Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
172/22.3JAFAR.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PERDA DE VEÍCULO
PERDA A FAVOR DO ESTADO
CAUSALIDADE ADEQUADA
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Deve ser ordenada a perda a favor do Estado do veleiro que serviu para o transporte do produto estupefaciente no caso de, entre a utilização desse veleiro e a prática do ilícito, se verificar uma relação de causalidade adequada.
II - Isso quer significar que, se não fosse esse o meio de transporte utilizado, estaria muito dificultada (ou mesmo impossibilitada) a atividade delitiva desenvolvida pelos arguidos.
III - A utilização da embarcação em questão teve, pois, uma função instrumentalmente necessária e essencialmente modeladora do modo de cometimento da infração, não podendo o crime ser praticado, com a dimensão em que o foi, com recurso a outro meio de transporte alternativo.
IV - Além disso, existe proporcionalidade entre a quantidade de produto estupefaciente transportado e o valor da embarcação declarada perdida a favor do Estado.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Processo Comum Colectivo, que com o nº 172/22.3JAFAR, correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Criminal de Faro – Juiz 6, o Ministério Público deduziu acusação e posteriormente foram pronunciados os arguidos:
- (A), e,
- (B).
Imputando-lhes a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 21º, nº 1 e, 24º, alínea c), do Decreto-Lei 15/93, de 22-01, com referência à tabela I-C, anexa ao mesmo diploma.
Os arguidos apresentaram contestações e o arguido (B) requereu diligências, juntou documentos e arrolou testemunhas.
Foi comunicada aos arguidos a alteração não substancial dos factos descritos na acusação para a qual a pronúncia remete.
Realizado o julgamento, veio a ser proferido pertinente Acórdão, no qual se decidiu:

A) Absolver a arguida (A) da prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 21º, nº 1 e 24º, alínea c), ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, com referência à tabela I-C a ele anexa;
B) Absolver o arguido (B) da prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 21º, nº 1 e 24º, alínea c), ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, com referência à tabela I-C a ele anexa;
C) Condenar a arguida (A) pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, com referência à tabela I-C anexa a esse diploma, na pena de 6 (seis) anos de prisão;
D) Condenar o arguido (B) pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, com referência à tabela I-C anexa a esse diploma, na pena de 5 (cinco) anos e 5 (cinco) meses de prisão;
(…)
G) Declarar perdida(s)/o(s) a favor do Estado:
a. A totalidade das amostras cofre dos produtos estupefacientes apreendidos nos autos;
b. A embarcação denominada “TEXAS T”, o respetivo certificado de registo, fatura nº A/9.465 e documento 115.303, bem como o bote auxiliar daquela [consignando-se que a mochila preta contendo no seu interior a prancha de paddle surf pertença do arguido (B), que ora se encontra num compartimento de uma cabine à popa do “TEXAS T”, não faz parte integrante, nem está funcionalmente ligada ao veleiro, podendo ser reclamada, perante a entidade que a tenha em seu poder, pelo arguido ou por pessoa por ele mandatada para o efeito];
c. O telemóvel da marca Xiaomi, modelo Redmi (…..), de cor azul, com os IMEIs (…..) e (…..), e o cartão SIM da operadora Vodafone com o nº (…..) (inserido no interior daquele).
(…)

Inconformada com este Acórdão condenatório, a arguida (A) do mesmo interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1. A arguida (A) completa 37 anos de idade a (…..); é a primeira vez que responde perante o Orgão de Soberania Tribunal; está presa numa cela fria e húmida, sem espaço pessoal, sem privacidade, prisão que se arrasta há quase 3 anos ...
2. Uma pena de 4 anos e suspensa na sua execução propicia a Reinserção Social, na verdade, a arguida confessou os factos em 1º Interrogatório, na Instrução e Julgamento; a confissão foi espontânea, mas não foi valorada pelo Tribunal a quo;
3. A inversão da conduta da Recorrente, entre a data da prática dos factos e o momento atual, tem de ser fortemente valorizada, em sede de fixação da execução da pena; tendo em conta toda a factualidade e circunstâncias provadas e porque se evidencia a possibilidade séria de fazer um juízo de prognose favorável relativamente à inserção da Recorrente na sociedade, sem que volte a cometer ilícitos criminais, é de reduzir a pena a 4 anos de prisão e suspensa na sua execução art. 50º, do CP.
4. A sujeição do Recorrente a uma pena privativa da liberdade, terá como consequência, um enorme prejuízo para a sua situação familiar, para a reinserção social, prolongamento do sofrimento numa cela fria e húmida e afigura-se totalmente contrária às finalidades da punição que visam, precisamente, o oposto; deve a pena aplicada ser reduzida 4 anos de prisão e suspensa na sua execução.
5. Ao decidir de forma diversa, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação, o art. 50º, do CP, pois o art. 21º do Dec. Lei 15/93 pugna por pena de prisão de 4 a 12 anos; sendo o limite mínimo de quatro (4) anos porque razão não será a arguida condenada a este quantum e ver a pena suspensa na sua execução?
6. Sob o art. 379º, nº 1, alínea c), do CPP é nula a sentença quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar; o art. 40º do Cód. Penal visa a reintegração social do agente, não pode a pena ultrapassar a medida da culpa situando-se a pena concreta entre um limite mínimo... intervindo os outros fins das penas – prevenção geral e especial… (cf. Claus Roxin, in Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, pags. 113) «reacção contra as penas institucionalizadas ou detentivas, por própria natureza lesivas do sentido ressocializador que deve presidir à execução das reacções penais». "O pressuposto material da suspensão da execução da pena é o da adequação da mera censura do facto e da ameaçada prisão às necessidades preventivas do caso, Paulo Pinto de Albuquerque in "Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e Convenção Europeia dos Direitos do Homem", Univ. Católica Editora, fls. 195
7. A pena de prisão efetiva não cura antes revolta e causa sofrimento à familia e, após 2 anos e 7 meses é inútil: qual o propósito de manter as pessoas enlatadas, armazenadas, sem actividade, sem objectivos, com o tempo a passar por elas?... “sensação de sufoco..." in Prisões, pag. 86, ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020; Cesare Beccaria: "crueldade das penas ... vigilância dos Magistrados virtude útil ... legislação branda ..." Dei delitti e delle pene, Ed Harlem, - Livorno 1766, Ed. da Fundação Gulbenkian pag 115 ...
8. In casu existe profunda desigualdade na apreciação, valoração e aplicação das penas: a arguida confessou os factos ab initio e foi condenada a 6 anos de prisão, mas o arguido (B) que negou tudo foi condenado a 5 anos e 5 meses!
Não se alcança o iter scelestus do Tribunal a quo!
Quem confessa é condenado e penalizado?
Quem tudo nega é premiado?
9. A desigualdade na aplicação das penas viola o princípio da equidade dos artigos 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 13º da Lei Fundamental;
10. A única pena adequada, proporcionada e justa é a de 4 anos de prisão e suspensa na execução assim foi decidido no processo 308/10.7JELSB do Juiz Central Criminal Lisboa- Juiz 15; o aí arguido (C) foi condenado por trafico de 1732 Kg de cocaína em 4 anos e 2 meses de prisão com pena suspensa confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e conforme documento 1 que se junta: aguarda-se emissão de certidão.
11. Impõe-se assim concluir que a pena de 6 anos de prisão é exagerada e que só a pena de 4 anos de prisão suspensa na sua execução pacífica a sociedade.
12. Urge concluir sob o art. 379º 1, c) do CPP que o Acórdão é nulo por ausência de referência e ponderação sobre a pena suspensa face à confissão e ao art. 50º do Codigo Penal; o Tribunal a quo violou o art. 21º do Dec lei 15/93 ao aplicar 6 anos de prisão, pena que deve ser reduzida a 4 anos e suspensa na sua execução.
13. A embarcação TEXAS T deve ser restituída; a arguida trabalhava no veleiro de que é proprietária, composto por quatro quartos, três dos quais arrendava para turismo, assegurando, na qualidade de comandante da embarcação, entre junho e setembro de cada ano, a efetivaçãode viagens de cruzeiro pelas Ilhas Baleares de Ibiza e Fermentera;
14. 0 exercício da atividade proporcionava-lhe um rendimento de 6.000,00€ por semana.
Nos restantes meses do ano, a arguida ocupava-se com a manutenção da embarcação.
O veleiro era a vida da arguida que nele passava quase todo o ano; era o seu único meio de subsistência.
15. O perdimento automático do veleiro por ser instrumento do facto já foi declarado inconstitucional nos processos 327/99, 176/00 e 202/00 proferidos em 99-05-26, 00-03-22 e 00-04-04 pelo Tribunal Constitucional.
16. Este Alto Tribunal tem assumido uma interpretação do nº 1 do art. 35º do Dec.Lei 15/93 apelando à causalidade e de necessidade, de acordo com a qual a perda de objetos do crime só é admissível quando entre a utilização do objeto e a prática do crime existe uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infração em concreto não teria sido praticada ou dificilmente o teria sido na forma em que foi cometido, ou seja, para a declaração de perdimento é necessário que o crime não tivesse sido praticado (ou tivesse sido praticado de uma forma diferente, sendo essa diferença penalmente relevante) sem o objecto em causa (instrumento essencial) - conforme Acórdãos de 99-06-02, 01-02-21, 04-05-19 e 12-02-09 proferidos nos processos 281/99, 2814/00, 1118/04 e 999/10.TALRS.SI.
17. No Acórdão nº 202/00 de 04-04-2004 do Tribunal Constitucional de 04-04-2000 decidiu-se que "Esta exigência de proporcionalidade resulta, aliás, logo do facto de (independentemente da mais próxima qualificação do direito de propriedade constitucionalmente protegido) se reconhecer, como se tem feito na jurisprudência deste Tribunal, que a garantia de cada um de não ser privado da propriedade (salvo por razões de utilidade pública, e ainda assim só mediante pagamento de justa indemnização), resultante do artigo 62º (designadamente, nº 2) da Lei Fundamental, tem "natureza análoga" aos direitos, liberdades e garantias (v. recentemente, os Acórdãos nºs 329/99 e 517/99, tirados em plenário e publicados no Diário da República, II série, respetivamente de 20 de Julho e de II de Novembro de 1999). A limitação a tal garantia resultante do facto de os bens serem utilizados como instrumento de um crime deve estar sujeita a uma regra de proporcionalidade. Ora, uma norma que prevê que os instrumentos da infracção devem em qualquer caso ser declarados perdidos a favor do Estado, independentemente da consideração em concreto, quer da gravidade do ilícito e da culpa do agente, quer da perigosidade e do risco dos instrumentos para futuros crimes, quer mesmo da própria natureza (e valor) do objecto em questão, não pode certamente, na indeterminação abstracta da reacção ablatória do direito de propriedade que impõe, ser considerada respeitadora das exigências constitucionais de proporcionalidade.Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: julgar inconstitucional, por ofensa ao princípio constitucional da proporcionalidade, conjugado com o artigo 62º, nº 2 da Constituição da República, a norma do artigo 31º, nº 10, do mesmo diploma legal, na parte em que prevê, como efeito necessário da prática do crime ali tipificado, e independentemente da ponderação das circunstâncias do caso, a perda dos instrumentos da infracção;
18. No Acordão nº 327/99 no processo nº 144/99 de 26-05-1999 o Tribunal Constitucional decidiu que: "o artigo 30º, nº 4, da Constituição dispõe que "nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos".
Esta norma não proíbe que as penas possam traduzir-se, elas próprias, na perda de direitos civis, profissionais ou políticos (por exemplo, na interdição do exercício de uma profissão por determinado período de tempo ou na demissão da função pública). Questão é que tal pena seja aplicada pelo juiz de acordo com as regras competentes (princípio da culpa, regra da tipificação, adequação da pena à gravidade da infracção, etc.).
A norma em causa proíbe, isso sim, que essa perda de direitos se siga, automaticamente (ou seja: por mero efeito da lei e independentemente de decisão judicial), à condenaçãoem certas penas ou pela prática de certos crimes.
É que, se tal fosse permitido, estar-se-ia a acrescentar à pena do crime uma outra pena, que redundaria na "morte civil, profissional ou política" do cidadão.
E a fazê-lo, de maneira mecânica - ou seja: sem respeito pelas exigências dos princípios da culpa, da necessidade das penas e da jurisdicionalidade. E, com isso, ao mal da pena aplicada, que é inevitável, ia ainda juntar-se, de forma automática, um efeito estigmatizante ou infamante que serviria para dificultar a ressocialização do delinquente [cf. sobre esta matéria, entre outros, os acórdãos nºs 16/84, 91/84, 310/85, 75/86, 94/86, 249/92, 209/93, 442/93 e 748/93 (publicados no Diário da República, II série, de 12 de Maio de 1984, I série, de 6 de Outubro de 1984, II série, de II de Abril de 1986, de 12 de Junho de 1986, de 18 de Junho de 1986, de 27 de Outubro de 1992, de I de Junho de 1993, de 19 de Janeiro de 1994 e 1-A série, de 23 de Dezembro de 1993, respetivamente)] . Relator Messias Bento.
19. No mesmo sentido o Acórdão do TRL de 03-02-2021 no processo nº 756/16.9TELSB-C.L1-3 Relator: Cristina de Almeida e Sousa, data do Acordão: 03-02-2021
Sumário: De acordo com o princípio geral que emerge da concatenação entre o art. 178º nº 1, do CPP e o art. 109º nº 1 do CP ... para que possa ser considerado instrumento do crime e, consequentemente, declarado perdido a favor do Estado, é preciso que resulte demonstrado e ele se tornou ou ia ser necessário para a execução do crime, que a sua utilização influenciou a modalidade concreta de execução do facto, a tal ponto que sem o veículo a respetiva consumação resultaria impossível ou que, naquelas circunstâncias do facto, se tornaria de muito mais dificil a consumação, ou pelo menos, os resultado antijurídico teria sido produzido de forma substancialmente diferente.
Nestes autos a Justiça não pode ser diferente!
Deve apena de 6 anos ser reduzida a 4 anos de prisão, suspensa na sua execução e revogado o perdimento da embarcação "TEXAS T" ordenando-se a sua restituição e bens inerentes à arguida (A) pois só assim se fará a lídima Justiça!
O acórdão fez errada interpretação dos artigos 21º-1 do DL 15/93, 50º, 71º do Código Penal, 379º-1-C) do CPP, 13º, 18º-2 da Lei Fundamental e 35º do DL 15/93.
A pena aplicada viola os arts. 50º, 709 e 71º do Codigo Penal.
Ocorre violação do art. 13º da CRP face ao quantum das penas fixadas:
- o arguido (B) negou a prática dos factos e foi condenado a 5 anos e 5 meses de prisão, mas a arguida (A) que os assumiu foi condenada em 6 anos de prisão!
O art. 35º do DL 15/93 qua tale foi interpretado pelo Tribunal a quo traduz inconstitucionalidade por violação do art. 18º-2 da CRP.
Concedendo provimento ao recurso Vossas Excelências farão a mais lídima Justiça.

Igualmente inconformado com o Acórdão condenatório, o arguido (B), do mesmo interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1. O recorrente não se conforma com o acórdão que o condena, pela prática em coautoria material de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93, na pena de 5 anos e 5 meses de prisão.
2. «Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu» Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, Coimbra, Coimbra Ed., 1974, pág. 428.
3. O presente recurso visa o reexame da matéria de facto, tendo por base o registo da prova efectuado em audiência, e também o reexame da matéria de direito, abrangendo toda a decisão.
4. Atenta a prova produzida o Tribunal a quo tinha que se abster de condenar o arguido e por isso absolvê-lo.
5. O recorrente transcreve parcialmente os depoimentos que, no seu entendimento, demonstram a errada interpretação que o Tribunal a quo realizou para condenar o arguido.
6. O Tribunal a quo labora em erro, perpetrado pela total ausência de investigação levada a cabo pelo OPC, pelas notórias deficiências e alheamento do Ministério Público, titular do inquérito, que resultou na gritante e incorrecta aplicação do direito aos factos e consequente grave erro de julgamento. A falta de rigor, comum a todos os intervenientes obrigados à busca da verdade material no processo, é chocante.
7. O processo tresanda a eventuais ilegalidades detectáveis ab initio ou a “legalidades ocultas”. Só não vê quem não quer!
8. Lamenta-se, verdadeiramente, o esforço do Tribunal a quo em manifesto exercício de cherry picking pela confirmação cega da acusação pública elaborada, única e exclusivamente, com base na insuficiente informação policial sem que tenha existido a menor investigação.
9. Olvidou-se o Ministério Público, o Tribunal de Instrução Criminal e o Tribunal a quo que não faz qualquer sentido, e jamais será credível, transportar uma quantidade insignificante de haxixe (duzentos quilos) num veleiro que sai de Espanha (porto de La Línea) para Portugal (imediações de Vilamoura).
10. Primeiro, não passa pela cabeça do mais patético traficante fazer sair produto estupefaciente da Europa para voltar a entrar na Europa. Ou seja, se o produto estupefaciente se encontra em território espanhol nunca o faz sair por mar para entrar em território português. Parece cristalino!
11. Segundo, atenta a reduzida quantidade de haxixe (considerado um transporte por barco) também não faz sentido arriscar perder um veleiro (cujo valor é muito superior ao da avaliação, que consta dos autos e realizada por eventuais interessados, e ao da carga que transporta) quando o transporte poderia facilmente, mais barato, mais seguro, realizar-se por automóvel com muito menor risco. Afinal, podia ser transportado em duas malas de viagem.
12. A não ser que, o veleiro transportasse bastante mais produto estupefaciente! O que também não surpreenderia!
13. Terceiro, descarregar haxixe na Marina de Vilamoura é, no mínimo, hilariante.
Ou seja, tudo indica que a arguida (A) aguardava instruções para entregar a carga (podia estar à espera que a fossem buscar!) e por isso fazia uso do seu telemóvel cujo OPC e MP não quiseram investigar, bem como o Tribunal de Instrução Criminal e o Tribunal a quo.
14. Quarto, existindo várias embarcações fundeadas ao largo da Marina de Vilamoura, sintomaticamente, a Polícia Marítima só se dirigiu ao veleiro da arguida (A).
15. Quinto, antes do produto estupefaciente ser detectado a Polícia Judiciária já se encontrava no local. Ou seja, o OPC já estava no local antes da notícia do crime.
16. Sexto, haxixe, em quantidades reduzidas, de Espanha para Portugal, por barco, é uma versão rebuscada! Só não vê quem não quer!
17. Poderão ser pormenores de somenos importância, mas os presentes autos estão repletos de inúmeros pormenores importantíssimos, alguns graves, que conjugados retiram credibilidade à versão apresentada pelo Ministério Público (sem qualquer suporte investigatório) e razoabilidade à decisão ora recorrida que peca por total falta de rigor e fundamentação.
18. É nosso entendimento que, a convicção do Tribunal a quo, baseada numa inexistente investigação e que suportou a condenação foi induzida pela necessidade básica humana e mais simples de castigar. Estava lá, condena-se.
19. A condenação do arguido por tráfico de estupefacientes, é abusiva e não faz o menor sentido!
20. O arguido dá por reproduzida toda a motivação que antecede, impugnando veementemente a matéria vertida nos factos provados 2., 3., 9., 10. e 35. do acórdão recorrido.
21. Deviam considerar-se não provados os factos descritos na acusação, transcritos para o acórdão recorrido em factos provados 2., 3., 9. e 10., relativos à prática pelo arguido do crime em que vem condenado.
22. O Tribunal a quo, segue a acusação na imputação plural e generalista, sem que exista um único facto individualizado praticado pelo arguido que seja susceptível de ser enquadrado nos factos que suportam a narrativa acusatória adoptada pelo Tribunal a quo.
23. Nunca pode o Tribunal a quo considerar que: “… os arguidos transportavam …”, “Os arguidos haviam procedido ao transporte da mencionada substância … visando efetivar a sua entrega a terceiro, em Portugal.”, “Agiram os arguidos (A) e (B) em conjugação de esforços …” e “Os arguidos atuaram…”. É desonesto intelectualmente, em gritante violação do princípio in dubio pro reo, considerar provado um facto assumido em exclusivo pela co-arguida sem que exista qualquer elemento probatório que o contrarie.
24. Não existiu a mínima investigação. Existem as declarações da arguida, que confessa o crime e isentam o arguido recorrente de qualquer responsabilidade, corroboradas pela prova requerida pelo ora recorrente e pela completa ausência de factos susceptíveis de imputação.
25. Poderão existir algumas divergências nas declarações dos arguidos, prestadas em sede de instrução e de audiência e julgamento, mas como facilmente se constata esses desajustamentos decorrem pelo decurso do tempo e pelo normal diferente entendimento de cada um. Desajustamentos que, não existiriam se os arguidos tivessem combinado versões sobre os factos e que não são, por si só, determinantes para condenar alguém.
26. O facto valorizado pelo Tribunal a quo resulta tão só por o arguido estar no local errado à hora errada. Estava no barco! Está preso por isso, por isso foi condenado, tudo o resto não interessa.
27. O Ministério Público, sem avaliar a intervenção da Polícia Marítima e abstendo-se de proceder a qualquer investigação, ainda que involuntariamente, manipula os factos através de uma colagem global dos mesmos sem os individualizar, à moda do antigo questionário e tempos inquisitórios contrariando completamente os ensinamentos do Professor Cavaleiro Ferreira sobre esta matéria. É mais fácil imputar no plural, é mais fácil generalizar. É mais fácil…!
28. Veja-se a demonstração inequívoca da violação dos mais elementares princípios de um Estado de Direito quando só são apreendidos dois telemóveis ao arguido e, desvirtuando completamente a verdade, o Ministério Público, em representação do Estado português, alinhava uma apreensão dizendo “Já no interior da citada embarcação, os arguidos tinham na sua posse:” quando na verdade cada um tinha dois telemóveis e sobre os da arguida recaiu a perícia analítica após várias insistências do arguido, desmascarando a deslealdade processual estampada na acusação.
29. Afinal, resultou claro que, a co-arguida, antes de ser abordada pela Polícia Marítima, ligou insistentemente para o seu noivo, amigo ou interessado, que se terá deslocado ao local e, dos autos, nada consta.
30. É forte convicção do arguido recorrente que a sua co-arguida terá sido alvo de uma armadilha - entrapment – organizada, eventualmente, pelo amigo dela (quiçá bombeiro, mecânico de barcos, etc.), sobejamente identificado documentalmente, através do número de telemóvel cfr. análise realizada pelo OPC (Vd. Relatório Exame Pericial junto aos autos e já denunciado pela própria arguida em declarações prestadas), após várias insistências da defesa, e pela Polícia Marítima.
31. Os depoimentos prestados pelos agentes da Polícia Marítima não são credíveis na medida em que afirmam que receberam informação para abordar e rebocar a embarcação porque já se encontrava há uns dias na água quando havia fundeado momentos antes.
32. Os depoimentos prestados pelos inspectores da Polícia Judiciaria não são credíveis na medida em que chegaram ao local antes da notícia do crime.
33. Veja-se, ainda, que as embalagens do haxixe se encontravam perfeitamente dissimuladas, não sendo possível a sua detecção a olho nú por quem visitasse ou permanecesse na embarcação sem conhecimento da sua existência. Tanto assim é que, ao que parece, nem o próprio OPC detectou a segunda carga posteriormente apreendida em Julho e, ao que parece, descoberta pelo fiel depositário do estaleiro cfr. fls. 322. “Resta saber se não existiria mais carga!”
34. Com todo o respeito que é muito e bem devido, nada existe contra o arguido que justifique a sua condenação, devendo o mesmo, por manifesta ausência de investigação e de produção de prova cabal (meras suspeitas circunstanciais) ser absolvido e restituído, de imediato, à liberdade.
35. Nunca é demais repetir que, é ao Ministério Público que cabe a prova de que o arguido praticou os factos que lhe estão a imputar. Não é o arguido que tem de provar os factos que demonstram a sua inocência, mas é a acusação que, além de ter de provar os factos de onde resulte a sua culpabilidade, terá de indiciá-los por factos que integrem o tipo de crime pelo qual o acusa. E o Tribunal a quo não pode inverter o ónus da prova e abster-se de julgar com imparcialidade. Há que descobrir a verdade material e respeitar os princípios constitucionalmente consagrados.
36. As alegadas suspeitas contra o arguido são meramente circunstanciais, somente suspeições não baseadas em factos consistentes e decisivos não demonstrando a menor força e dignidade para o condenar. Estava no local onde foi apreendido haxixe sobre o qual não tinha o menor conhecimento, nem o seu comportamento foi determinante para o que quer que fosse. Se ali não estivesse, o crime perpetrava-se na mesma.
37. Sintomaticamente, não existiu a mínima investigação. Nem uma simples leitura foi realizada aos telemóveis para observar dos contactos efectuados pelos arguidos com terceiros, eventuais destinatários do produto estupefaciente.
38. Os depoimentos prestados pelas testemunhas do arguido são credíveis, transmitindo com imensa fiabilidade o modelo de vida do arguido que em nada se compagina com a construção de qualquer perfil de narcotraficante construído pelo Tribunal a quo que se preocupou em desvirtuar para desvalorizar em prejuízo do arguido.
39. Na verdade, reputa o recorrente o acórdão recorrido como injusto e insuficiente, à luz dos princípios básicos que regem o processo penal, de lógica e de bom senso e, sobretudo, à luz de critérios elementares de justiça material ou distributiva.
40. O recorrente entende existir insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, em manifesto prejuízo do arguido, que levou o Tribunal a quo a condená-lo nos seus termos.
41. Entende o recorrente não existir suporte probatório para fundamentar a sua condenação pela prática do crime de trafico de estupefacientes estribando-se a decisão recorrida, no essencial, na circunstância de o arguido estar no local errado à hora errada.
42. Com todo o respeito, que é muito e bem devido, o Tribunal a quo labora em erro, perpetrado pela total ausência de investigação levada a cabo pelo OPC (Polícia Marítima e Polícia Judiciária), pelo completo alheamento do Ministério Público, titular do inquérito, bem como do Tribunal de Instrução Criminal, que resultou na gritante e incorrecta aplicação do direito aos factos e consequente de grave erro de julgamento. A falta de rigor, comum a todos os intervenientes no processo, é evidente.
43. A prova produzida, em audiência e julgamento, não obstante o esforço evidenciado pelo Tribunal a quo no exercício cherry picking, não demonstrou um único facto ilícito que possa ser imputado ao arguido recorrente.
44. Não existiu qualquer investigação policial, o que ressalta meridianamente ao mais distraído leitor dos autos. Não existiu o menor interesse em capturar o destinatário do produto estupefaciente. Porquê?
45. Do relatório – exame pericial aos telefones que o Ministério Publico se absteve de promover, resulta clara “…a existência de registro de chamadas e conversações “chat” no dia 16-05-2022, bem como a identificação dos utilizadores registados no equipamento.” cfr. pág. 23 do relatório junto aos autos.
46. A arguida, confessando os factos, quer em sede de instrução quer em sede de audiência e julgamento, assumiu, em declarações, ter contactado o destinatário do produto estupefaciente. O Ministério Público, o Tribunal de Instrução Criminal e o Tribunal a quo não manifestaram interesse em saber.
47. Atenta a gravidade processual ora evidenciada, argui-se a nulidade do acórdão para os legais efeitos.
48. Não andou bem o Tribunal a quo em considerar provado o facto 35. e valorá-lo como passado criminal: “35. O arguido possui antecedentes criminais, porquanto: 35.1. Por decisão judicial datada de 17-03-2006, transitada em julgado, proferida pelo Obvodný súd Praha 5 [Tribunal Distrital de Praga 5] no âmbito do processo nº 30 T 52/2006, foi condenado pelo cometimento de um crime p. e p. pelo §247/1a do Código Penal da Eslováquia na pena de 4 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 12 meses.”
49. Confrontado o arguido com este facto, nada pode responder. Desconhece, nunca foi sujeito a julgamento, não tem conhecimento do que se trata nem tem conhecimento que alguma vez tenha sido condenado.
50. Contactada a Embaixada da República Eslovaca em Lisboa, a mesma informou que se tratará de uma intervenção não autorizada no sistema informático onde se estatui “(1) Quem limita ou interrompe o funcionamento do sistema informático ou parte dele a) por inserção, transferência, dano, eliminação, deterioração de qualidade, alteração, supressão ou indisponibilidade de dados informáticos não autorizados,” manifestando total estranheza sobre o assunto.
51. Mais grave que tudo e que demonstra a total falta de rigor do Colectivo do Tribunal a quo, é o facto de considerar e valorar uma decisão judicial de 17-03-2006, proferida por um Tribunal de Praga, capital da Republica Tcheca (Czech Republic), condenado pelo cometimento de um crime p. e p. no Código Penal da Eslováquia (Slovakia Republic). É que a República Tcheca e a República Eslovaca são países distintos, a Checoslováquia foi dividida no dia 1 de Janeiro de 1993 e deu origem a duas Republicas diferentes a República Tcheca e a República Eslovaca.
52. Não se pode ser condenado num país ao abrigo do Código Penal de outro país, ainda que vizinho.
53. O arguido, ora recorrente, não tem antecedentes criminais e, contrariamente à apreciação que o Tribunal a quo faz sobre as suas declarações prestadas, este apresenta uma versão verossímil dos factos, de forma coerente e natural.
54. E sempre se diga que «É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente» cit Voltaire (1694-1778)
55. Não existiu a menor investigação nem resulta da prova produzida em audiência e julgamento o possível enquadramento do comportamento do arguido na previsão do art. 21º do DL 15/93.
56. A vida de qualquer cidadão não se compadece com presunções, nem a Justiça se alcança com impressões e convicções viperinas suportadas pelo adágio popular do «onde há fumo há fogo».
57. Impõe-se a absolvição pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, sob pena de grave erro judiciário.
58. Perante a análise critica dos factos descritos na motivação e respectivo enquadramento jurídico, crê o recorrente que a existirem ou subsistirem dúvidas insupríveis na avaliação da prova, tais dúvidas não podem ser valoradas contra si.
59. É o que impõe o princípio in dubio pro reo, como contrapólo do princípio da oficiosidade que caracteriza o processo penal.
60. E sempre se diga, nunca é demais repetir, que: “1. Nos termos do nº 2 do artigo 32º da Constituição da República, «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa». Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948 (cuja autoridade interpretativa e integradora em matéria de direitos fundamentais está estabelecida no artigo 16º, nº 2 da Constituição da República), estatui, no nº 1 do seu artigo 11º, que «toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas». De igual modo, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1976, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida» (artigo 14º, nº 2), e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada» (artigo 6º, nº2).” Vd. O Princípio da Presunção de Inocência do Arguido no Actual Processo Penal Português, AAFDL, Rui Patricio, 2000.
61. Pelo exposto, o Tribunal recorrido ao não ter aplicado o princípio in dubio pro reo, não procedeu em conformidade com os princípios que norteiam a apreciação da prova, princípio este que assim deverá ser, caso se julgue necessário, aplicado pelo Tribunal ad quem na apreciação da matéria que motiva o presente recurso.
62. Salvo o maior respeito pelas elevadas funções da judicatura, que muito louvamos, não podia o Tribunal a quo abster-se de julgar convenientemente devendo, a todo custo, procurar a verdade material.
63. O recorrente entende que o acórdão recorrido padece de nulidade atento o disposto nos artigos 374º, nº 2 e 379º do C.P.P.
64. A fundamentação deve ser um desenvolvimento das premissas previamente enunciadas, para que, mais do que vencer, a decisão logre convencer e demonstrar-se perante os seus destinatários como plena, racional e motivada.
65. Parafraseando Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 293: “É hoje entendimento generalizado que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. Por isso é que todos os códigos modernos exigem a fundamentação das decisões judiciais, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito”.
66. “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias: permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça (...)”.
67. Ora, da decisão recorrida, restam sem solução ou resposta questões importantíssimas que se suscitam na motivação que antecede às quais o Tribunal a quo não apresenta a mínima explicação.
68. Pelo que a não apreciação de tais questões conforma omissão de pronúncia, a implicar a declaração de invalidade do acórdão recorrido.
69. Deste modo, padece o acórdão recorrido de nulidade por ausência de fundamentação e omissão de pronúncia quanto a questões essenciais, o que determina a declaração da sua invalidade e a sua substituição por outro que se pronuncie sobre todas as questões suscitadas, com respeito pelo correlativo dever de fundamentação que devem revestir todas as decisões judiciais.
70. A não pronúncia sobre tais questões além de geradora de nulidade, nos termos gerais do art. 379º, nº 1, al. c) do C.P.P. acima mencionados, consubstancia uma inconstitucionalidade, por violação dos artigos 32º nº 1, 203º e 205º, nº 1 da C.R.P., inconstitucionalidade essa que desde já se argui para todos os efeitos legais.
71. Ao não decidir pela absolvição do arguido, o recorrente entende que, o acórdão condenatório devia ser considerado nulo, devendo proceder-se à sua revogação por outro que absolva o arguido.
72. «Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu.» Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, Coimbra, Coimbra Ed., 1974, pág. 428.
73. Preceitos violados: art. 21º do DL 15/93, e 97º nº 5, 124º, 125º, 126º nº 2 al. a), 127º, 138º, 355º nº 1, 374º nº2, 379º nº 1 al. c) do CPP e, ainda, 13º e 32º nº1 da C.R.P.
Nestes termos e nos melhores de Direito, atento o supra exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente ser:
a) Declarada a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia e do dever de fundamentação;
b) Revogada a decisão sobre a matéria de facto e modificar a factualidade provada nos termos supra alegados e, em consequência, absolver o arguido da prática do crime pelo qual vem condenado;
c) Alterada a decisão sobre matéria de direito verificando a inexistência dos elementos subjectivo e objectivo do crime de tráfico de estupefacientes, devendo-se absolver o arguido da prática deste crime;
d) Caso assim não se entenda, ordenar a remessa dos autos à primeira instância para a realização de novo julgamento, devendo ser produzida toda a prova necessária à descoberta da verdade material;
e) Sindicar-se o princípio da “livre apreciação da prova”, enquanto princípio jurídico, de apreciação de prova, logo, matéria de direito, para concluir pela inadmissibilidade da prova por concatenação geral, aplicada no presente caso, por não derivar das regras da lógica e da experiência comum;
f) Aplicar-se o princípio in dubio pro reo;
fazendo-se destarte a mais sã e correcta Justiça.

Notificado nos termos do disposto no artigo 411º, nº 6, do Código de Processo Penal, para os efeitos do disposto no artigo 413º, do mesmo diploma legal, o Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto pela arguida (A) concluindo por seu turno respectivamente (transcrição):
1. Atendendo aos factos provados, nomeadamente a quantidade de estupefaciente transportado (equivalente a mais de um milhão e quatrocentas mil doses) e o nível de organização da operação, e levando em atenção o elevado grau de culpa da arguida, a fixação da pena concreta em 6 anos de prisão (que se reconduzem a ¼ da moldura abstractamente aplicável) não se pode considerar por qualquer forma excessiva.
2. Não se verificou, pois, qualquer violação das normas atinentes à determinação da medida da pena concreta, nomeadamente as invocadas pela recorrente.
3. Tendo a pena sido fixada em 6 anos de prisão não é admissível a suspensão da respectiva execução, pelo que não tem o tribunal que ponderar sequer tal hipótese.
Assim sendo, não se verifica a nulidade invocada pela recorrente, emergente das disposições conjugadas dos artigos 379º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal e 50º, nº 1, do Código Penal.
4. O acórdão recorrido explanou de forma lúcida que a diferenciação entre a pena da arguida recorrente e do co-arguido se deveu à maior preponderância da actividade da primeira na operação de tráfico (tendo fornecido o meio de transporte e os seus conhecimentos especializados), e que a sua contribuição para a descoberta da verdade material, em face da demais prova produzida, não assumiu elevada expressão, na medida em que, mau grado ter admitido a prática dos factos que a si diziam respeito, procurou dificultar a actividade do tribunal ao veicular uma versão dos factos que isentaria o co-arguido de responsabilidade caso tivesse merecido credibilidade.
5. Mostra-se assim plenamente justificada a fixação de uma pena superior para a arguida recorrente, inexistindo qualquer tratamento desigual.
6. O uso da embarcação em causa nos autos foi essencial para a consumação do ilícito, assumindo carácter nuclear na operação, justificando-se assim plenamente a decisão de perda a favor do Estado.
7. A decisão recorrida não concluiu pela perda da embarcação como uma consequência directa e necessária da sua utilização no crime, antes ponderou de forma atenta e densamente fundamentada o carácter essencial do objecto como instrumento do crime, e a proporcionalidade da perda.
8. Por conseguinte, julgando improcedente o recurso e mantendo na íntegra a decisão recorrida será feita Justiça.

Notificado nos mesmos termos, o Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido (B) concluindo por seu turno respectivamente (transcrição):
1. O tribunal recorrido julgou correctamente a matéria de facto, não havendo fundamento para alteração da mesma.
2. As declarações dos arguidos relativamente à participação do arguido recorrente nos factos são inverosímeis, contrárias a regras de experiência comum, incorrem em contradições não despiciendas, e são contraditadas pelas demais provas produzidas.
3. O acórdão recorrido explana de forma límpida os motivos e os processos mentais que produziram no tribunal a convicção de que os factos tiveram lugar nos moldes descrito, mormente por apelo ao teor das declarações dos próprios arguidos e das contradições nelas achadas, e dos depoimentos das demais testemunhas, em termos lógicos e coerentes, não se verificando assim o invocado erro notório na apreciação da prova.
4. Os factos julgados provados preenchem cabalmente os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime imputado, e descrevem de forma suficiente as condições pessoais dos arguidos por forma a permitir a escolha da pena e a determinação da respectiva medida, não ocorrendo também o alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto.
5. Não ressalta da decisão recorrida qualquer hesitação ou qualquer dúvida no espírito do julgador quanto à matéria de facto, pelo que não havia que proceder a qualquer juízo em benefício do arguido, não tendo sido violada a presunção de inocência.
6. O acórdão recorrido pronunciou-se sobre todos os factos que integravam o objecto do processo, e sobre as questões de direito suscitadas no respectivo âmbito.
7. O tribunal a quo explanou de forma transparente e detalhada os fundamentos da decisão, quer em matéria de facto quer em matéria de direito, não se vislumbrando qualquer insuficiência, muito menos ausência de fundamentação.
8. Por conseguinte, julgando improcedente o recurso e mantendo na íntegra a decisão recorrida será feita Justiça.
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos interpostos, conforme melhor resulta dos autos.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, tendo os arguidos/recorrentes apresentado resposta pugnando no sentido dos recursos interpostos.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
No Acórdão recorrido consta o seguinte (transcrição):
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
Com relevância para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos:
A.1.) Da pronúncia, da defesa dos arguidos, e resultantes da discussão da causa
1. No dia 16 de maio de 2022, pelas 13:20 horas, a cerca de uma milha náutica a sul da marina de Vilamoura, no concelho de Loulé, nas coordenadas WGS 84 37º03.469N -008º07.335W, os arguidos (A) e (B) faziam-se transportar na embarcação de recreio denominada “TEXAS T”, com o número de registo 907021 no porto de Jersey, de pavilhão inglês, sendo os únicos ocupantes da aludida embarcação e, a arguida, a comandante da mesma.
2. No interior da embarcação, os arguidos transportavam um total de 436 embalagens de canábis (resina), contendo no seu interior:
- 1075 placas de canábis (resina) com o peso líquido total de 106.775,230 gramas e um grau de pureza [concentração média de tetraidrocanabinol (THC)] de 27,5%, suficiente para gerar 587.263 doses individuais;
- 955 placas de canábis (resina) com o peso líquido total de 92.280,500 gramas e um grau de pureza [concentração média de tetraidrocanabinol (THC)] de 24,5%, suficiente para gerar 452.174 doses individuais; e
- 150 placas de canábis (resina) com o peso líquido total de 13.990,000 gramas e um grau de pureza [concentração média de tetraidrocanabinol (THC)] de 24,3%, suficiente para gerar 67.991 doses individuais.
3. Os arguidos haviam procedido ao transporte da mencionada substância naquela embarcação desde o porto de La Línea de la Concepción, Cádiz, no Reino de Espanha até ao local descrito em 1., visando efetivar a sua entrega a terceiro, em Portugal.
4. O AIS (Sistema de Identificação Automática) da mencionada embarcação encontrava-se desligado desde há 229 dias.
5. Nas referidas circunstâncias de tempo e de lugar, a arguida (A) tinha na sua posse 22 notas com o valor facial de 50,00€, totalizando a quantia de 1100,00€.
6. A arguida (A) tinha ainda na sua posse, no interior da embarcação:
- 17 notas, sendo 12 com o valor facial de 50,00€ e 5 com o valor facial de 10,00€, totalizando o quantitativo de 650,00€;
- 1 telemóvel da marca Xiaomi, modelo Redmi (…..), de cor azul, com os IMEIs (…..) e (…..), contendo um cartão SIM da operadora Vodafone com o nº (…..); e
- 1 telemóvel da marca Apple, modelo iPhone 10, com o IMEI (…..).
7. Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido (B) tinha na sua posse, no interior da embarcação:
- 1 telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy S10, com o IMEI1 (…..) e o IMEI2 (…..), contendo inserido um cartão microSIM da operadora Vodafone com o nº (…..); e
- 1 telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy S6 Edge, com o IMEI (…..).
8. O telemóvel da marca Xiaomi, acima identificado, fora usado pela arguida (A) no estabelecimento de contacto telefónico com o fornecedor da substância descrita em 2. e destinava-se a ser utilizado para efetuar e/ou receber o contacto da pessoa a quem tal substância iria ser entregue em Portugal.
9. Agiram os arguidos (A) e (B) em conjugação de esforços e vontades, mediante acordo prévio, com o intuito conseguido de deterem e transportarem, de Espanha para Portugal, canábis (resina), substância cuja natureza, características, composição e efeitos conheciam, bem sabendo que a detenção e transporte desse produto lhes era vedada por lei, por não estarem autorizados para o efeito.
10. Os arguidos atuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal.
11. Pelo transporte da substância identificada em 2., a arguida (A) ia receber quantitativo pecuniário não concretamente apurado.
12. Entre os anos de 2005 e 2012 e no ano de 2014, a arguida (A) declarou, perante a autoridade tributária da República Italiana, rendimentos do trabalho (dependente).
A.2) Relativos às condições pessoais e socioeconómicas e passado criminal de (A):
13. (A) nasceu na Ucrânia, onde permaneceu até aos 11 anos de idade, altura em que emigrou com a mãe e uma irmã uterina, mais velha, para Itália.
14. O pai da arguida faleceu num acidente de trabalho quando esta tinha 3 anos de idade.
15. O desenvolvimento da arguida decorreu num ambiente familiar afetivo, com uma situação económica difícil, sobretudo após o falecimento do progenitor, aspeto que motivou o processo emigratório.
16. A arguida frequentou o ensino até aos 17 anos de idade, sem registo de repetições, tendo abandonado a escolaridade para começar a trabalhar a tempo inteiro; desde os 13 anos, trabalhava aos fins de semana, como empregada de mesa, numa pizzaria.
17. A irmã da arguida, atualmente com 51 anos de idade, permanece em Itália; (A) e a mãe têm residência em Espanha desde há cerca de 7 anos.
18. Com efeito, na data dos factos, (A) vivia com a mãe, já reformada, neste último país, residindo em casa de tipologia T2, arrendada pelo valor mensal de 550,00€, onde a progenitora da arguida permanece, mantendo entre si bom relacionamento interpessoal.
19. A arguida trabalhava no veleiro identificado em 1., de que é proprietária, composto por quatro quartos, três dos quais arrendava para turismo, assegurando, na qualidade de comandante da embarcação, entre junho e setembro de cada ano, a efetivação de viagens de cruzeiro pelas Ilhas Baleares de Ibiza e Formentera.
20. O exercício da atividade referida em 19. proporcionava à arguida um rendimento de 6.000,00€ por semana.
21. Nos restantes meses do ano, a arguida ocupava-se com a manutenção da embarcação.
22. No Estabelecimento Prisional de Odemira, onde se encontra presa preventivamente desde 18 de maio de 2022, a arguida esteve integrada, ao nível laboral, no grupo de trabalho de etiquetagem de embalagens para a sociedade Driscoll´s Portugal e, presentemente, desenvolve atividade para a empresa Polismar. Simultaneamente, participa em atividades propostas pelo Estabelecimento Prisional.
23. No Estabelecimento Prisional, a arguida adota um comportamento ajustado às regras institucionais, não regista problemas de saúde e dispõe de apoio por parte da irmã e da mãe, com as quais mantém contacto telefónico frequente e regular.
24. Uma vez restituída à liberdade, a arguida pretende regressar a Espanha e voltar a viver com a progenitora.
25. No que concerne ao presente envolvimento judicial, (A) expressa noção do interdito em causa e reconhece as suas repercussões, tanto para as vítimas como para a sociedade, revelando capacidade de autocrítica e de descentração.
26. A arguida (A) assumiu, no essencial, os factos relativos à sua pessoa, veiculando, porém, para o Tribunal, uma versão factual que, a ter merecido credibilidade, isentaria o coarguido (B) de responsabilidade.
27. A arguida não possui quaisquer averbamentos no seu Certificado do Registo Criminal.
A.2) Relativos às condições pessoais e socioeconómicas e passado criminal de (B):
28. (B) reside na cidade de Poprad, na Eslováquia, país onde vive toda a sua família.
29. Ao tempo dos factos, o arguido vivia sozinho num apartamento de tipologia T2 arrendado pelo quantitativo mensal de 300,00€, mantendo, no entanto, contacto próximo com o seu agregado de origem, constituído pelo pai e dois irmãos.
30. O arguido estudou durante 12 anos, tendo obtido a certificação como cozinheiro diplomado, atividade que desenvolvia, por conta de terceiro, à data dos factos, já com a categoria de Chef de cozinha, entretanto adquirida.
31. O arguido auferia um ordenado líquido no valor de cerca de 1500,00€/mês e era considerado, pela sua entidade empregadora, um trabalhador pontual, consciencioso e responsável.
32. Não registava problemas de saúde incapacitantes ou comportamentos aditivos.
33. Uma vez restituído à liberdade, o arguido pretende regressar à República Eslovaca e a sua entidade empregadora está disposta a reintegrá-lo.
34. No Estabelecimento Prisional de Faro, onde se encontra preso preventivamente desde 18 de maio de 2022, o arguido tem mantido um comportamento adequado às normas institucionais.
35. O arguido possui antecedentes criminais, porquanto:
35.1. Por decisão judicial datada de 17-03-2006, transitada em julgado, proferida pelo Obvodný súd Praha 5 [Tribunal Distrital de Praga 5] no âmbito do processo nº 30 T 52/2006, foi condenado pelo cometimento de um crime p. e p. pelo §247/1a do Código Penal da Eslováquia na pena de 4 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 12 meses.

Factos não provados:
Com relevo para a decisão a proferir não se provou que:
a) Os arguidos hajam procedido ao transporte da substância mencionada no ponto 2. Dos factos julgados demonstrados desde o Norte de África e que se preparassem para introduzi-la no continente europeu através da costa portuguesa;
b) O sistema de AIS da embarcação referida no ponto 1. dos factos julgados demonstrados se encontrasse desligado há apenas 22 dias, por referência ao dia 16 de maio de 2022;
c) O quantitativo monetário e os telemóveis descritos no ponto 6. dos factos julgados demonstrados também estivessem na posse do arguido (B) e que a arguida tivesse na sua posse, nesse circunstancialismo, concretamente e entre as demais, 10 notas com o valor facial de 5,00€;
d) Os telemóveis descritos no ponto 7. dos factos julgados demonstrados também estivessem na posse da arguida (A);
e) Com exceção e ressalvado o descrito no ponto 8. dos factos julgados provados, os telemóveis mencionados nos pontos 6. e 7. visassem garantir o contacto entre os arguidos e outros indivíduos relacionados com a atividade do tráfico de estupefacientes, de entre os quais, clientes e fornecedores;
f) As quantias monetárias apreendidas se destinassem a custear as despesas da operação de transporte do produto apreendido e fossem provenientes de outras transações;
g) A arguida tenha agido por extrema necessidade económica e que a redução da atividade turística em Espanha decorrente da pandemia de Covid-19 haja determinado, durante todo o lapso temporal de março de 2020 a maio de 2022, uma redução nas receitas daquela com a exploração do barco para viagens turísticas;
h) A arguida tenha aceitado efetuar um único transporte de estupefaciente e que o haja feito com o fito de auxiliar familiares em Donetsk, Ucrânia, a fugirem da guerra e a refugiarem-se em Espanha;
i) Pelo transporte do estupefaciente a arguida ia ganhar, concretamente, 13.000,00€;
j) A embarcação referida no ponto 1. dos factos julgados demonstrados fosse o domicílio habitual da arguida desde há vários anos;
k) Sobre a embarcação mencionada no ponto 1. dos factos julgados demonstrados e a atividade que a arguida (A) desenvolvia, de comandante daquela na efetivação de viagens turísticas, vinham sendo declarados rendimentos e pagos impostos;
l) O arguido (B) nunca haja sofrido beliscadura judicial.

Motivação:
O Tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em sede de audiência de julgamento, globalmente considerada, apreciadasegundo as regras da experiência comum e da lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico.
*
Começar-se-á por consignar ser entendimento do tribunal coletivo não se patentear que haja sido produzida nos autos qualquer prova que deva considerar-se inadmissível, por proibida por lei, nos termos e para os efeitos do estabelecido nos arts. 125º e 126º do Código de Processo Penal.
E esta tomada de posição impõe-se apenas e tão-só para que não venha a ser assacada ao tribunal a incursão no vício de omissão de pronúncia.
Com efeito, em sede de alegações finais, a defesa do arguido (B) sustentou acreditar que os agentes da Polícia Marítima ouvidos em sede de audiência de julgamento “já sabiam onde estava o estupefaciente”.
Não concretizou, porém, os motivos, concretos, desta sua invocada crença, não fluindo eles do conjunto da prova produzida, globalmente considerada, analisada à luz dos supra aludidos critérios.
Não logrou o tribunal coletivo compreender, por total ausência de fundamentação daquela invocação, se a defesa do arguido sugeria a existência de um qualquer agente infiltrado (de um informador, portanto, da autoridade de Polícia Marítima que abordou os arguidos no dia 16 de maio de 2022 na sequência da constatação de que o veleiro em que ambos se faziam transportar se encontrava fundeado a cerca de uma milha náutica a sul da marina de Vilamoura, tendo dois agentes daquela Polícia entrado no interior da embarcação, com autorização da arguida (A), na qualidade de comandante da embarcação, com vista a indagar do motivo do não funcionamento do motor) ou de uma ação encoberta – crendo-se estar arredada da cogitação da defesa de (B), por sobejamente carecida de qualquer fundamento, sequer ao nível indiciário, a existência de um qualquer agente provocador.
Dispõe o art. 126º do Código de Processo Penal que:
“1. São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2. São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus-tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) (…).
3. Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.
4. Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo”.
O regime legal das ações encobertas para fins de prevenção e investigação criminal encontra-se previsto na Lei nº 101/2001 de 25/08.
Antes da entrada em vigor deste diploma legal, estava apenas prevista nos arts. 59º e 59º-A, ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, e no art. 6º da Lei nº 36/94, de 29/0, a figura do agente infiltrado, com a consequente validade das provas assim obtidas.
Porém, a Lei nº 101/2001, de 25/08, para além de ter revogado os preceitos supracitados (vide o seu art. 7º), veio estabelecer o regime das ações encobertas para fins de prevenção e investigação criminal, definindo estas como sendo « (…) aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro atuando sob o controlo da Polícia Judiciária para prevenção ou repressão dos crimes indicados nesta lei, com ocultação da sua qualidade e identidade” – cfr. art. 1º, 2.
No entanto, as ações encobertas apenas são admissíveis no âmbito da prevenção e repressão dos crimes mencionados no art. 2º da citada lei e desde que obedeçam aos requisitos previstos no art. 3º.
Assim, dispõe-se no art. 3º, 1 da citada Lei (na redação anterior à conferida pela Lei nº 2/2023, de 16/01, que seria aplicável in casu) que “As ações encobertas devem ser adequadas aos fins de prevenção e repressão criminais identificados em concreto, nomeadamente a descoberta de material probatório, e proporcionais quer àquelas finalidades quer à gravidade do crime em investigação”, dispondo-se, no nº 3, que “A realização de uma ação encoberta no âmbito do inquérito depende de prévia autorização do competente magistrado do Ministério Público, sendo obrigatoriamente comunicada ao juiz de instrução e considerando-se a mesma validada se não for proferido despacho de recusa nas setenta e duas horas seguintes”.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07 de maio de 2014 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 8292/12.6TDPRT.P1), “Acontece que, ao nível doutrinal e jurisprudencial, sempre foi traçado o limiar da legalidade da intervenção dos funcionários de investigação criminal ou de terceiros por eles controlados, com base na distinção entre o agente provocador e o agente infiltrado.
O Professor Germano Marques da Silva ensina que « (…) a provocação não é apenas informativa, mas é formativa; não revela o crime e o criminoso, mas cria o próprio crime e o próprio criminoso. A provocação, causando o crime, é inaceitável como método de investigação criminal, uma vez que gera o seu próprio objecto».
Por sua vez, Manuel Augusto Alves Meireles considera como agente provocador aquele que «actuando sob uma falsa identidade e sem revelar a sua verdadeira qualidade, fazendo-se assim passar por aquilo que não é, convence outrem a cometer um crime. Esta farsa leva o provocado a executar o que de outra forma não cometeria». E prossegue o mesmo autor: «A pensar-se no resultado desta actuação como prova, teremos que concluir que a liberdade de vontade e de decisão do agente foram afectadas significativamente; quando pensa que, v.g. está a celebrar um negócio, embora ilícito, de facto está a constituir prova contra si mesmo» [cfr. O Regime das provas obtidas pelo agente provocador em processo penal, Almedina, pág. 203].
Já para Fernando Gonçalves, Manuel João Alves e Manuel Monteiro Guedes Valente, a actuação do agente provocador «faz “nascer” e “alimenta” o delito o qual não seria praticado não fosse a sua intervenção».
E, prosseguem os mesmos autores, «sendo o agente provocador, como é, agente do próprio crime, este é sempre inadmissível face à ordem jurídica portuguesa. A lei em circunstância alguma o prevê: nem a Constituição da República, nem o Código do Processo Penal».
E concluem:
«Acresce que, as provas assim obtidas são ainda recondutíveis aos «métodos proibidos de prova», face ao disposto na última parte da alínea a) do nº 2 do art. 126 do CPP – utilização de meios enganosos – sendo, por isso, nulas, não podendo ser utilizadas (nº 1 do art. 126), a não ser para o seguinte e exclusivo fim: proceder criminalmente contra quem as produziu (agente provocador), nos termos do nº 4 do mesmo preceito legal» [cfr. Lei e Crime, Almedina, pág. 261].
Diferentemente do agente provocador, e como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, já «os agentes informadores e infiltrados não participam na prática do crime, a sua actividade não é constitutiva do crime, mas apenas informativa, e, por isso, é de admitir que, no limite, se possa recorrer a estes meios de investigação».
E acrescenta o mesmo Prof.: «Dizemos no limite, ou seja, quando a inteligência dos agentes da justiça ou os meios sejam insuficientes para afrontar com sucesso a actividade dos criminosos e a criminalidade ponha gravemente em causa os valores fundamentais que à Justiça criminal cabe tutelar».
Manuel Augusto Alves Meireles, que faz uma distinção com base no grau de participação entre agentes encobertos e agentes infiltrados, quanto a estes últimos refere, também, que «o epicentro da actuação do agente infiltrado é obter a confiança do(s) agente(s) do crime, tornando-se aparentemente num deles, para, desta forma, ter acesso a informações, planos, processos, confidencias …que, de acordo com o seu plano, constituirão as provas necessárias à condenação» [cfr. Ob. cit. pág. 164].
Porém, esclarece este autor que «o agente infiltrado poderá na sua actividade de infiltração, e de acordo com o plano traçado, ser um verdadeiro comparticipante. Entendemos, no entanto que apenas poderá revestir uma forma de autoria e uma forma de participação: coautoria e cumplicidade respectivamente. No que respeita à participação, apenas lhe é permitido, dentro do seu campo de actuação prestar “auxílio material ou moral à prática por outrem do facto doloso” (artigo 26º nº 1, do CP). Correspectivamente, nunca poderá ser ele a instigar ou a determinar ao crime, sob pena de se converter num verdadeiro agente provocador, pois, a provocação sendo uma forma não autorizada de investigação policial, e não estando autorizada por lei consumiria a infiltração” [Ibidem].
E, ainda, a propósito da figura do agente infiltrado, escrevem os já citados autores AJ…, AK… e AL…: «Agente infiltrado é, pois, o funcionário de investigação criminal ou terceiro, por exemplo, o cidadão particular, que actue sob o controlo da Polícia Judiciária que, com ocultação da sua qualidade e identidade, e com o fim de obter provas para a incriminação do suspeito, ou suspeitos, ganha a sua confiança pessoal, para melhor o observar, em ordem a obter informações relativas às actividades criminosas de que é suspeito e provas contra ele(s), com as finalidades exclusivas de prevenção ou repressão criminal, sem contudo, o(s) determinar à prática de novos crimes» [cfr. Ob. cit., pág. 264].
Ora, no caso do autos, conforme supra se disse, a defesa do arguido (B) limitou-se a afirmar a sua crença de que os agentes da Polícia Marítima intervenientes no processo e inquiridos, em sede de audiência de julgamento, na qualidade de testemunhas “já sabiam onde estava o estupefaciente”, não concretizando os motivos de tais suspeitas ou crenças pessoais, nem delimitando, minimamente, qual teria sido, nesse caso, o meio através do qual aqueles estariam na posse de tal conhecimento e/ou a identidade da pessoa que lhes teria transmitido tal informação.
Do conjunto da prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento merecedora de um juízo positivo acerca da respetiva credibilidade, nos termos infra expostos, não se vislumbra, adianta-se, de todo em todo, a intervenção de um qualquer informador da Polícia Marítima (o dito agente infiltrado) e nada, completamente nada, permite concluir pela ocorrência de uma ação encoberta; menos ainda se vislumbra a intervenção de um qualquer agente provocador da atuação de qualquer um dos arguidos ou de ambos, quando atuaram em conjugação de esforços e de vontades na detenção e transporte do produto estupefaciente apreendido.
Não há, pois, que decidir se a invocada - mas não concretizada nem detetada - intervenção de terceiro teria ocorrido de acordo com o estabelecido, para as ações encobertas, na Lei nº 101/2001, de 25/08, e se a mesma se teria consubstanciado na atuação de agente encoberto ou infiltrado – legal, portanto –, ou se, pelo contrário, a mesma se teria caracterizado como a atuação de um agente provocador – e, por isso, ilegal e proibida nos termos supra expostos.
Termos em que, conforme se consignou supra, este tribunal julga não ter sido recolhida prova com recurso a métodos proibidos, não se patenteando qualquer nulidade nem restrição, por essa via, à respetiva valoração – cfr. arts. 125º e 126º, este a contrario, do Código de Processo Penal.
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Posto isto, a convicção do Tribunal quanto à ocorrência da materialidade descrita no ponto 1. dos factos julgados demonstrados estribou-se na conjugação das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pelos coarguidos (A) e (B), tendo tal factualidade sido admitida por ambos nessa mesma conformidade, identificando unanimemente a arguida como sendo a proprietária e comandante da embarcação e reportando que, mercê de uma avaria no motor do veleiro, ocorrida durante a madrugada/manhã do dia 16 de maio de 2022, este acabou por se quedar fundeado a alguns metros da costa portuguesa, estando a praia à vista.
Concomitantemente, foi valorado o teor da cópia da documentação de fls. 374 a 376 e de fls. 1162 a 1165 (atinente aos dados constantes do registo da embarcação denominada “TEXAS T” e aos movimentos, em portos do Reino de Espanha, efetivados pela ora arguida (A) na qualidade de comandante do veleiro), do auto de notícia de fls. 104 a 104-verso, bem como os depoimentos prestados, de modo sereno e isento, pelas testemunhas (D) [que elaborou e assinou o auto de notícia constante de fls. 104 a 104-verso, cujo teor e assinatura foram confirmados] e (E), ambos agentes da Polícia Marítima, as quais esclareceram o concreto circunstancialismo em que, no exercício das suas funções, detetaram a referida embarcação fundeada a cerca de uma milha náutica a sul da marina de Vilamoura, no concelho de Loulé, tendo abordado os seus dois tripulantes – os ora arguidos –, que os informaram que o motor daquela avariara, sendo esse o motivo pelo qual não estavam, de momento, a navegar; acrescentaram ambas as testemunhas que (A) se identificou como sendo a comandante da embarcação e autorizou ambas as testemunhas a ir a bordo do veleiro, o que fizeram, tendo, sem oposição, tentado averiguar a causa da avaria do motor, com vista à respetiva reparação, que se não mostrou possível, tendo-se imposto rebocar o veleiro para a marina de Vilamoura.
Consigna-se que, não obstante a aludida objetividade e isenção, revelada por ambas as identificadas testemunhas, a segunda delas, (E), evidenciou manter uma memória mais vivida dos factos em que interveio no exercício das suas funções, os quais, por isso, descreveu de forma mais completa.
No que tange à factualidade vertida nos pontos 2. a 8. dos factos julgados demonstrados, estribou-se a convicção do Tribunal na análise crítica e conjugada, à luz das regras da lógica e da experiência:
- Do teor do auto de notícia por detenção de fls. 4 a 9, do documento de fls. 10, do auto de apreensão de fls. 14, do auto de teste rápido e pesagem de fls. 15, do auto de busca e apreensão de fls. 16 a 18, da reportagem fotográfica de fls. 19 a 21, do auto de notícia de fls. 104 a 104-verso, do relatório fotográfico de fls. 105 a 105-verso, do auto de apreensão de fls. 151, do auto de apreensão de fls. 165, do auto de nomeação de fiel depositário de fls. 166, do auto de teste rápido e pesagem de fls. 299-verso, do relatório de exame direto e de avaliação de fls. 308 a 310, da informação e das fotografias de fls. 315 a 318, do auto de notícia de fls. 322 e do auto de apreensão de fls. 324 (elementos que não foram objeto de impugnação e cujo teor e assinatura, quando aplicável, foram confirmados pelas pessoas que os elaboraram ou obtiveram);
- Do teor dos relatórios de exame pericial de fls. 663 e 731;
- Das declarações prestadas pelos arguidos, quer em sede de audiência de julgamento, quer nas fases anteriores do processo, em sede de 1º interrogatório judicial de arguidos detidos e, posteriormente, em sede de instrução [tendo o Ministério Público e os arguidos prescindido, expressamente, da reprodução das primeiras no decurso da audiência de julgamento – sem prejuízo da sua valoração pelo tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 141º, 4, b) e 356º, b), ambos do Código de Processo Penal – e tendo as segundas sido reproduzidas nos termos previstos no aludido art. 356º, 1, a) e b), conforme está documentado em ata], nos termos que, infra, melhor se expenderão; e
- Dos depoimentos prestados pelas testemunhas (D), (E), (F), (G) e (H), nos termos que infra melhor, igualmente, se expenderão.
Vejamos.
Em sede de audiência de julgamento, ambos os arguidos prestaram declarações.
(B) negou ter tido qualquer participação nos factos por cuja prática vinha pronunciado, bem como asseverou desconhecer, até ao momento em que veio a ser confrontado pelos Agentes da Polícia Marítima com as embalagens de estupefaciente apreendidas no dia 16 de maio de 2022, que, no interior da embarcação “TEXAS T” estava acondicionada canábis. O seu posicionamento relativamente aos factos foi, aliás, o que processualmente adotou e manteve anteriormente, quer em sede de 1º interrogatório judicial de arguido detido, quer na fase de instrução.
Esta versão negatória da sua participação, a qualquer título, nos factos – nuclearmente consubstanciados no transporte, no interior da embarcação “TEXAS T”, de 436 embalagens contendo no seu interior placas de canábis (resina) com um peso total líquido de 213 045,73 gramas – foi corroborada, em sede de audiência de julgamento, nas declarações que prestou, pela arguida (A) [o que igualmente sucedeu nas anteriores fases processuais, em sede de 1º interrogatório judicial e de instrução], sendo manifesto o esforço empreendido por aquela para tentar lograr o convencimento do tribunal sobre a invocada inocência de (B) – e para, concomitantemente, ocultar a identidade, quer da pessoa ou pessoas que a terão contratado para, mediante retribuição pecuniária, efetuar o transporte e entrega, em Portugal, do produto estupefaciente em referência, quer da ou das pessoas a quem tal substância se destinava.
Por contraponto, à exceção do facto, alegado na acusação para que expressamente remete a pronúncia, de que o transporte do produto estupefaciente teria sido efetivado a partir do Norte de África, a arguida admitiu ter cometido os factos cuja prática lhe vinha imputada, asseverando ter efetuado o transporte da canábis, cuja natureza estupefaciente conhecia, a partir do Reino de Espanha, mais concretamente, do porto desportivo de La Línea de la Concepción, para o que fora previamente contratada por pessoa cuja identidade disse desconhecer – com a qual apenas contactara através do telefone [através do telemóvel da marca Xiaomi apreendido que, propositadamente e seguindo as instruções que lhe foram dadas, adquiriu para o efeito, conforme explicou], sabendo apenas afirmar, pela voz, tratar-se de um indivíduo do sexo masculino, falante do castelhano –, sendo suposto assegurar a respetiva entrega a pessoa que iria comparecer, durante a semana subsequente ao dia 16 de maio de 2022, na marina de Vilamoura – desconhecendo igualmente, no seu dizer, de quem se tratava, tendo tão-só a informação de que tal pessoa a contactaria quando visse a embarcação “TEXAS T” amarrada no porto. Asseverou ter aceitado a empresa em causa, não obstante saber que incorreria na prática de um ilícito criminal, por precisar de dinheiro que lhe permitisse ajudar uma prima e a filha desta, ambas residentes em Donetsk, na Ucrânia, a fugir do conflito bélico com a Federação Russa e a instalarem-se em Espanha, tendo acordado com a pessoa com quem contactou telefonicamente que receberia, efetivada que fosse a entrega do estupefaciente, quantia monetária ascendente a 13 000,00€.
Asseverou que a integralidade do montante pecuniário apreendido era de sua pertença e que se tratava de dinheiro que ganhara no exercício da sua atividade profissional e que ainda lhe restava, não tendo recebido qualquer adiantamento pelo serviço de transporte da canábis e estando, por isso, as despesas inerentes à viagem – aquisição do combustível e custo de amarragem na marina de Vilamoura – por sua conta.
Estas foram, no seu núcleo essencial, as declarações prestadas pelos arguidos.
Sucede que, pese embora concordantes quanto à negação da participação de (B) nos factos integradores do objeto do processo, as versões factuais veiculadas por cada um dos arguidos não só não são, em si mesmas consideradas, merecedoras de credibilidade, como foram infirmadas por outros meios probatórios produzidos em sede de audiência de julgamento como, ainda, não se harmonizam, sequer, inteiramente entre si (conforme não poderia, refira-se, deixar de suceder caso correspondessem ao efetivamente ocorrido).
Com efeito, em sede de audiência de julgamento, instado a relatar quando e onde conhecera a arguida (A), (B) disse tê-la conhecido na praia, na Bahía de Casares, em Espanha, na segunda quinzena de janeiro de 2022, numa ocasião em que estava a gozar alguns dias de férias em casa de um compatriota e amigo de infância, casado, com filhos e residente no Reino de Espanha, conforme fazia, amiúde, desde há 12 anos. Mais disse que, nessa altura, estava empregado na Eslováquia, de onde é natural e nacional, exercendo a profissão de cozinheiro para uma empresa de catering desde 2005 e auferindo cerca de 1500,00€ líquidos/mês; acrescentou ter sido a arguida quem, então, estabeleceu conversação consigo, tendo-lhe solicitado algumas aulas da modalidade desportiva de paddle surf, que ele, arguido, pratica, manifestando-se interessada em aprender as técnicas. Mais disse ter ministrado as ditas aulas à arguida sem qualquer contrapartida monetária e que, depois de janeiro de 2022, voltou a estar com ela, na praia, em março do mesmo ano (numa ocasião em que, conforme disse, teria visitado novamente o seu amigo em Espanha, pernoitando na casa dele e da família do mesmo, em gozo de mais uns dias de férias) e em maio de 2022, altura em que retornou a Espanha para gozar, segundo asseverou, mais 10 dias de férias, tendo chegado a esse país no dia 13 de maio – sendo que, no seu dizer, também teria estado alguns dias em casa do seu amigo no mês de abril de 2022, não tendo, porém, chegado a encontrar-se com (A). Disse ainda que os seus contactos com a arguida eram presenciais, não estabelecendo entre si contactos por outros meios.
Questionado acerca do seu encontro com a arguida em maio de 2022, reportou o arguido que, no dia 14, (A) apareceu na praia e encontraram-se, logo acrescentando que sempre se encontraram na praia, pois que “não costuma ir aos bares”; aditou que na altura estava triste por se aproximar o aniversário da morte da sua mãe (ocorrido em 15 de maio de 2014, conforme documentado nos autos) e estava a explicar a (A) que ficava “mais em baixo” no decurso do que a mesma logo lhe sugeriu que “fosse com ela para o barco”, que iriam “para o mar e estariam 2 a 3 dias fora”, tendo ele pensado que iriam para mar aberto, para “sítios bonitos” onde poderiam praticar paddle surf ou pescar.
Questionado acerca do motivo pelo qual aceitou viajar com uma pessoa (praticamente) desconhecida, disse o arguido que “estava muito contente porque nunca teve essa experiência de andar de barco” e que, como já se haviam encontrado 3 ou 4 vezes, “tinha uma certa confiança na pessoa”, sendo que nessas 3 a 4 vezes em que se haviam encontrado, ela lhe dissera que era a capitã de um barco e que explorava turisticamente essa embarcação.
Mais referiu o arguido ter combinado com (A) que se encontrariam, no dia seguinte, 15 de maio de 2022, num parque de estacionamento na Bahía de Casares, tendo então questionado a mesma sobre o que deveria levar, tendo-lhe sido transmitido que levasse roupa e comida para 2 a 3 dias, o que fez, segundo disse; acrescentou que, ao chegar ao dito parque de estacionamento, no dia 15 de maio de 2022, a arguida já se encontrava à sua espera, tendo ido buscá-lo, em automóvel, entre as 14:00 horas e as 15:00 horas, seguindo então para o porto de La Línea de la Concepción, onde aquela tinha o barco atracado. Mais reportou que, chegados à embarcação, arrumou os seus pertences no quarto que lhe ficou atribuído e que a viagem se iniciou, com a saída do aludido porto, cerca das 21:30 horas desse dia 15 de maio de 2022; confrontado que foi, face ao por si declarado, com o teor de fls. 1161 dos autos – registo de movimentos enviado por Alcaidesa Marina, do qual se extrai que a embarcação titulada por (A) saiu do porto de La Línea de la Concepción às 8:58 horas do dia 15 de maio de 2022, não tendo jamais regressado àquele porto –, disse o arguido que tal registo “pode não ser falso”, mas ter ocorrido que o “TEXAS T” haja saído do porto de La Línea de la Concepción às 8:58 horas do dia 15 de maio de 2022 e ter voltado a atracar nesse mesmo dia, saindo novamente pelas 21:30 horas, já consigo no interior.
Perguntado, afirmou ainda o arguido que nem mesmo nessa altura, antes de iniciarem viagem, (A) lhe disse para onde iam, posto que, no seu dizer, se teriam ocupado a falar sobre paddle surf e sobre “os truques que [ele] lhe podia ensinar”; mais reportou que não pararam em qualquer momento e que viajaram sempre perto da costa, noite dentro; ressalvou que apenas pararam quando o motor da embarcação avariou e que tão-somente nessa altura questionou a arguida acerca do local onde se encontravam, tendo, então, tido notícia de que estavam em Portugal; acrescentou que, perante a avaria, (A) - que “estava muito zangada” com a ocorrência daquela - tentou reparar o motor, permanecendo na parte inferior da embarcação, ao passo que ele se manteve na parte superior, descoberta; mais indicou que, nessa altura, pensou em sair da embarcação para ir praticar paddle surf, até porque estava a “uns metros” da praia, mas não o fez porque (A) lhe foi dizendo, a cada 15 ou 30 minutos, que já chamara um mecânico e que o mesmo estaria a caminho; ainda questionado, disse o arguido pensar terem estado fundeados cerca de 1:30 horas a 2:00 horas e que ele mesmo “também já se estava a começar a chatear” porque o mecânico estava a demorar muito e “já podiam estar no mar, a praticar paddle surf”, conforme ele, segundo disse, pretendia fazer; concretizou que, nesse hiato temporal, a arguida lhe pediu “para ele se acalmar”.
Instado, disse ainda (B) ter ficado “muito aliviado e agradecido quando a Polícia Marítima chegou”, sendo que, anteriormente, conforme relatou, já estava a fazer sinais e a assobiar a outras embarcações que passavam, procurando obter, infrutiferamente, ajuda, pensando que também a arguida terá feito sinais, com o mesmo desiderato. Mais reportou que, à chegada dos Agentes da Polícia Marítima, (A) também parecia “aliviada”, tendo ido explicar aos dois Agentes que entraram no veleiro o problema que ocorrera com o motor; referiu, bem assim, que um dos Agentes efetuou tentativas de colocar o motor em funcionamento, ao passo que o outro conversou com eles, questionando-os acerca do local da sua proveniência, sobre quanto tempo tinham passado em viagem e se haviam parado em algum local.
Mais disse que, nessa sequência, a embarcação “TEXAS T” veio a ser rebocada até ao porto de Vilamoura e que “um dos polícias voltou, pediu o certificado da embarcação e ligou para o porto de La Línea para confirmar se haviam saído mesmo entre as 21:00 horas e as 22:00 horas” do dia anterior. Relatou que, após, esse Agente o questionou, bem como à arguida, sobre se tinham alguns narcóticos no barco, tendo ele respondido desconhecer “se havia droga”, ao passo que (A) disse que não tinha. Reportou que permaneceu maioritariamente na parte superior do veleiro, contrariamente ao que sucedeu com a arguida, a qual teria estado a acompanhar os agentes da Polícia Marítima na parte inferior (coberta) e que, a dada altura, “levaram-no para baixo e confrontaram-no com uma descoberta, tendo-o questionado sobre se ele sabia o que era aquilo”, momento em que terá percecionado que “estava partida parte do chão do barco e da zona destinada à reserva de água e estavam lá umas embalagens, tipo almofadas”.
Instado, disse saber que é crime deter e transportar canábis e que esta possui características estupefacientes.
Por fim, com relevo para o que nos ocupa, disse o arguido ter falado “espanhol” (castelhano) e “um pouco de inglês” com as autoridades e que, com (A), sempre comunicou em “espanhol” (castelhano) ou em ucraniano, “pois percebe um bocadinho”.
Analisada a versão factual veiculada pelo arguido, à luz das regras da lógica e da experiência, patenteia-se ser a mesma inverosímil, manifestando-se, por vezes, quase pueril.
Com efeito, não se evidencia minimamente credível que uma pessoa adulta, como é o arguido – que contava, em maio de 2022, 43 anos de idade –, encontrando-se a passar 10 dias de férias em casa de um casal seu amigo de longa data, já então, alegadamente, para se distrair da lembrança do falecimento da sua mãe ocorrido no dia 15 de maio de 2014, se determinasse, volvidos apenas 2 dias sobre a sua chegada a Espanha, a deixar o convívio daqueles seus anfitriões (que, conforme resultou do depoimento prestado pela testemunha (….), o consideravam, mais do que um amigo, como “um irmão”), indo, por sua vez, conviver, durante pelo menos 2 a 3 dias das suas curtas férias, com uma pessoa que muitíssimo mal conhecia, “enclausurando-se” dentro de uma embarcação tripulada pela mesma, aceitando, ademais, viajar com ela por mar, sem que a mesma lhe revelasse, sequer, qual seria o seu destino (e nem tendo ele tido a curiosidade de questioná-la quanto a essa matéria, antes tendo permanecido ambos embrenhados nos “truques” que ele podia ensinar-lhe para a prática de paddle surf). Tal atuação seria de tal modo incauta, desprovida de racionalidade, de ponderação e prudência, que não quadraria, de todo em todo, com a personalidade, conscienciosa e responsável, que o arguido não só afirma possuir, como vê reconhecida, mormente, pela sua entidade empregadora, conforme flui do teor da declaração junta com a sua contestação e cuja tradução faz fls. 1150 dos autos.
Ademais, tal versão factual, em si mesma inverosímil, foi direta e inequivocamente contrariada pela arguida (A), nas declarações que prestou, quer na audiência de julgamento, quer nas fases anteriores do processo. Tal reveste, in casu, particular relevo, na medida em que, recordamos, a arguida desenvolveu, durante todo o processo, um esforço hercúleo visando assegurar o convencimento, pelas autoridades judiciárias perante as quais foi prestando declarações, de que (B) era totalmente alheio à execução das condutas que lhe foram assacadas, não estando, sequer, no conhecimento de que a canábis apreendida era transportada no interior da embarcação “TEXAS T”.
Apenas a título exemplificativo, dir-se-á que, na versão factual que apresentou, (A) afirmou assertivamente, mormente, na audiência de julgamento, ter dito a (B), quando o convidou a viajar com ela, especificamente, que viriam para Portugal; mais disse ter dito ao arguido que lhe falou em estarem fora “alguns dias”, não tendo especificado qualquer concreta duração. Outrossim, quando questionada sobre quando e onde conheceu (B), (A) referiu ter sido, “no inverno ou na primavera” de 2022, na praia de Manilva/Bahía de Casares, tendo-lhe ele ministrado aulas de paddle surf; todavia, contrariando frontalmente o veiculado pelo arguido, reportou (A) que apenas voltaria a estar com aquele no mês de maio de 2022 e que, durante o hiato temporal decorrido entre os dois encontros, teriam estabelecido contactos telefónicos entre si, mantendo dessa forma a ligação.
Ainda, quando questionada sobre o local onde convidara (B) para viajar com ela, referiu a arguida ter sido num bar, contrariando assim, mais uma vez, o relatado pelo arguido que, até sem que lhe fosse perguntado, disse que sempre se encontrara com (A) na praia, acrescentando não frequentar estabelecimentos de bar. Por fim, ainda a título de exemplo, refira-se que (A) disse comunicar com o arguido, quase invariavelmente, na língua inglesa e, muito raramente, em espanhol (castelhano), nenhuma referência tendo feito, sequer, à língua ucraniana.
Vê-se, pois, que os coarguidos, tendo o inquestionável propósito comum de fazerem recair sobre (A) a integral responsabilidade no cometimento dos factos integradores do objeto do processo, não lograram “acertar-se”, sequer, quando à língua que usariam na sua comunicação interpessoal [ao que não deverá ter sido alheio o facto, referido por (A) nas declarações que prestou na audiência de julgamento, de lhes ter sido vedada a comunicação na sequência da sua detenção], sendo certo que nem a arguida representou como viável veicular para o tribunal uma narrativa tão inverosímil que incluísse a alegação de que (B) aceitar viajara com ela sem questionar, nem ela nunca lhe mencionar, em qualquer momento, o local para onde viajariam no veleiro por ela comandado.
Mas a versão factual veiculada pelo arguido não foi apenas frontalmente contrariada pelas declarações prestadas pela coarguida (A), tendo-o sido, também, pelos depoimentos, serenos e escorreitos e, por isso, merecedores de um juízo positivo acerca da respetiva credibilidade, prestados pelas testemunhas (D), agente da Polícia Marítima, (F), inspetor da Polícia Judiciária, e (G), esta última, amiga do arguido desde há cerca de 12/13 anos e esposa do amigo referido por (B) como sendo o seu anfitrião sempre que passava períodos de férias em Espanha ao longo da última dezena de anos.
Começando pelo fim, dir-se-á, desde logo, não ter esta última testemunha corroborado o veiculado pelo arguido, mormente, quanto ao número de vezes em que o mesmo esteve hospedado em sua casa entre o início do ano de 2022 e a data em que viria a ser detido à ordem dos autos (16 de maio de 2022); com efeito, questionada, esta testemunha referiu que, naquele ano, ofereceu alojamento a (B) na sua residência, tão-somente, perto do dia 30 de janeiro (i.e.., da data do aniversário do seu marido) e, posteriormente, em maio, em período que terá abrangido o dia 15, correspondente ao aniversário do decesso da mãe do arguido.
Contrariando ainda o veiculado por (B), disse (G) ter estado a tomar o pequeno-almoço com aquele pelas 07:00 horas do dia 15 de maio de 2022, altura em que o mesmo reportou, a si e ao seu marido, que, durante esse dia, iria sair para pescar, fazendo menção a uma rapariga loura que conhecera, mas nenhuma indicação lhes tendo dado de que iria pernoitar fora, tendo ficado convicta de que ele regressaria no mesmo dia à sua [dela, testemunha], residência; questionada, disse ainda que, nos períodos em que esteve alojado na sua casa cerca de 4 vezes por ano, durante 12 anos consecutivos, (B) nunca pernoitou, voluntariamente, fora de casa, apenas tendo tal ocorrido numa situação em que ficou retido na montanha, tendo havido necessidade de acionar uma equipa de resgate para trazê-lo de regresso ao lar.
Claudica, pois, a versão factual apresentada por (B), sendo patente que omitiu ao casal em cuja residência estava alojado, em gozo de férias, a viagem efetuada, compreendendo pelo menos os dias 15 e 16 de maio de 2022, na embarcação de (A)… porém, se o arguido estava realmente convicto de que apenas ia dar um passeio e ver “sítios bonitos”, pescar e praticar paddle surf com a ora arguida, por que motivo – que não o de ter participado diretamente nos atos de transporte, para entrega a terceiro, em Portugal, do produto estupefaciente apreendido, com o conhecimento e a vontade de realização daquelas condutas e da proibição delas – omitiria aos seus anfitriões que não iria regressar a casa durante uma ou mais noites, contrariamente ao que sempre fizera durante os 12 anos antecedentes?
Mais soçobra a versão veiculada pelo arguido perante os depoimentos, com as acima aludidas características, prestados em sede de audiência de julgamento pelas testemunhas (D) e (E).
Efetivamente, aquela primeira testemunha, já anteriormente mencionada, inquirida que foi acerca do estado de espírito evidenciado pelos arguidos no dia 16 de maio de 2022, aquando do contacto com eles mantido, expressou-se da seguinte forma: aquando da abordagem dos arguidos, os mesmos “estavam tranquilos”; quando lhes foi comunicado que a embarcação iria ser rebocada para a marina de Vilamoura “é que houve um bocado de tensão”; solicitada a concretizar tal afirmação, disse esta testemunha que os arguidos “começaram a não falar, a falar menos, a olhar um para o outro” e que, durante a operação de reboque, ela, testemunha, permaneceu na “TEXAS T” juntamente com (A) e (B) e ia falando com eles, tendo notado que ambos “estavam um bocadinho mais fechados” (sendo que, segundo disse, o arguido nunca se revelara “muito falador”). Mais expressou que, já depois de a embarcação haver atracado na marina de Vilamoura, em função da avaria reportada, foi levantada, sem qualquer oposição da comandante da embarcação, ora arguida, a tampa do compartimento do motor [por ter sido aventada a hipótese de haver alguma avaria na bomba de água que assegura a refrigeração do motor], tendo então sido constatada a existência de infiltração de água, o que não era suposto, na medida em que as várias bombas instaladas por baixo do motor têm, precisamente, a função de mantê-lo seco; disse ainda a testemunha que, depois de ter sido detetado o produto estupefaciente, ocultado na estrutura do veleiro, nos compartimentos representados na reportagem fotográfica junta aos autos, os arguidos, “como estavam, assim ficaram… se calados estavam, mais calados ficaram”.
O relatado por esta testemunha contraria, pois, frontalmente, a versão veiculada pelo arguido, dali se não extraindo a gratidão e alívio que (B) disse ter sentido perante a abordagem da Polícia Marítima. Acresce que todo o nervosismo e apreensão assertivamente reportados pela testemunha, evidenciados não só por (A) mas, também, por (B), não encontram justificação senão num quadro de direta participação dele no transporte do produto estupefaciente apreendido nos autos, sendo incompatíveis com o invocado desconhecimento de tais factos, em que disse encontrar-se, também sustentado pela coarguida.
Tal estado de espírito comum a ambos os arguidos, relatado pela identificada testemunha foi, aliás, também percecionado por (F), Inspetor da Polícia Judiciária que, na data em referência nos autos, se deslocou no exercício das suas funções, juntamente com o Inspetor (H) e por determinação superior, à marina de Vilamoura.
Efetivamente, revelou esta testemunha, de modo espontâneo, que, à chegada ao cais, a embarcação “TEXAS T” já aí se encontrava, tendo sido dada indicação, pela Polícia Marítima, de que estava a tentar ajudar na resolução da avaria do motor; não obstante, ambos os arguidos – com os quais, segundo relatou, estabeleceu diálogo na língua inglesa no momento em que subiu a bordo – “estavam excessivamente nervosos”, “falavam muito nervosos” e “andavam com os passaportes para trás e para a frente”.
Mas também a arguida (A), na sua empresa de ver afastada a responsabilização penal do coarguido prestou declarações que, nalguma medida, se revelaram completamente destituídas de verosimilhança.
Sublinha-se, a este propósito, ter veiculado para o tribunal, no decurso da audiência de julgamento, que, depois de ter aceitado, nos termos supra mencionados, efetuar o transporte – no veleiro de sua pertença, do qual era a comandante e que explorava comercialmente, afetando-o aos cruzeiros que fazia, de junho a setembro, à volta de Ibiza e Formentera, retirando de tal atividade rendimentos ascendentes a 6000,00€/semana - da canábis apreendida nos autos desde La Línea de la Concepción, em Espanha, e assegurar a respetiva entrega a alguém que a contactaria na marina de Vilamoura - só depois devendo receber uma retribuição no valor que disse ser de 13 000,00€, a qual nunca chegou a ser-lhe paga, sequer parcialmente, atenta a sua detenção e a concomitante apreensão do produto estupefaciente -, decidiu convidar (B) para a acompanhar porque, “desta vez, precisava de alguém para fingir que era amigo, para chegar a um porto estrangeiro”. Confrontada com o facto, por si referido, de ser comandante da embarcação em causa e de fazer a exploração comercial, para fins turísticos, dela, sem que se faça acompanhar, nessa sua atividade profissional, senão, dos clientes que contratam os seus serviços para passear pelas Ilhas Baleares, disse a arguida, de modo vago, haver “discriminação entre os homens e mulheres comandantes de embarcações”, sustentando que para uma mulher com uma embarcação grande, é “sempre melhor quando viaja em casal”; ainda, instada a esclarecer sobre se pretendia evitar, afinal, alguma fiscalização [o único motivo que poderia ter-se por lógico e racional para ter cogitado realizar o transporte acompanhada de outrem, mormente, de uma pessoa do sexo masculino], respondeu (A), inexpressivamente, que “era para dar melhor aparência”.
Igualmente se destaca que, quando questionada sobre se a ideia de trazer outra pessoa “como fachada” foi falada com os seus contactos em Espanha [i.e., com a pessoa ou pessoas com as quais acordara efetuar o serviço de transporte a partir de Espanha e entrega, em Portugal, dos mais de 213 kgs de canábis (resina)], (A) referiu ter-se tratado de uma ideia sua e que não disse nada “aos espanhóis”, pelo que estes desconheciam por completo que (B) a acompanharia, no interior da embarcação, durante o transporte do estupefaciente entre Espanha e Portugal. Ainda, perguntada sobre se não lhe ocorreu que (B) podia descobrir a existência do estupefaciente e pôr em causa a operação de transporte e entrega, ao destinatário, do estupefaciente, disse a arguida que tal não lhe ocorreu porque “a droga estava escondida”; mais reportou não saber explicar porque não avisou quem a contratou para assegurar o transporte de que iria convidar um terceiro, alheio à operação, para viajar na embarcação, não sabendo também explicar se teria/deveria comunicar tal facto, tendo-se esquivado à questão mediante a alegação de que “pensou que era melhor para ela porque a embarcação era dela”.
Mas mais. Instada a esclarecer o tribunal sobre como é que iria processar-se o descarregamento do estupefaciente, atendendo a que o arguido, no dizer dela, iria permanecer e pernoitar na embarcação “TEXAS T” durante toda a semana em que esta estaria atracada na marina de Vilamoura, disse (A), após demorada hesitação – que se não pode deixar de assinalar –, que, como (B) levara consigo todo o equipamento para a prática do paddle surf, pensou, na altura, que faria o descarregamento enquanto aquele praticava a modalidade [aquando do seu 1º interrogatório judicial reportou a arguida, mais elaboradamente, ter projetado fingir-se maldisposta e incentivar o arguido a ir praticar paddle surf para a praia, por forma a ficar sozinha e assim lograr o descarregamento da droga]; instada, em audiência, sobre se tal descarregamento ocorreria durante o dia, à vista de todos os utentes e visitantes da marina (consabidamente movimentada, ladeada por inúmeros estabelecimentos comerciais, incluíndo restaurantes, bares, gelatarias, lojas, um hotel de grandes dimensões, etc.), respondeu, incompreensivelmente, que sim. Posteriormente, porventura após alguma reflexão que terá feito sobre a inverosimilhança do por si relatado nesta sede, a arguida alterou o que previamente declarara, asseverando não saber, afinal, se, quando atracasse o veleiro em Vilamoura, iria ser contactada por uma pessoa, ou se seria ela a contactar o destinatário do estupefaciente (cujo contacto não tinha, porém, na sua posse, conforme afirmou), desconhecendo, bem assim, como é que, em concreto, iria ser efetuado o descarregamento dos mais de 200 quilogramas de produto estupefaciente, encerrado que estava na estrutura do veleiro.
Manifesta é, perante a sua ilogicidade e impraticabilidade, a inverosimilhança das declarações prestadas, nesta parte, assinalada, pela arguida, sendo indesmentível que as mesmas mais não foram do que uma tentativa de fornecer uma explicação para a presença e permanência do arguido na embarcação dos autos, mas sob manutenção da invocação de que o mesmo desconhecia que nela estavam ocultadas as 436 embalagens de canábis apreendidas pelas autoridades policiais no dia 16 de maio de 2022.
Todas as inverosimilhanças e contradições acima assinaladas sustentam, com a necessária certeza, a convicção de que o arguido participou, diretamente, nos factos cuja imputação lhe é feita, transportando a canábis sem estar para tanto autorizado, conforme representou e quis, conhecendo as características estupefacientes daquela substância e sabendo ser a sua conduta proibida e punida por Lei Penal (como o próprio admitiu saber, pese embora a não admissão da sua participação nessa factualidade). E fê-lo, necessariamente, na execução de um plano previamente urdido com a arguida (A) ou a que ambos aderiram, sendo esta última a pessoa que tinha na sua posse o meio, não só necessário, como indispensável à efetivação do transporte do estupefaciente em causa para Portugal – a embarcação “TEXAS T” – e a pessoa que possuía específica habilitação técnica para, materialmente, efetivar tal transporte, tripulando o veleiro e assim o fazendo percorrer as necessárias milhas náuticas que separam o porto desportivo de La Línea de La Concepción, no Reino de Espanha, do porto de Vilamoura, no nosso país.
Decisivo se afigura, desde logo, que, se tal envolvimento/participação de (B) no transporte e desembarque da canábis não existisse, nunca (A) teria convidado o mesmo a acompanhá-la na viagem entre La Línea de La Concepción e Vilamoura, considerando que, dessa forma, e sem qualquer vantagem que se destaque como real(ística), correria o sério risco de expor toda a operação – e comprometer o sucesso da mesma – a uma pessoa que poderia denunciar os factos, delituosos, de que tomasse conhecimento. Estaria ela nas mãos de (B), à mercê da eventualidade de o mesmo poder vir a detetar o estupefaciente durante a viagem (o facto de este não exalar cheiro, conforme fluiu da prova testemunhal produzida, não se afigura determinante, considerando que, perante uma avaria, como a que veio a efetivamente ocorrer, a arguida não poderia assegurar que (B) não abrisse os compartimentos de acesso ao motor da embarcação ou outros, desde logo, procurando auxiliá-la na resolução do problema, conforme viria a ocorrer com os Agentes da Polícia Marítima) ou a presenciar atos de execução do descarregamento das 436 embalagens de canábis que se encontravam acondicionadas dentro da estrutura do veleiro de (A).
Temos, ainda, por certo que, ainda que (B) nada descobrisse ou denunciasse, o simples facto de a presença dele na embarcação vir a ser descoberta pelo(s) organizador(es) da operação de transporte e desembarque do produto estupefaciente poderia, com elevada probabilidade, colocar em perigo a vida e/ou a integridade física, quer de (A), quer do seu inocente “convidado”.
Ora, tal elevada probabilidade não poderia ser desconhecida de (A), nem a mesma a teria desconsiderado, praticamente “a troco de nada”, não sendo crível que a mesma sentisse autoconfiança e “à vontade” para assim proceder, omitindo tal facto a quem a contratou para assegurar o transporte, conforme a mesma asseverou ter feito.
Ademais, a quantidade de canábis em referência nos autos – 213 045,73 gramas, suficiente para gerar 1 107 428 doses individuais – é muito valiosa no mercado [facto que pode afirmar-se com segurança recorrendo, desde logo, à experiência judiciária quanto ao custo médio de mercado da dose de canábis (resina), vulgo, haxixe, pese embora se não haja logrado apurar o preço pelo qual o estupefaciente ia ser/fora vendido ao respetivo destinatário, nem o valor que este, por seu turno, lograria obter pela respetiva revenda, v.g., a terceiros consumidores], pelo que o responsável pela operação de transporte (o seu vendedor ou o seu adquirente, não se logrou apurar) daquela substância jamais permitiria que (A), condutora da embarcação que asseguraria a deslocação espacial, por via marítima, do estupefaciente até ao respetivo destinatário, envolvesse, sem qualquer controlo, um terceiro, alheio a toda a operação, para a acompanhar na viagem, sob pena de correr um risco assaz elevado de perder milhares e milhares de euros.
Fazendo apelo às regras da lógica e da experiência comum, terá, pois, de ter-se por seguro que quem investiu dinheiro na aquisição de tão elevada quantidade de canábis e projetou o transporte da mesma de Espanha para Portugal, certamente se assegurou que as pessoas que faziam parte da tripulação da embarcação estavam ao corrente e iam colaborar no plano de transportar tal substância, do modo definido pelo organizado desse transporte, pois que, ao contrário, estaria em risco a segurança da operação.
Na mesma linha de raciocínio se dirá que o organizador do transporte não deixaria de fazer acompanhar a skipper da embarcação que efetivaria o transporte de mais de 200 quilogramas de canábis, de uma pessoa da sua confiança, visando que assegurasse, desde logo, que o estupefaciente chegaria efetivamente ao seu destino [controlo que jamais seria possível se (A) viajasse sozinha entre La Línea de La Concepción e Vilamoura, posto que, conforme resulta do documento de fls. 10 e a própria arguida admitiu, mormente, nas declarações que prestou na audiência de julgamento e perante a Mmª Juiz de Instrução, v.g., no 1º Interrogatório Judicial a que foi submetida, a embarcação viajava com o AIS desligado – e o mesmo estava desligado há já 229 dias, informação que poderia ser obtida por qualquer pessoa que efetuasse a pertinente pesquisa na aplicação disponível, em fonte aberta, na internet –, não sendo, por isso, detetável a sua permanência no mar, nem, bem assim, a rota por ela seguida]. A não ser assim, ou seja, a seguir, na embarcação de sua pertença e por si tripulada, desacompanhada de alguém da confiança do organizador do transporte, em última instância, (A) poderia facilmente fazer seus os mais de 200 quilogramas de produto estupefaciente e mercantilizá-lo por si mesma, recebendo o valor de mercado dele (ao invés de quedar-se com o mero preço do transporte que aceitou fazer), podendo também facilmente desaparecer sem deixar rasto até, quiçá, acompanhada da sua família, e nenhumas contas tendo de dar a quem quer que fosse, podendo viver desafogadamente com o rendimento que iria angariar.
Como faz notar Stephen P. Garvey [in The Emotional Economy of Capital Sentencing - 2000, Cornell Law Faculty Publications, volume I, Issue I, p. 30, acessível através do endereço eletrónico https://scholarship.law.cornell.edu/facpub/288/], estando em causa grandes ganhos ou perdas de dinheiro, o ser humano tende, na esmagadora maioria dos casos, a adotar uma estratégia de investimento conservadora, isto é, mais cautelosa.
Daniel Kahnemen [in Pensar Depressa e Devagar, Temas e Debates, Círculo de Leitores, março de 2012, p. 372] corrobora este entendimento, ao referir que na avaliação de resultados financeiros, prevalece o princípio da aversão à perda, isto é, quando são comparados diretamente, ou ponderados um contra o outro, as perdas contam mais que os ganhos. Esta assimetria entre o poder das expetativas ou experiências positivas e negativas tem uma história evolucionária. Os organismos que tratam as ameaças como mais urgentes que as oportunidades têm maiores hipóteses de sobreviver e reproduzir-se.
Em suma, existem evidências científicas que sustentam que, estando em causa grandes ganhos ou perdas de dinheiro, o ser humano tende a não arriscar, pelo que, no contexto do caso dos autos, não oferece credibilidade a versão de (A) (pessoa que se dedica profissionalmente à exploração, para fins turísticos, do veleiro “TEXAS T”, conforme a mesma declarou e flui do teor do relatório de exame pericial de fls. 1090 e seguintes e do CD de fls. 1123 – estando o relatório de extração dele constante impresso a fls. 1198 a 1209 –, deste se extraindo que (A) tinha uma conta criada na aplicação WhatsApp denominada “Charter Ibiza e Formentera”, o que é compatível com o por ela declarado quanto à sua situação profissional) de que o estupefaciente lhe foi entregue pelo organizador do seu transporte e que este deixou, a partir desse momento, de exercer qualquer controlo sobre a atividade dela, dando-lhe autonomia para colocar dentro da embarcação quem lhe aprouvesse; nem é crível a versão de (A) de que se fazia acompanhar de (B) apenas para “dar melhor aparência” ao atracar o veleiro “TEXAS T” num porto estrangeiro – a marina de Vilamoura – e que fez, a este, tal convite sem disso dar conhecimento do organizador do transporte. Concomitantemente e por tudo o supra exposto, desmerece igualmente credibilidade a versão apresentada por (B), de que desconhecia, por completo, a existência da canábis no interior da embarcação tripulada por (A) e de que se determinou a acompanhá-la na viagem de veleiro com o fito de desviar o pensamento do decesso da sua mãe e de pescar e praticar paddle surf em “sítios bonitos”.
Conclui-se, pois, inexoravelmente, que cada um dos arguidos, na execução de um plano previamente delineado, que gizaram ou a que ambos aderiram, participou, diretamente e de comum acordo com o outro, nos factos cuja imputação lhe é feita, transportando a canábis sem estar para tanto autorizado, conforme representou e quis, conhecendo as características estupefacientes daquela substância e sabendo ser a sua conduta proibida e punida por Lei Penal.
Dir-se-á, ainda, que, no que tange, concretamente, à quantidade total de embalagens transportada pelos arguidos [posto que da prova documental flui que, na data da detenção destes, apenas foram detetadas 215 das 436 embalagens de canábis (resina) apreendidas nos autos], para além dos meios de prova já acima especificamente escalpelizados acima, igualmente se valoraram os depoimentos prestados pelas testemunhas (H) e (J), ambos inspetores da Polícia Judiciária, que (para além de haverem confirmado o teor e assinatura de fls. 14, 16 a 18, 19 e 20, 151 e 324, e de fls. 4 a 9) reportaram de modo sereno, objetivo e isento, o circunstancialismo em que, no dia 16 de maio de 2022, compareceram, no exercício das suas funções, no “cais de boas-vindas” da marina de Vilamoura (no cumprimento de ordens superiores, dadas na sequência de um contacto efetuado pela Polícia Marítima, com informação de que estava a proceder ao reboque de um veleiro para a marina de Vilamoura, havendo suspeitas de que nele se poderia fazer o transporte de produto estupefaciente, estribadas na alegada existência de problemas de motor, no fundeamento da embarcação e no facto de o AIS desta se encontrar desligado); o contacto que primeiramente tiveram com os ora arguidos, presentes no interior da embarcação dos autos (contacto esse já supra aludido, referindo-nos, então, ao estado de espírito de (A) e de (B) percecionado pela testemunha (H); a descoberta, pelos Agentes da Polícia Marítima, quando destacaram alguns dos painéis próximos do motor, de 215 embalagens que se encontravam ocultadas na estrutura do veleiro “TEXAS T”; o reingresso delas, testemunhas, na embarcação e a submissão a teste rápido do conteúdo de tais embalagens, o qual viria a reagir positivamente para canábis, determinando que fosse dada ordem de detenção aos ora arguidos; as apreensões, de objetos e quantias monetárias, efetivadas por elas, testemunhas, documentadas nos autos; a sua deslocação, novamente no exercício das suas funções e volvidos cerca de 2 meses (no dia 22 de julho de 2022, conforme resulta da prova documental), ao estaleiro gerido pelo fiel depositário da mencionada embarcação, na sequência de este ter detetado, ao proceder à movimentação da embarcação por razões logísticas, a existência de mais embalagens ocultadas na estrutura da embarcação, sob os painéis que cobriam a zona da proa, painéis esses que oscilavam por estarem mal fixados; a apreensão, que fizeram, de mais 221 embalagens, de aspeto absolutamente similar às 215 apreendidas no dia 16 de maio de 2022, contendo produto que, submetido a teste rápido, reagiu positivamente para canábis.
Relativamente à quantidade de canábis transportada pelos arguidos, estribou-se a convicção no teor dos relatórios dos exames de toxicologia de fls. 663 (atinente ao estupefaciente contido 215 embalagens apreendidas em 16 de maio de 2022) e de fls. 731 (respeitante ao estupefaciente acondicionado nas 221 embalagens apreendidas no dia 22 de julho de 2022), dos quais resulta, ainda:
- que a canábis apreendida na primeira data estava dividida em 1075 placas, tinha um peso líquido global de 106775,230 gramas e um grau de pureza de 27,5%; e,
- que a canábis apreendida na segunda data estava dividida em 1105 placas, sendo que 955, com um peso líquido global de 92280,500 gramas, apresentavam um grau de pureza de 24,5%, e as restantes 150, com um peso líquido global de 13990,000 gramas, tinham um grau de pureza de 24,3%.
No que se refere ao número de doses individuais que a canábis apreendida era suscetível de gerar, resulta da conjugação da quantidade de canábis e grau de pureza da mesma, apurado pelo Laboratório de Polícia Científica.
Com efeito, a Portaria nº 94/96, de 26/03, que de acordo com o seu preâmbulo, teve o propósito de viabilizar a realização da perícia médico-legal e do exame médico referidos nos artigos 52º e 43º do Decreto-Lei nº 15/93, determinou no seu artigo 9º que “Os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante”.
Nessa tabela e no que respeita à canábis (resina) é indicado o valor de 0,5 gr, tendo subjacente a “dose média diária com base na variação do conteúdo médio do THC existente nos produtos da Cannabis” e como referência “uma concentração média de 10% de A9THC”, conforme se encontra anotado nessa tabela.
Por sua vez e de acordo com o art. 10º, 1, da mesma Portaria, “Na realização do exame laboratorial referido nos nºs 1 e 2 do artigo 62º do Decreto-Lei nº 15/93, o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respetivo princípio ativo ou substância de referência”.
No caso em apreço, cada um dos relatórios dos exames laboratoriais em referência identifica a substância em causa, o seu peso líquido, e bem assim a concentração de A9THC, nos termos acima especificados, sendo por via destas que estabelece o número de doses que ali menciona: 587263, 452174 e 67991, num total de 1107428 doses.
Estando em causa prova pericial, o resultado de tais exames presume-se subtraído à livre convicção do julgador, devendo este fundamentar qualquer divergência desse juízo.
Dir-se-á, ainda, que a factualidade atinente ao elemento subjetivo, a que já supra fomos também fazendo referência, se infere da própria materialidade objetiva demonstrada, nos termos expostos, analisada à luz das regras da lógica e da experiência, da qual se infere, não se olvidando, conforme se disse, que ambos os arguidos reportaram saber serem proibidos a detenção e transporte, sem autorização, de canábis, bem como que esta tem natureza estupefaciente.
Termos em que, conjugada toda a prova supra especificada, se considerou demonstrada, especificamente, a factualidade vertida nos pontos 2., 3., 9. e 10..
No que concerne ao vertido no ponto 4., valorou-se o teor do documento constante de fls. 10, conjugado com as declarações prestadas pela arguida em todas as fases do processo (em sede de 1º interrogatório judicial, durante o inquérito, na instrução e na audiência de julgamento), sendo que, naquelas primeiras, confirmou especificamente que o sistema estaria desligado há 229 dias, tendo-o desligado em 29 de setembro de 2021, finda a época de cruzeiros nas Ilhas Baleares.
O consignado como demonstrado sob os pontos 5. e 6. fluiu do teor da prova documental constante dos autos, supra referida, mormente, do teor do auto de busca e apreensão de fls. 16 a 18, em conjugação com as declarações prestadas pela arguida (A), a qual admitiu ter na sua posse e serem de sua pertença aquelas quantias monetárias e os dois aparelhos de telemóvel, bem como o cartão SIM introduzido no interior do telemóvel da marca Xiaomi, modelo Redmi (….).
Na mesma prova documental, conjugada com as declarações prestadas pelo arguido (B) (que disse ser dono e ter na sua posse os dois aparelhos de telemóvel da marca Samsung, tendo a uso o de modelo Galaxy S10), se estribou a convicção do tribunal para consignação, como demonstrada, da factualidade constante do ponto 7..
No que respeita ao vertido no ponto 8. dos factos julgados provados, estribou-se a convicção do tribunal nas declarações prestadas pela arguida, que reportou tal materialidade, nos termos acima expostos.
A convicção sobre a ocorrência do vertido no ponto 11. dos factos julgados demonstrados (de que a arguida iria receber quantitativo pecuniário como contrapartida da prestação do serviço de transporte do produto estupefaciente apreendido nos autos) flui das declarações por ela prestadas em sede de audiência de julgamento – reproduzindo, nesta sede, aliás, o que já declarara nas duas fases processuais anteriores – e é conforme às regras da lógica e da experiência, não sendo de cogitar que a (A) aceitasse efetuar tal transporte, arriscando a sua liberdade por período nunca inferior a 4 anos, gratuitamente.
No que respeita ao vertido no ponto 12., flui tal factualidade dos documentos juntos pela arguida com a contestação que apresentou, constantes de fls. 890 e seguintes.
Os factos atinentes às condições pessoais e socioeconómicas de (A) (pontos 13. a 25.) fluíram da conjugação do teor das declarações prestadas pela arguida nesta sede (as quais se não revelaram inverosímeis nem foram contraditadas por qualquer outro meio probatório produzido na audiência de julgamento) com o teor do relatório social elaborado pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e junto aos autos a fls. 1124-verso a 1125- verso.
A ausência de averbamentos no Certificado do Registo Criminal da arguida (ponto 27.) resulta do teor deste documento, constante dos autos.
Por seu turno, a convicção sobre os factos relativos às condições pessoais e socioeconómicas de (B) (pontos 28. a 34.) fluiu da conjugação do teor das declarações prestadas por este em sede de audiência de julgamento, com o teor dos documentos por ele juntos em sede de contestação (fls. 971 e 975 a 977, traduzidos na língua portuguesa a fls. 1150 a 1153) e, ainda, com o teor do relatório social junto a fls. 1170 a 1172 [no qual, em rigor e contrariamente ao sustentado, em sede de alegações, pela defesa do arguido, se refere a factualidade que o mesmo viria a reportar nas declarações que produziu na audiência de julgamento na sessão de 07-11-2023].
Por fim, o consignado no ponto 35. dos factos julgados provados fluiu do teor do Certificado do Registo Criminal junto aos autos, estando a informação extraída do registo criminal da República Eslovaca traduzida para a língua portuguesa a fls. 1211.
Atentemos, agora, na factualidade consignada como não demonstrada.
Dir-se-á, desde logo que, da materialidade inserta na alínea a), nenhuma prova segura se fez.
Com efeito, seguro é que a embarcação “TEXAS T”, na qual os arguidos se fizeram transportar, tripulada por (A), saiu do porto desportivo de La Línea de La Concepción no dia 15 de maio de 2022, pelas 08:58 horas – vide a informação prestada pela Alcaidesa Marina a fls. 1158 e seguintes, traduzida para a língua portuguesa a fls. 1214 e seguintes, com especial destaque para o teor de fls. 1214 e 1216.
Seguro é que a versão apresentada pelo arguido (B), de que o veleiro tripulado por (A) teria saído do identificado porto, consigo no seu interior, apenas pelas 21:30 horas desse dia 15 de maio de 2022, é inverídica – não sendo de admitir, contrariamente ao por ele aventado, que a Alcaidesa Marina registasse umas entradas e/ou saídas das embarcações, e não registasse outras, aleatoriedade que se não coaduna, de todo em todo, com as responsabilidades inerentes a qualquer entidade gestora de um porto.
Todavia, em rigor, não foi possível apurar a trajetória do veleiro desde que saiu daquele identificado porto até ao local onde viria a ficar fundeado, a cerca de uma milha náutica a sul da marina de Vilamoura; nem a velocidade média imprimida à embarcação entre aqueles dois locais; nem o tempo em que o veleiro viajou à bolina e com recurso ào respetivo motor; nem a hora concreta a que ocorreu a avaria do motor da embarcação; menos ainda, a direção e velocidade do vento durante o tempo de viagem.
Nenhuma conclusão segura pode, pois, retirar-se, senão as supra mencionadas, não podendo afirmar-se que, quando a embarcação “TEXAS T” abandonou o porto de La Línea de La Concepción, no Reino de Espanha, o produto estupefaciente apreendido ainda não se encontrava no respetivo interior, tendo sido recolhido no Norte de África, conforme descrito na pronúncia, por remissão para a acusação. Igualmente, nenhum elemento de prova consente a afirmação de que a canábis se destinava a ser distribuída noutros países do continente europeu, para além de Portugal.
Impôs-se, pois, consignar tal acervo factualidade como não provado.
O facto julgado como não demonstrado constante na alínea b) flui, diretamente, do teor do documento junto a fls. 10, do qual resulta que o sistema estaria desligado há 229 dias.
Do teor do auto de busca e apreensão de fls. 16 a 18 flui não terem sido apreendidas, mormente a (A), quaisquer notas com o valor facial de 5,00€. Nenhuma prova consente, por outro lado, a afirmação de que as quantias monetárias apreendidas e os telemóveis descritos no ponto 6. dos factos julgados demonstrados estavam na posse do arguido (B) (factos que o mesmo negou, afirmando-se a arguida como sua dona e possuidora), resultando do teor do aludido auto que terão sido apreendidos, pela Polícia Judiciária, precisamente, a Yuliya Pilnenko.
Da mesma forma, a prova produzida não permite afirmar que os telemóveis descritos no ponto 7. dos factos julgados demonstrados também estivessem na posse da arguida (A) (o que a mesma negou), tendo sido, conforme flui do teor do mencionado auto de busca e apreensão, apreendidos a (B), que se afirmou como sendo deles dono e possuidor.
Impôs-se, assim, julgar conforme se fez sob as alíneas c. e d..
Também do consignado na alínea e. – factualidade que os arguidos negaram – nenhuma prova se fez, desconhecendo-se se tais telemóveis (o iPhone 10 da arguida e os dois Samsung do arguido) foram ou estivessem destinados a ser utilizados no estabelecimento de contacto entre os arguidos e outros indivíduos relacionados com a atividade do tráfico de estupefacientes, de entre os quais, clientes e fornecedores.
Identicamente, do conjunto da prova produzida, analisada à luz das regras da lógica e da experiência, não resulta, com segurança, que as quantias monetárias apreendidas se destinassem a custear as despesas da operação de transporte do produto apreendido e fossem provenientes de outras transações. Com efeito, a arguida, que se afirmou dona de tais quantias, reportou tratar-se de parte do produto do seu trabalho como skipper da embarcação “TEXAS T”, bem como que, no exercício da sua atividade profissional, afetava este veleiro à realização de cruzeiros pelas Ilhas de Ibiza e Formentera, auferindo, entre junho e setembro de cada ano, 6000,00€/semana. Ora, a quantia global de 1750,00€, apreendida, em 16 de maio de 2022, à arguida, correspondia a menos de 30% do quantitativo ganho por ela em apenas uma semana de trabalho, não sendo inverosímil que o quantitativo global auferido por Yuliya Pilnenko naqueles 4 meses de trabalho lhe permitisse viver sem sobressaltos durante todo o ano e que, em maio de 2022 ainda lhe restasse parte dos rendimentos recebidos até ao final de setembro de 2021. Note-se que o valor da renda da habitação da arguida ascendia, tão-só, ao quantitativo mensal de 550,00€; por outro lado, a arguida reportou – e a prova produzida não o desmente com a necessária segurança – estar na posse daquele quantitativo para assegurar o pagamento do combustível para a viagem e do valor diário do atracamento na marina de Vilamoura (ascendendo tal valor a cerca de 100,00€/dia, conforme disse); mais disse apenas ter procedido ao transporte em referência nos autos, não lhe tendo sido adiantadas quaisquer quantias pelo organizador do transporte – o que é possível, porém, não se considera comprovado; todavia, a sê-lo, tal esquema poderá ter sido utilizado como forma de testar o interesse e o comprometimento de Yuliya Pilnenko em ordem ao sucesso da operação.
Neste circunstancialismo, inexistindo prova positiva, segura, de que o valor proviera de outras transações (de produtos estupefacientes), impôs-se consignar como não demonstrada a factualidade constante da alínea f..
No que concerne ao consignado como não provado sob as alíneas g. e h., dir-se-á não ter o tribunal logrado convencer-se, sem margem para dúvidas, da ocorrência de tal factualidade. Por um lado, a afirmação de que a arguida agiu por extrema necessidade económica não se compatibilizar com o facto de a mesma auferir, conforme reportou em todas as fases processuais, 24000,00€/mês durante 4 meses em cada ano, notando-se que tal valor – 23 vezes superior ao valor do salário mínimo em Espanha em 2022, ascendente a 1000,00€ (cfr. informação disponível em fontes abertas, oficiais, na internet) –, face ao valor da renda suportada por Yuliya Pilnenko (de 550,00€/mês) e não lhe tendo sido apuradas outras despesas fixas, não poderia deixar de lhe garantir algum conforto; note-se que a arguida, nas declarações que prestou em sede de audiência de julgamento, referiu que, durante os meses de outubro a maio, também ia prestando serviços a terceiros, relacionados com os barcos, serviços esses que, naturalmente, seriam remunerados. Acresce que, nas declarações que prestou no decurso da audiência de julgamento, a arguida não confirmou que, durante todo o lapso temporal de março de 2020 a maio de 2022, sofreu uma redução nas receitas com a exploração do barco para viagens turísticas, tendo, outrossim declarado que nas Ilhas Baleares, mesmo no ano de 2020, durante a pandemia de Covid-19, foi autorizada a exercer a sua atividade, não sofrendo a atividade turística, naquela região, as mesmas restrições impostas no resto país (Espanha). O regime especial aplicado ao arquipélago espanhol das Baleares no ano em que se iniciou a pandemia (2020), autorizado pelo Governo Central, foi, aliás, profusamente divulgado, mesmo em publicações nacionais, noticiando-se que ali foi realizado um projeto piloto com cerca de 5000 turistas alemães que foram admitidos a entrar na região sem necessidade de cumprir a quarentena de 14 dias em vigor, tratando-se de uma medida para testar e dar confiança à retoma do setor turístico em Espanha. Igualmente, não logrou o tribunal convencer-se de que o transporte de estupefaciente em referência nos autos haja sido o único em que (A) participou (admitindo-se como possível que assim haja sucedido, mas não podendo afirmar-se tal facto com carácter de certeza até porque, conforme explanámos supra, evidencia-se que a arguida nem sempre declarou com verdade, sendo o expectável que não veiculasse já antes ter praticado ilícitos de similar natureza…); nem logrou o convencimento de que (A) haja aceitado efetuar o transporte da canábis apreendida nos autos com o fito de auxiliar familiares em Donetsk, Ucrânia, a fugirem da guerra e a refugiarem-se em Espanha. Não se questiona que, sendo natural de Donetsk, é possível e provável que a arguida tenha família na região; nem se põe em causa que, nesse circunstancialismo, (A) estivesse preocupada com a situação vivenciada e o risco corrido pelos familiares que, eventualmente, permanecessem na zona; o que sucede é que a região, em concreto, já vivenciava um contexto de conflito bélico desde há 8 anos, pelo que a justificação, avançada, da eclosão do conflito entre a República da Ucrânia e a Federação Russa não convence.
Impôs-se, assim, consignar como não demonstrada a factualidade em análise.
No que tange ao vertido em i., e pese embora a arguida, quer no decurso da audiência de julgamento, quer nas fases anteriores do processo, haja declarado que o valor que iria ser-lhe pago pelo transporte do estupefaciente ascendia a 13000,00€, não logrou o tribunal convencer-se de que assim sucederia, tudo apontando para que tal valor não corresponde, de todo em todo, àquele que, não fora o insucesso da operação, lhe teria sido pago como contrapartida do transporte, de Espanha para Portugal, por via marítima, dos 213045,73 gramas de canábis (resina), acordado. É que não se mostra credível que, por tal quantia, a arguida aceitasse correr o risco de fazer perigar a sua liberdade por um período de 4 a 12 anos de prisão; é que, note-se, a arguida ganhava, nas suas próprias palavras, cerca de 96000,00€ entre junho e setembro de cada ano, e 13000,00€ corresponde a pouco mais de metade do que ela auferia, nesses meses, por semana! Não teria, pois, (A) motivação, minimamente racional, para aceitar arriscar-se a um mínimo de 4 anos de clausura para receber o que normalmente receberia em pouco mais do que meia semana de trabalho, daí a 15 dias… nem para arriscar perder a embarcação por si usada como fonte de rendimentos lícitos, afetando-a ao transporte internacional de tão elevada quantidade de canábis. Motivo pelo qual ao tribunal se impôs consignar como não demonstrada tal factualidade.
No que tange ao vertido na alínea j., dir-se-á ter sido a arguida quem, espontaneamente, reportou ao tribunal que, em Espanha, vivia num arrendado pelo valor mensal de 550,00€, tendo celebrado um contrato com a duração de 11 meses, renovável. Ora, a arguida, conforme também reportou, é skipper profissional e dona do veleiro “TEXAS T”, afetando essa embarcação, no exercício da sua atividade profissional, à realização de passeios turísticos, organizando cruzeiros semanais à volta das Ilhas Baleares de Ibiza e Formentera durante os meses de junho, julho, agosto e setembro de cada ano, após o que, segundo a própria, deixa o veleiro atracado numa marina. Pela própria natureza da atividade que desenvolve profissionalmente, a arguida teria de pernoitar, durante os períodos em que decorriam os ditos cruzeiros semanais, no interior da aludida embarcação e, provavelmente, também ali tomaria refeições, o que, todavia, não faz da “TEXAS T” a residência habitual de (A), i.e., o local onde esta tinha instalado o seu domicílio pessoal.
Com efeito, o art. 82º do Código Civil estabelece, no seu nº 1, que a “A pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual; se residir alternadamente em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles”; e, no seu nº 2, preceitua que, “Na falta de residência habitual, considera-se domiciliada no lugar da sua residência ocasional ou, se esta não puder ser determinada, no lugar onde se encontrar”.
Ora, a arguida tinha a sua residência habitual (o lugar onde, com caráter de estabilidade, pernoitava, tomava refeições e convivia com a sua progenitora, com ela residente desde há cerca de 7 anos, quando se mudaram de Itália para Espanha) no arrendado aludido.
Entre junho e setembro, quando se encontrava a exercer a sua atividade profissional, a arguida pernoitaria na embarcação, tal como os seus clientes.
Tratava-se, pois, do seu domicílio profissional e, não, da sua residência habitual (quando muito, seria a sua residência ocasional, mantendo, todavia, a sua residência habitual). Tal como um médico não tem o seu domicílio pessoal instalado na unidade hospitalar onde pernoite sempre que está a assegurar o serviço de urgência que eventualmente possa surgir; tal como o empregado de uma farmácia de urgência não tem a sua residência habitual instalada no estabelecimento comercial onde durma durante o período noturno em que aí não acorram clientes para adquirir medicamentos; tal como o advogado não tem a sua residência habitual instalada no escritório quando nele pernoita e toma refeições sempre que carece de trabalhar durante mais longos períodos, mesmo durante parte da noite, a fim de elaborar as peças processuais que tem de apresentar em determinado prazo…
Tudo para concluir que, do conjunto da prova produzida, resultou não demonstrado que a arguida (A) tivesse a sua residência habitual instalada na embarcação “TEXAS T”, apreendida nos autos.
No que concerne ao consignado como não demonstrado sob a alínea k., assim se decidiu porquanto não foi produzida qualquer prova incidente sobre tal materialidade, comprovável, refira-se, desde logo, por documentos. Com efeito, as declarações de rendimentos juntas pela arguida com a sua contestação reportam-se aos anos de 2004 a 2012 e 2014; ora, (A) declarou, em sede de audiência de julgamento, que tinha a embarcação “TEXAS T” desde há 6/7 anos, donde, tê-la-ia adquirido após 2014, pelo que tais documentos, juntos pela arguida, não podem reportar-se aos rendimentos percebidos por ela no âmbito da atividade de exploração turística desse veleiro.
Impôs-se, pois, julgar a factualidade em apreço como não provada.
Por fim, o consignado como não demonstrado sob a alínea l. fluiu do teor do Certificado do Registo Criminal do arguido (B), assumindo-se que a beliscadura judicial a que este se reporta se refira à invocada, mas não comprovada, ausência de antecedentes criminais.
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Consigna-se que o tribunal:
 substituiu o termo “haxixe”, usado no 2º parágrafo da acusação para que expressamente remete a pronúncia, pela designação “canábis (resina)”, considerando ser essa substância - resina separada, em bruto ou purificada, obtida a partir da planta Cannabis – que consta da tabela I-C anexa ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, sendo o “haxixe” um termo cunhado para designar a canábis, precisamente, na sua forma resinosa; e
 eliminou a menção “com o intuito de obterem avultada compensação remuneratória”, por conclusiva, traduzindo uma valoração jurídica/a reprodução do elemento normativo do tipo de ilícito agravado p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 21º, 1 e 24º, c), ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, não estando, ademais, descritos na acusação, para que remete a pronúncia, quaisquer factos que sustentem, no domínio objetivo e/ou subjetivo, a conclusão/integração do elemento normativo do tipo.
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Consigna-se, por fim, que o depoimento prestado por (…..), amigo do arguido (B) desde há 13/14 anos, não pesou, particularmente, na formação da convicção do tribunal em qualquer sentido, evidenciando-se esta testemunha pouco informada acerca da situação pessoal do arguido (não sabendo, sequer, que o mesmo reside sozinho na cidade de Poprad, onde ambos vivem).

Qualificação jurídica:
Estabelecido o quadro factual, importa agora indagar da responsabilidade jurídicocriminal dos arguidos, aos quais está imputada a prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos arts. 21º, 1 e 24º, c), ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, por referência à tabela I-C a ele anexa.
Prescreve a primeira das invocadas normas que, “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Flui do preâmbulo do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01 que o escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição dos seres humanos, provocados pelo consumo de
estupefacientes, que o respetivo tráfico, inexoravelmente, potencia.
O bem jurídico primordialmente protegido pelas previsões incriminatórias do tráfico de estupefacientes é, pois, a saúde pública, em conjugação com a liberdade do cidadão, aqui se manifestando uma alusão implícita à dependência que a droga gera. Conforme pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de março de 2011 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 368/09.3GAABF.S1), “O custo social e económico do abuso de drogas é pois exorbitante em particular se atentarmos nos crimes e violências que origina e na erosão de valores que provoca. O escopo do legislador é evitar a degradação e destruição de seres humanos provocadas pelo consumo de estupefacientes que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia. O tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida; a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes e, demais, afecta a vida em sociedade na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos”.
Com relevo nesta sede, pode também ler-se, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de outubro de 2017 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 163/15.0JELSB.C1.S2) que “O bem jurídico que a proibição das acções tipificadas na norma do artigo 21º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro pretende salvaguardar é a indemnidade ou protecção da saúde pública, pela nocividade que as substâncias elencadas nas tabelas anexas são susceptíveis de provocar no equilíbrio físicopsíquico dos indivíduos e reflexamente, na comunidade onde esses indivíduos se integram incubadora dos malefícios induzidos por comportamentos desviados dos padrões comummente aceites e tidos por relevantes pelo legislador penal. A incriminação jurídico-penal dos comportamentos decorrentes da detenção, compra, venda (…) de estupefacientes, decorre da indicação feita pela Organização Mundial de Saúde do que se pode entender por droga. Para esta entidade por droga deve entender-se toda a substância, natural ou sintética, cujo consumo repetido, em doses diversas, provoca nas pessoas: 1º o desejo opressivo «abrumador» ou a necessidade de continuar o consumindo-a (dependência psíquica); 2º a tendência a aumentar a dose (tolerância) e 3º a dependência física ou orgânica dos efeitos da substância que torna verdadeiramente necessário o seu uso prolongado, para evitar a síndrome da abstinência” [Cfr. Francisco Muñoz Conde, Derecho Penal – parte especial, Tirant lo Blanch, Valência, 2001, p. 629]”.
Conforme é entendimento uniforme da jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, o crime de tráfico de estupefacientes, em qualquer das suas modalidades, é um crime que se enquadra na categoria dos crimes de perigo abstrato: aqueles que não pressupõem nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da ação para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a um desses bens jurídicos.
“O perigo presumido envolve-se na mera comprovação da detenção de uma determinada quantidade de substância tóxica, independentemente da real demonstração do perigo, ou o que dá no mesmo, da intenção de transmiti-la.
Cada uma das atividades previstas no preceito, sem mais, é dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objetivo do crime.
Por ser um crime de perigo abstrato ou presumido, não se exige para a sua consumação a verificação de um dano real e efetivo; o crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido (a saúde pública na dupla vertente física e moral), como se refere nos acórdãos do STJ de 12-02-1986, BMJ nº 354, pág. 331; de 30-04-1986, BMJ nº 356, pág. 166; de 23-09-1992, BMJ nº 419, pág. 464; de 24-11-1999, processo nº 1029/99, BMJ nº 491, pág. 88; de 01-07-2004, processo nº 2035/04-5ª Secção, in CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 239; de 04-10-2006, processo nº 2549/06-3ª Secção; de 11-10-2006, processo nº 3040/06 - 3ª Secção; de 12-04-2007, processo nº 1917/06-5ª Secção; de 19-04-2007, processo nº 449/07 - 5.ª Secção.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 05-11.2009 [proferido no Processo nº 418/07.8PSBCL-A.S1- 5ª Secção, Cons. Santos Carvalho, disponível in www.dgsi.pt] «Não é necessário que se prove a venda ou a cedência a outrem para haver crime de tráfico».
No sentido de que basta a simples detenção ilícita do estupefaciente para o preenchimento do tipo legal de tráfico de estupefacientes, pronunciaram-se, inter altera, os acórdãos do STJ de 12-02-1986, BMJ nº 354, pág. 331; de 30-04-1986, BMJ nº 356, pág. 166; de 24-11-1999, BMJ nº 491, pág. 88; de 08-06-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 239; de 04-10-2006, processo nº 2549/06-3ª Secção; de 08-02-2007, processo nº 4460/07-5ª Secção; de 19-04-2007, processo nº 449/07-5ª Secção; de 28-11-2007, processo nº 3253/07; de 03-09-2008, processo nº 2192/08 e de 22-10-2008, processo nº 215/08.
Tem-se entendido que a natureza do crime p. e p. pelo artigo 21º referido, enquanto crime de perigo abstracto, se traduz numa antecipação da tutela penal, independentemente da efetiva lesão do bem jurídico em causa, a saúde pública, antecipação consubstanciada na punição dos primeiros atos de execução do agente, sem se exigir, para preenchimento do tipo, o desenvolvimento da ação projetada por esse mesmo agente” – vide, por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de junho de 2022, proferido no processo nº 134/17.2GAPFR.P1, disponível em www.dgsi.pt.
A propósito dos crimes de perigo, refere, precisamente, Faria Costa (in O perigo em Direito Penal, 1992, p. 620) que “os crimes de perigo concreto representam a figura do ilícito típico em que o perigo é, justamente, elemento desse mesmo ilícito típico, enquanto nos crimes de perigo abstracto o perigo não é elemento do tipo, mas tão só motivação do legislador”.
Para que se mostre preenchido o tipo legal de tráfico, basta que o agente, sem para tal estar habilitado, compre, venda, transporte, ceda ou detenha um produto estupefaciente (constante das tabelas I a III anexas ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01), ainda que não se demonstrem atos efetivos de comércio ou cedência de produto estupefaciente, desde que não se destine na totalidade ao consumo pessoal do agente.
Assim, para que o agente pratique o crime de tráfico do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, embora não se exija a intenção lucrativa, não pode o produto estupefaciente ser destinado exclusivamente ao seu uso pessoal, caso em que, se for esta a finalidade, se exclui a aplicação do artigo 21º, havendo lugar à aplicação do regime previsto para o consumo – cfr. desde a entrada em vigor da Lei nº 55/2023, de 08/09, os arts. 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01 e 2º da Lei nº 30/2000, de 29/11.
O tráfico de estupefacientes tem sido englobado, ainda, na categoria do “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido”, que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único ato conducente ao resultado previsto no tipo.
“Dito de outra forma, o resultado típico alcança-se logo com aquilo que surge por regra como realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de atuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente ao consumo. A previsão molda-se, na verdade, em termos de uma certa progressividade, no conjunto dos diferentes comportamentos contemplados na norma, que podem ir de uma mera detenção à venda propriamente dita.
A consumação verifica-se com a comissão de um só ato de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente. Ou seja, o resultado típico obtém-se logo pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que a continuação da mesma, mesmo que com propósitos diversos do originário, não se traduz necessariamente na comissão de novas violações do respetivo tipo legal.
Como se refere no Ac. do STJ de 29-06-1994 [publicado na CJSTJ 1994, tomo 2, pág. 258] «o crime de tráfico de estupefacientes é “crime de trato sucessivo, em que até a mera detenção da droga é já punida como crime consumado, dada a sua vocação (é um crime de perigo presumido) para ser transacionada»” - cfr. o já citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de junho 2022.
O perigo presumido envolve-se, pois, na mera comprovação da detenção de uma determinada quantidade de substância tóxica, independentemente da real demonstração do perigo, ou o que dá no mesmo, da intenção de transmiti-la. Cada uma das atividades previstas no preceito, sem mais, é dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objetivo do crime.
Sobre esta categoria de crime, versando antecipação da tutela penal e defendendo uma conceção ampla de tráfico, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 262/2001, de 30 de Maio de 2001, proferido no processo nº 274/2001, 2ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, nº 165, de 18 de Julho de 2001, em que estava em causa a inconstitucionalidade da dimensão normativa do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, apreciando recurso interposto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Março de 2001, proferido no recurso nº 101/01, publicado na CJSTJ 2001, tomo 1, págs. 237/239, entendendo que o crime em questão não admite a tentativa, por violação do princípio da legalidade penal e do artigo 32º da Constituição.
Aí pode ler-se: “A intervenção penal não tem de acontecer apenas nas situações em que o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é efectivamente lesado pela conduta proibida.
Em várias situações o legislador procede a uma antecipação da tutela penal, punindo comportamentos que ainda não lesaram efectivamente esse bem jurídico. Tal acontece, quando o comportamento em questão apresenta uma especial perigosidade para bens jurídicos essenciais à subsistência da própria sociedade, sendo, por essa via, legitimada aquela antecipação” (…) O preceito incriminador define o tráfico de substâncias proibidas por uma série de condutas conducentes à efectiva transmissão da substância. Assim, qualquer um dos comportamentos previstos implica a consumação do crime. Subjacente a esta concepção está o cariz particularmente perigoso das actividades em questão e a ideia do tráfico como processo e não tanto como resultado de um processo. As consequências pessoais e sociais do tráfico de droga justificam plenamente uma intervenção penal preventiva sobre o processo que conduz a tais consequências, abrangendo várias actividades relacionadas com a actuação no mercado onde a droga se transacciona. O preceito encontra o seu fundamento na particular perigosidade das condutas que justifica uma concepção ampla de tráfico, desligada da obtenção do resultado da transacção. Porque se trata de condutas que concretizam de modo particularmente intenso o perigo inerente à actividade relacionada com o fornecimento de estupefacientes, o legislador antecipa a tutela penal relativamente ao momento da transacção”.
E finaliza o Acórdão do modo seguinte: “A não punição da tentativa tem por justificação o facto de este crime não ser um crime de dano nem de resultado efectivo. Assim, a não punição de tentativa é apenas consequência de não se pretender antecipar mais a tutela penal já suficientemente antecipada na descrição típica”, concluindo pela não violação de qualquer disposição constitucional.
O crime de tráfico de estupefacientes, não só pelas proporções que assumiu, mas também pelas dificuldades crescentes de investigação e combate e, principalmente, pela danosidade individual e social que inevitavelmente causa, justifica, por parte da lei penal, uma reação particularmente gravosa, que se extrai, desde logo, das penalidades previstas para este tipo de criminalidade.
Todavia, tendo em consideração a variedade das condutas, propósitos e motivações em que tal atividade é desenvolvida por um elevado número de pessoas, a lei tipifica os crimes ligados ao consumo e tráfico de estupefacientes segundo um critério de maior ou menor grau de ilicitude do facto e da culpa do agente.
O tipo matricial ou tipo-base do crime de tráfico é o do art. 21º, 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01 – tipo esse que corresponde aos casos de tráfico normal e que, pela amplitude da respetiva moldura penal – 4 a 12 anos de prisão – abrange os casos mais variados de tráfico de estupefacientes, considerados dentro de uma gravidade mínima, mas já suficientemente acentuada para caber no âmbito do padrão de ilicitude requerido pelo tipo, cujo limite inferior da pena aplicável é indiciador dessa gravidade, e de uma gravidade máxima, correspondente a um grau de ilicitude muito elevada – tão elevada que justifique a pena de 12 anos de prisão.
Os casos excecionalmente graves estão previstos no art. 24º, pela indicação taxativa das várias circunstâncias agravantes que se estendem pelas diversas alíneas do art. 24º, enquanto que os casos de considerável diminuição da ilicitude estão previstos no art. 25º, aqui por enumeração exemplificativa de algumas circunstâncias que, fazendo baixar a ilicitude para um limiar inferior ao requerido pelo tipo-base, não justificam (desde logo por não respeitar o princípio da proporcionalidade derivado do art. 18º da Lei Fundamental) a grave penalidade prevista na moldura penal estabelecida para o tráfico normal.
Por conseguinte, a grande generalidade do tráfico de estupefacientes caberá dentro das amplas fronteiras do tipo matricial; os casos de gravidade consideravelmente diminuída (pequeno tráfico) serão subsumidos no tipo privilegiado do art. 25º e os casos de excecional gravidade serão agravados de acordo com as circunstâncias agravantes do art. 24º. Este último normativo rege para situações que desbordam francamente, pela sua gravidade, do vasto campo dos casos que se acolhem à previsão do art. 21º e que ofendem já de forma grave ou muito grave os bens jurídicos protegidos com a incriminação – bens jurídicos variados, como vimos, de carácter pessoal, mas todos eles reconduzíveis ao bem jurídico mais geral da saúde pública.
É isso que pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de janeiro de 2020 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 23/17.0PEBJA.S1), onde se refere que “O artigo 21º é a norma referência a partir da qual se constroem as figuras dos artigos 24º, 25º, 26º e 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro. Como vem entendendo este Supremo Tribunal de Justiça, quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e um tipo agravado, é no crime simples ou no crime tipo que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta.
Depois, nos tipos privilegiado e qualificado, vem definir os elementos atenuativos ou agravativos que modificam o tipo base conduzindo a outros quadros punitivos. E só a verificação afirmativa, positiva desses elementos atenuativo ou agravativo é que permite o abandono do tipo simples. Assim foi entendido nos acórdãos de 23-11-2000, proferido no processo nº 2766/00, de 22-02-2001, processo nº 4129/00, de 25-01-2001, processos nº 3710/00 e nº 3557/00, de 18-10-2001, processo nº 1188/01, de 23-05-2002, processo nº 1687/02 e de 24-10-2002, processo nº 3211/02”.
Conforme se expendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de maio de 2005 (proferido no processo nº 3438/05-3ª Secção, citado no Acórdão do mesmo Tribunal de 15 de janeiro de 2020, já referido), o tipo desenhado no artigo 24º com o aditamento de circunstâncias atinentes à ilicitude que agravam a pena prevista para o crime fundamental destina-se a prevenir os casos de excecional gravidade.
Também ao nível da doutrina, no Comentário das Leis Penais Extravagantes, volume II, Universidade Católica Editora, Lisboa 2011, de Paulo Pinto Albuquerque e José Branco (Org.), versando o Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, Pedro Patto, comentando o art. 24º, no ponto 2, p. 500, refere: “Na interpretação deste preceito, e das suas várias alíneas, deve partir-se do pressuposto de que estamos perante um crime de gravidade excepcional e extraordinariamente elevada, substancialmente mais elevada do que aquela (já de si elevada) que corresponde ao tipo base do artigo 21º. Só dessa forma poderá ser respeitada a proporcionalidade entre a gravidade do crime e a gravidade das penas aqui previstas”.
Neste sentido se pronunciou igualmente o Supremo Tribunal de Justiça no seu aresto de 13 de setembro de 2018 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 184/17.9JELSB.L1.S1), onde pode ler-se: “Acentue-se porém que, para merecer essa integração, a ação terá de revestir-se de um grau de ilicitude proporcional à medida da pena correspondente ao crime agravado”.
Importa, in casu, atentar no estabelecido na alínea c) do art. 24º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, onde se prescreve que “As penas previstas nos artigos 21º e 22º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se: (…) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória”.
Sobre esta circunstância agravante pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 04 de maio de 2005 (Proc. nº 1263-05 - 3ª Secção, publicado nos Sumários de Acórdãos do STJ, nº 91, p. 122 e citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-11-2009, disponível em www.dgsi.pt, processo nº 2/04.8GDPNF.G1), nos seguintes termos: “(…) A agravação supõe, pois, uma exasperação do grau de ilicitude já definido e delimitado na muito ampla dimensão dos tipos base - os artigos 21º, 22º e 23º do referido Decreto-Lei, e consequentemente, uma dimensão que, moldada pelos elementos específicos da descrição das circunstâncias, revele um quid específico que introduza uma medida especialmente forte do grau de ilicitude que ultrapasse consideravelmente o círculo base das descrições-tipo. A forma agravada há-de ter, assim, uma dimensão que, segundo considerações objectivas, extravase o modelo, o espaço e o grau de ilicitude própria dos tipos base. (…) O crime base do artigo 21º está projectado para assumir a função típica de acolhimento dos casos de tráfico de média e grande dimensão, tanto pela larga descrição das variadas acções típicas, como pela amplitude dos limites da moldura penal, que indiciam a susceptibilidade de aplicação a todas as situações, graves e mesmo muito graves, de crimes de tráfico. As circunstâncias – e especificamente, no caso, a da alínea c) do artigo 24º – não podem deixar de ser integradas, especialmente nos espaços de indeterminação, por considerações de gravidade exponencial de condutas que traduzam marcadamente um plus de ilicitude. Mas, nesta perspectiva, a «elevada compensação remuneratória» que o agente obteve ou procurava obter, tem de se revelar da ordem de grandeza que se afaste, manifestamente e segundo parâmetros objectivos, das projecções do crime base, uma vez que em todos os tráficos – é da ordem das verificações empíricas e da sociologia ambiencial da actividade – os agentes procuram obter os ganhos (compensações remuneratórias) que a actividade lhes possa proporcionar – e, por isso, também já a previsão de acentuada gravidade da moldura do artigo 21º. A elevada compensação remuneratória, como circunstância que exaspera a ilicitude, tem de apresentar uma projecção de especial saliência, avaliada por elementos objectivos que revertem, necessariamente, à intensidade (mais que à duração) da actividade, conjugada com as quantidades de produto e montantes envolvidos nos «negócios» – o que aponta para operações ou «negócios» de grande tráfico, longe, por regra, das configurações da escala de base típicas ou do médio tráfico de distribuição intermédia. Têm de estar em causa ordens de valoração económica próprias dos grandes tráficos, das redes de importação e comercialização e da grande distribuição, ou alguma intervenção que, mesmo ocasional, mas directamente conformadora ou decisivamente relevante, seja determinada a obter ou produza uma compensação muito relevante, mas em que, pela ocasionalidade da intervenção, os riscos de detecção são menores, com a consequente maior saliência da ilicitude”.
E lê-se no referido Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16 de novembro de 2009, citando outros arestos do nosso Supremo Tribunal, que “Já antes deste aresto, vários acórdãos deste STJ propendiam para uma interpretação idêntica do art. 24º. Assim, por exemplo, no acórdão de 02-12-98, Proc. nº 758/98, relatado pelo Conselheiro Virgílio Oliveira, considerava-se o seguinte:
- A referência, na decisão de facto, a «avultadas quantias em dinheiro» contém já em si mesma uma apreciação valorativa, que incumbe fazer apenas na decisão de direito, devendo proceder-se como se tal expressão não estivesse além escrita. De igual modo, também não influi na decisão da causa a afirmação, em sede de matéria de facto, de que o arguido «adquiriu grandes quantidades de heroína e cocaína», uma vez que se trata de mera valoração, não coincidente com a concretização que a seguir se faz em termos de quantidades.
- No âmbito dos negócios sobre estupefacientes, um milhão de escudos não pode ser havida como quantia avultada, denunciadora do grau de gravidade máximo pressuposto pelo art. 24º do DL 15/93, de 22/01.
- Não se pode medir a «avultada compensação» por recurso às regras constantes do art. 202º do CP, pois as realidades não são comparáveis; no entanto, em princípio, a «avultada compensação» é formulação legislativa que indica valores superiores aos daquele normativo legal.
A jurisprudência do STJ, pelo menos de há uns anos para cá, tem-se orientado pelo mesmo grau de exigência, podendo citar-se, a título de exemplo, os acórdãos de 08-02-2006, Proc. nº 2988/05 e de 15-03-2006, Proc. nº 4421/05, ambos da 3ª Secção e os acórdãos de 30-11-2006, Proc. nº 2793/06 (relatado pelo presente relator), de 24-10-2006, Proc. nº 3163/06 e de 15-03-2007, Proc. nº 648/07, todos da 5ª Secção. (…)”.
Dúvidas deverão inexistir de que “a «avultada compensação remuneratória a que alude o art. 24º, al. c) do DL 15/93, de 22-01 é apenas a pretendida obter (ou efectivamente obtida) pelo agente em causa, não abarcando a compensação visada ou obtida por terceiros” - cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05 de março de 2013 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 1/12.5JELSB.E1).
Considerando que a negligência não se encontra expressamente prevista (cfr. art. 13º do Código Penal), o crime de tráfico de estupefacientes é um crime doloso, admitindo-se qualquer das modalidades desta forma de culpa – art. 14º do mesmo compêndio legal.
Assim, ao nível do elemento subjetivo, exige-se, para o respetivo preenchimento, no tipo matricial p. e p. pelo art. 21º, 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, que o agente represente e conheça a natureza e características estupefacientes dos produtos objeto da ação, atuando, conhecedor da ilicitude da sua conduta, com intenção de realizar uma daquelas atividades descritas no tipo, sabendo não estar autorizado para tanto.
Estando em causa um crime de perigo abstrato, é exigível o dolo de perigo, ou seja, a consciência da perigosidade da conduta em abstrato - neste sentido, Pedro Patto, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume 2, Organização de Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco, Universidade Católica Editora, janeiro de 2011, anotação 9 ao art. 21º, pp. 490/491.
Para que possam operar as qualificativas previstas no art. 24º, torna-se necessário que o dolo abranja, no domínio da representação e vontade do agente, as circunstâncias que qualificam o crime matricial. O mesmo é dizer que o tipo subjetivo, à semelhança do crime base, exige o dolo, em quaisquer das suas modalidades, devendo, assim, o agente representar que está a praticar factos que integram as circunstâncias agravantes e querer praticar tais factos ou, pelo menos, tê-los por necessários ou conformar-se com a sua ocorrência.
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Configura o crime de tráfico de estupefacientes (no seu tipo matricial, agravado ou privilegiado) um crime de comparticipação eventual, tendo aplicação o disposto no art. 26º do Código Penal, segundo o qual “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
Admite, igualmente, a participação de um agente como cúmplice, sendo este, nos termos previstos no nº 1 do art. 27º do Código Penal “Quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso”.
Em face da redação dos transcritos preceitos legais, tem-se assinalado que a lei, autonomizando a autoria da mera cumplicidade, parte de um conceito “restritivo de autoria, segundo o qual é autor o agente que toma a execução «nas suas próprias mãos», de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da realização típica”, constando-se que “o autor não só tem o domínio objetivo do facto, como tem também a vontade de o dominar, numa unidade de sentido objetiva-subjetiva: o facto aparece «numa sua vertente como obra de uma vontade que dirige o acontecimento, noutra vertente como fruto de uma contribuição para o acontecimento dotada de um determinado peso e significado» objetivo” – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal: Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2007, pp. 765 e 766; Jorge de Figueiredo Dias e Susana Aires de Sousa, Autoria mediata do crime de condução ilegal de veículo automóvel: anotação ao Acórdão da Relação do Porto de 24 de novembro de 2004, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Coimbra Editora, Ano 135º, março-abril de 2006, pp. 254 e 255).
Trata-se da chamada teoria do domínio do facto.
Ora - e muito especialmente nos crimes dolosos de ação - “o domínio do facto pode exercer-se de diferentes formas e fundar, por conseguinte, diferentes modalidades da autoria, concretizadas no artigo 26.º: o domínio da ação está presente na autoria imediata, na medida em que o agente realiza, ele próprio, a ação típica (1ª alternativa); o domínio da vontade do executante de quem o agente se serve para a realização típica firma a autoria mediata (2ª alternativa); o domínio funcional do facto constitui o sinal próprio da coautoria, em que o agente decide e executa o facto em conjunto com outros (3ª alternativa)”; e, por fim, “na sua quarta alternativa, o artigo 26.º pune ainda como autor «quem dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”, isto é, quem seja instigador do crime” (Jorge de Figueiredo Dias e Susana Aires de Sousa, ob. cit., p. 255).
Uma das modalidades ou formas em que se manifesta o domínio do facto (o mesmo é dizer a autoria) é, pois, a coautoria.
Efetivamente, nos termos do art. 26º do Código Penal, deve ser punido (igualmente) como autor quem “tomar parte direta na sua (do facto) execução, por acordo ou conjuntamente com outro ou outros”. Há, aqui, um “condomínio do facto”, marcado quer pela decisão conjunta, quer pela execução conjunta (enquanto contribuição funcional de cada coautor para a realização típica”. De modo que a atuação de cada coautor se apresenta como “momento essencial do plano comum”, “constitui a realização da tarefa que lhe cabe na «divisão do trabalho»” para a realização do crime (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 791).
Relativamente ao momento subjetivo da coautoria, à “decisão conjunta” de que fala a lei, basta a “existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime” (José de Faria Costa, Formas do Crime, in Jornadas de Direito Criminal do Centro de Estudos Judiciários, p. 170), que na sua forma mais nítida assume a forma de acordo prévio (que, no entanto, pode ser tácito, desde que manifestado em factos concludentes). Contudo, não se basta a lei com um qualquer acordo ― embora ele tenha sempre de existir ― até porque entre o mero cúmplice e o autor também há, em regra, um acordo: é necessário que fique demonstrado que todos os coautores têm, desde o início, desde o momento da decisão conjunta, o domínio do processo causal que conduz à realização do tipo, de tal modo que o contributo de cada um surja como uma parte da atividade total, como um complemento (programado) das ações dos demais coautores (neste exato sentido, Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 791 a 794).
À decisão conjunta deve acresce a “execução conjunta”, isto é, cada coautor deverá prestar uma contribuição objetiva para a realização típica, um efetivo exercício conjunto do domínio do facto.
Há, pois, uma combinação entre o domínio do facto com a “repartição de tarefas que assinala a cada comparticipante contributos para o facto que, podendo situar-se fora do tipo legal de crime, tornam a execução do facto dependente daquela mesma repartição”. De tal modo que de cada contributo objetivo depende o se e o como da realização típica, mas bastando que o agente coloque à disposição ou ofereça os meios de realização (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 794 e 795).
Ainda a propósito da figura da comparticipação podem ler-se, com interesse, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de março de 2011 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 368/09.3GAABF.S1), as seguintes considerações, aí sumariadas:
“(…) XVIII - O facto aparece, assim, como a obra de uma vontade que se dirige para a produção de um resultado. Porém, não só é determinante para a autoria a vontade de direcção, mas também a importância objectiva da parte do facto assumida por cada interveniente. Daí resulta que só possa ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição objectiva, comparte o domínio do curso do facto.
XIX - A co-autoria consiste numa «divisão de trabalho» que torna possível o facto ou que facilita o risco. Requer, no aspecto subjectivo que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como co-titular da responsabilidade pela execução de todo o processo. A resolução comum de realizar o facto é o elo que une num todo as diferentes partes.
XX - No aspecto objectivo, a contribuição de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional).
XXI - O necessário subjectivo da co-autoria é a resolução comum de realizar o facto. Unicamente através da mesma se justifica a imputação recíproca de contribuições fácticas. Não basta um consentimento unilateral, senão que devem «actuar todos em cooperação consciente e querida». Um acordo de vontades em que se fixa a distribuição de funções graças à qual deve obter-se, com as forças unidas, o resultado perseguido em comum. Aliás, a forma como se faz a repartição de papéis deverá revelar que a responsabilidade pela execução do facto impende sobre todos os intervenientes.
XXII - Sublinhe-se que, na distinção entre a autoria singular imediata e a co-autoria, o autor singular executa o facto por si mesmo, enquanto o co-autor toma parte directa na sua execução - e fá-lo por acordo ou juntamente com outro ou outros.
XXIII - Na co-autoria não precisa cada um dos agentes de realizar totalmente o facto correspondente à norma penal violada, podendo executá-lo só parcialmente. Na co-autoria várias pessoas dividem as tarefas e na fase executiva cada uma presta a sua contribuição para o êxito do plano comum.
XXIV - Por outro lado, para caracterizar a decisão conjunta não parece bastar a existência de um qualquer acordo entre os comparticipantes - acordo que em regra existe também entre o autor e o cúmplice, - exigindo uns que todos os co-autores tenham uma «incondicional vontade de realização do tipo»; - impondo outros que o papel desempenhado por cada um revele objectivamente a sua participação no domínio do facto. Deste último ponto de vista, o essencial residirá então no segundo requisito da autoria: o exercício conjunto do domínio (funcional) do facto. Um domínio funcional do facto que existirá quando o contributo do agente - segundo o plano de conjunto - põe, no estádio da execução, um pressuposto indispensável à realização do evento intentado, quando, assim, «todo o empreendimento resulta ou falha». Em resumo, é indispensável uma decisão conjunta e uma execução conjunta da decisão. O acordo entre os agentes pode ser expresso ou tácito, prévio ou não à execução do facto.
XXV - O STJ tem, desde há muito, consagrado a tese segundo a qual, para a co-autoria, não é indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os actos para obtenção do resultado pretendido, já que basta que a actuação de cada um, embora parcial, seja um elemento componente do todo indispensável à sua produção. A decisão conjunta pressupondo um acordo, que, sendo necessariamente prévio, pode ser tácito, pode bastar-se com a existência da consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo legal de crime (a consciência e vontade unilateral de colaboração poderão integrar uma autoria paralela) (…)”.
Para Faria Costa (in Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, p. 170), “Desde que se verifique uma decisão conjunta (“por acordo ou juntamente com outro ou outros”) e uma execução também conjunta estaremos caídos na figura jurídica da coautoria (“toma parte direta na sua execução”). Todavia, para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime juntamente com outro ou outros. É evidente que na sua forma mais nítida tem de existir um verdadeiro acordo prévio – podendo mesmo ser tácito – que tem igualmente que se traduzir numa contribuição objetiva conjunta para a realização típica. Do mesmo modo que, em princípio, cada coautor é responsável como se fosse autor singular da respetiva realização típica (…)”.
Cada coautor é, pois, senhor de todo o facto (delimitado em função do plano criminoso comum e integrado, portanto, pelos contributos de todos os coautores), porque tendo tomado sobre si, na repartição de tarefas que acordou com os restantes, a incumbência de vir a desempenhar, na fase executiva, um função essencial (ou seja: uma tarefa indefetível para a realização do plano comum à execução do facto), ele tem nas mãos o poder de impedir, através da simples omissão do contributo prometido que o plano comum se realize. Como este poder cabe a cada a cada um dos coautores, eles são contitulares do domínio de todo o facto.
Em suma, cremos que se pode sustentar que a doutrina e a jurisprudência largamente dominantes no nosso ordenamento jurídico consideram como elementos da comparticipação criminosa sob a forma de coautoria os seguintes:
- a intervenção direta na fase de execução do crime (execução conjunta do facto);
- o acordo para a realização conjunta do facto, acordo que: não pressupõe a participação de todos na elaboração do plano comum de execução do facto; não tem de ser expresso, podendo manifestar-se através de qualquer comportamento concludente; e não tem de ser prévio ao início da prestação do contributo do respetivo coautor (o acordo dos coautores verifica-se em regra antes do início da execução do facto; todavia, pode alguém tornar-se coautor durante a realização do facto, até à sua consumação); e,
- o domínio funcional do facto, no sentido de deter e exercer o domínio positivo do facto típico, ou seja, o domínio da sua função, do seu contributo na realização do tipo, de tal forma que, numa perspetiva ex ante, a omissão do seu contributo impediria a realização do facto típico na forma planeada
Diverge da figura do (co)autor a do cúmplice.
Na cumplicidade, como já foi referido, pune-se (ainda que de modo mais leve, pois a pena é especialmente atenuada) o simples “prestar dolosamente auxílio, material ou moral, à prática por outrem de facto doloso”.
Da mera redação legal se vê que, ao contrário de qualquer das formas de autoria em que o agente detém, sozinho ou conjuntamente com outros, o domínio do facto, a cumplicidade experimenta uma subalternização face à autoria, porquanto o cúmplice presta um simples auxílio à prática do crime. Ela constitui uma “colaboração no facto do autor e, por conseguinte, a sua punibilidade supõe a existência de um facto principal (doloso) cometido pelo autor”, falando-se, em termos doutrinais na “acessoriedade da participação” (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., 824).
O cúmplice não é, pois, autor, “não comete por qualquer forma o delito, não pratica a ação típica e o seu comportamento não está, consequentemente, abrangido pelas previsões da parte especial do Código Penal”, antes se assumindo o art. 27º do Código Penal, “ao punir a cumplicidade”, como uma “extensão ou um alargamento da punibilidade a formas de comportamento que, sem ele, não seriam puníveis” (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 824).
Essencial à punição, é que o cúmplice preste auxílio, material ou moral.
Na verdade, como em certa medida já deixamos dito, o fundamento principal da punição do cúmplice reside no contributo que o seu comportamento “oferece para a realização pelo autor de um facto ilícito-típico” e, portanto, pune-se o cúmplice porque “participa no ilícito-típico do autor” (embora, secundariamente, se tenha presente que o comportamento do cúmplice representa, “em si mesmo, um ataque a um bem jurídico”) (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 826 e 827).
Fala-se, mesmo, que o facto do cúmplice é acessório e dependente do facto principal, o que implica que:
- a cumplicidade só seja punida na medida em que efetivamente exista um facto principal (do autor) que seja, objetiva e subjetivamente, ilícito e típico (excluindo-se aqui considerações relativas à culpa ou às condições objetivas de punibilidade);
- a cumplicidade é punida desde que o facto principal atinja o estádio da tentativa (haja execução ou começo de execução) e ainda naquelas situações em que a lei pune os simples atos preparatórios; e
- a cumplicidade só será relevante (e punida enquanto tal) se o facto do autor não estiver completamente realizado, inexistindo uma “cumplicidade ex post facto”, embora nos crimes duradouros ou de execução permanente ou continuada possa existir cumplicidade quando a conduta do cúmplice se iniciou já depois do crime formalmente se ter consumado.
Faz-se notar que o comportamento do cúmplice só é punido se prestar auxílio doloso a facto doloso.
Importa, em todo o caso, acentuar que é necessário que o cúmplice conheça a “dimensão essencial do ilícito típico a praticar pelo autor”, mas a “cumplicidade deverá ser ainda admitida quando o cúmplice desconheça ou não conheça exatamente as circunstâncias concretas em que vai desenvolver-se o ilícito-típico do autor” (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 834).
Por fim, o cúmplice terá de prestar auxílio material ou moral, revelando-se necessário, portanto, que o cúmplice favoreça, aumente as possibilidades de realização da conduta do autor, não sendo necessário que esta fique dependente do cúmplice, podendo este favorecimento resultar do simples prestar informações – vide, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de agosto de 2018 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 5/16.0GAAMT.S1).
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Feitas estas considerações, revertamos ao caso concreto.
Resultou provado nos autos que, no dia 16 de maio de 2022, pelas 13:20 horas, a cerca de uma milha náutica a sul da marina de Vilamoura, no concelho de Loulé, nas coordenadas WGS 84 37º03.469N -008º07.335W, os arguidos (A) e (B) faziam-se transportar na embarcação de recreio denominada “TEXAS T”, com o número de registo 907021 no porto de Jersey, de pavilhão inglês, sendo os únicos ocupantes da aludida embarcação e, a arguida, a comandante da mesma.
Mais se apurou que, no interior da embarcação, os arguidos transportavam um total de 436 embalagens de canábis (resina), contendo no seu interior:
- 1075 placas de canábis (resina) com o peso líquido total de 106775,230 gramas e um grau de pureza [concentração média de tetraidrocanabinol (THC)] de 27,5%, suficiente para gerar 587263 doses individuais;
- 955 placas de canábis (resina) com o peso líquido total de 92280,500 gramas e um grau de pureza [concentração média de tetraidrocanabinol (THC)] de 24,5%, suficiente para gerar 452174 doses individuais; e
- 150 placas de canábis (resina) com o peso líquido total de 13990,000 gramas e um grau de pureza [concentração média de tetraidrocanabinol (THC)] de 24,3%, suficiente para gerar 67991 doses individuais.
Conforme também se provou, os arguidos haviam procedido ao transporte da mencionada substância naquela embarcação desde o porto de La Línea de la Concepción, Cádiz, no Reino de Espanha até ao local com as coordenadas WGS 84 37º03.469N -008º07.335W, visando efetivar a sua entrega a terceiro, em Portugal.
Dúvidas não se patenteiam de que os arguidos transportaram canábis (resina).
E pode afirmar-se terem os arguidos atuado em coautoria material. Conforme acima ficou dito, numa situação de coautoria os agentes participantes não precisam de praticar todos os atos de execução necessários para o preenchimento do tipo, bastando que a sua atuação seja considerada essencial à consumação do mesmo e neste caso, sem dúvida, que a atuação de todos os arguidos foi essencial para que a operação de transporte da canábis se consumasse.
Remetemos, neste particular, para tudo quanto dissemos em sede de fundamentação fáctica, relembrando o que dali resulta: sem a atividade desenvolvida por (A), proprietária e possuidora da embarcação “TEXAS T” e pessoa tecnicamente habilitada a tripulá-la entre os portos de La Línea de La Concepción (Espanha) e de Vilamoura (Portugal), o transporte da canábis não se efetuaria; mas sem a presença, naquela embarcação, de (B), o mesmo também não teria lugar, já que este ali estaria, desde logo, para garantir o sucesso da operação ao assegurar a efetividade do transporte, pela skipper, entre os dois portos.
Qualquer um deles contribuiu causalmente de forma objetiva e subjetiva, para a produção dos factos típicos e ilícitos, através dos seus diferentes contributos parcelares.
No caso que nos ocupa, importa ainda ter presente que a Tabela I-C anexa ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01 faz constar como substância proibida: Canabis, resina de – resina separada, em bruto ou purificada, obtida a partir da planta Cannabis.
Releva considerar que se apurou que os arguidos (A) e (B) agiram em conjugação de esforços e vontades, mediante acordo prévio, com o intuito conseguido de deterem e transportarem, de Espanha para Portugal, canábis (resina), substância cuja natureza, características, composição e efeitos conheciam, bem sabendo que a detenção e transporte desse produto lhes era vedada por lei, por não estarem autorizados para o efeito, tendo atuando sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal.
Termos em que se conclui que os arguidos praticaram condutas que preenchem, sob a forma de coautoria, todos os elementos do tipo objetivo [na modalidade de transporte] e o tipo subjetivo [na modalidade de dolo direto], do crime base de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo nº 1, do art. 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01.
No que se refere ao tipo agravado, verifica-se que a acusação para a qual expressamente remete a pronúncia é totalmente omissa quanto ao valor que (A) e/ou (B) procuravam receber, sendo indiferente, nesta sede, conforme acima se viu, o valor de aquisição ou o valor pelo qual iria ser transacionado, no mercado, junto dos consumidores finais, o produto estupefaciente por aqueles transportado.
A terem sido apurados tais factos (os valores que os arguidos procuravam receber como contrapartida da atividade por si desenvolvida), consubstanciaria o seu aditamento, em rigor, uma alteração substancial dos factos descritos na pronúncia - cfr. a alínea f) do art. 1º do Código de Processo Penal -, pelo que apenas poderiam ser considerados nas condições estabelecidas no art. 359º, 3, do mesmo código, i.e., caso o Ministério Público e os arguidos estivessem de acordo com a continuação do julgamento por esses novos factos.
Sucede que, in casu, não foi logrado o apuramento do valor que cada um dos arguidos procurava receber, pelo que não está preenchida a circunstância qualificativa prevista na alínea c) do art. 24º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01.
Assim sendo, a conduta de cada um dos arguidos integra o crime base de tráfico de estupefacientes, pois os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade e quantidade do produto estupefaciente, não permitem considerar a ilicitude do facto consideravelmente diminuída e, como tal, subsumi-la ao art. 25º, a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01.
Com efeito, a quantidade de canábis apreendida, que foi superior a 200 quilogramas, de forma alguma pode ser considerada diminuta, ao que acresce o facto de os meios utilizados corresponderem a uma logística considerável, implementada de modo a assegurar, por um lado, o transporte daquela quantidade de produto estupefaciente e, por outro, a reduzir substancialmente as probabilidades de fiscalização e subsequente deteção da canábis (acondicionada que estava, na sua integralidade, no interior da estrutura da embarcação “TEXAS T”, sublinhando-se, neste conspecto, que nem sequer no âmbito da intervenção policial ocorrida – e, esta, foi desencadeada, ao que se apurou, apenas pelo facto de o motor da embarcação ter registado uma avaria e de a mesma ter ficado fundeada a apenas cerca de uma milha náutica do porto de Vilamoura –, foi detetada a integralidade dos pacotes de canábis transportados, tendo mais de metade deles sido descobertos, ocasionalmente, mais de dois meses volvidos, o que permite concluir que, não fossem os desmandos do motor do veleiro, com elevada probabilidade a operação de transporte e desembarque da droga teria sido concluída com sucesso).
Para além de preencher os elementos constitutivos do tipo de ilícito, a conduta, para ser punível, pressupõe que o(s) agente(s) tenham agido com culpa.
Com efeito, o dolo não se reduz ao conhecimento e vontade de realização do tipo de ilícito objetivo; a estes elementos acresce uma autónoma atitude interior, “(…) que não podem ser retirados à culpa – cfr. Figueiredo Dias - com colaboração de Maria João Antunes, Susana Aires de Sousa, Nuno Brandão e Sónia Fidalgo -, in Direito Penal, Parte Geral, 3.ª edição (…), pp. 317, § 64.
É este acréscimo/alargamento (na verdade, um enriquecimento) que consubstancia o chamado “dolo da culpa”. Daí que o facto punível com uma pena criminal não se esgota na desconformidade com o ordenamento jurídico-penal refletida no tipo de ilícito, necessário se tornando, sempre, que a conduta seja culposa, isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever ser sóciocomunitário.
A exigência de culpa é uma decorrência do princípio do respeito pela eminente dignidade humana, na vertente de proteção do agente dos excessos e arbitrariedades que podem ser desejados e praticados pelo poder do Estado e, nessa medida, exerce uma função limitadora do intervencionismo estatal – cfr. Figueiredo Dias, in Ob. Cit., pp. 318, 319.
Assim, é pacificamente aceite que a culpa pressupõe a imputabilidade que é, na terminologia penal, a possibilidade de se atribuir a uma pessoa a prática de um ato ilícito, tipificado como crime, e de a responsabilizar penalmente pela sua prática.
Dito por outras palavras, a imputabilidade constitui o pressuposto essencial para a formulação de um juízo de culpa.
Essa responsabilização penal pressupõe que o agente tenha capacidade para avaliar o mal que pratica e se determinar de acordo com essa avaliação. Dito por outras palavras, é necessário que o agente disponha do discernimento suficiente para representar a situação, consciencializar a ilicitude da mesma e agir de acordo com essa avaliação.
Isso mesmo resulta do art. 20.º, 1, do Código Penal, nos termos do qual “é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”.
Aplicando as considerações ora tecidas ao caso dos autos, dúvidas se não patenteiam de que os arguidos são capazes de culpa, pois não padeciam de nenhuma anomalia psíquica que lhes determinasse a incapacidade para avaliar da ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação.
Inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, importa, pois, concluir deverem os arguidos ser absolvidos da prática, em coautoria material, do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo nº 1 do art. 21º, agravado pela alínea c), do art. 24º, ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-C, anexa a esse diploma, e punidos pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., pelo art. 21º, 1 do mesmo diploma, com referência àquele mencionada tabela, a ele anexa.

Medida da pena:
O crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, praticado pelos arguidos, é punível, na moldura abstrata, com pena de prisão de 4 a 12 anos.
De harmonia com o estabelecido no art. 40º do Código Penal, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. nºs 1 e 2).
Prevenção e culpa são, portanto, os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena, refletindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena.
Como bem sintetiza a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça: “Está subjacente ao artigo 40º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa” (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-02-2016, disponível em www.dgsi.pt, proc. nº 118/08.1GBAND.P1.S2, citado no Acórdão do mesmo Tribunal de 19-01-.2022, proferido no processo nº 327/17.2T9OBR.S1, disponível no mesmo sítio da internet).
“Não há, pois, razões plausíveis para discordar que no vigente regime penal, a função primordial do direito penal é a de tutelar os bens jurídicos tipificados, de modo a assegurar a paz jurídica dos cidadãos.
Em consonância, «as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena» [J. Figueiredo Dias, Direito, Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Noticias Editorial, pag. 227].
Deste modo, o parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados estabelecendo, em concreto, o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar ou, noutra expressão, não satisfaz a necessidade de reafirmação estabilizadora das normas, isto é, a pena aplicada não alcança a necessária, suficiente e adequada «prevenção geral positiva ou prevenção de integração» […]”.
Sendo que «à proteção jurídico-penal há-de reportar-se àquilo que se entenda relevante para a subsistência da comunidade ou, dito por outras palavras, há-de reconhecer a natureza social do bem jurídico. Ele tem indefetível conexão com a ideia de que nada é tão desvalioso como praticar lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre realização e desenvolvimento da personalidade de cada homem [Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias].
Parâmetro codeterminante do modelo de determinação da medida da pena judicial é também a culpa na execução do facto [a censura ético-pessoal por ter violado bens jurídicos tutelados], estabelecendo o «teto» ou limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando à «paz» comunitária a dignidade humana do agente. À culpa comete-se agora uma «função politico-criminal de garantia dos cidadãos e não mais do que isso. Entende-se que a pena não pode exorbitar a culpa, do mesmo passo que não pode privar-se dela, como seu pressuposto». Ou, nas sapientes palavras de Costa Andrade: «por último, o terceiro axioma diz-nos que a culpa deve persistir como pressuposto irrenunciável e como limite intransponível da pena. A culpa não deve dar a medida da pena. A pena pode ficar aquém da culpa, o que não pode é ultrapassá-la, até porque esta, (…) constitui um axioma antropológico da ordem jurídicoconstitucional portuguesa. Tem de valer como limite, como barreira à instrumentalização do homem, em nome de fins próprios da sociedade. Como garantia de que a racionalidade instrumental, de que falava Max Weber, não vai dominar, absorver e sacrificar inteiramente a racionalidade de valores de uma sociedade democrática.
Por respeito à exigência da culpa, o Código e o legislador penal português faz eco daquela sábia advertência de Schiller, que já dizia ao príncipe: Desconfiai, nobre senhor, nem tudo aquilo que é útil ao Estado é necessariamente justo. É o limite da culpa que garante que a prossecução de tarefas e de metas legítimas, através do instrumento de conformação social que é o Direito Penal, se faça com respeito pelas exigências inultrapassáveis da justiça».
Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização” – vide, por todos, o já mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-11-2022.
Conjugados todos os ensinamentos acima coletados, temos que:
- a medida da pena há de ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, que fornece uma «moldura de prevenção», isto é, que fornece um quantum de pena que varia entre um ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar;
- através do requisito da culpa, dá-se tradução à exigência de que aquela constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (limite máximo) ligada ao mandamento incondicional de respeito pela dignidade da pessoa do agente;
- por último, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável podem e devem atuar ponto de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a sua extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade - cfr. J. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, p. 227 e ss. e, quanto ao juízo de culpa, Anabela Rodrigues, in A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, pp. 478 e ss..
A determinação da pena, em sentido amplo, passa, frequentemente, pela operação de escolha da pena, o que sucede, designadamente, quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade. O critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do Código Penal, nos termos do qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Escolhida que seja a pena, quando se patenteie essa alternativa, há que determinar a sua medida concreta.
Para tanto, o Código Penal, no seu art. 71.º estabelece que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo o tribunal “(…) a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”, enunciando, exemplificativamente, nas várias alíneas do nº 2, circunstâncias que se reportam ao facto ou ao agente (à culpa ou à prevenção), às quais a doutrina adiciona outros fatores, designadamente, relativos à vítima.
Pode ainda ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-01-22, que vimos seguindo de perto, que aquele preceito “Desde logo proíbe, nesta sede, a valoração de quaisquer circunstâncias que façam parte do tipo de crime cometido pelo agente (proibição da dupla valoração). O que «não obsta a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento do tipo» [J. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 235].
Fatores enunciados no art. 71º nº 2 que, grosso modo, podem respeitar ao facto ou ao agente, designadamente:
- à execução do concreto facto cometido pelo agente, agrupando circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídico-penal cometida, que servem para caracterizar a medida da censurabilidade, e (quando for o caso) o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
- à personalidade do agente revelada no facto, agrupando as condições pessoais, sociais e económicas, a sensibilidade à pena e à influência que esta pode exercer, as qualidades da personalidade comparadas com as do «homem fiel ao direito»;
- à conduta anterior e posterior ao facto, agrupando o percurso vivencial e o histórico criminal do agente, o comportamento empreendido no sentido de assumir as consequências do crime cometido e, estando ao seu alcance, contribuir para que os comparticipantes não restem impunes e a «governar-se» com o proventos ilícitos assim obtidos.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal sustenta que «para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71º do Código Penal (…), estando vinculado aos módulos-critérios de escolha da pena constantes do preceito». Sustenta também que tais critérios e circunstâncias «devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» [Ac. STJ de 18/02/2016, proc. nº 118/08.1GBAND.P1.S2, in www.dgsi.pt/jstj.]. (…) a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada”.
Tendo presentes estas considerações, é nosso entendimento que, no caso concreto revestem relevância os seguintes fatores:
 A qualidade do produto estupefaciente transportado pelos arguidos: a canábis consubstancia um estupefaciente com menor potencial aditivo [caracterizando-se, vulgarmente, como sendo uma «droga leve»], o que atenua o grau de ilicitude do facto;
 A dimensão da logística envolvida na operação de transporte da canábis: a operação de transporte envolveu o uso de uma embarcação de recreio (“TEXAS T”), em cuja estrutura foi acondicionada uma quantidade não despicienda (436) embalagens, depois de desmontados e remontados painéis de acesso àquela estrutura (cavername), evidenciando-se uma operação logística já com alguma envergadura e sofisticação, que, como tal, se configura como fator que eleva o grau da ilicitude;
 A quantidade da canábis transportada: os arguidos participaram no transporte de 213045,73 gramas, que é uma quantidade elevada, suscetível de ser dividida em mais de um milhão de doses, o que configura um fator que eleva, de forma acentuada, a ilicitude; com efeito, embora as quantidades máximas fixadas no mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26/03, indicado nas perícias efetuadas ao produto apreendido não sejam de aplicação automática, constituem indicadores fortes dos quantitativos máximos de consumo médio individual, tendo o valor de prova reforçada, pelo que o julgador só pode divergir desse juízo se recolher elementos de prova que permitam, fundadamente, pôr em causa tais valores, nomeadamente, apurando o consumo médio de cada consumidor em concreto. Daí que o valor reforçado dos valores determinados nos exames periciais e limites fixados na identificada Portaria servirão para fixar o valor de referência no caso concreto se, dos autos, não resultarem elementos de prova sobre o consumo médio individual das pessoas a quem se destinavam (neste sentido, veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-02-2021, proferido no processo nº 1079/18.4GDVFR.P1, disponível em www.dgsi.pt);
 A coautoria, enquanto união de esforços que diminui as possibilidades de proteção do bem jurídico e maximiza as hipóteses de êxito da realização típica, constitui motivo de agravação;
 O lugar de cada um dos arguidos na estrutura da operação de tráfico de canábis: a arguida (A) forneceu o meio de transporte, essencial ao transporte da canábis, não só pelas suas dimensões, bem como pelas suas concretas características (permitindo estas a ocultação, na estrutura/esqueleto, das 436 embalagens de estupefaciente, ampliando as probabilidades de sucesso de operação, pela dificultação da deteção do produto pelas autoridades fiscalizadoras), bem como forneceu o know how na condução da embarcação; a intervenção de (B) cuja afirmação é possível fazer, queda-se no acompanhamento da operação, assegurando que o trajeto da embarcação se faz efetivamente conforme determinado pelo organizador do transporte, entre La Línea de La Concepción e Vilamoura;
 Desconhece-se o valor do ganho que cada um dos arguidos poderia ter obtido, caso a operação tivesse tido sucesso;
 A intensidade do dolo: ambos os arguidos agiram com dolo direto, sob a forma mais gravosa de culpa, a merecer um maior juízo de censura;
 As motivações que estiveram na base da prática do crime: a arguida (A) agiu com o intuito de obter uma compensação remuneratória cujo valor se não logrou, concretamente, apurar; as motivações de (B) não se lograram, em concreto, apurar;
 As condições pessoais e socioeconómicas dos arguidos:
 a arguida (A) cresceu em ambiente normativo, tendo o seu desenvolvimento decorrido num ambiente familiar afetivo, com uma situação económica difícil, sobretudo após o falecimento do progenitor, aspeto que motivou o processo emigratório da Ucrânia para a Itália; frequentou o ensino até aos 17 anos de idade, sem registo de repetições, tendo abandonado a escolaridade para começar a trabalhar a tempo inteiro; desde os 13 anos, trabalhava aos fins de semana, como empregada de mesa, numa pizzaria; ao tempo dos factos, vivia com a sua mãe, com quem mantém bom relacionamento interpessoal, residindo ambas em Espanha, num apartamento arrendado pelo valor mensal de 550,00€, desde há cerca de 7 anos; trabalhava no veleiro “TEXAS T”, do qual é proprietária, assegurando, na qualidade de comandante da embarcação, entre junho e setembro de cada ano, a efetivação de viagens de cruzeiro pelas Ilhas Baleares de Ibiza e Formentera e auferindo, do exercício dessa atividade, 6.000,00€ por semana; nos restantes meses do ano, ocupava-se com a manutenção da embarcação;
 O arguido (B) é residente na cidade de Poprad, na Eslováquia, país onde vive toda a sua família; ao tempo dos factos, vivia sozinho num apartamento de tipologia T2 arrendado pelo quantitativo mensal de 300,00€, mantendo, no entanto, contacto próximo com o seu agregado de origem, constituído pelo pai e dois irmãos; estudou durante 12 anos, tendo obtido a certificação como cozinheiro diplomado, atividade que desenvolvia, por conta de terceiro, à data dos factos, já com a categoria de Chef de cozinha, entretanto adquirida; auferia um ordenado líquido no valor de cerca de 1500,00€/mês e era considerado, pela sua entidade empregadora, um trabalhador pontual, consciencioso e responsável; não registava problemas de saúde incapacitantes ou comportamentos aditivos.
 A conduta anterior aos factos: a arguida (A) é primária; o arguido (B) foi condenado pelo cometimento de um crime p. e p. pelo §247/1a do Código Penal da Eslováquia na pena de 4 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 12 meses;
 A conduta posterior aos factos: a arguida (A) confessou os factos relativos à sua pessoa, tal como consignados demonstrados, todavia, tal confissão não assume particular relevância na medida em que não permitiu o apuramento de factos que não teriam resultado provados de outra forma, ao que acresce o facto, a sopesar negativamente, de haver veiculado para o Tribunal uma versão falsa da materialidade atinente ao arguido (B) que, a ter merecido credibilidade, isentaria o mesmo de responsabilidade; por sua vez, o arguido (B) não assumiu os factos pelos quais foi pronunciados e que vieram a ser julgados provados, o que revela ausência de consciência crítica sobre a conduta que assumiu, i.e., a ausência de interiorização do mal da sua conduta e da necessidade de jamais a reiterar.
Sopesando todos os fatores supra evidenciados, patenteia-se que a imagem global do ilícito praticado revela elevadas exigências de prevenção geral, pois ambos os arguidos aceitaram ser uma peça na cadeia que leva a droga do produtor aos consumidores, ultrapassando fronteiras, desse modo participando na globalização deste crime e não se importando de serem usados como instrumento descartável nas mãos dos grandes traficantes, tendo como única motivação, no caso de (A), o lucro, com total indiferença para os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e da sociedade em geral.
Os tráficos de droga constituem, hoje, nas sociedades desenvolvidas, um dos fatores que provocam maior perturbação e comoção social, tanto pelos riscos (e incomensuráveis danos) para bens e valores fundamentais como a saúde física e psíquica de milhares de cidadãos, especialmente jovens, com as fraturas devastadoras nas famílias e na coesão social primária, os comportamentos desviantes conexos sobretudo nos percursos da criminalidade adjacente e dependente, como pela exploração das dependências que gera lucros subterrâneos, alimentando economias criminais, que através de reciclagem contaminam a economia legal.
O reconhecimento do fenómeno e da comoção social que provoca, faz salientar a necessidade de acautelar as finalidades de prevenção geral na determinação das penas como garantia da validade das normas e de confiança da comunidade.
O transporte internacional de estupefacientes, pela difusão rápida e eficiente das drogas junto dos mercados que abastecem os consumidores, constitui uma conduta especialmente danosa, cuja perseguição se mostra essencial para dificultar e impedir a circulação das drogas e o abastecimento daqueles mercados.
O que fica dito, não obsta a que, para efeitos de diferenciação da pena concreta a aplicar, se possa levar em consideração o tipo de contributo individual de cada um dos coautores, não podendo, concomitantemente, ser descuradas as finalidades de reinserção dentro do modelo de prevenção especial.
Assim sendo e tendo em vista o apuramento que se logrou, a contribuição de (A) parece ter assumido maior preponderância, na medida em que forneceu o meio de transporte (com características adequadas, nos termos acima expostos, a assegurar uma mais eficaz ocultação dos mais de 200 quilogramas de canábis transportados entre Espanha e Portugal), bem como pôs ao serviço da operação os seus conhecimentos especializados na condução da embarcação de sua pertença; por outro lado, a sua contribuição para a descoberta de verdade material, em função da demais prova produzida, não assumiu elevada expressão, na medida em que contribuiu ativamente para dificultar a atividade do tribunal, ao veicular uma versão dos factos que isentaria (B) de responsabilidade, caso houvesse sido merecedora de credibilidade.
Tudo ponderado, e tempo em conta o limite máximo imposto pela culpa, entende o tribunal ser de fixar as seguintes penas:
- À arguida (A), a pena de 6 anos de prisão; e
- Ao arguido (B), a pena de 5 anos e 5 meses de prisão.
*
Consigna-se que as alterações ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, introduzidas pelas Leis nºs 9/2023, de 03-03 e 55-2023, de 08-09 se não repercutem sobre o caso sub judice, mantendo-se intocada a descrição típica do crime pelo qual os arguidos vinham pronunciados, bem como daquele pelo qual serão condenados, o mesmo sucedendo com as correspondentes molduras penais abstratas.

Do destino dos bens apreendidos
Sob a epígrafe “Perda de Objetos”, dispõe o art. 35º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01 que:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infração prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos.
2 - As plantas, substâncias e preparações incluídas nas tabelas I a IV são sempre declaradas perdidas a favor do Estado.
3 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto”.
Por seu turno, prescreve o art. 36º do mesmo diploma legal que:
“1 - Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de uma infração prevista no presente diploma, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa fé, os objetos, direitos e vantagens que, através da infração, tiverem sido diretamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem.
3 - O disposto nos números anteriores aplica-se aos direitos, objetos ou vantagens obtidos mediante transação ou troca com os direitos, objetos ou vantagens diretamente conseguidos por meio da infração.
4 - Se a recompensa, os direitos, objetos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor.
5 - Estão compreendidos neste artigo, nomeadamente, os móveis, imóveis, aeronaves, barcos, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna.
Dispõe, de sua vez, o art. 37º que:
“1 - Se as recompensas, objetos, direitos ou vantagens a que se refere o artigo anterior tiverem sido transformados ou convertidos em outros bens, são estes perdidos a favor do Estado em substituição daqueles.
2 - Se as recompensas, objetos, direitos ou vantagens a que se refere o artigo anterior tiverem sido misturados com bens licitamente adquiridos, são estes perdidos a favor do Estado até ao valor estimado daqueles que foram misturados”.
Por fim, sob a epígrafe “Lucros e outros benefícios”, estabelece o art. 38º do diploma a que vimos fazendo referência que “O disposto nos artigos 35º a 37º é também aplicável aos juros, lucros e outros benefícios obtidos com os bens neles referidos”.
Assim, nos termos do nº 2 do art. 35º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, cabe declarar perdidas a favor do Estado as amostras cofre da canábis apreendida, e ordenar a sua destruição [cfr. nº 6 do art. 62º do mencionado diploma].
No que tange à embarcação denominada “TEXAS T” e ao bote auxiliar da mesma (cfr. fls. 16 a 18 e 165), rege o art. 35º, 1, supra transcrito.
A redação deste preceito foi introduzida pela Lei nº 45/96, de 03-09, e alterou a versão originária do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, no sentido de amputar, da norma, o segmento “quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos”.
Esta amputação não pode, todavia, ser entendida como introdutora de um regime de automacidade da perda de objetos, no sentido de que, verificada a mera ligação instrumental do objeto com o facto, impor-se-ia o seu perdimento sem mais, dado que, obviamente, tal interpretação colidiria com princípios básicos constitucionais, designadamente, os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em sentido restrito [nesse sentido, pronunciou-se o Tribunal Constitucional, entre muitos outros, nos acórdãos nºs 327/99, 176/00 e 202/00, proferidos em 25-05-99, 22-03-00 e 04-04-00].
Por tal razão, o Supremo Tribunal de Justiça, face à alteração de redação verificada, tem assumido uma interpretação do nº 1 do art. 35º fazendo apelo a critérios de causalidade e de necessidade, sustentando que a perda dos objetos do crime só é admissível quando entre a utilização do objeto e a prática do crime exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infração em concreto não teria sido praticada ou dificilmente o teria sido na forma em que o foi, ou seja, para a declaração de perdimento necessário se torna que o crime não tivesse sido praticado (ou tivesse sido praticado de uma forma diferente, sendo essa diferença penalmente relevante) sem o objeto em causa (instrumento essencial).
Neste sentido decidiram, v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-01-2007 (processo nº 3193/06 - 3ª Secção): “(…) IX - Se dos autos não resulta provado que o veículo IC tenha servido, sido meio ou instrumento necessário da realização do crime de detenção de droga por que o seu dono foi condenado, intercedendo entre ele e a sua utilização uma indispensável relação de adesão – até porque o haxixe que lhe foi apreendido na sua residência (108,559 g) pode ser transportado sem recurso à viatura, não se evidenciando como possa aquela mera detenção, único crime imputado ao arguido, envolver a utilização, nos termos referidos, do veículo – não pode o mesmo ser declarado perdido a favor do Estado (art. 35º do DL 15/93, de 22-01)”. E o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-09-2006 (processo nº 2802/06 - 3ª Secção): “(…) V - A perda de bens a favor do Estado, a que aludem os arts. 35º, nº 1, e 36º, nº 2, ambos do DL 15/93, de 22-01, é um instrumento de natureza substantiva; abrange os instrumentos e os produtos do crime, incluindo os objetos que serviram para a prática do crime. Não constitui uma medida cautelar de processo, já que as finalidades cautelares são realizadas com a apreensão, mas é também, de certo modo, uma medida preventiva. VI - Os fundamentos para a declaração de perda previstos em uma e outra disposição são essencialmente diversos. A perda dos «objetos que tiverem servido» «para a prática de uma infração» relacionada com estupefacientes tem como fundamento a existência ou a preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre o objeto e a infração, de sorte que a prática da infração tenha sido especificamente conformada pela utilização do objeto; este há de ter sido elemento integrante da conceção material externa e da execução do facto, de modo que a execução não teria sido possível, ou teria sido essencialmente diferente, na modalidade executiva que esteja em causa, sem a utilização ou a intervenção do objeto. VII - Nesta perspetiva, a decisão de perda de objetos deve ter como pressuposto a individualidade executiva e a relevância instrumental, determinante ou essencialmente conformadora do objeto no processo de execução e de cometimento do crime. VIII - Não estado provado o uso determinante do veículo em qualquer ato executivo concretamente descrito, em que a utilização do veículo se revelasse instrumentalmente necessária ou essencialmentemodeladora do modo de cometimento da infração, não é possível concluir que aquele objeto (o veículo) «tivesse servido para a prática da infração» (tráfico de estupefacientes)”.
Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que o transporte da canábis apreendida, nos termos em que o foi, só se poderia ter efetivado mediante o uso da embarcação “TEXAS T”, por estar funcionalmente apta a acomodar, de modo totalmente dissimulado, mais de 213 quilogramas de canábis, divididos por 436 embalagens. Note-se que tal quantidade de estupefaciente apenas pôde ser ocultada – visando evitar que, em caso de fiscalização, o produto fosse de imediato detetado, mormente, pelas autoridades de polícia – porque o cavername da embarcação é oco e acessível mediante remoção dos painéis instalados, originariamente, pelo fabricante; a mesma quantidade de canábis (resina), podendo ser transportada num veículo automóvel que viajasse entre La Línea de La Concepción (Espanha) e Vilamoura (Portugal), jamais lograria ser dissimulada como o foi a apreendida nos autos, na medida em que nenhum automóvel possui uma estrutura, não imediatamente acessível a quem aceda ao respetivo interior, com tamanha capacidade de acomodação totalmente camuflada; ademais, consabido é que o transporte por terra envolve maiores riscos, por ser mais intensa a fiscalização rodoviária efetivada pelas autoridades com competência para tanto, não sendo, também, de escamotear que, para efetivar o trajeto no menor espaço de tempo possível e para entrar em território português, o automóvel transportando o estupefaciente sempre teria de passar frente ao posto de fronteira terrestre que liga o Algarve à Andaluzia, surgindo amplamente incrementadas as probabilidades de insucesso da operação.
Também o transporte por avião seria possível, em voos efetuados a partir do aeroporto de Gibraltar ou de Málaga (os mais próximos do porto de La Línea de La Concepción), com destino ao aeroporto de Faro; todavia, nesse caso, os arguidos apenas lograriam transportar no máximo, entre os dois e a cada viagem, 5 a 10 quilogramas de canábis, dissimulada em malas de porão - mormente, no respetivo forro, como é usual acontecer - que podem ser transportadas, por via aérea, quando o respetivo peso não ultrapasse 23 quilogramas. Teriam, pois, os arguidos de efetuar pelo menos 213 viagens aéreas, entre Espanha e Portugal, para lograrem o transporte dos 213045,73 gramas de produto estupefaciente apreendido nos autos, sujeitando-se, em todas essas viagens, ao risco, muitíssimo elevado, de ser detetado, nos controlos de bagagens, o produto ilícito.
Em suma, patente é que, sem o uso da embarcação “TEXAS T”, o transporte de canábis efetivado pelos arguidos não teria tido lugar nos termos em que ocorreu, estando estabelecido o nexo de instrumentalidade entre a utilização do veleiro e a prática do crime (por apelo a critérios de causalidade adequada). Tal relação reveste, no entendimento do tribunal, um caráter significativo, afigurando-se proporcional a perda do instrumentum sceleris, tendo por referência a relevância do facto delitivo. Com efeito, releva sopesar que a embarcação de recreio em causa, tripulada por (A) (à qual foi atribuído um valor de 150000,00€, conforme flui do relatório de exame direto e avaliação constante de fls. 308 a 310, cujo teor não foi objeto de impugnação), foi utilizada pelos arguidos como meio de transporte das placas de canábis, entre o porto de La Línea de La Concepción (Espanha) e Vilamoura (Portugal), onde se propunham descarregá-las (numa distância não inferior a cerca de 180 milhas náuticas, conforme pode apurar-se, em qualquer calculadora de distância do mar, acessível, em fontes abertas, na internet); os arguidos transportaram, na dita embarcação, 2180 placas de canábis (resina), com o peso líquido total de 213045,73 gramas (suficiente para gerar 1107428 doses individuais), não podendo tal utilização deixar de figurar-se como essencial para o cometimento do crime, nos termos anteriormente expostos, podendo mesmo, no contexto, concluir-se que foi por ter o veleiro na sua posse que (A) foi agenciada para a prática do crime; acresce estar em causa um crime de tráfico de estupefacientes que assume dimensão internacional, envolvendo o Reino de Espanha e a República Portuguesa. Somos, pois, a entender, sopesados todos estes fatores, que a declaração de perda da embarcação, instrumenta sceleris, não desequilibra o necessário, referenciado, sentido de proporcionalidade.
Será, pois, declarada perdida a favor do Estado a embarcação denominada “TEXAS T”, acompanhada do respetivo certificado de registo, fatura nº A/9.465 e documento 115.303 (fls. 21), bem como o bote auxiliar da mesma, por funcionalmente ligado àquela.
Ressalvar-se-á que a mochila preta contendo no seu interior a prancha de paddle surf pertença do arguido (B), que ora se encontra num compartimento de uma cabine à popa do “TEXAS T” (vide o teor da informação lavrada em cota vertida a fls. 1039 e a fotografia plasmada a fls. 1040), não faz parte integrante, nem está funcionalmente ligada ao veleiro, para além se der alheia ao cometimento dos factos ilícitos típicos praticados pelos arguidos, podendo ser reclamada por (B) ou por pessoa por ele mandatada para o efeito.
Não estando apreendidos nos autos tais objetos, não cumpre, porém, dar-lhes formalmente destino.
No que tange ao telemóvel da marca Xiaomi, modelo Redmi (…..), de cor azul, com os IMEIs (…..) e (…..), e ao cartão SIM da operadora Vodafone com o nº (…..) (inserido no interior daquele) – fls. 16 a 18 –, tratando-se de objetos, conforme apurado, usados para a prática do crime, e sendo os mesmos suscetíveis de serem usados na prática de futuros ilícitos típicos de similar natureza, serão declarados perdidos a favor do Estado – cfr. art. 109º, 1, do Código Penal.
No que concerne ao telemóvel da marca Apple, modelo iPhone 10, com o IMEI (…..) – fls. 16 a 18 –, ao telefone satélite, com respetivo cartão SIM, dois rádios e um cartão SIM – fls. 151 – todos apreendidos a (A), bem como ao telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy S10, com o IMEI1 (…..) e o IMEI2 (…..), contendo inserido um cartão microSIM da operadora Vodafone com o nº (…..), e ao telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy S6 Edge, com o IMEI (…..), ambos apreendidos a (B), não se tendo apurado que hajam sido usados para a prática do crime, serão devolvidos às pessoas a quem foram apreendidos – cfr. arts. 409º, 1, a contrario, do Código Penal, e 186º, 1, do Código de Processo Penal.
A quantia monetária de 1750,00€ apreendida a (A), na medida em que não se provou que fosse recompensa de crime que praticou, deve ser devolvida à mesma – cfr. arts. 110º, a contrario, do Código Penal, e 186º, 1, do Código de Processo Penal.
(…)

II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e, bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

No caso em apreço, atendendo às conclusões, as questões que se suscitam são as seguintes:

- Nulidade do Acórdão por insuficiência de fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 379º, nº 1, alínea a) e, 374º, nº 2, do Código de Processo Penal (recurso do arguido B)
- Nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia sobre questões que devesse apreciar, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal (recursos de ambos os arguidos).
- Impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de facto provada nos pontos 2, 3, 9, 10 e 35, dos factos provados, por erro de julgamento, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, devendo serem considerados não provados (recurso do arguido B).
- Impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de facto, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal (recurso do arguido B).
- Impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de direito, quanto à medida concreta da pena a que a arguida foi condenada e da sua suspensão (recurso da arguida A).
- Impugnação do Acórdão proferido relativamente ao perdimento a favor do Estado da embarcação “TEXAS T”, nos termos do disposto no artigo 35º, do Decreto-Lei nº 15/93 de 22-01 (recurso da arguida A).

- Da nulidade do Acórdão por insuficiência de fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 379º, nº 1, alínea a) e, 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Sob a epígrafe “nulidade da sentença”, dispõe o artigo 379º, do Código de Processo Penal:
“1- É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b), do nº 3, do artigo 374º (…).
Por sua vez, o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, sobre os requisitos da “sentença”, estabelece:
“2 – Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Analisada a decisão recorrida verifica-se que da mesma constam os factos provados, segue-se a exposição detalhada da motivação da decisão de facto e de direito, com o competente exame crítico das provas que fundamentaram tal convicção.
Tendo como ponto de partida o despacho de a pronúncia constante dos autos verifica-se que todos os factos integrantes daquela peça processual ou alterados nos termos legais, constam como provados ou não provados, na decisão recorrida, conseguindo-se alcançar, do exame crítico das provas, nomeadamente das declarações dos arguidos, dos depoimentos das testemunhas inquiridas e, dos documentos juntos aos autos, a concreta fundamentação da convicção formada pelo Tribunal “a quo”, sobre ter considerado tais factos como provados e não provados.
O que parece resultar das conclusões do recurso apresentadas pelo arguido/recorrente (B), é o mesmo não concordar na sua integralidade com os factos tidos como provados pelo Tribunal “a quo”, mas tal circunstância de forma alguma, consubstancia alguma omissão do Acórdão proferido, que constitua nulidade do mesmo, por omissão de requisitos essenciais ao mesmo, nomeadamente falta de fundamentação ou de exame crítico da prova.
Como bem salienta Marques Ferreira (“Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal”, Livraria Almedina, 1988, pág. 228) este regime legal, quanto à fundamentação da decisão de facto, consagra “um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do processo, de modo a permitir-se um efectivo controlo da sua motivação”.
“Toda a construção dogmática, normativa e jurisprudencial vem densificando uma dupla dimensão finalística referente à fundamentação das decisões assente nas dimensões endo e extraprocessual.
A dimensão endoprocessual desenvolve-se no interior da estrutura e funcionamento do processo tendo como finalidade principal o controlo da decisão por parte dos intervenientes no processo concreto, tanto para o seu próprio controlo como, para uma, ulterior, verificação através dos órgãos superiores de controlo institucional, do mérito da decisão. Tendo em conta os destinatários directos da decisão estão em causa funções de garantia de impugnação e de defesa. Tendo em conta a dimensão de quem profere a decisão nomeadamente, o modo e método de decidir, evidencia-se uma função de autocontrolo.
A dimensão extraprocessual da fundamentação resulta da projecção democrática do princípio da fundamentação das decisões, revelada em muitos países pela constitucionalização daquele dever, como manifestação do princípio da participação popular na administração da justiça, assim se permitindo um controlo difuso sobre o exercício da jurisdição, não só pelos destinatários directos da decisão como também pelo auditório geral constituído pela opinião pública, pelo povo como entidade ou razão fundamental e legitimadora do exercício da função judicial.” (Mouraz Lopes – A fundamentação da sentença no sistema penal português – Almedina, pág. 190 e 191).
Volvendo ao decidido pelo Tribunal “a quo”, afigura-se-nos de liminar clarividência que toda a peça decisória contém uma fundamentação adequada e mais que suficiente para compreender a convicção formada pelo Tribunal sobre a matéria de facto provada, bem como os meios de prova em que assentou tal convicção, conseguindo-se atingir qual o exame crítico realizado sobre tais meios de prova, ou seja, conseguindo-se entender e sindicar qual o processo lógico-dedutivo que determinou a formação de tal convicção, no julgador.
Pode-se não concordar com as conclusões factuais extraídas da fundamentação, mas qualquer pessoa mediana e independente consegue compreender na sua integralidade a decisão sobre a matéria de facto provada e o seu porquê.
Por tudo o exposto, não se verifica qualquer insuficiência no Acórdão proferido, relativa à fundamentação e ao exame crítico da prova e, consequentemente, não se concretizando a invocada nulidade do Acórdão, nos termos do disposto nos artigos 374º, nº 2 e, 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal e, improcedendo então, o recurso interposto nesta parte pelo arguido/recorrente (B).

- Da nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia sobre questões que devesse apreciar, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal (recursos de ambos os arguidos).
Alega a arguida (A), que face à sua confissão parcial dos factos, que lhe deveria ser aplicada o mínimo da moldura penal aplicável, artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22-01, ou seja, 4 anos de prisão e suspensa na sua execução, que o Tribunal “a quo” não se pronunciou nestes termos pretendidos pela arguida/recorrente, existindo no seu entender uma profunda desigualdade na apreciação, valoração e aplicação das penas entre os arguidos e outros casos semelhantes e da não ponderação da suspensão da pena.
Contudo do Acórdão proferido consta expressamente o porquê da diferença da medida das penas aplicadas.
Desde já cumpre sublinhar que a confissão parcial da arguida é de todo irrelevante para o objecto processual, face a toda a prova material apreendida na embarcação, ou seja, a parte que confessou resulta de todo irrelevante para os autos, não se conseguindo entender que benefício pretenderia obter com tal acto processual totalmente irrelevante.
Por outro lado, o arguido (B) também vem alegar que no seu entender, ficaram sem solução ou resposta questões importantíssimas às quais o Tribunal “a quo” não apresenta a mínima explicação, pelo que a não apreciação de tais questões conforma omissão de pronúncia nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Entende o arguido que o Tribunal deveria desenvolver todo o tipo de diligências necessárias à absolvição do arguido/recorrente, nomeadamente investigasse o contacto da arguida (A) com o destinatário da droga e outras que constituíssem no seu entender uma verdadeira investigação, ouvindo este, aquele e o outro, e mais esta diligência e a outra, sem nunca ter fim, que não fosse a negação da Justiça, de forma a obter a sua absolvição.
Como o Ministério Público e o se cingiu apenas ao objecto do processo, no entender do recorrente existe uma óbvia e manifesta insuficiência do inquérito ou da instrução, artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Prenal, que a existir deveria ter sido arguida em tempo nos termos do nº 3, da mesma disposição legal.
Então, remete-se tais eventuais insuficiências para o Tribunal “a quo”, que por não se ter pronunciado em termos da absolvição do arguido, constituem nulidades por omissão de pronúncia nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas, expendidos pela parte na defesa da sua pretensão (Ac. STJ de 09-02-2012, Proc. 131/11.1YFLSB).
A pronúncia cuja omissão determina a nulidade da decisão, deve incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos, é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou às razões alegadas ou argumentos invocados pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista.
Assim, as questões suscitadas pelas presentes arguição de nulidades foram alvo de pronúncia expressa no sentido, em que todas as questões de facto e de direito, constantes do recurso interposto, foram conhecidas pelo Acórdão reclamado, não nos precisos termos em que tais questões foram enunciadas pelos recorrentes, mas nos termos em que o tribunal entendeu que as mesmas deviam ser apreciadas.
O Tribunal “a quo” pronunciou-se, sobre as referidas questões, de forma completamente dissonante das soluções propugnadas pelos recorrentes.
Porém, a discordância dos recorrentes quanto à pronúncia do Tribunal nunca deverá, nem poderá configurar qualquer pretensa omissão e consequente nulidade.
O Tribunal “a quo” ponderou, conheceu e decidiu todas as questões fulcrais colocadas com relevância para a decisão de mérito, apenas não o fazendo perante meras suposições, conjecturas, opiniões, determinados raciocínios ou pontos de vista, nem andou “à deriva” equacionando todas as hipóteses susceptíveis de virem a acontecer”.
Ainda, na mesma senda, na precisão da abrangência do conceito de omissão de pronúncia, o Exmo. Conselheiro Oliveira Mendes, sublinha:
"Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado nº 2, do artigo 608°, do Código de Processo Civil."
Em conformidade, afigura-se que, foram efectivamente apreciadas na sua globalidade as questões suscitadas na medida em que o podiam ser, com a apreciação que o Tribunal “a quo” entendeu se impunha fazer e, nos termos em que o fez, por forma que dúvida não restasse quanto à fixação dessas questões e à sua valoração.
No entanto, os recorrentes, ainda assim, concluem pela omissão de pronúncia, que no seu entendimento ainda não é a suficiente e, provavelmente nunca o será porque contrária, às teses que pretendem fazer vingar nos autos.
O Acórdão proferido não enferma por tal, de qualquer omissão de pronúncia, pois atentando em que, por um lado, se pronunciou acerca de todo o objecto do recurso sobre o qual versou e, por outro lado, o fez de forma cabal, não tendo a obrigatoriedade de convergir com o entendimento dos arguidos/recorrentes sobre essas mesmas questões e, muito menos, que tivesse de fundamentar a sua divergência com o conhecimento das questões apresentadas pelos recorrentes, não violando por tal, qualquer garantia de defesa dos arguidos, nos termos do disposto nos artigos 2º, 13º, 18º, 20º, nº 4, 27º, nº 1, 29º, nº 1, 32º, 202º, 203º e, 204º, da Constituição da República Portuguesa.
Por tudo o exposto, não se verifica qualquer omissão de pronúncia no Acórdão proferido, não se concretizando a invocada nulidade do Acórdão, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal e, improcedendo então, o recurso interposto nesta parte pelos arguidos/recorrentes (A) e (B).

- Da impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de facto provada nos pontos 2, 3, 9, 10 e, 35, dos factos provados, por erro de julgamento, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, devendo os mesmos serem considerados não provados.
É sabido que constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nº 3 e, nº 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Apreciada a peça recursiva apresentada pelo arguido B, constata-se que a mesma visa a apreciação de eventuais erros de julgamento da matéria de facto, relativamente aos factos provados sob os pontos 2, 3, 9, 10 e, 35.
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova existente nos autos e a gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelo nº 3 e, nº 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros “in judicando” (violação de normas de direito substantivo) ou “in procedendo” (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o tribunal ter decidido de forma diferente.
Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-03-2012, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18-04-2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.
Cabe aqui evidenciar, um Acórdão do STJ que lança luz sobre a questão em apreço.
Como, de forma impressiva, refere o Conselheiro Carmona da Mota no acórdão do STJ de 27-02-2003, Proc. 140/03, “ii. O valor da prova/ isto é a sua relevância enquanto elemento reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido depende fundamentalmente da sua credibilidade: ou seja, a sua idoneidade e autenticidade. iii. A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detectáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e directo com as pessoas. iv. O tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido".
Ou seja, e como assinala Figueiredo Dias in “Direito Processual Penal”, pág. 204 e sgs., a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade meramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis - v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova, e mesmo puramente emocionais. Em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade, para além de toda a dúvida razoável.
E, nesta matéria assume-se, como fundamental, o princípio da imediação, isto é, a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
Só a oralidade e imediação, com efeito, permitem avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.
Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, decorre da peça recursiva apresentada pelo recorrente B que pretende impugnar a matéria de facto considerada como provada nos pontos 2, 3, 9, 10 e 35 que em seu entender deverão ser julgados como não provados.
Alega para tanto que com suporte na prova produzida, mais propriamente nas suas declarações e da co-arguida A, nos depoimentos das testemunhas por si arroladas e nos seus conhecimentos de direito internacional público, coadjuvado pelas insufuciências da investigação policial, não poderão resultar provados os factos constantes dos pontos 2, 3, 9, 10 e 35.
Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05-06-2002, proferido no processo nº 0210320, disponível em www.dgsi.pt, “a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente. (…) Assim, a reapreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância, caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas.”.
Porém, analisando tal prova produzida em audiência de julgamento forçoso é concluir, por demais evidente, que bem andou o Tribunal “a quo” ao dar como provado o acervo factual que o recorrente contesta.
Na verdade, da audição de toda a prova, nomeadamente das declarações do arguido B e da arguida A, dos depoimentos das testemunhas (….) e (…..), agentes da Polícia Marítima, (…..), (…..), Inspectores da Polícia Judiciária e (…..), testemunha arrolada pelo arguido, já que a outra testemunha arrolada pelo arguido B demonstrou não ter o conhecimento bastante para se pronunciar sobre os factos em julgamento, bem como em todfa a prova documental constante dos autos, auto de notícia por detenção de fls. 4 a 9, do documento de fls. 10, do auto de apreensão de fls. 14, do auto de teste rápido e pesagem de fls. 15, do auto de busca e apreensão de fls. 16 a 18, da reportagem fotográfica de fls. 19 a 21, do auto de notícia de fls. 104 a 104-verso, do relatório fotográfico de fls. 105 a 105-verso, do auto de apreensão de fls. 151, do auto de apreensão de fls. 165, do auto de nomeação de fiel depositário de fls. 166, do auto de teste rápido e pesagem de fls. 299-verso, do relatório de exame direto e de avaliação de fls. 308 a 310, da informação e das fotografias de fls. 315 a 318, do auto de notícia de fls. 322 e do auto de apreensão de fls. 324, dos relatórios de exame pericial de fls. 663 e 731, das declarações prestadas pelos arguidos, nas fases anteriores do processo, em sede de 1º interrogatório judicial de arguidos detidos e, em sede de instrução.
De facto, resulta inequívoco desta prova documental, auto de notícia de fls. 4 a 9, do documento de fls. 10, do auto de apreensão de fls. 14, do auto de teste rápido e pesagem de fls. 15, do auto de busca e apreensão de fls. 16 a 18, da reportagem fotográfica de fls. 19 a 21, do auto de notícia de fls. 104 a 104-verso, do relatório fotográfico de fls. 105 a 105-verso, do auto de apreensão de fls. 151, do auto de apreensão de fls. 165, do auto de nomeação de fiel depositário de fls. 166, do auto de teste rápido e pesagem de fls. 299-verso, do relatório de exame direto e de avaliação de fls. 308 a 310, da informação e das fotografias de fls. 315 a 318, do auto de notícia de fls. 322 e do auto de apreensão de fls. 324 e dos relatórios de exame pericial de fls. 663 e 731, que no dia 16-05-2022 os arguidos Yuliya e Milan estavam no interior da embarcação “TEXAS T” ao largo de Vilamoura, onde foram encontradas 436 embalagens com cerca de 200 Kg (duzentos quilogramas) de canábis (resina).
As declarações da arguida A confirmam estes factos e o arguido B afirma desconhecer a existência dos estupefacientes a bordo o que é confirmado pela a arguida A.
Contudo, estas meras declarações deverão ser confirmadas entre si e pela restante prova testemunhal.
Do confronto das declarações dos arguidos resultam contradições tão básicas, tão ingénuas que retiram toda a credibilidade às mesmas.
É certo que as diverenças entre as declarações são naturais e até atestam a sua veracidade, mas também não vale tudo, não existir uma única correspondência nas coisas mais básicas, nos encontros, no local do encontro 2 dias antes, nas explicações sobre a presença do arguido Milan na embarcação que apenas constituia um empecilho para os desígnios invocados pela arguida A, o entusiasmo infantil do mesmo pelas manobras com a prancha de “paddle surf”, o desencontro das horas de partida, a atitude dos arguidos relatados pelos elementos da Polícia Marítima e da Polícia Judiciária, os depoimentos das próprias testemunhas de defesa, tudo retira qualquer credibilidade às explicações fornecidas pelos arguidos.
Restando a objectivadade dos factos, as regras da razoabilidade e da experiência comum, para a análise da prova constante dos autos.
Resultando claro que andou bem o Tribunal “a quo”, na apreciação e valoração de tais elementos de prova, que apenas por reserva mental ou parcilidade, poderão admitir outra valoração.
Quanto aos aspectos de ordem subjectiva, é sabido que os elementos subjectivos são apurados em função dos factos objectivos que indiciam a atitude psicológica do agente para com o facto.
Com efeito, as intenções, as vontades, os conhecimentos, as representações mentais, porque do foro psíquico do sujeito, não são realidades palpáveis, sensitivamente perceptíveis, hipostasiáveis. Desse modo, a inerente percepção, nomeadamente para efeitos judiciais, só pode ser alcançada por via da ponderação dos comportamentos exteriorizados que, de um modo mais ou menos conclusivo, demonstrem esses estados psicológicos (nas palavras de Germano Marques da Silva, e na linha de pensamento de Cavaleiro de Ferreira, “a maior parte das vezes os actos interiores não se provam directamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores.”, Curso de Processo Penal, II, 1999, p. 101).
Pretender o contrário, conduziria a apenas ser possível demonstrar a atitude psicológica do agente para com o facto no caso de confissão. Tal perspectiva afigura-se manifestamente improcedente.
Assim, quanto a estes aspectos de ordem subjectiva, socorreu-se o Tribunal dos elementos objectivos disponíveis, chamando ainda à colação a doutrina do Acórdão da Relação do Porto de 23-02-83 quanto à intencionalidade, pertencendo o dolo “à vida interior de cada um”, sendo “portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, como maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência”. - Cfr. BMJ nº 324, p. 620.
Com efeito, a convicção do Tribunal quanto a estes factos, resultou da conjugação de todos os elementos de prova supra enunciados entre si, bem como, com as regras de experiência comum.
Quanto ao ponto 35 dos factos provados o mesmo resulta do documento Certificado do Registo Criminal junto aos autos, estando a informação extraída do registo criminal da República Eslovaca traduzida para a língua portuguesa a fls. 1211
Assim, face a este acervo de prova, terá de se concluir nos termos feitos pelo Tribunal “a quo”, pois nenhuma outra prova directa ou indirecta existe sobre a ocorrência de tais factos.
A prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada.
O julgador tem de apreciar e valorar a prova na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou “hominis”, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.
Ademais, ressalvado sempre o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, o mesmo olvida o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, norma de acordo com a qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
De harmonia com este aludido princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, estando tal apreciação apenas “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” – cfr. Professor Cavaleiro Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. I, pág. 211. “A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.
Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das “leges artis”, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios prova, de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente impondo-se por tal a imediação e a oralidade e a da dúvida inultrapassável, conduzindo ao princípio “in dubio pro reo”.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão
Não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e, em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.
Volvendo ao processo, bastará a simples leitura da decisão recorrida, designadamente da motivação da decisão de facto assumida na instância, para se alcançar o processo lógico-formal, o raciocínio efectuado pelo Tribunal “a quo” na ponderação das provas produzidas e privilegiadas na formação da convicção expressa no relato dos factos dados como provados.

É sabido que livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.
Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das “leges artis”, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do “favor rei”.
Posto isto, surge como evidente que a não aceitação, que o recorrente manifesta relativamente ao modo como o Tribunal “a quo” decidiu a matéria de facto, não radica na existência de provas que impusessem decisão diversa da que foi proferida, mas tão só na sua análise pessoal da prova e da sua vontade de a sobrepor à análise levada a cabo por quem tem o poder/dever de a fazer.
De igual modo, não se vislumbra que o Tribunal “a quo” haja violado o princípio “in dubio pro reo”, uma vez que pelos motivos expendidos na decisão recorrida a prova consente (e impõe) a convicção formada pelo Tribunal de 1ª instância e a violação de tal princípio suporia, de um lado, a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante, o que não ocorre, ou de outro modo, que o Tribunal demonstrada uma dúvida razoável ante a prova produzida a havia resolvido contra o arguido, o que também não ocorre.
Acresce e, salvo o devido respeito, que o recorrente B, na motivação do recurso, faz uma apreciação parcelar e selectiva da prova produzida na audiência de julgamento, descontextualizando-a e não a relacionando e valorando no seu efectivo sentido e naquilo que é essencial.
Assim, e ao contrário do que invoca o recorrente, não ocorre “in casu” qualquer erro na apreciação da prova.
O recorrente mais não pretende que contrapor as suas próprias convicções à convicção que o tribunal de 1ª instância formou sobre os mesmos factos, com base na prova produzida e livremente apreciada segundo as regras da lógica, da razão e da experiência, que se mostram devidamente respeitadas.
É inquestionável que o tribunal “a quo” fez uma análise e uma valoração da prova de acordo com as regras da lógica e da razão, explicou o porquê da decisão e o processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório e por isso não há nenhuma razão válida para questionar o acerto da decisão em matéria de facto.
Assim, não se verifica nenhuma violação do princípio da presunção da inocência, constante do artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, ou qualquer violação do princípio “in dubio pro reo”.
O que não viola qualquer garantia de defesa do arguido, nos termos do disposto no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, do disposto no artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do disposto no 14º, nº 2, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, do disposto no artigo 6º, nº 2, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
Assim, improcede na sua globalidade a impugnação alargada da matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal por parte do recorrente Milan Kovalcík.

- Da impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de facto, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal.
A alteração da factualidade assente na 1ª instância poderá ainda ocorrer pela verificação de algum destes vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe oficiosamente.
Em comum aos três vícios, terá o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, local mencionado supra.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.”, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local mencionados.
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na pronúncia e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Então do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada e não provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
Por outro lado, a decisão recorrida, como já se afirmou, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O Tribunal “a quo” decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Em consequência, mantém-se e, sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal “a quo”, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento oficiosamente ou a requerimento se imponha a este Tribunal “ad quem”.
Não se verifica nenhuma violação do princípio da presunção da inocência, constante do artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, ou qualquer violação das garantias de defesa arguido, nos termos do disposto no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, do disposto no artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do disposto no 14º, nº 2, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, do disposto no artigo 6º, nº 2, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem”, não pode deixar de julgar improcedente a invocada impugnação da matéria de facto por parte do recorrente Milan Kovalcik, artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal.

- Da impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de direito, quanto à medida concreta da pena a que a arguida (A) foi condenada e da sua suspensão.
Importa desde logo ter presente (faz doutrina e jurisprudência de há muito sedimentadas) que, em sede de medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico (na expressão de Cunha Rodrigues), no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, (também) neste particular, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e regularidade que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstracta determinada na lei.
Vale por dizer que o exame da concreta medida da pena estabelecida na instância, suscitado pela via recursiva, deve aproximar-se desta, senão, quando haja de prevenir-se e emendar-se a fixação de um determinado “quantum” em derrogação dos princípios e regras pertinentes, cumprindo precaver (desde logo à míngua da imediação e da oralidade de que beneficiou o Tribunal “a quo”) qualquer abusiva fixação de uma concreta pena que ainda se revele congruente e proporcionada.
Os critérios, que devem presidir à quantificação das penas concretamente aplicáveis, são os estabelecidos pelo artigo 71º, do Código Penal, sob a epígrafe “Determinação da medida da pena”, estatui:
“1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.
O nº 1 do artigo 40º do Código Penal estabelece como finalidade da aplicação de penas a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e, o nº 2 do mesmo normativo prescreve que em caso algum a pena ultrapasse a medida da culpa.
O momento inicial, irrenunciável e decisivo da fundamentação da pena repousa numa ideia de prevenção geral, uma vez que ela (pena) só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídico-penais.
Por outro lado, há que ter presente que um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa.
Sobre as finalidades da punição consignadas no artigo 40º, do Código Penal e sobre os critérios concretos a observar no doseamento da pena, apenas se dirá de forma resumida, reproduzindo Figueiredo Dias, em “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 84, que “a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais”.
Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente às penas concretas e adequadas, o artigo 71º, nº 1, do Código Penal preceitua, na senda do citado artigo 40º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o nº 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido.
A moldura penal abstracta para o crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, é pena de prisão de 4 a 12 anos.
Resulta do Acórdão recorrido:
“Tendo presentes estas considerações, é nosso entendimento que, no caso concreto revestem relevância os seguintes fatores:
 A qualidade do produto estupefaciente transportado pelos arguidos: a canábis consubstancia um estupefaciente com menor potencial aditivo [caracterizando-se, vulgarmente, como sendo uma «droga leve»], o que atenua o grau de ilicitude do facto;
 A dimensão da logística envolvida na operação de transporte da canábis: a operação de transporte envolveu o uso de uma embarcação de recreio (“TEXAS T”), em cuja estrutura foi acondicionada uma quantidade não despicienda (436) embalagens, depois de desmontados e remontados painéis de acesso àquela estrutura (cavername), evidenciando-se uma operação logística já com alguma envergadura e sofisticação, que, como tal, se configura como fator que eleva o grau da ilicitude;
 A quantidade da canábis transportada: os arguidos participaram no transporte de 213.045,73 gramas, que é uma quantidade elevada, suscetível de ser dividida em mais de um milhão de doses, o que configura um fator que eleva, de forma acentuada, a ilicitude; com efeito, embora as quantidades máximas fixadas no mapa anexo à Portaria nº 94/96, de 26/03, indicado nas perícias efetuadas ao produto apreendido não sejam de aplicação automática, constituem indicadores fortes dos quantitativos máximos de consumo médio individual, tendo o valor de prova reforçada, pelo que o julgador só pode divergir desse juízo se recolher elementos de prova que permitam, fundadamente, pôr em causa tais valores, nomeadamente, apurando o consumo médio de cada consumidor em concreto. Daí que o valor reforçado dos valores determinados nos exames periciais e limites fixados na identificada Portaria servirão para fixar o valor de referência no caso concreto se, dos autos, não resultarem elementos de prova sobre o consumo médio individual das pessoas a quem se destinavam (neste sentido, veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-02-2021, proferido no processo nº 1079/18.4GDVFR.P1, disponível em www.dgsi.pt);
 A coautoria, enquanto união de esforços que diminui as possibilidades de proteção do bem jurídico e maximiza as hipóteses de êxito da realização típica, constitui motivo de agravação;
 O lugar de cada um dos arguidos na estrutura da operação de tráfico de canábis: a arguida (A) forneceu o meio de transporte, essencial ao transporte da canábis, não só pelas suas dimensões, bem como pelas suas concretas características (permitindo estas a ocultação, na estrutura/esqueleto, das 436 embalagens de estupefaciente, ampliando as probabilidades de sucesso de operação, pela dificultação da deteção do produto pelas autoridades fiscalizadoras), bem como forneceu o know how na condução da embarcação; a intervenção de (B) cuja afirmação é possível fazer, queda-se no acompanhamento da operação, assegurando que o trajeto da embarcação se faz efetivamente conforme determinado pelo organizador do transporte, entre La Línea de La Concepción e Vilamoura;
 Desconhece-se o valor do ganho que cada um dos arguidos poderia ter obtido, caso a operação tivesse tido sucesso;
 A intensidade do dolo: ambos os arguidos agiram com dolo direto, sob a forma mais gravosa de culpa, a merecer um maior juízo de censura;
 As motivações que estiveram na base da prática do crime: a arguida (A) agiu com o intuito de obter uma compensação remuneratória cujo valor se não logrou, concretamente, apurar; as motivações de (B) não se lograram, em concreto, apurar;
 As condições pessoais e socioeconómicas dos arguidos (…);
 A conduta anterior aos factos: a arguida (A) é primária;
 A conduta posterior aos factos: a arguida (A) confessou os factos relativos à sua pessoa, tal como consignados demonstrados, todavia, tal confissão não assume particular relevância na medida em que não permitiu o apuramento de factos que não teriam resultado provados de outra forma, ao que acresce o facto, a sopesar negativamente, de haver veiculado para o Tribunal uma versão falsa da materialidade atinente ao arguido (B) que, a ter merecido credibilidade, isentaria o mesmo de responsabilidade;
(…)
Sopesando todos os fatores supra evidenciados, patenteia-se que a imagem global do ilícito praticado revela elevadas exigências de prevenção geral, pois ambos os arguidos aceitaram ser uma peça na cadeia que leva a droga do produtor aos consumidores, ultrapassando fronteiras, desse modo participando na globalização deste crime e não se importando de serem usados como instrumento descartável nas mãos dos grandes traficantes, tendo como única motivação, no caso de (A), o lucro, com total indiferença para os malefícios que do produto adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e da sociedade em geral.
Os tráficos de droga constituem, hoje, nas sociedades desenvolvidas, um dos fatores que provocam maior perturbação e comoção social, tanto pelos riscos (e incomensuráveis danos) para bens e valores fundamentais como a saúde física e psíquica de milhares de cidadãos, especialmente jovens, com as fraturas devastadoras nas famílias e na coesão social primária, os comportamentos desviantes conexos sobretudo nos percursos da criminalidade adjacente e dependente, como pela exploração das dependências que gera lucros subterrâneos, alimentando economias criminais, que através de reciclagem contaminam a economia legal.
O reconhecimento do fenómeno e da comoção social que provoca, faz salientar a necessidade de acautelar as finalidades de prevenção geral na determinação das penas como garantia da validade das normas e de confiança da comunidade.
O transporte internacional de estupefacientes, pela difusão rápida e eficiente das drogas junto dos mercados que abastecem os consumidores, constitui uma conduta especialmente danosa, cuja perseguição se mostra essencial para dificultar e impedir a circulação das drogas e o abastecimento daqueles mercados.
O que fica dito, não obsta a que, para efeitos de diferenciação da pena concreta a aplicar, se possa levar em consideração o tipo de contributo individual de cada um dos coautores, não podendo, concomitantemente, ser descuradas as finalidades de reinserção dentro do modelo de prevenção especial.
Assim sendo e tendo em vista o apuramento que se logrou, a contribuição de (A) parece ter assumido maior preponderância, na medida em que forneceu o meio de transporte (com características adequadas, nos termos acima expostos, a assegurar uma mais eficaz ocultação dos mais de 200 quilogramas de canábis transportados entre Espanha e Portugal), bem como pôs ao serviço da operação os seus conhecimentos especializados na condução da embarcação de sua pertença; por outro lado, a sua contribuição para a descoberta de verdade material, em função da demais prova produzida, não assumiu elevada expressão, na medida em que contribuiu ativamente para dificultar a atividade do tribunal, ao veicular uma versão dos factos que isentaria Milan Kovalčík de responsabilidade, caso houvesse sido merecedora de credibilidade.
Tudo ponderado, e tempo em conta o limite máximo imposto pela culpa, entende o tribunal ser de fixar as seguintes penas:
- À arguida (A), a pena de 6 anos de prisão;
(…)”.
Ora, atentos os factos julgados provados, os bens jurídicos protegidos pela incriminação e as circunstâncias indicadas na decisão recorrida, a quantidade de estupefaciente detida não se vislumbra na matéria sedimentado no Tribunal “a quo”, qualquer margem que permita afirmar que a medida da culpa da arguida (A) foi excedida, nomeadamente em confronto com a medida da pena do arguido (B), afigurando-se a pena fixada um acima do limite mínimo abstratamente previsto, como doseada em medida adequada aos factos apurados e ademais fixada com equilibrado critério.
Nestes termos, cremos que é de manter a pena de 6 (seis) anos de prisão aplicada à arguida (A), pela prática em autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela anexa I-C, posto que tal pena não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa –, antes se mostra adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassam a medida da culpa da arguida.
Face à medida concreta da pena de prisão aplicada e o disposto no artigo 50º, do Código Penal, resulta legalmente inadmissível a peticionada suspensão da execução da pena de prisão a que a arguida/recorrente se mostra efectivamente condenada, improcedendo também, nesta parte o recurso interposto.
Nestes termos, improcedem as pretensões recursivas da arguida/recorrente (A) relativas a medida da pena de prisão e suspensão da sua execução, confirmando-se consequentemente o Acórdão recorrido.

- Da impugnação do Acórdão proferido relativamente ao perdimento a favor do Estado da embarcação “TEXAS T”, nos termos do disposto no artigo 35º, do Decreto-Lei nº 15/93 de 22-01 (recurso da arguida A).
Resulta do regime da perda de objetos constante do artigo 35º do Dec. Lei nº 15/93, de 22-01:
"São declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infração prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos".
Significa isto que, a lei prescinde da perigosidade do objeto ou do risco de vir a ser utilizado na prática de outras infrações, bastando-se com a sua utilização na prática ou que resultem da prática de um crime previsto no diploma legal em apreço.
Do disposto no artigo 109º, do Código Penal, resulta:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática”.
A Jurisprudência tem conciliado estes textos legais com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação, sem esquecer que há ainda que ter em atenção o princípio constitucional da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, que define toda a providência sancionatória, a ponto de se poder afirmar que a perda só deve ser declarada, em regra, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objeto e a gravidade do ilícito.
Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-03-2004, "A perda dos «objetos que tiverem servido» «para a prática de uma infração» relacionada com estupefacientes, tem como fundamento a existência ou a preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre o objeto e a infração, de sorte que a prática da infração tenha sido especificamente conformada pela utilização do objeto; este há de ter sido elemento integrante da conceção material externa e da execução do facto, de modo que a execução não teria sido possível, ou teria sido essencialmente diferente, na modalidade executiva que esteja em causa, sem a utilização ou a intervenção do objeto. Na especificidade de execução dos diversos e amplos casos de factualidade típica dos crimes ditos de "tráfico de estupefacientes", a possibilidade, concreta e determinada, da utilização de certos objetos depende muito do tipo de atuação que estiver em causa.
O objeto há de ser, por um lado, apto à execução, ou para contribuir e condicionar de modo específico ou modelar dos termos da execução, de tal sorte que sem o auxílio ou o uso do objeto os factos que constituem a infração não teriam sido praticados, ou apenas teriam sido praticados de modo diferente, independente e autónomo, ou com neutralidade executiva do objeto.
Tudo dependerá, assim, da especificidade da conduta típica que esteja em causa, e da intervenção, neutra, direta ou instrumental, que o objeto possa ter tido, ou possa vir a ter, na execução do facto.".
Jurisprudência esta que concilia o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação, sem esquecer que há ainda que ter em atenção o princípio constitucional da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, que define toda a providência sancionatória, a ponto de se poder afirmar que a perda só deve ser declarada, em regra, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objeto e a gravidade do ilícito.
Resulta do Acórdão proferido:
“Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que o transporte da canábis apreendida, nos termos em que o foi, só se poderia ter efetivado mediante o uso da embarcação “TEXAS T”, por estar funcionalmente apta a acomodar, de modo totalmente dissimulado, mais de 213 quilogramas de canábis, divididos por 436 embalagens. Note-se que tal quantidade de estupefaciente apenas pôde ser ocultada – visando evitar que, em caso de fiscalização, o produto fosse de imediato detetado, mormente, pelas autoridades de polícia – porque o cavername da embarcação é oco e acessível mediante remoção dos painéis instalados, originariamente, pelo fabricante; a mesma quantidade de canábis (resina), podendo ser transportada num veículo automóvel que viajasse entre La Línea de La Concepción (Espanha) e Vilamoura (Portugal), jamais lograria ser dissimulada como o foi a apreendida nos autos, na medida em que nenhum automóvel possui uma estrutura, não imediatamente acessível a quem aceda ao respetivo interior, com tamanha capacidade de acomodação totalmente camuflada; ademais, consabido é que o transporte por terra envolve maiores riscos, por ser mais intensa a fiscalização rodoviária efetivada pelas autoridades com competência para tanto, não sendo, também, de escamotear que, para efetivar o trajeto no menor espaço de tempo possível e para entrar em território português, o automóvel transportando o estupefaciente sempre teria de passar frente ao posto de fronteira terrestre que liga o Algarve à Andaluzia, surgindo amplamente incrementadas as probabilidades de insucesso da operação.
Também o transporte por avião seria possível, em voos efetuados a partir do aeroporto de Gibraltar ou de Málaga (os mais próximos do porto de La Línea de La Concepción), com destino ao aeroporto de Faro; todavia, nesse caso, os arguidos apenas lograriam transportar no máximo, entre os dois e a cada viagem, 5 a 10 quilogramas de canábis, dissimulada em malas de porão - mormente, no respetivo forro, como é usual acontecer - que podem ser transportadas, por via aérea, quando o respetivo peso não ultrapasse 23 quilogramas. Teriam, pois, os arguidos de efetuar pelo menos 213 viagens aéreas, entre Espanha e Portugal, para lograrem o transporte dos 213045,73 gramas de produto estupefaciente apreendido nos autos, sujeitando-se, em todas essas viagens, ao risco, muitíssimo elevado, de ser detetado, nos controlos de bagagens, o produto ilícito.
Em suma, patente é que, sem o uso da embarcação “TEXAS T”, o transporte de canábis efetivado pelos arguidos não teria tido lugar nos termos em que ocorreu, estando estabelecido o nexo de instrumentalidade entre a utilização do veleiro e a prática do crime (por apelo a critérios de causalidade adequada). Tal relação reveste, no entendimento do tribunal, um caráter significativo, afigurando-se proporcional a perda do instrumentum sceleris, tendo por referência a relevância do facto delitivo. Com efeito, releva sopesar que a embarcação de recreio em causa, tripulada por (A) (à qual foi atribuído um valor de 150000,00€, conforme flui do relatório de exame direto e avaliação constante de fls. 308 a 310, cujo teor não foi objeto de impugnação), foi utilizada pelos arguidos como meio de transporte das placas de canábis, entre o porto de La Línea de La Concepción (Espanha) e Vilamoura (Portugal), onde se propunham descarregá-las (numa distância não inferior a cerca de 180 milhas náuticas, conforme pode apurar-se, em qualquer calculadora de distância do mar, acessível, em fontes abertas, na internet); os arguidos transportaram, na dita embarcação, 2180 placas de canábis (resina), com o peso líquido total de 213045,73 gramas (suficiente para gerar 1107428 doses individuais), não podendo tal utilização deixar de figurar-se como essencial para o cometimento do crime, nos termos anteriormente expostos, podendo mesmo, no contexto, concluir-se que foi por ter o veleiro na sua posse que (A) foi agenciada para a prática do crime; acresce estar em causa um crime de tráfico de estupefacientes que assume dimensão internacional, envolvendo o Reino de Espanha e a República Portuguesa. Somos, pois, a entender, sopesados todos estes fatores, que a declaração de perda da embarcação, instrumenta sceleris, não desequilibra o necessário, referenciado, sentido de proporcionalidade.
Será, pois, declarada perdida a favor do Estado a embarcação denominada “TEXAS T”, acompanhada do respetivo certificado de registo, fatura nº A/9.465 e documento 115.303 (fls. 21), bem como o bote auxiliar da mesma, por funcionalmente ligado àquela”.
No caso dos autos consta da matéria de facto provada que a embarcação “TEXAS T” transportava no seu interior cerca de 200 quilogramas de resina de canábis e como se deu nota no Acórdão recorrido, não fora este transporte utilizado, esta embarcação, em muito estaria dificultada ou impossibilitada a actividade desenvolvida pelos Arguidos.
Pelo que a respetiva utilização da embarcação “Texas T” desenvolvia uma função instrumentalmente necessária e essencialmente modeladora do modo de cometimento da infração, não podendo o crime ser praticado na forma em que o foi, com a utilização de um veículo automóvel, revestindo tal utilização nos termos que resultaram provados, um sentido funcionalmente relevante que é exigido para o preenchimento do pressuposto de que a lei faz depender a declaração de perda.
Também existe proporcionalidade entre a quantidade de estupefacientes transportados e o valor da embarcação apreendida.
Por tal, deve a mesma embarcação “Texas T” ser declarada perdida a favor do Estado.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente a impugnação do Acórdão proferido, pela arguida Yuliya Pilnenko, relativamente ao perdimento a favor do Estado, da embarcação “TEXAS T”, do respetivo certificado de registo, da fatura nº A/9.465 e do documento 115.303 (fls. 21), bem como o bote auxiliar da mesma, por funcionalmente ligado àquela.

Nestes termos, improcedem todas as pretensões recursivas dos recorrentes (A) e (B), confirmando-se consequentemente o Acórdão recorrido.

Em vista do decaimento total nos recursos interpostos pelos arguidos (A) e (B), ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 5, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação individual dos recorrentes nas custas, fixando-se a taxa de justiça individual em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que gozem.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos (A) e (B), confirmando-se o Acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes fixando-se a taxa de justiça individual em 4UC, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que gozem.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 05-03-2024
Fernando Pina
Fátima Bernardes
Maria Perquilhas