Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
54/14.2PBPTM-A.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CULPA DO ARGUIDO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A revogação da suspensão da execução da pena de prisão só deve ter lugar quando seja a única forma de conseguir alcançar as finalidades da pena.
II - A infração, pelo condenado, com culpa grosseira, dos deveres impostos para a suspensão da execução da pena de prisão, não se pode presumir, tendo de resultar de factos e elementos concretos constantes dos autos.
III - Não existem tais factos e elementos quando o regime de prova não chegou sequer a iniciar-se, nem foi elaborado o plano de reinserção social, por não se ter logrado o contacto com o condenado.
IV - Mostrando-se decorrido o período de suspensão da execução da pena de prisão, sem que se verifiquem fundamentos para a sua revogação (seja pela inexistência do registo de crimes cometidos em tal período, seja pela impossibilidade de formular a conclusão de que o arguido, com culpa grave e grosseira, incumpriu as suas obrigações, impedindo a elaboração do plano de reinserção social), deve a pena ser declarada extinta.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

No processo comum nº 54/14.2PBPTM-A, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Criminal de Portimão, Juiz 4, o arguido (A) foi condenado por acórdão desta Relação, transitado em julgado no dia 01/09/17, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p., pelo Artº 21 nº1 da Lei 15/93, de 22/01, com referência à sua Tabela I-B anexa, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa por igual período com regime de prova, nos termos dos Artsº 50 e 53, ambos do C. Penal.

Por despacho de 17/09/19 foi determinada a revogação da suspensão da execução da mencionada pena de prisão, determinando-se, em consequência, o cumprimento efectivo por aquele da pena de 5 anos de prisão, despacho que veio a ser revogado, por acórdão desta Relação, transitado em julgado no dia 28/10/20, onde se determinou que o tribunal a quo, deveria “…oportunamente, decidir sobre tal matéria, após a realização das diligências que repute como necessárias com vista a esclarecer os motivos que ditaram o incumprimento do arguido na elaboração do plano de reinserção social
Em cumprimento da assim decidido, foi determinada a realização de relatório social, com vista a apurar junto do arguido, ou, na impossibilidade de localização deste, indagar junto de familiares e/ou amigos, os motivos do incumprimento das condições da suspensão da execução da pena de prisão, tendo ainda sido efectuadas diversas diligências tendentes a apurar o seu paradeiro.

Todavia, não se logrou, nem efectuar o aludido relatório social, nem descortinar o paradeiro daquele ou de algum familiar que o pudesse indicar, pois todas as diligências efectuadas nesse sentido não tiveram sucesso, vindo o MP a promover a revogação da suspensão da execução da pena de cinco anos de prisão que havia sido aplicada ao arguido.

Em 20/10/23, foi proferido, pelo M.mº Juiz a quo o seguinte despacho (transcrição):

1. (A) foi condenado, por último, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, transitado em julgado no dia 01/09/2017, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, por idêntico período, com regime de prova.
Mostra-se decorrido o prazo de duração da suspensão da execução da pena de prisão.
Do certificado registo criminal emitido no pretérito dia 9 do corrente mês e ano verifica-se que, após o registo da decisão relativa aos presentes autos, nenhuma outra ali consta.
Não se logrou elaborar o plano de reinserção relativo ao regime por não se ter conseguido localizar o arguido.
Após as inúmeras tentativas que os autos espelham, também não se alcançou o paradeiro do arguido no sentido de o notificar para proceder à sua audição nos e para os termos do artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
2. Cumpre apreciar.
2.1. Sobre a revogação da suspensão pena prescreve o artigo 56.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, desta forma:
«1- A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado».
2.2. Poderá estar em causa a eventual revogação fundada na actuação da previsão da al. a) do n.º 1 do artigo 56.º do Código Penal.
Na situação em apreço o primevo juízo de prognose foi favorável quanto ao comportamento futuro do arguido aduzindo-se ser «razoavelmente de esperar que o mesmo passe a conduzir a sua vida de acordo com o direito, assim evitando os riscos de fractura laboral e social decorrentes da execução da prisão» isto em função do circunstancialismo ali referido, cf. o Acórdão da Relação junto aos autos a fls. 497 e s., máxime fls. 552 e s.
Mais se aduziu que a «reintegração social do arguido se poderá fazer ainda em liberdade sem pôr em causa a protecção do bem jurídico violado».
Pois bem.
O regime de prova não chegou sequer a iniciar-se, nem foi elaborado o plano, por não se ter logrado o contacto com o arguido.
Todavia, importa ter em atenção:
a) que dos autos não decorre que o arguido tenha tido efectivo conhecimento do Acórdão do Tribunal Superior que suspendeu a execução da pena para, de modo minimamente seguro, se poder indiciar que esclarecidamente decidiu «virar de costas»;
b) que os factos pelos quais foi condenado se referem ao ano de 2014;
c) que o arguido não regista qualquer condenação após a que sofreu nos presentes autos com trânsito em julgado no dia 01/09/2017.
Se a suspensão da execução da pena não pode deixar de ser entendida como uma medida pedagógica e reeducativa com vista à realização, de forma adequada, das finalidades da punição, isto é, da protecção de bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade, como se dispõe no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, então em face da total ausência de condenações e decorridos que se mostram mais de 5 anos sobre o trânsito, ou mais de 9 anos sobre a data dos factos, o que se pode concluir, de modo objectivo, é o sucesso da sua aplicação, ou seja, o afastamento do arguido da criminalidade.
E este é o desiderato é mais valioso.
Mais valioso do que a hipotética violação do instrumento escolhido (= o regime de prova eventualmente impedido) para coadjuvar ou catalizar a obtenção de tal objectivo.
Sem prejuízo de, ao desconhecerem-se as razões da ausência do arguido e sua natureza, também não podermos concluir que o arguido, de caso pensado, tenha decido inviabilizar o regime de prova, acresce, nesta situação concreta, que a revogação da suspensão da pena estritamente fundada na inviabilização do regime de prova – que, enfatize-se, constitui um instrumento vocacionado também à integração do agente e, consequentemente ao seu afastamento da criminalidade –, acabaria por ser desproporcional, logo por desnecessária, e ademais contraproducente por acarretar a directamente a reclusão com a consequente (ainda que temporária) desinserção social e familiar do arguido.
3. Decidindo.
Pelo exposto, por se mostrar já decorrido o período de suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado (A) sem que se verifiquem fundamentos para a sua revogação, declaro extinta a pena, nos termos do artigo 57.º, n.º 1, do Código Penal.
Notifique.
Boletins ao registo.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP, tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição):

1. O Ministério Público interpõe o presente recurso, por não concordar com a decisão - não obstante a mais elevada e devida consideração que a mesma nos merece -, proferida nos presentes autos no dia 20 de Outubro de 2023, nos termos da qual, foi decidido «por se mostrar já decorrido o período da suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado (A) sem que se verifiquem fundamentos para a sua revogação, declaro extinta a pena, nos termos do artigo 57.º, n.º 1, do Código Penal».
2. Com efeito, no âmbito dos presentes autos, por acórdão transitado em julgado em 1 de Setembro de 2017, (A) foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período e acompanhada de regime de prova.
3. Não se logrou efectuar o plano de reinserção social em virtude de (A) se ter ausentado para a parte incerta, sendo certo que, no limite do razoável, foram esgotadas todas as diligências (infrutíferas) tendentes a descortinar o actual paradeiro daquele e ou de familiares do mesmo (cfr. fls. 856, 857, 862 a 867, 871 a 873, 876, 877, 881, 882, 884 e 887 e ref.ªs 10608038 -28/10/2022; 11294781 -16/05/2023).
4. Nos termos do disposto no artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal:
"1- A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social ."
5. Sendo certo que, à revogação, não obsta a circunstância de não se ter procedido à audição (nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) de (A) em virtude de ser desconhecido o seu paradeiro[1].
6. No caso sub judice e, após, esgotadas todas diligências (infrutíferas) tendentes à localização de (A), cremos que, outra conclusão não pode ser alcançada que não seja a de que este, ao se ter ausentado para parte incerta, quis voluntariamente impossibilitar a realização do plano de reinserção social e, por conseguinte, infringiu de forma grosseira os deveres impostos na condenação, impondo-se, assim, a revogação da suspensão da execução da pena de prisão (cfr. neste sentido: o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12/10/2021, cuja relatora foi a Exm.ª Desembargadora Fátima Bernardes e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/10/2018, cuja relatora foi a Exm.ª Desembargadora Elsa Paixão. Ambas as decisões estão disponíveis em texto integral em www.dgsi.pt).
7. Na verdade, com todo o respeito, não podemos concordar com a brandura com que o despacho sob recurso subvaloriza o incumprimento do regime de prova, ignorando o comportamento relapso de (A) perante a solene advertência que constitui a condenação numa pena suspensa, em particular quando acompanhada do regime de prova[2].
8. Com efeito, desatender a tal comportamento é ao mesmo tempo desvalorizar o acórdão condenatório e, enviar a (A) (e à sociedade) um sinal de que a sua atitude de, passe a expressão, fazer «orelhas moucas» acabou por ser premiada.
9. Por último e, sempre ressalvado o respeito pela generosidade do argumento aduzido no despacho sob recurso, nos termos do qual, (A) poderá não ter tido conhecimento do acórdão proferido em sede de recurso pelo Tribunal da Relação de Évora, cremos que, o mesmo, passe a expressão, «cai por terra», pelas seguintes ordens de razão: primeira: em sede de acórdão condenatório proferido pela 1.ª instância, (A) foi condenado na pena de 7 anos e 6 meses de prisão, o que parece inculcar que o mesmo «virou costas» para parte incerta, com receio de ter de cumprir tal pena de prisão e segunda (provavelmente a decisiva): a lei processual penal (cfr. artigo 425.º, n.º 6, do Código de Processo Penal) considera o arguido notificado do acórdão proferido pelo Tribunal de recurso na pessoa do seu defensor, cabendo àquele diligenciar para se inteirar do destino que lhe coube e, em particular manter actualizado o seu paradeiro e, assim nomeadamente, tomar conhecimento das convocatórias efectuadas pela DGRSP e ou das notificações efectuadas pelo Tribunal.
10. Termos em que, por o Tribunal a quo ter interpretado incorrectamente os artigos 56.º, n.º 1, alínea a) e 57.º, n.º 1, ambos do Código Penal, deverá o despacho sob censura ser revogado e substituído por outro que declare revogada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos presentes autos a (A) e, em consequência, determine o efectivo cumprimento daquela.

C – Resposta ao Recurso

Na sua resposta o arguido pronunciou-se pela improcedência do recurso, com as seguintes conclusões (transcrição):

a. Nos termos do disposto no artigo 56º do C.P, a suspensão da execução da pena de prisão pode ser revogada se, entre o mais, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social.
b. A revogação da pena de substituição carece de uma apreciação judicial sobre se a personalidade e condições de vida do condenado e o circunstancialismo que envolveu a sua conduta culposa posterior ao crime revela, em concreto, à luz dos fins das penas, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo concluir-se, por isso, que se frustraram as expectativas que motivaram a concessão daquela medida, ou se, pelo contrário, apesar do incumprimento, subsistem ainda fundadas expectativas de ressocialização em liberdade.
c. As causas de revogação da medida não são de funcionamento automático, antes deverão indiciar a falência, irremediável, do juízo de prognose inicial que fundamentou a sua aplicação e a anulação infalível da esperança de, por meio daquela, manter o delinquente, no futuro, afastado da criminalidade.
d. Só será legítimo concluirpelarevogaçãoda suspensãoe aplicação da pena deprisão se existirem, efectivamente e em concreto, elementos de facto para concluir que o condenado não só actuou de forma grosseira (com culpa) mas também não oferece as condições pessoais essenciais ao êxito do seu processo de reinserção social em liberdade nem revela a motivação para tanto necessária - Neste sentido, veja-se o explanado no douto Acórdão desse Venerando Tribunal da Relação, no Processo 279/13.8GBTNV-B.E1, datado de 16/02/2016, relatado por Maria Isabel Duarte, in www.dgsi.com.
e. Dos autos, factual e objectivamente, e como resultado da consulta às bases de dados respectivas, não resulta que o arguido haja sido condenado, por decisão transitada em julgado, pela prática de qualquer crime após o trânsito em julgado da presente condenação; Nada foi carreado para os autos que demonstre que o juízo de prognose favorável feito pelo Venerando Tribunal da Relação, no momento em que decidiu pela suspensão da execução da pena, se haja frustrado.
f. É jurisprudência unânime do Supremo Tribunal de Justiça, que o Tribunal só poderá declarar revogada a suspensão da execução da pena por incumprimento das condições da suspensão, se este incumprimento for culposo; é necessário que fique demonstrado que o condenado não cumpriu, falhou, por vontade própria; é necessário apreciar a sua culpa. E, nada resulta dos autos que permita fazer tal juízo de culpa na actuação do condenado.
g. Tendo o Recorrido sido condenado, por último, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, transitado em julgado no dia 01/09/2017, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, por idêntico período, com regime de prova, é inequívoco que se mostra decorrido o prazo de duração da suspensão da execução da pena de prisão.
h. Nesta confluência, a douta decisão recorrida não merece reparo, devendo manter-se nos seus exactos termos.
NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO, que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao recurso interposto e, consequentemente, ser mantida a decisão recorrida nos seus exactos termos.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que militou pela procedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, o recorrente não apresentou resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que este fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente retira das respectivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão ao recorrente na questão que suscita de haver lugar à revogação da suspensão da execução da pena que foi aplicada ao arguido nos autos.

B – Apreciação

Diz o nº1 do Artº 56 do C. Penal que «A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente, os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou

b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas».
Acrescenta o nº2 do citado artigo que “a revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença (…)”
É pacificamente entendido, doutrinária e jurisprudencialmente falando, que a revogação da suspensão da execução da pena não funciona ope legis, não bastando para a sua verificação o mero incumprimento dos deveres ou regras de conduta que foram impostos ao condenado.
Nesta medida, está afastado um cenário frio e positivista do qual decorra, automática e necessariamente, do incumprimento dessas regras, a revogação da suspensão, na medida em que esta só deverá ser decretada se for de concluir, do dito incumprimento, que as finalidades que estiveram na base da suspensão da execução da pena não foram alcançadas.
Se o que está em causa, com a suspensão da execução da pena é, naturalmente, a integração comunitária do agente, então a sua suspensão só deve ser revogada se as finalidades da punição não forem conseguidas, sendo que para estas assumem especial privilégio as de prevenção especial, com o desiderato do afastamento do delinquente da criminalidade.
No fundo, o que importa é saber se, apesar da prática, pelo arguido, de ilícitos no período de suspensão, ou do seu incumprimento dos deveres a que a suspensão da execução da pena estava condicionada, ainda é possível formular um juízo de prognose positiva em relação ao seu futuro, evitando-se, desse modo, a revogação daquela, que só deve ter lugar quando se concluir que tal juízo é inalcançável, estando assim irremediavelmente comprometidas as esperanças de reintegração social que estiveram na base da aplicação da uma pena de prisão suspensa.
Como dizem Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, I Vol., 3ª Ed., pág 711, “As causas de revogação não devem, pois, ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão. O arguido deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da pena”.
Como se disse no Acórdão da Relação de Évora, de 10/04/02, no Proc. 307/03.3GESTB.E1, «Daí que sejamos a entender que só a rebeldia intolerável do arguido e a inultrapassável obstinação em manter-se no crime, bem como o fracasso da esperada emenda cívica resultante da suspensão, justifiquem a revogação da suspensão da execução da pena.
Pelo que as causas de revogação da suspensão da execução da pena não deverão ser entendidas formalmente, antes deverão perfilar indiciariamente o fracasso, em definitivo, da prognose inicial que determinou a sua aplicação, a infirmação, certa, da esperança de, por meio daquela, manter o delinquente, no futuro, afastado da criminalidade».
O que é garantido, é que o tribunal deve ponderar a possibilidade de manutenção da ressocialização em liberdade, esgotando os meios legais de intervenção penal fora da prisão como garantia das finalidades da punição, importando não olvidar que o momento pelo qual essa aferição é feita se reporta à precisa data em que se decide da revogação, ou não revogação, da suspensão da execução da pena.
Daí que se exija ao julgador a ponderação destes critérios, fazendo depender a decisão de eventual revogação da suspensão da execução da pena, da audição do condenado e de parecer prévio do M.P., prevendo até a possibilidade de recolha de prova, tudo como estipulado nos termos do Artº 495 nº2 do CPP.
Descendo ao concreto da situação sub judice, entende-se que parece haver alternativa ao pretendido pelo recorrente, subscrevendo-se assim a conclusão, retirada pelo tribunal a quo, que a postura processual do arguido não coloca definitivamente em causa as finalidades que fundaram a suspensão da execução da pena de prisão.
É verdade que o arguido e ora recorrido não teve a preocupação de entrar em contacto com os serviços da DGRSP, demonstrando assim, perante o tribunal, desinteresse na elaboração de um regime de prova de cujo cumprimento dependia, também, a suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão em que foi condenado.
Trata-se de uma postura censurável, que não dá bons indícios quanto à sua conduta processual, de alguma indiferença pelas obrigações de que depende a manutenção da suspensão da execução da pena, um deixa andar processual reprovável e que, provocou até que não se chegasse, sequer a elaborar o plano que consubstanciaria o aludido regime de prova.
Todavia, a verdade é que ficaram por apurar as circunstâncias concretas em que tal postura foi desenvolvida, ou seja, as razões que levaram o arguido a não ter colaborado na elaboração do plano de reinserção social, designadamente, por ser completamente desconhecido o seu actual paradeiro, pelo que não é possível concluir, em definitivo, que tal evento se verificou, exclusivamente, por causa que lhe seja imputável. (Cfr., neste sentido, Acórdão desta Relação, de 16/02/16, Proc. 279/13.8GBTNV-B.E1).
Também em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. 254/15.8PCCBR-B.C1, de 13/09/17, se escreve que “…a falta de comparência [às convocatórias da DGRSP], não justificada pelo recorrente, conjuntamente considerados, traduzem um comportamento culposo mas, o grau de culpa não atinge, em nosso entender, uma intensidade tal que imponha concluir que comprometeu irremediavelmente o juízo de prognose favorável e a aposta na reinserção em liberdade do recorrente, que estão na base do decretamento da pena de substituição. III - A revogação da suspensão da execução da pena de prisão só deve ter lugar quando seja a única e última forma de conseguir alcançar as finalidades da pena sendo, portanto, cláusula de ultima ratio.”
Ainda em aresto da mesma Relação, proferido em 19/02/20, no Proc. 54/13.0JAGRD.C1 se plasmou:
“Os elementos objetivos dos autos apenas nos dizem que o arguido impossibilitou a sua audição, nos termos previstos na lei.
Concede-se que a conduta do arguido revela incúria (negligência), ao não informar no processo a alteração da sua morada.
Contudo, tal é insuficiente para se concluir por uma culpa grosseira.
A culpa grosseira do condenado não se pode presumir. Tem de resultar de factos ou elementos concretos.
O Tribunal, em 2019, ao revogar uma suspensão de execução de uma curta pena de prisão (18 meses), relativa a factos ocorridos em 2013, tem de estar ciente do que levou o arguido a eximir-se dos seus deveres, assim como da sua atual situação, designadamente, saber se está integrado socialmente.
Só assim poderá concluir pela existência de culpa no incumprimento bem como pela culpa grosseira.
A suspensão da pena foi decretada em função de razões de prevenção e porque foi feito um juízo de prognose positiva nesse sentido.
A nosso ver, a revogação só seria justificável se o tribunal, fundamentadamente, formulasse a convicção no sentido de que o juízo de prognose que estivera na base da suspensão da execução da prisão não seria já viável.
Ora, os elementos processuais existentes não permitem formular, com o devido grau de certeza, ainda, esse juízo.
O que equivale a dizer que a revogação da suspensão pelo tribunal a quo é excessiva para a conduta do arguido, desde logo por ser prematura, face ao desconhecimento em concreto dos reais motivos que levaram à não comunicação aos autos da nova morada e aos motivos pelos quais não diligenciou pelo início do regime de prova.”
O incumprimento culposo, por si só, não conduz à revogação da suspensão da execução da pena.
Só quando o incumprimento for irremediável, no sentido em que a assinalada atitude de descuido ou leviandade se transforme na infracção grosseira do dever a que estava obrigado, como exige a al. a) do Artº 56 do C. Penal é que se deve determinar a revogação da suspensão da execução de pena (Cfr, neste sentido, Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 201).
Nessa medida, e com o devido respeito por opinião contrária, não se crê que seja possível afirmar que o arguido colocou em crise, de modo irreversível, a sua reintegração social e que seja já inviável a manutenção do juízo de prognose favorável no sentido de não voltar a delinquir e de, no futuro, pautar o seu comportamento pela conformação com as normas comunitárias.
Por outro lado, se não deve ser esquecida a natureza do crime em causa, importa ter em conta que os factos remontam a 2014 e não é conhecida ao arguido, de então para cá, a prática de quaisquer ilícitos.
Não havendo nos autos razões que, de forma cabal, permitam esclarecer o comportamento omissivo do ora recorrido, acredita-se que o juízo que esteve na base da suspensão da execução da pena de prisão ainda se mantém, tanto mais que as consequências de uma eventual revogação seriam claramente contraproducentes, tendo em conta, desde logo, a dimensão da pena de prisão em que foi condenado e a circunstância de não ser legalmente admissível a sua substituição por qualquer outra forma de cumprimento que não a prisão efectiva.
Com efeito, como é ampla e pacificamente defendido pela doutrina e jurisprudência, a suspensão da execução da pena de prisão é, em si própria, uma pena de substituição, pelo que a sua revogação, à semelhança das demais penas de substituição, determina o cumprimento da pena principal, ou seja, como diz o nº2 do Artº 56 do C. Penal «determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença».
Daí que a pena a cumprir na sequência de revogação da suspensão da execução da pena de prisão inicialmente aplicada não possa ser executada nas modalidades previstas nos Artsº 43 a 47 do C. Penal.
A ponderação global dos valores em jogo e a avaliação exigida pelo Artº 56 do C. Penal, face ao circunstancialismo do caso concreto, não devem implicar a conclusão pretendida pelo recorrente, com profundas implicações na vida do arguido e que não parece justificar-se, na medida em que não está demonstrado, sem margem para qualquer dúvida, que as finalidades que estiveram na base da suspensão não possam, por meio dela, ser alcançadas, o que implicaria a conclusão de um fracasso definitivo da prognose inicial.
Se assim é, ter-se-á de concluir pela manutenção de um juízo de prognose favorável para a sua futura conduta, o que afasta a necessidade de cumprimento efectivo da pena de prisão, revendo-nos nas considerações aduzidas pelo tribunal recorrido e que agora se recordam:
“Se a suspensão da execução da pena não pode deixar de ser entendida como uma medida pedagógica e reeducativa com vista à realização, de forma adequada, das finalidades da punição, isto é, da protecção de bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade, como se dispõe no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, então em face da total ausência de condenações e decorridos que se mostram mais de 5 anos sobre o trânsito, ou mais de 9 anos sobre a data dos factos, o que se pode concluir, de modo objectivo, é o sucesso da sua aplicação, ou seja, o afastamento do arguido da criminalidade.
E este é o desiderato é mais valioso.
Mais valioso do que a hipotética violação do instrumento escolhido (= o regime de prova eventualmente impedido) para coadjuvar ou catalizar a obtenção de tal objectivo.
Sem prejuízo de, ao desconhecerem-se as razões da ausência do arguido e sua natureza, também não podermos concluir que o arguido, de caso pensado, tenha decido inviabilizar o regime de prova, acresce, nesta situação concreta, que a revogação da suspensão da pena estritamente fundada na inviabilização do regime de prova – que, enfatize-se, constitui um instrumento vocacionado também à integração do agente e, consequentemente ao seu afastamento da criminalidade –, acabaria por ser desproporcional, logo por desnecessária, e ademais contraproducente por acarretar a directamente a reclusão com a consequente (ainda que temporária) desinserção social e familiar do arguido.”
Nesta medida, mostrando-se decorrido o período de suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado, sem que se verifiquem fundamentos para a sua revogação – seja pela inexistência do registo de crimes cometidos em tal período, seja pela impossibilidade de formular a conclusão de que o arguido, com culpa grave e grosseira incumpriu as suas obrigações impedindo a elaboração do plano de reinserção social a elaborar pelos serviços da DGRSP – deve a pena ser considerada extinta, nos termos do Artº 57 nº1 do C. Penal.
E assim improcede o recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 20 de fevereiro de 2024
Renato Barroso
João Gomes de Sousa
Filipa Costa Lourenço
__________________________________________________
[1] Cfr. neste sentido: Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª edição, Universidade Católica Editora, 2015, p. 318 (anotação 11) e, bem assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/09/2016, cuja relatora foi a Exm.ª Desembargadora Olga Maurício e, que se mostra disponível em texto integral em www.dgsi.pt
[2] Nestes considerandos, seguimos de perto o explanado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/07/2021, cujo relator foi o Exm.º Desembargador Abrunhosa de Carvalho e que se mostra disponível em texto integral em www.dgsi.pt