a tal propósito no anterior acórdão desta Relação, as referências, quer relativamente ao depoimento da ofendida, quer quanto aos demais meios probatórios mencionados no excerto transcrito – concretamente os depoimentos das testemunhas GG e HH (pais da ofendida) e informações da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de fls. 56 e 75 – continuam a ser feitas sem qualquer reporte a factos concretos e de forma genericamente acrítica.

- No que diz respeito às declarações do arguido continua a sentença a referir apenas que “No mais e no geral o arguido negou a factualidade descrita na acusação” e que “Os motivos das injúrias e ameaças reiteradas, e chapada na face consistiram no modo como o arguido pretendia educar/corrigir a filha de ambos”. Tendo-se limitado a acrescentar na sentença reformada, agora recorrida, que: “(…) mas, como já vimos, este tipo de correção sobretudo sobre uma filha ainda quase bebé, mas que já se apercebe e tem a perceção das coisas e dos acontecimentos ao seu redor e sobre o seu corpo e sua mente, foge aos princípios elementares e basilares de uma educação adequada, moderna, pedagógica e que zele pelo são equilíbrio psicológico de uma criança, pelo que não restam dúvidas que o arguido praticou conduta delituosa sobre a menor, DD.”

- Novamente, absolutamente nada consignou o tribunal na motivação do seu juízo probatório relativamente à apreciação crítica das declarações do arguido, continuando a não afirmar sequer que decidiu não lhes atribuir credibilidade e, menos ainda, por que razão o fez. O que se escreveu de novo na sentença reformada foi apenas o parágrafo que acabámos de transcrever, que não consubstancia qualquer apreciação crítica da prova, mas antes uma manifestação de opiniões pessoais sobre os métodos educacionais, sobre pedagogia e sobre dever de correção, que, como está bom de ver, se mostra absolutamente deslocada e que nada acrescentou ao juízo crítico que já se assinalara como deficiente.

- Continua a não ser feita qualquer referência ao depoimento da testemunha II (educadora da menor), prestado em audiência na sessão ocorrida em 15.12.2022 e que o recorrente invoca no recurso, entre o mais, para sustentar a impugnação da matéria de facto, pelo que, tal como já sucedia na sentença declarada nula, continuamos sem saber se o tribunal o valorou ou não – conforme havíamos já assinalado no anterior acórdão desta Relação – ou se, tendo-o valorado, não lhe atribuiu relevância ou credibilidade e porquê.

Efetivamente, na motivação da decisão de facto o tribunal “a quo” limitou-se novamente a fazer uma referência a alguns meios de prova que terá tido em conta, sem os reportar a nenhum dos factos em concreto que teve por provados, tendo relatado muito brevemente o conteúdo das declarações do arguido no que diz respeito às justificações que apresentou para os comportamentos que admitiu, sendo que, relativamente ao cotejo e apreciação crítica de tais depoimentos e declarações, nada escreveu. Com efeito, tendo o tribunal “a quo” decidido acolher a versão da ofendida, não podia deixar de explicar as razões pelas quais não se convenceu da negação dos factos ou dos factos alternativos ou paralelos apresentados pelo arguido nas suas declarações. Não o tendo feito, deixou dúvidas sobre o percurso lógico que conduziu à decisão.

Em suma, reiteramos, o que o tribunal recorrido fez, a nosso ver, foi usar em excesso o seu subjetivismo na apreciação de meios de prova de carácter pessoal – concretamente os depoimentos das testemunhas e as declarações do arguido – olvidando-se da razão, ou não tendo exposto de que forma utilizou a razão na apreciação dos referidos meios de prova, o que se revela inadmissível, pois que a ausência da racionalidade corresponde à ausência total de fundamentação.

Resulta, pois, manifesto que a simples referência global e genérica aos meios de prova produzidos não permite aferir a valoração que o tribunal fez dos mesmos para firmar a sua convicção positiva relativamente a cada um dos factos que considerou provados e que enumerou sequencialmente, não se revelando possível aquilatar da racionalidade e correção do juízo probatório que permitiu ao julgador decidiu como decidiu. Dito de outro modo, não contendo a sentença as referências mínimas relativamente à valoração que foi feita das provas produzidas, não se revela possível reconstituir o percurso lógico seguido pelo julgador subjacente à decisão que em concreto incidiu sobre cada um dos factos relevantes tidos por provados e por não provados. Deste modo se evidencia que a decisão sindicada não respeitou o dever de fundamentação imposto pelo artigo 374.º, nº 2 do CPP, pelo que continua a enfermar da nulidade prevista no artigo 379.º, nº 1.º, al. a) do CPP.

*

À semelhança do que explanámos acima relativamente à exposição da motivação da convicção probatória, também a subsunção dos factos em causa no presente recurso à norma penal que tipifica o crime de violência doméstica continua a revelar-se manifestamente insuficiente, não tendo o tribunal cuidado de explicitar as razões pelas quais as condutas do arguido relativamente à sua filha – às quais se restringe o objeto do recurso – não se encontram abrangidas pelo dever de correção e integram o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos previstos no artigo 152º do CP pelo qual aquele foi condenado. Tal insuficiência, de que igualmente padece a sentença recorrida, consubstancia também a nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, alínea a), primeira parte, por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do CPP. Estas as razões pelas quais nenhuma dúvida poderá restar de que não foi dado cumprimento ao determinado no anterior acórdão desta Relação, continuando a sentença reformada a enfermar do vício de nulidade, por deficiência na fundamentação, ali assinalado.

*

E o que fazer perante a constatação da persistência da falta de fundamentação?

No presente recurso encontra-se impugnada a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, invocando-se a existência de um erro de julgamento. Em cumprimento e com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, o recorrente assinalou os factos que, em concreto, considera erradamente julgados – pontos 9.,10.,13.,15. e 16. da matéria de facto provada (4) – apresentou as provas em que sustenta o seu entendimento, quer transcrevendo parte dos depoimentos que entendeu relevantes, quer indicando as passagens da gravação que registam tais depoimentos e explicou as razões pelas quais, no seu entendimento, tais provas levariam a decisão diversa da recorrida.

Ora, encontrando-se este Tribunal impedido de sindicar o juízo crítico sustentador da convicção probatória, porquanto o mesmo não se encontra exposto, mais não haverá de que julgar procedente a impugnação da matéria de facto realizada pelo recorrente, mantendo nos factos provados apenas aqueles que pelo mesmo foram admitidos. Quanto aos demais (5), por falta de adequada fundamentação – desconhecendo-se as razões pelas quais o tribunal desconsiderou as declarações do arguido ou os restantes meios de prova a que não aludiu – não poderão deixar de ser conduzidos aos factos não provados, por não se revelar possível formar convicção probatória segura da sua veracidade. Assim impõe o princípio do in dúbio pro reo que nas descritas circunstâncias se impõe convocar.

Como é sabido, o princípio da livre apreciação da prova a que se refere o artigo 127.º CPP, constitui uma concretização do princípio da presunção de inocência – maxime na sua dimensão in dubio por reo – que encontra referência normativa expressa no artigo 6.º, nº 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 14.º, nº 2.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Retenhamos, porém, que «o princípio da presunção de inocência excede em significado e consequências o princípio in dubio pro reo, constituindo este apenas um critério de decisão em caso de dúvida quanto à verificação dos factos. (6)» ou seja, uma «regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos» (7). De acordo com tal regra, que inevitavelmente se conexiona com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, determina-se que a dúvida seja resolvida a favor do réu. O seu âmbito reconduz-se, pois, à valoração pelo julgador de toda a prova produzida. Se o resultado desse processo de valoração for uma dúvida – uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos – o juiz terá que decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

No caso dos autos, pelas sobreditas razões, consideramos que os princípios explanados não se mostram devidamente observados. As questões colocadas pelo recorrente reportam-se essencialmente à inexistência de prova suficiente para formar convicção probatória quanto à atribuição ao mesmo da autoria dos factos que lhe foram imputados relativamente à sua filha – factos que se encontram consignados nos pontos 9.,10.,13.,15. e 16. da matéria de facto provada – admitindo apenas ter-lhe dado uma bofetada nas concretas circunstâncias descritas no ponto 11.. E, na verdade, não tendo sido valoradas e apreciadas criticamente as provas que apresentou, persiste a dúvida sobre os aludidos factos, pelo que, dando aplicação ao aludido princípio, é mandatório que se julgue procedente o recurso e se tenham tais factos como não provados.

*

B) Do erro de julgamento da matéria de direito.

A decisão de considerar não provados os factos acima identificados determinará, naturalmente, a absolvição do arguido recorrente da prática do crime de violência doméstica sobre a sua filha – desde logo porquanto falece a prova dos elementos subjetivos do tipo – e, bem assim, por inerência, a revogação da sentença recorrida na parte em que o condenou no pagamento de uma indemnização àquela, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do CPP.

Sempre se dirá, porém, a propósito da subsunção dos factos ao direito, que, ainda que tivessem resultado provados os factos objetivos que decidimos conduzir aos factos não provados, a nosso ver, o crime de violência doméstica não se encontraria preenchido.

A questão que, inevitavelmente, se colocaria caso os aludidos factos fossem mantidos nos factos provados, seria a de se saber se as condutas em causa se encontrariam abrangidas pelo chamado “poder-dever de correção”. Pensamos que tal questão – que não foi, de todo, abordada na sentença recorrida – não poderia deixar de merecer resposta afirmativa.

Com efeito, dos factos analisados na sua globalidade, nunca resultaria, a nosso ver, que, com as expressões que dirigiu à filha ou com a bofetada que, numa concreta circunstância lhe desferiu, o recorrente pretendesse ofendê-la, ameaçá-la ou maltratá-la corporalmente. De outra sorte, estamos convencidos que o propósito que o recorrente visava alcançar com tais condutas era pedagógico e situava-se ainda dentro do dever de correção, independentemente dos juízos valorativos que possamos fazer acerca da adequação da linguagem utilizada ou dos métodos educacionais postos em prática.

No que diz respeito à bofetada, podemos deduzir tal finalidade das próprias circunstâncias em que a mesma ocorreu, às quais perfeitamente se adequam as explicações apresentadas pelo recorrente nas declarações que prestou em julgamento. Com efeito, o contexto em causa, revelador da situação de perigo em que a criança se colocara quando saiu de casa e correu para a estrada para ir ter com a avó, pode perfeitamente indiciar que a atitude do pai tenha sido impulsiva e que tenha revestido caráter pedagógico. O mesmo sucede no que tange às expressões supostamente utilizadas pelo pai e que se encontram consignadas nos pontos 9. e 10. dos factos provados (8), expressões que o recorrente não admitiu ter proferido no contexto que ali se consignou, tendo assumido apenas que lhe chamou “porca” em alguma ocasiões, ocorridas durante as refeições, nas quais a menor atirava comida ao ar, o que afirma ter feito com o propósito de lhe transmitir regras de higiene e de educação. A questão da amplitude e abrangência dos poderes/deveres parentais a que se reportam os artigos 1878.º e 1885.º do Código Civil está longe de ser pacífica, mas as posições doutrinárias têm vindo a convergir no sentido de se estabelecerem algumas condições para que se considere estarmos em presença da concretização dos mesmos. Não obstante alguns autores estabelecerem requisitos mais apertados para considerarem as condutas dos pais enquadradas no poder/dever de correção, (9) a maioria da doutrina exige para tal enquadramento que: a) A finalidade que o agente visa prosseguir com a sua conduta seja educativa, excluindo-se assim as condutas adotadas por mera irritação do agente e, obviamente, as agressões perpetradas com o propósito de causar sofrimento; b) O castigo seja criterioso e não desproporcional, no sentido de que deve ser o mais leve possível de entre os que se revelem adequados e suficientes para lograrem prosseguir a finalidade educativa a que se destinam; c) Que o castigo seja sempre e em todos os casos moderado, nunca atingindo o limite de uma qualquer ofensa qualificada ou atentatória da dignidade do menor. Ora, pelas razões acima expostas, entendemos que as condutas imputadas ao recorrente na sentença preenchem as indicadas condições, pois que, quer as expressões dirigidas à menor, quer a bofetada – contextualizada nos termos sobreditos e que não terá deixado quaisquer sequelas físicas (designadamente vermelhidão) ou psicológicas – passam os crivos da moderação e da proporcionalidade. Estas as razões pelas quais as mencionadas condutas sempre se encontrariam abrangidas pelo poder/dever de correção, devendo, pois, considerar-se socialmente adequadas, o que as tornaria penalmente atípicas.

Pese embora não ignoremos a posição doutrinária que coloca a situação a que nos reportamos a coberto da causa de justificação prevista no artigo 31º, nºs 1 e nº 2, alínea b) do CP, que excluiria a sua ilicitude, não subscrevemos tal linha de entendimento (10), afigurando-se-nos mais consentâneo com a dogmática penal e com o princípio da intervenção mínima que lhe subjaz, fazer recuar a exclusão da punibilidade destas situações ao nível do primeiro pressuposto da incriminação, ou seja, ao nível da tipicidade, pois que, a nosso ver, o direito penal não pode ser colocado ao serviço da evolução das mentalidades no que diz respeito a questões pedagógicas. Conforme refere Paula Ribeiro de Faria (11), citando na doutrina alemã Reichert-Hammer, “um comportamento pedagogicamente justo não pode ser imposto pelos meios do direito penal. É necessário por isso reconhecer dentro de determinados limites um espaço livre de direito penal.”

Com efeito, ao contrário do que a sentença recorrida parece pressupor, o direito penal não deve intervir para criminalizar condutas desadequadas do ponto de vista da correção da linguagem ou da desadequação dos métodos pedagógicos adotados no âmbito das relações entre pais e filhos, sob pena de se colocar em causa a sua supletividade e a necessidade de o mesmo se reportar a uma referência axiológica constitucionalmente consagrada. Como bem se consignou no acórdão da Relação de Lisboa de 09.02.2011 (12) “o Direito Penal não deve intervir para criminalizar condutas comuns, simples desrespeitos, descortesias ou más educações” e “os tribunais não existem para apelidar de criminosas pessoas que adotam comportamentos destemperados, incorretos e avessos a uma conduta bem educada”.

Cientes de que o recurso aos meios penais, no que diz respeito à regulação das relações pessoais, familiares ou sociais, apenas será legítimo como solução excecional ou de ultima ratio, não devendo, por conseguinte, criminalizar-se condutas que sejam evitáveis por outros meios, não temos dúvida de que “in casu” as condutas do recorrente sempre se encontrariam excluídas do âmbito de proteção do direito criminal pois não assumiriam significado e carga desvaliosa que reclamasse tutela penal.

É por todos reconhecida a função de tutela subsidiária dos bens jurídicos associada ao direito penal. Tal matriz rege-se pelo princípio da intervenção mínima, impondo-se a sua vertente a sancionatória apenas a partir do limite trazido pelo concreto perigo para a vida pacífica em sociedade. É esta a ideia subjacente ao princípio da insignificância a que alude Claus Roxin, citado pelo Professor Figueiredo Dias (13), quando, excluindo da tutela penal os crimes bagatelares por se reportarem a danos de pequena importância ou amplitude, escreve que “a imagem global do facto é uma tal que, em função de exigências preventivas, o facto concreto fica aquém do limiar mínimo da dignidade penal”.

Do exposto decorre que só assume relevância criminal o castigo que, por se revelar desproporcionado e imoderado, ultrapassa o poder/dever de correção dos pais sobre os filhos socialmente aceite, pelo que, ainda que se tivessem mantido os factos provados conforme constam da sentença recorrida, a conduta do agente, porque enquadrada no legítimo dever de correção sobre a sua filha, não chegaria a preencher o tipo de qualquer norma penal.

*

Nesta conformidade, somos a concluir pela total procedência do recurso, o que determinará a absolvição do recorrente pela prática do crime de violência doméstica praticado sobre a sua filha, com a consequente revogação da condenação no pagamento de indemnização àquela – que assentara na prática do referido crime – e da pena única que havia sido obtida pela realização do cúmulo jurídico das duas penas parcelares.

Mais se determinará que a pena aplicada pela prática do crime de violência doméstica praticado sobre a ofendida EE seja suspensa na sua execução por igual período por se manter o juízo de prognose favorável no qual assentou a aplicação de tal pena de substituição relativamente à pena única que agora se revoga.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em:

- Alterar a matéria de facto provada nos termos que se deixaram explicitados, devendo os factos constantes dos pontos 9.,10.,13.,15. e 16. da matéria de facto provada – expurgados dos juízos de valor que nos mesmos se contêm – passar a constar dos factos não provados.

- Revogar a sentença recorrida:

a) Na parte em que condenou o recorrente pela prática do crime de violência doméstica sobre a sua filha, absolvendo-o da prática de tal crime;

b) Na parte em o condenou no pagamento de uma indemnização àquela, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do CPP;

c) Na parte em que condenou o recorrente numa pena única.

- Determinar que a pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão aplicada pela prática do crime de violência doméstica praticado sobre a ofendida EE seja suspensa na sua execução por igual período.

Sem custas.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 20 de fevereiro de 2024

Maria Clara Figueiredo

Jorge Antunes

Maria Margarida Bacelar

..............................................................................................................

1 Cfr. a este propósito o Acórdão do STJ, proferido no proc. nº 733/17.2JAPRT.G1.S1 e disponível em www.dgsi.pt. e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 47/2005 disponível no sítio do TC, no qual podemos ler que o exame crítico deverá ser feito de molde a permitir“(…) ao arguido, aos demais intervenientes processuais e à comunidade em geral, uma completa compreensão das razões que motivaram a decisão proferida, das razões pelas quais só aquela decisão e não outra poderia ter sido tomada, para que demonstre, em suma, que a decisão não foi tomada de forma arbitrária (…)”

2 Disponível em www.dgsi.pt.

3 E tendo reduzido, sem apresentação de qualquer explicação, a pena anteriormente aplicada pela prática do crime que tinha como vítima a menor e, bem assim, o montante da indemnização arbitrada àquela e a pena única!

4 São os seguintes os factos impugnados:

“9. O arguido sempre teve um comportamento agressivo e austero com a menor DD, sendo que, quando a menor comia, se sujasse a roupa, a mesa ou o chão, chamava-lhe “porca”;

10. Se por qualquer motivo a menor DD, entrasse em casa, e não trocasse os sapatos da rua pelos de casa, o arguido começava aos gritos com ela e a dizer-lhe “vais levar nas trombas, porca”; (…)

13. A atuação do arguido AA para com a sua filha menor, a ofendida DD, foi cruel e desproporcionada, tanto mais que é uma criança de tenra idade, pois ao agredi-la nos moldes em que o fez, bem sabia que atingiria, como atingiu, aquela e a molestaria fisicamente, conforme molestou, o que quis e conseguiu;(…)

15. Com estas condutas que reiteradamente produziu, o arguido AA quis maltratar e ofender fisicamente a ofendida DD, sua filha, bem sabendo que a mesma é uma criança, e que de si dependia, o que quis e conseguiu;

16. Com as condutas supra descritas agiu sempre o arguido de forma livre, deliberada e consciente de serem as mesmas proibidas e proibidas por lei;(…)”

5 Registamos que as expressões “comportamento agressivo e austero” (facto 9.) e “A atuação do arguido AA para com a sua filha menor, a ofendida DD, foi cruel e desproporcionada, tanto mais que é uma criança de tenra idade” (facto13.) consubstanciam juízos de valor que não poderão ter assento no elenco dos factos provados ou não provados, nos quais apenas factos deverão constar, pelo que deverão as mesmas ser tidas como não escritas.

6 Helena Bolina, Razão de Ser, Significado e Consequências do Princípio da Presunção de inocência, Boletim da Faculdade de Direito, 70, 1994, pp. 433.

7 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pp. 215.

8 Consta de tais factos que: “9. O arguido sempre teve um comportamento agressivo e austero com a menor DD, sendo que, quando a menor comia, se sujasse a roupa, a mesa ou o chão, chamava-lhe “porca”; 10. Se por qualquer motivo a menor DD, entrasse em casa, e não trocasse os sapatos da rua pelos de casa, o arguido começava aos gritos com ela e a dizer-lhe “vais levar nas trombas, porca”;

9 É o caso de Paulo Pinto de Albuquerque que, no seu Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, edição de 2008, em anotação ao artigo 31º do CP (anotação 11., página 143), que defende que o castigo só deve ser aplicado depois de prévia advertência ao educando, e que só pode assumir natureza física mediante a reiteração do comportamento censurado.

10 Tal posição sobrevaloriza o desvalor do resultado em detrimento do desvalor da ação. Decidindo pela existência de causa de exclusão da ilicitude em caso de exercício legítimo do dever de correção encontramos, entre outros, o recente acórdão da Relação de Lisboa, de 12.01.2023 proferido no processo n.º 509/20.0GBMTJ.L1-9 e relatado pelo Desembargador Carlos da Cunha Coutinho.

11 Paula Ribeiro de Faria in “O Castigo Físico dos Menores no Direito Penal” - Homenagem ao professor Doutor Ribeiro de Faria.

12 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.02.2011, proferido no Processo nº 16/07.6S6LDB.L1-3 e relatado por Maria José Costa Pinto, reportado a um outro crime relativamente ao qual se colocava igualmente a questão da legitimidade da intervenção do direito penal.

13 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2019, 3.º edição, Gestlegal, página 325.