Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
197/22.9T9LLE.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
CULPA
DOLO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Enquadrando-se, no caso em apreço, todos os crimes no chamado direito penal clássico, a consciência da ilicitude decorre da própria representação e vontade de praticar os factos que preenchem objectivamente o tipo penal.
Isto numa perspectiva. Noutra, temos como certo que a consciência da ilicitude não faz parte do dolo, tal como o mesmo se prevê no artº 14º do Cód. Penal, onde se referem apenas os elementos cognitivo (saber) e volitivo (querer) do mesmo.

A consciência da ilicitude (ou melhor, a falta dela) surge no artº 17º do Cód. Penal por referência à culpa e não ao dolo.

Assim sendo, para se considerar o r.a.i. completo basta que o requerente alegue os acima referidos elementos cognitivo e volitivo.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

Apreciando o r.a.i. apresentados pelos assistentes AA e BB foi proferido o seguinte despacho:

“- DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO:

Nos presentes autos, AA e BB requereram a abertura de instrução na sequência da prolação do despacho final de arquivamento, proferido com fundamento na falta de indícios suficientes da prática por parte dos crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181º, n.º 1, de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 191º, de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, n.º 1, de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, n.º 1, e 155º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 131º, e de furto, previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1, todos do Código Penal, de harmonia com o disposto no artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

No requerimento de abertura de instrução, os assistentes concluem pela existência de indícios suficientes relativamente aos crimes de ameaça agravada, injúria, dano qualificado, furto e ameaça simples no que toca à arguida CC; quanto ao arguido DD concluí existirem indícios pela prática de um crime de dano qualificado, pugnando a prolação do consequente despacho de pronúncia.

Cumpre apreciar e decidir.

De harmonia com as disposições conjugadas dos arts. 287.º, n.º2, in fine, e 283.º, n.º 3, alínea b) e d) , ambos do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido, ou arguidos, de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Na apresentação do R.A.I. por parte do assistente, a Lei exige que o assistente proceda em termos idênticos àqueles que caberiam ao Ministério Público, na prolação de uma acusação, e em que a descrição factual dos elementos objectivos e subjectivos do tipo ou tipos, pelos quais o arguido deverá ser pronunciado, funcionam como a fixação do objecto do processo, i.e., do seu thema probandum. Com efeito, “ (…) Integrando o requerimento de instrução razões de perseguilidade penal, aquele requerimento contém um a verdadeira acusação; não há lugar a uma nova acusação; o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, «formal e materialmente a acusatoriedade do processo», delimitando e condicionado a actividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia. (…)” - in Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol III, p. 125, apud Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005.

Por outro lado, a jurisprudência tem-se pronunciado no sentido do objecto da instrução ser rigorosamente fixado pelo requerimento de abertura de instrução, não podendo ser considerados quaisquer outros factos para efeitos de juízo de indiciação, “I – O requerimento para abertura da instrução equivalerá em tudo a uma acusação, condicionando e limitando, nos mesmos termos que a acusação formal, seja pública, seja particular, a actividade de investigação do juiz e a própria decisão final, instrutória. É que, tal como acontece na acusação, também, no caso, o requerimento de abertura de instrução tem em vista delimitar o thema probandum da actividade desta fase processual. (…) II – O objecto da instrução tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, dito de uma forma simplista, os factos narrados como integrantes da conduta ilícita do agente têm de “caber” nos elementos objectivos e nos elementos subjectivos do tipo legal em causa (do respectivo preceito).” – in Acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Maio de 2010 - processo n.º 1948/07.7PBAMD- A.L1-9, disponível em www.dgsi.pt.

A própria jurisprudência do Tribunal Constitucional igualmente já se havia pronunciado no sentido de “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.” – in Acórdão do TC n.º 358/2004, de 19 de Maio, publicado na 2.ª série do D.R. n.º 150, de 28 de Junho de 2004.

Compulsado o requerimento de abertura de instrução constata-se que não foi dado cumprimento ao imperativo legal supra enunciado, porquanto neste não consta a descrição da factualidade conjunta de todos os elementos que, provados, pudessem integrar-se nos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de ilícito pelos quais se pretende a prolação do despacho de pronúncia.

Acresce que, nos termos do disposto no artº 309º do CPP, a decisão instrutória é nula, na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento de abertura da instrução.

Conforme sabemos, o processo penal rege-se pelos princípios do acusatório e do contraditório, pelo que o requerimento de abertura da instrução, quando requerida pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público, deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo os factos que consubstanciem o ilícito, cuja prática imputa ao arguido.

De facto, é o requerimento de abertura da instrução que vai delimitar o objecto da fase de instrução, sendo que o arguido tem de estar identificado e conhecer todos os factos situados no espaço e no tempo que em concreto lhe são imputados para que se possa defender, bem como a indicação do ilícito pelo qual se pretende a sua pronúncia.

O requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente, na sequência de um despacho de arquivamento do Ministério Público, é mais que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento do Ministério Público (para o qual existe a reclamação hierárquica), uma vez que consubstancia uma verdadeira acusação.

Destarte, da análise do requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos, constata-se que não foi dado cumprimento ao imperativo legal supra enunciado, porquanto neste não consta a descrição da factualidade conjunta de todos os elementos que, provados, pudessem integrar-se nos elementos objectivo e subjectivos dos tipos de ilícito pelos quais se pretende a prolação do despacho de pronúncia.

Com efeito, os assistentes limitam-se a fazer uma exposição totalmente conclusiva tendo omitido totalmente a descrição de qualquer facto que se possa subsumir aos elementos subjectivos dos tipos criminais relativamente aos quais foi apresentada queixa, não havendo, de todo em todo, qualquer descrição factual referente ao dolo.

Com efeito, não trataram os assistentes de narrar circunstanciadamente, de forma completa e coerente, os factos que, a seu ver, terão sido cometidos e serão susceptíveis de integrar os crimes em causa.

Note-se que nenhum facto é alegado relativamente ao propósito que terá animado os arguidos aquando da prática dos factos que constam descritos. Tal como na acusação pública, também no requerimento de abertura de instrução tem de constar que o arguido agiu de forma livre (afastando, assim, as causas de exclusão da culpa), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo) e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

Neste conspecto veja-se o entendimento do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25-05-2023, no processo 485/22.4GARMR.E1, disponível em www.dgsi.pt.

No caso, os assistentes não indicam factos completos integradores dos elementos subjectivos dos tipos de crime por cuja pronúncia se propugna, não os apresentando, pois, com a estrutura de uma acusação, como se exige.

Ora, as falhas supra descritas subsumíveis à falta de descrição factual com a virtualidade de fundamentar a aplicação de uma pena ou medida de segurança, não poderão ser supridas, sendo este o entendimento do Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, segundo o qual, “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”

Deste modo, em face do exposto, rejeita-se o requerimento de abertura de instrução, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 286.º, n.º1, 287.º, n.ºs 2, a contrario sensu, e 3 do Código de Processo Penal.

Custas a cargo dos assistentes, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s. Notifique.

Oportunamente arquive.”

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Inconformados com o referido despacho, dele recorreram os assistentes, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“a)- O requerimento de abertura de Instrução apresentado pelos Assistentes foi rejeitado pelo douto despacho de que agora se recorre.

b)- As razões aduzidas nesse despacho, em súmula, são as seguintes:

- Não trataram os assistentes de narrar circunstanciadamente, de forma completa e coerente, os factos que, a seu ver, terão sido cometidos e serão susceptíveis de integrar os crimes em causa;

- Nenhum facto é alegado relativamente ao propósito que terá animado os arguidos aquando da prática dos factos que constam descritos.

c)- Os acontecimentos (factos), o lugar e o tempo (sempre que possível), estão descritos, narrados no requerimento de abertura de instrução, tal como supra se demonstrou, ao contrário do que é afirmado no douto despacho de que agora se recorre.

d)- Foi assim que os Assistentes observaram, naqueles dias, naquele local, àquelas horas, a actividade dos Denunciados, e assim a descreveram, de uma forma coerente e minimamente entendível para qualquer normal cidadão e, portanto, também para os Denunciados, sendo certo que o artº. 287º, nº 2, do CPP refere que: “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto...”.

e)- Não sendo, como não são, precisas formalidades especiais e constando a súmula dos factos (elementos objetivos do crime ) do requerimento de abertura da instrução, não assiste a razão proclamada no despacho recorrido.

f)- Diz-se ainda no douto despacho recorrido que os Assistentes nenhum facto relativo aos elementos subjectivos do crime, alegaram, o que nos parece manifestamente exagerado.

g)- Mas os Assistentes, quanto ao elemento subjectivo dos crimes que imputam aos Denunciados, alegaram o seguinte:

- “quis e conseguiu conscientemente provocar nos Assistentes, destinatários das suas palavras, medo e inquietação”;

- “Os Arguidos …, agiram conscientemente com o propósito de destruírem o muro em construção, o que conseguiram”;

- “A Arguida quis e conseguiu conscientemente provocar nos Assistentes”;

- “- Com a sua conduta, perfeitamente consciente, a Arguida…”.

h)- As expressões: “quis e conseguiu conscientemente”, “agiram conscientemente, o que conseguiram”, “Com a sua conduta, perfeitamente consciente”, etc., são expressões que indiciam a vontade livre de agir e de levar a cabo, com o propósito de consumarem, de forma consciente e, por isso mesmo, bem sabendo da sua conduta ilícita refletida e punida pelos, os crimes que lhes foram imputados pelos artigos do C. Pena, constantes do requerimento de abertura de instrução.

i)- Como se refere no Ac. da Relação de Évora citado no douto despacho recorrido, “Notamos que nada na lei exige que o elemento subjetivo do tipo de crime seja alegado recorrendo às expressões tabelares vulgarmente utilizadas, mas deve ser alegado, por ser elemento essencial do tipo de crime.”.

j)- Dos elementos subjectivos dos crimes imputados, não há, ao contrário do que se afirma no despacho em crise, a omissão total no requerimento de abertura de instrução, da descrição de qualquer facto pelo qual se possa subsumir os elementos subjectivos dos tipos criminais ( ver pág. 4 do despacho recorrido).

l)- Na verdade, o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, parece estar expresso nas expressões utilizadas pelos Assistentes, acima referidas.

m)- Não se poderá assim acompanhar a afirmação do douto despacho recorrido, de que nenhum facto indiciador do elemento subjectivo do crime, foi alegado.

n)- Quanto a factos que possam ser novos, não constantes das queixas-crime, essa parte, não poderá ser levada em consideração, por parcialmente nula, não se transferindo essa nulidade, a todo o resto do requerimento de abertura de instrução, que não poderá, por isso, na restante parte, ser afectado, permanecendo válido.

o)- E assim, o douto despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução e de que se recorre, é nulo e ilegal, por desrespeitar as disposições contidas nos artigos: 283º e 287º do CPP.

Nestes termos,

deverão proceder todas as conclusões do presente Recurso e, em consequência, dever-se-á revogar o douto despacho recorrido, substituindo-se por um outro que decida admitir o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos Assistentes, declarando-se aberta a Instrução, sendo assim feita Justiça!”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1 – Insurgem-se os recorrentes contra a decisão instrutória que rejeitou a abertura de instrução por inadmissibilidade legal perante a falta de descrição dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crime convocados.

2 – Constitui “Crime”, nos termos do artigo 1.º, alínea a) do Código de Processo Penal, “o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”, o que compreende uma acção (ou omissão) típica, ilícita e culposa (e punível) e, segundo o artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, é aplicável, ao requerimento de abertura de instrução do assistente, entre o mais, o disposto nas alíneas b) do n.º 3 do artigo 283.º do mesmo diploma legal, que impõe que, da acusação conste a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, ou seja, de factos que constituam crime.

3 – Estando em falta tais elementos, a instrução é legalmente inadmissível porque fica inviabilizada a pronúncia por crimes, não se podendo olvidar que o objecto da instrução é fixado estritamente pelo requerimento de abertura de tal fase processual.

4 – Por outro lado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005 de 12 de Maio de 2005, fixou jurisprudência no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”, interpretação que já mereceu acolhimento por parte do Tribunal Constitucional, pelo menos, nos acórdãos n.º 807/2003, 310/2005 e 636/2011.

5 – Assim, o requerimento de abertura de instrução por assistente tem de conter a narração dos factos que constituem crime, nas suas dimensões objectiva e subjectiva, pois apenas estas exigências se compatibilizam com as garantias do direito de defesa de arguidos/as e com a estrutura acusatória do processo penal português – neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 636/2011 https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110636.html.

6 – Ora, analisado o requerimento de abertura de instrução apresentado nestes autos, verifica-se que não obedece aos requisitos legalmente impostos, pelo que bem andou o Tribunal a quo em rejeitar a abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

7 – Vejamos:

i) Crimes de Ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1 do Código Penal: está em falta a narração dos elementos cognitivos e volitivos do dolo, ou seja, de que a arguida agiu ciente das expressões que dirigiu aos assistentes e quis e conseguiu dirigir-lhes, ciente ainda da adequação das mesmas a causar receio e inquietação pela vida ou integridade física dos assistentes. Com efeito, os assistentes escreveram que a arguida quis e conseguiu de forma consciente provocar-lhes medo e inquietação. Na verdade, os assistentes descrevem um resultado e não o elemento subjectivo. Por outro lado, o resultado que descrevem nem sequer é o resultado do tipo de crime em questão.

ii) Injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal: o elemento objectivo encontra-se descrito de forma correcta. Porém, quanto ao subjectivo sucede precisamente o que referimos a propósito do crime de ameaça. É a seguinte a descrição dos assistentes “As expressões proferidas pela arguida ofenderam a honra e consideração dos assistentes”. Mais uma vez é descrito um resultado e não o elemento subjectivo do tipo – querer e conseguir dirigir as expressões aos assistentes, com o propósito logrado de os ofender na sua honra e consideração.

iii) Dano qualificado, p. e p. pelo artigo 212.º e 213.º, n.º 2, alínea d) do Código Penal: em relação a este crime, está em falta a narração de que os agentes agiram cientes de que a coisa era alheia.

iv) Furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal: não está descrita a acção e foi omitido totalmente o elemento subjectivo. Note-se que os assistentes descrevem no RAI que a arguida foi avistada a fazer algo, não relatando o que levou, efectivamente, a cabo. Ademais, não constam em lugar algum os elementos cognitivos ou volitivos do dolo.

v) Ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal: Por fim, no que tange a este crime, nada é descrito em relação à acção levada a cabo pela arguida, antes referindo os assistentes no RAI que “diversas pessoas informaram o prestador de serviços […] de que a Arguida […] disse publicamente a diversas outras pessoas e referindo-se aos identificados prédios propriedade do Assistente, AA”. Ou seja, não é descrita que acção da arguida preenche um tipo de crime, tanto mais que a ameaça efectuada através de terceiros tem requisitos adicionais para a sua imputação objectiva. Sem embargo e como se referiu a respeito da ameaça agravada acima já analisada, também neste caso está em falta a descrição dos elementos cognitivo e volitivo do tipo de crime – agir ciente das expressões que dirigiu aos assistentes [ou a terceiros de modo a que estes fossem relatar aos destinatários] e querendo dirigir-lhes as mesmas, sabedora de que tais palavras eram adequadas a causar receio e inquietação pela vida ou integridade física dos assistentes. Com efeito, os assistentes escreveram que a arguida quis e conseguiu de forma consciente provocar-lhes medo e inquietação. Ora, desde logo, não é elemento do tipo o resultado em questão, bastando-se a lei com a adequação da acção para causar medo, inquietação ou prejudicar a liberdade de autodeterminação. Porém, sendo elemento do tipo subjectivo querer e conseguir dirigir as palavras a tanto adequadas e consciente destas e de tal adequação, este não se mostra descrito de forma bastante para que a arguida possa ser condenada pelo indicado crime.

8 - Assim, o Ministério Público entende que o recurso deverá ser julgado improcedente.”

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Também os arguidos CC e DD responderam ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“7 - O recurso interposto pelos assistentes carece de fundamentação factual ou de direito que contrarie o despacho de indeferimento do pedido de abertura de instrução preferido pelo Exmo. Juiz de Instrução Criminal

8 - Tendo-se limitado a repetir o já anteriormente alegado pelos mesmos em sede de inquérito.

9- E que não lograram demonstrar sem margem para duvidas fortes indícios da prática dos crimes imputados aos recorridos de forma que fosse plausível uma condenação em sede de julgamento.

10- Pelo que, concorda-se em absoluto com o despacho recorrido e requer-se o indeferimento do presente recurso com as devidas consequências.”

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada resposta ao parecer.

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APRECIAÇÃO

A única questão a resolver é de se saber se o r.a.i. contém, total ou parcialmente, os factos necessários de modo a que não justifique a sua rejeição, total ou parcial.

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O r.a.i. sobre o qual recaiu o despacho recorrido é do seguinte teor:

“AA e BB, após a sua constituição como Assistentes nos presentes autos, em que são Denunciados/Arguidos, CC e DD, vêm, requerer a abertura de Instrução, o que o fazem pela forma seguinte:

I – Das queixas-crime apresentadas pelos Assistentes:

1º. – Por requerimento enviado via e-mail no dia 05/03/2022 foi apresentada pelos Assistentes as queixas-crime que deram origem aos presentes autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os legais efeitos e, posteriormente e em determinação do Mº Público, foi junto aos autos em 31/03/2022 a mesma queixa crime e documentos em formato papel.

2º - Nesse requerimento de denúncia ou queixa crime, os aqui Assistentes deram a conhecer, no essencial, o seguinte:

“3º

O 1º Denunciante, AA, é proprietário de dois prédios urbanos sito no …, freguesia de …, concelho de …, e, no que à presente denuncia interessa, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n º…, inscrito na matriz sob o artº …, com a área de 50 m2, a confrontar a nascente com CC, norte e sul com AA e poente com EE ( Docs. 3 e 4 ).

O identificado prédio urbano está implantado no prédio rústico, também propriedade do 1º Denunciante, sito no …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n º…, inscrito na matriz sob o artº …, com a área de 1234 m2, a confrontar a norte com FF, nascente e sul com GG e a poente com caminho ( Docs. 3 e 4 ).

A Denunciada, CC, vive no prédio contiguo ao do 1º Denunciante, numa construção de madeira existente no local onde antes se encontravam implantadas as casas que foram construídas de forma ilegal e clandestinamente pela Denunciada, CC e que foram demolidas por ordem judicial (Doc. 2 ), restando ainda parte de um muro e uns barracos, os quais terão também de ser demolidos e a sua não demolição representa, presentemente, uma desobediência à ordem judicial nesse sentido.

Para reconstruir a casa ( prédio urbano acima identificado ), parte da qual foi destruída pela Denunciada. CC, conforme decisão judicial transitada em julgado ( Facto provado 15 e 16 in: Proc. Nº 2124/07.4…, que correu na Comarca de … – Inst. Central – …ª Secção Cível – J… - Doc. 1 ) e construir um muro de vedação delimitador do seu prédio rústico, os Denunciantes tiveram e têm de se deslocar por diversas vezes no passado mês de Setembro, às suas propriedades acima identificadas.

Quase sempre quando se deslocam ao local acima referido, os Denunciantes vêm-se confrontados com ameaças e actos de intimidação, destruição, furto, etc., por parte dos Denunciados, como a seguir se exporá.

II- Factos denunciados.

a) – Factos ocorridos no dia 22 do mês de Setembro de 2021:

Como já se referiu, os Denunciantes pretendem recuperar o prédio urbano acima identificado e delimitar por muro a sua parcela (prédio rústico), tendo contratado para tanto os serviços adequados, executados por HH, por um valor inicial de cerca de quatro mil euros.

No passado dia 22 do mês de Setembro de 2021, cerca das 14:30 H os Denunciantes se encontravam no local acompanhados de mais pessoas, a Denunciada CC, entrou no prédio propriedade do 1º Denunciante, AA, sem qualquer autorização e contra a vontade deste, e, em voz muito alta e exaltada, dirigindo-se aos Denunciantes, gritou:

- “Mato-vos, eu vou a … e mato-vos filhos da puta; dou-vos um tiro nos cormos; nunca vão aqui construir nada pois eu parto tudo, assim que começarem a construir o muro eu parto tudo”.

10º

Ao mesmo tempo, a Denunciada incentivava pessoas que com ela se encontravam, cerca de cinco pessoas, a avançarem na direcção dos Denunciantes e seus acompanhantes, fazendo gestos que imitavam o degolar e cortar de pescoço.

11º

A Denunciada não se limitou a palavras e gestos e, avançou na direção do Denunciantes e, para provar que tudo destruiria, ato contínuo, arrancou as estruturas metálicas que estavam colocadas no cabouco/alicerce do muro, o qual não tinha cimento ainda colocado, arremessando-as.

12º

Tal facto motivou a chamada da GNR por parte dos Denunciantes, que ao local se deslocaram.

b) - Factos ocorridos no dia 02 do mês de Outubro de 2021:

13º

No passado dia 02 do mês de Outubro/2021, os Denunciantes recomeçaram a construir o muro delimitador do prédio rústico, por trabalho executado pelo prestador de serviços HH, acima já identificado, tendo-se deslocado ao terreno o segundo Denunciante, BB, acompanhado de outras pessoas que, após a conclusão de parte do trabalho, mantiveram-se dissimuladamente nas imediações, com o intuito de poder presenciar se haveria danificação e destruição do muro.

14º

Assim que o construtor abandonou os trabalhos, o 2º Denunciante e II presenciaram então que, os Denunciados, CC e seu filho, DD, entrarem cerca das 17.00 horas no prédio rústico em causa e, com pontapés nos tijolos que só se encontravam ligados por cimento acabado de fazer e colocado recentemente, por isso necessariamente frágil, derrubaram-nos e destruíram o muro assim como toda a construção, muro esse com cerca 80 metros de comprimento, conforme fotografias que se juntam e que foram tiradas nesse mesmo dia e hora ( Docs. 5 a 8 - fotos ).

15º

Foi de imediato chamada a GNR, tendo os militares que compareceram ainda observado os Denunciados a ausentarem-se de automóvel do local que constitui o seu prédio contíguo ao do primeiro Denunciante, logo que constataram e se aperceberam da chegada dos militares.

c) - Factos ocorridos nos dias 09 e 12 do mês de Novembro de 2021:

16º

Também no passado dia 09 de Novembro/2021, a Denunciada foi vista dentro do prédio rústico em causa a furtar/roubar material de construção, nomeadamente, tijolos, areia e ferro, fazendo-os passar por uma porta que abre directamente do prédio da Denunciada para o prédio contíguo, propriedade do primeiro Denunciante, porta essa que deveria já estar retirada do local, mas que, mais uma vez, a Denunciada desobedecendo ao determinado judicialmente, não o fez.

17º

No passado dia 12 de Novembro de 2021, diversas pessoas informaram o prestador de serviços de construção, HH, de que a Denunciada CC, disse publicamente a diversas outras pessoas e referindo-se aos identificados prédios propriedade do 1º Denunciante, que:

“ – Eu parto tudo o que eles ali fizerem, ali eles nunca vão construir nada, eu dou cabo de tudo”.

18º

Toda esta situação, muito grave, não se pode manter e, urge por parte das autoridades judiciárias evitarem o que de pior os Denunciados ameaçam e, pelos vistos, cumprem, pelo menos e felizmente até agora, apenas em parte.

Nestes termos, os Queixoso desejam procedimento criminal contra:

1. - CC, residente em …, apartado …, … e,

2. – DD, residente em …, apartado …, …, ---------------------------------------------------------------------------------

Procedimento criminal plos crimes que resultem dos factos apurados em inquérito, nomeadamente, pelos crimes de:

- Introdução em lugar vedado ao público ( artº 191º do C. Penal);

- Ameaça ( artº 153º do C. Penal);

- Coação ( artº 154º do C. Penal);

- Injúria ( artº 181º do C. Penal);

- Furto ( artº 203º do C. Penal);

- Roubo ( artº 204º do C. Penal) e,

- Dano com violência ( artº 214º do C. Penal);

Os Ofendidos reservam-se o direito de, em momento posterior, se constituírem assistentes e deduzirem pedido de indemnização cível.

TESTEMUNHAS:

( a notificar )

(…)”

II – A posição assumida pelo M.º Público:

3º - Sobre os factos denunciados, diz o Mº Público, no essencial e com sublinhado nosso, entre outros considerandos, que:

“ ( …/… )

“Os factos, tal como configurados, são susceptíveis de integrar, em abstracto, a prática dos ilícitos típicos de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181º, n.° 1, de introdução em Iugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 191º, de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, n.° 1, de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, n.° 1, e 155º, n.° 1, alínea a), por referência ao artigo 131º, e de furto, previsto e punido pelo artigo 203º, n.° 1, todos do Código Penal.”

4º - No entanto o Mº Público, sobre estes factos que, no seu entender poderiam ser susceptíveis de integrar os crimes acima referidos, veio a tomar a seguinte posição:

“ ( …/…)

No tocante aos crimes de injúria:

O ilícito em apreço reveste-se de natureza particular — cfr. artigo 188º, n.° 1, do Código Penal.

( …/…)

A constituição como assistente assume, assim, a natureza processual de uma condição de procedibilidade e, na sua falta, carece, o Ministério Público, de legitimidade para o prosseguimento dos autos.

No caso vertente, verifica-se que os denunciantes BB e AA declararam, nas suas inquirições, a fls. 248 v.° e 251 v.°, não pretenderem constituir-se assistentes no processo.

Face ao exposto, conclui-se não ter o Ministério Público Ilegitimidade para a prossecução dos presentes autos, no tocante a este crime, na medida em que se verifica a falta de uma condição de procedibilidade: a constituição como assistente.

Assim, determino o arquivamento do presente inquérito, nesta parte, nos termos do artigo 277º, n.° 1, do Código de Processo Penal, por não ser admissível o procedimento criminal.”

- No que concerne ao alegado crime de introdução em lugar vedado ao público:

“Dispõe o artigo 191º do Código Penal que:

“Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, em barcos ou outros meios de transporte, em lugar vedado e destinado a serviço ou a empresa pública, a serviço de transporte ou ao exercício de profissões ou actividades, ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público, ê punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias.”.

Não nos podemos esquecer de que é elemento deste tipo de crime que o espaço se encontre vedado.

Compulsados os autos, verifica-se não resultar dos mesmos que o terreno se encontrasse, à data dos factos, vedado, aliás, consta mesmo que se estava a pretender construir um muro para esse efeito, o que exclui que a introdução no terreno pelos arguidos possa ser considerada crime.

Assim, e por se ter recolhido prova bastante de se não ter verificado qualquer ilícito criminal, determino o arquivamento do presente inquérito, também nesta parte, nos termos do disposto no artigo 277º, n.° 1, do Código de Processo Penal.”

- Em relação ao crime de dano:

“Os factos em apreço - destruição de um muro — foram já apreciados no âmbito do inquérito 867/21.9…. .’

Pelo exposto, e sem maiores considerações, determino o arquivamento do presente inquérito, igualmente nesta parte, nos termos do artigo 277º, n ° 1, do Código de Processo Penal.”

- Quanto aos crimes de ameaça agravada e de furto:

Fazendo uma análise crítica das provas carreadas aos autos, somos de concluir que não foram colhidos elementos de prova que demonstrem que os arguidos DD e CC cometeram estes factos ou quaisquer outros que integrem crimes.

( …/… )

“Dispõe o artigo 277º, n.° 2, do Código de Processo Penal, que o Ministério Público arquiva o inquérito se não tiver sido possível obter indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes.

Por seu turno o n.° 2, do artigo 283º, do mesmo diploma legal, preceitua que os indícios se consideram suficientes “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.”

Maia Gonçalves, in código de Processo Penal Anotado, página 452, 4ª edição, afirma que os indícios seriam suficientes quando existisse “um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que Ihe são imputáveis”.

Refere Costa Pimenta, in Código de Processo Penal matado, 7° edição, 1996, página 410, a este propósito que “o indício para o ser verdadeiramente tem de conduzir a um convencimento acima de qua/quer dúvida razoável, sob pena de, desnecessariamente, se enxovalhar a dignidade das pessoas.”

(sublinhado nosso).

Em síntese, só uma forte ou alta probabilidade de condenação pode justificar a dedução da acusação.

Assim, os elementos de prova recolhidos no presente inquérito não têm a virtualidade de poder sustentar uma acusação contra os arguidos DD e CC e não se vislumbram outras diligências probatórias cuja realização possa, de alguma forma, contribuir para o esclarecimento dos factos em apreço.

*

Pelo exposto, determino o arquivamento do presente inquérito, nesta parte, nos termos do artigo 277º, n.° 2, do Código de Processo Penal.

III – A posição dos Assistentes quanto aos sucessivos arquivamentos:

a) - Quanto ao crime de injúria:

5º - Diz o Mº. Público que:

“No caso vertente, verifica-se que os denunciantes BB e AA declararam, nas suas inquirições, a fls. 248 v.° e 251 v.°, não pretenderem constituir-se assistentes no processo.

Face ao exposto, conclui-se não ter o Ministério Público Ilegitimidade para a prossecução dos presentes autos, no tocante a este crime, na medida em que se verifica a falta de uma condição de procedibilidade: a constituição como assistente.”.

6º - Por economia processual, dá-se aqui por totalmente reproduzido o que em sede de requerimento de constituição como Assistentes já se alegou, em síntese:

- Os Denunciantes, logo no seu requerimento conjunto de denúncia declararam, “in fine”, que: “reservam-se o direito de, em momento posterior, se constituírem assistentes e deduzirem pedido de indemnização cível.”.

- Feita de início esta declaração, não se justifica que, em sede de órgão policial, durante a prestação de declarações, desacompanhados de advogado e apenas para completar um formulário pré-elaborado, se volte a perguntar, sem mais, e sem os legalmente obrigatórios esclarecimentos e informações necessárias, a quem já declarou anteriormente querer constituir-se, novamente, que: “Declara pretender constituir-se assistente no processo?: - Não” e de que, aliás, os Denunciantes/Assistentes não recordam minimamente que lhes tivesse sido perguntado.

- Na verdade, tal declaração, mas no sentido de quererem constituírem-se Assistentes, já tinha sido prestada em momento anterior, como muito bem o Ministério Público tinha antecipadamente conhecimento, não se entendo a valoração desta outra pergunta no mesmo sentido que, se fosse agora novamente perguntado com os devidos esclarecimentos jurídicos que obrigatoriamente teriam de ser prestados, obteria um: - “sim”, tal como, aliás, obtém com o presente pedido de constituição de Assistente.

- Mais ainda, nos termos do disposto no nº 4º, do artº 246º do CPC:

“ 4 - O denunciante pode declarar, na denúncia, que deseja constituir-se assistente.

Tratando-se de crime cujo procedimento depende de acusação particular, a declaração é obrigatória, devendo, neste caso, a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal a quem a denúncia for feita verbalmente advertir o denunciante da obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar.”

- Ora, nenhuma advertência ou explicação foi feita aos Denunciantes no sentido da “obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar”, sendo certo que, os mesmos já muito anteriormente tinham declarado querer constituir-se Assistentes, não havendo assim qualquer razão específica para voltar a repetir, sem mais, a mesma pergunta, a quem não tem a presença, no acto, do seu advogado anteriormente constituído e ao qual nada foi notificado, sem ter havido sequer o cuidado em prestar, repete-se, as obrigatórias e legais informações e advertências e explicações ( artº 246º, nº 2, do CPP segunda parte).

7º - Em bom rigor, os Denunciantes viram o seu direito à informação claramente desrespeitado e, por via disso, não se constituíram, na altura, Assistentes, e a violação dos seus direitos foi pretexto para o arquivamento, posição claramente ilegal e que viola, entre outros, o vertido no nº 4, do artº 246º do CPP., pelo que, terá de se substituída por uma outra que permita a constituição dos Denunciantes como Assistentes e o recebimento da acusação particular que infra se apresenta, o que se requer.

b) - Quanto ao crime de introdução em lugar vedado ao público:

8º - Quanto a este crime, diz em síntese o Mº. Público que o Assistente, AA, pretendia construir um muro para efeitos de vedação, o que excluiria que a introdução no terreno, pelos arguidos, pudesse ser considerada crime.

9º - Na verdade, toda a propriedade do Assistente, AA, se encontra delimitada por barreiras ali colocadas pelos Assistentes, o que “veda” os terrenos ao público, facto sobejamente conhecido dos Arguidos.

10º - O muro que o Assistente, AA, mandou construir, e que foi derrubado e destruído pelos Arguidos, era um complemento das barreiras, algumas com pedras e plantas “pitas” ali contruídas e plantadas pelo Assistente proprietário, AA, já existentes no local e que assim o delimitam e o vedam ao público.

11º - Portanto, e com todo o respeito, a conclusão apressada do Mº. Público no sentido de que, se estava a construir um muro para vedação é porque ali não havia vedação alguma, não corresponde à situação, já que, e repetindo, todo o terreno está delimitado e vedado por pedras, e lombas em terra e com “pitas”, embora com pouca altura e, o muro que se estava a construir, apenas otimizava e elevava aquela “vedação” já existente.

c) - Quanto ao crime de dano:

12º - No que ao crime de dano diz respeito, o Mº. Público afirma que:

“Os factos em apreço - destruição de um muro — foram já apreciados no âmbito do inquérito 867/21.9….

Pelo exposto, e sem maiores considerações, determino o arquivamento do presente inquérito, igualmente nesta parte, nos termos do artigo 277º, n.° 1,. Do Código de Processo Penal.”

13º - Mas nenhum caso julgado se formou quanto ao Assistente, AA que é, ele sim e com exclusão de outrem, o único proprietário dos prédios em causa, até porque para haver “caso julgado”, sempre faltaria desata forma, a identidade de sujeitos ( artº 581º, nº 1, do CP Civil ).

14º - Na verdade, no dia 22/09/2022, foi feito um requerimento ao referido Proc. nº 867/21.9… ( Doc. que ora se junta ), requerimento esse que foi recebido e lido pelo Mº Público, e onde se alegou e requereu:

“ From: JJ

Sent: Thursday, September 22, 2022 7:22 PM

To: … Ministério Público - …

Subject: Proc. Nº 867/21.9… - MINISTÉRIO PÚBLICO - Procuradoria da República da Comarca de … Departamento de Investigação e Ação Penal – …ª Secção de …

JJ

Advogado

(Responsabilidade Limitada)

MINISTÉRIO PÚBLICO - Procuradoria da República da Comarca de … Departamento de Investigação e Ação Penal – …ª Secção de …

Proc. Nº 867/21.9…

Exmo. Senhor

Procurador da República

Comarca de …- …:

BB, Denunciante nos presentes autos em que são Denunciados CC e DD, vem dizer o seguinte:

I – Junção de procuração:

Requer a junção aos autos da inclusa procuração forense, a favor do advogado signatário.

II – Ilegitimidade do Denunciante:

1. - Como bem se refere no Ac.de Fixação de Jurisprudência do STJ de 27/04/2011, in: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 456/08.3GAMMV

3ª SECÇÃO

HENRIQUES GASPAR

FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

27/04/2011

UNANIMIDADE

RLJ - A. 144º, Nº 3993 (JULHO-AGOSTO 2015) P. 433-464 - ANOT. DE MANUEL DA

COSTA ANDRADE

FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

NEGADA PROVIDÊNCIA AO RECURSO

FIXADA JURISPRUDÊNCIA

“ No crime de dano, p. e p. no artigo 212º, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tem legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113º, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição. “.

2. – Nos presentes autos, o Denunciante, BB, não é proprietário do terreno onde o muro destruído se situava.

3. – Quem é proprietário do prédio onde o muro destruído se situava, é seu pai, AA, consigo residente em … ( Docs. que ora se juntam).

4. – Na verdade, AA, é proprietário de dois prédios urbanos sitos no …, freguesia de …, concelho de …, e, no que aos presentes autos interessa, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n º…, inscrito na matriz sob o artº …, com a área de 50 m2, a confrontar a nascente com CC, norte e sul com AA e poente com EE ( Docs. 3 e 4 ).

5. - O identificado prédio urbano está implantado no prédio rústico, também propriedade de AA, sito no …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n º…, inscrito na matriz sob o artº …, com a área de 1234 m2, a confrontar a norte com FF, nascente e sul com GG e a poente com caminho, e onde o muro destruído se situava.

6. – Assim, o Denunciante é parte ilegítima, o que deverá aqui ser declarado, sendo que, desconhecia essa sua ilegitimidade aquando da apresentação da ocorrência junto GNR mas tendo salientado aos militares que tomaram conta da ocorrência que deu origem aos presentes autos, que ele era apenas Testemunha e não Queixoso.

7. - Aliás, o Denunciante conjuntamente com seu pai, AA, por estes mesmos factos apresentaram no MINISTÉRIO PÚBLICO - Procuradoria da República da Comarca de …, em 05/03/2022, queixa crime contra os aqui Denunciados, a qual ficou identificada como: Inquérito Nº 197/22.9T9LLE, o qual corre atualmente no Departamento de Investigação e Ação Penal – …ª Secção de … ( Doc. que ora se junta ).

8. – O facto de se arquivarem os presentes autos e, uma vez que os mesmos resultam de denúncia feita por quem não tinha legitimidade para tal, em nada prejudica a normal tramitação do referido Inquérito Nº 197/22.9T9LLE, cuja denuncia foi feita, quanto à destruição do muro, por outro cidadão de nome AA, esse sim com legitimidade para tal, devendo o Inquérito a que deu causa prosseguir até final.

TERMOS EM QUE:

a) – Deverá o Denunciante, BB, pelos fundamentos supra, ser declarado parte ilegítima para apresentar queixa-crime pela destruição do muro nos presentes autos, uma vez que o mesmo se situa em propriedade que não é sua, mas sim de seu pai, AA, o qual já apresentou queixa pelos mesmos factos.

b) – Mais se requer que, decisão a tomar quanto ao presente requerimento, deverá ser junta ao Inquérito Nº 197/22.9T9LLE que corre atualmente no Departamento de Investigação e Ação Penal –…ª Secção de ….

- Junta: queixa-crime que deu origem ao Inquérito Nº 197/22.9T9LLE, duas procurações e documentos comprovativos da propriedade onde o muro destruído se situava.

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JJ “

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15º - Para aquele requerimento não houve qualquer apreciação, resposta ou foi feita consideração alguma, e por isso, o mesmo foi, ao que parece, pura e simplesmente ignorado.

16º - O certo é que, não sendo o Assistente, AA, Denunciante naqueles autos ( Proc. nº 867/21.9… ), e sendo ele o proprietário, detentor, e não estando BB no gozo da coisa destruída e, tendo aqueles autos resultado, nesta parte, de uma denúncia por quem não tinha legitimidade para tal ( BB ) e, portanto, não era Ofendido, tudo o que ali se tiver decidido não vincula AA, não faz caso julgado quanto a si, nem lhe retira a capacidade de, quanto aqueles factos apresentar denúncia por si e na qualidade de verdadeiro Ofendido, como o fez nos presentes autos, inexistindo sempre, no que diz respeito ao legítimo Ofendido, identidade de sujeitos ( artº 581º, nº 1, do C.P. Civil ), o que é obstáculo intransponível à formação de “caso julgado” quanto ao Assistente, AA.

17º - Na verdade, de acordo com o vertido no nº 1, do artº 113º, do C. Penal:

“Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.”.

18º - Portanto, é totalmente ilegal e ineficaz quanto ao Assistente, AA, as decisões tomadas no Proc. nº 867/21.9…, que contra si não fazem “caso julgado”, devendo nos presentes autos apreciar-se os factos e deduzir-se acusação quanto ao crime de dano, no qual o Ofendido e lesado é AA, por ser ele o proprietário do terreno e do muro (“coisa destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada” – in: Ac. do STJ de 27/04/2011), destruído pelos Arguidos.

19º - “Efectivamente, «o ofendido […] não é qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato da infracção – […] – os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os próprios e específicos daquele que requer a sua constituição como assistente.» (v. g., acórdão do Tribunal Constitucional nº 145/06, de 22-02-2006).” ( Citação feita no Ac.de Fixação de Jurisprudência do STJ de 27/04/2011, in: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt).

20º - E assim, a decisão de arquivamento quanto ao crime de dano perpetrada nos presentes autos, com o fundamento de já ter sido apreciado no Proc. nº 867/21.9… e, portanto, verificar-se uma situação de “caso julgado”, é ilegal, por tal situação não vincular nem ser oponível ao Ofendido, AA, quanto ao crime de dano denunciado nos presentes autos, o qual deverá conduzir a uma acusação dos Arguidos, como infra se requererá.

d) - Quanto aos crimes de ameaça agravada e de furto:

21º - As conclusões que valem como fundamento do Mº Público, para uma vez mais, se decidir pelo arquivamento, são aqui vagas e imprecisas, referindo-se, sem mais, e sem exemplificar, a expressões bastantes diferentes das denunciadas, sejam elas quais forem.

22º - Não é entendível, nem foi concretizado e fundamentado de facto o despacho de arquivamento quanto aos crimes de ameaça agravada e de furto, pelo que, tal despacho não poderá ser atendido e produzir efeitos, devendo os Arguidos ser pronunciados por aqueles crimes.

III- Factos denunciados e de que os Arguidos, CC e DD, deverão ser pronunciados:

a) – Factos ocorridos no dia 22 do mês de Setembro de 2021:

(ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, n.° 1, e 155º, n.° 1, alínea a), por referência ao artigo 131º do C. Penal e injúria p. e p. pelo artº 181º do C. Penal).

23º - Sobre estes factos, deverá haver pronúncia nos seguintes termos:

- Os Assistentes, melhor identificados nos autos, pretendem recuperar o prédio urbano acima identificado e delimitar por muro a sua parcela (prédio rústico), tendo contratado para tanto os serviços adequados, executados por HH, por um valor inicial de cerca de quatro mil euros.

- No dia 22 do mês de Setembro de 2021, cerca das 14:30 H os Assistentes encontravam-se no local acima referido, acompanhados de mais pessoas, quando a Arguida, CC, entrou no prédio propriedade de AA, sem qualquer autorização e contra a vontade deste, e, em voz muito alta e exaltada, dirigindo-se aos Assistentes, gritou:

- “Mato-vos, eu vou a … e mato-vos filhos da puta;

- Dou-vos um tiro nos cormos;

- Nunca vão aqui construir nada pois eu parto tudo, assim que começarem a construir o muro eu parto tudo”.

- Ao mesmo tempo, a referida Arguida incentivava pessoas que com ela se encontravam, cerca de cinco pessoas, a avançarem na direção dos Assistentes e seus acompanhantes, fazendo gestos que imitavam o degolar e cortar de pescoço.

- A Arguida não se limitou a palavras e gestos e, avançou na direção dos Assistentes e, para provar que tudo destruiria, ato contínuo, arrancou as estruturas metálicas que estavam colocadas no cabouco/alicerce do muro, o qual não tinha cimento ainda colocado, arremessando-as.

- Tal facto motivou a chamada da GNR por parte dos Denunciantes, que ao local se deslocaram.

- Arguida quis e conseguiu conscientemente provocar nos Assistentes, destinatários das suas palavras, medo e inquietação, palavras e sinais por ela proferidos aptos e com potencialidade para tal.

As expressões proferidas pela Arguida ofenderam a honra e consideração dos Assistentes.

Mais referiram os Assistentes em declarações prestadas nestes autos e relacionadas com os factos aqui denunciados, acontecimentos gravíssimos ocorridos posteriormente, em 24 de Outubro de 2022, os quais farão parte do NUIP 224/22.0… e estarão a ser investigados pela P.J. de … ( ver: fls. 248/249 e fls.270 verso e 271 destes autos), nomeadamente, declaram que:

(…)

Quantos aos factos denunciados nos presentes autos, praticou assim a Arguida, CC, um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, n.° 1, e 155º, n.° 1, alínea a), por referência ao artigo 131º do C. Penal e um crime de injúria p. e p. pelo artº 181º do C. Penal), pelos quais deverá ser pronunciada.

b)- Factos ocorridos no dia 02 do mês de Outubro de 2021:

[ Dano qualificado p. e p. no artº 212º e 213º, nº 2, alínea d), do C. Penal].

24º - Sobre estes factos, deverá haver pronúncia nos seguintes termos:

- No dia 02 do mês de Outubro/2021, os Assistentes recomeçaram a construir o muro delimitador do prédio rústico, por trabalho executado pelo prestador de serviços HH, acima já identificado, tendo para isso deslocado ao terreno o segundo Assistente, BB, acompanhado de outras pessoas que, após a conclusão de parte do trabalho, mantiveram-se dissimuladamente nas imediações, com o intuito de poder presenciar se haveria danificação e destruição do muro.

- Assim que o construtor abandonou os trabalhos, o Assistente, BB e II presenciaram então que, os Arguidos, CC e seu filho, DD, entrarem cerca das 17.00 horas no prédio rústico em causa e, com pontapés nos tijolos que só se encontravam ligados por cimento acabado de fazer e colocado recentemente, por isso numa situação necessariamente frágil, derrubaram-nos e destruíram o muro assim como toda a construção, muro esse com cerca 80 metros de comprimento, conforme fotografias que se juntam e que foram tiradas nesse mesmo dia e hora (Docs. 5 a 8 – fotos juntas com a queixa crime ).

- Foi de imediato chamada a GNR, tendo os militares que compareceram ainda observado os Arguidos a ausentarem-se de automóvel do local que constitui o seu prédio contíguo ao dos primeiro Assistentes, logo que constataram e se aperceberam da chegada dos militares.

- O muro e os prédios em causa são propriedade do Assistente, AA que assim viu destruído e inutilizado o muro que mandara construir nos prédios de sua propriedade.

- Os Arguidos, CC e seu filho, DD, agiram conscientemente com o propósito de destruírem o muro em construção, o que conseguiram, tendo assim praticado em conjugação de esforços, um crime de dano qualificado p. e p. no artº 212º e 213º, nº 2, alínea d), do C. Penal, pelo qual deverão ser pronunciados.

c)- Factos ocorridos nos dias 09 e 12 do mês de Novembro de 2021:

(Furto, p. e p. artigo 203º, n.° 1, do Código Penal e um crime de ameaça, p. e p. no artº 153º, nº 1 do C. Penal).

25º - Sobre estes factos, deverá haver pronúncia nos seguintes termos:

- No dia 09 de Novembro/2021, a Arguida, CC, foi avista dentro do prédio rústico em causa a furtar/roubar material de construção, nomeadamente, tijolos, areia e ferro, fazendo-os passar por uma porta que abre diretamente do prédio da Arguida para o prédio contíguo, propriedade do Assistente, AA, porta essa que deveria já estar retirada do local, mas que, mais uma vez, a Arguida desobedecendo ao determinado judicialmente, não o fez.

- Também no dia 12 de Novembro de 2021, diversas pessoas informaram o prestador de serviços de construção, HH, de que a Arguida, CC, disse publicamente a diversas outras pessoas e referindo-se aos identificados prédios propriedade do Assistente, AA, que:

“ – Eu parto tudo o que eles ali fizerem, ali eles nunca vão construir nada, eu dou cabo de tudo”.

- Arguida quis e conseguiu conscientemente provocar nos Assistentes, AA e BB, destinatários das suas palavras, medo e inquietação, palavras e sinais por ela proferidos aptos e com potencialidade para tal.

- Com a sua conduta, perfeitamente consciente, a Arguida, CC, praticou um crime de furto, p. e p. artigo 203º, n° 1, do Código Penal e um crime de ameaça, p. e p. no artº 153º, nº 1 do C. Penal.

(…)

- PROVA TESTEMUNHAL:

- TESTEMUNHAS:

(…)

- Requerer-se ainda, nos termos do disposto no artº 346º do CPP, que sejam tomadas declarações aos Assistentes:

- AA e,

- BB.

- PROVA DOCUMENTAL:

Toda a constante dos autos, nomeadamente, as fotografias referentes ao muro destruído, apresentadas pelos Assistentes com a sua queixa-crime.

Mais se requer que:

a) - Seja requerida e junta certidão a estes autos, do Proc. Nº 867/21.9… do DIAP – …ª Secção de …, nomeadamente, do despacho de arquivamento ali proferido quanto ao crime de dano, p. e p. pelo artº 212º, nº 1 do C. Penal;

b) - Sejam solicitadas informações sobre os acontecimentos ocorridos no dia 24 de Outubro de 2022, em …, os quais farão parte do NUIP 224/22.0… e estarão a ser investigados pela Polícia Judiciária de … ( ver: fls. 248 verso, 249 e 270 verso e 271 destes autos ) e que parecem ter uma relação direta com os crimes de ameaças e injúrias denunciados nos presentes autos.

Nestes termos, requer-se:

a) – Seja admitida a constituição de, AA e BB, como Assistentes nos presentes autos;

b) – Seja declarada a abertura da Instrução e, em consequência, seja proferido despacho de pronúncia dos Arguidos, CC e DD, pela prática dos crimes acima identificados, prosseguindo os autos até final.

- Junta: um documento, DUCs, e comprovativo dos respetivos pagamentos.”

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Tem sido uniformemente afirmado pela jurisprudência que quando o r.a.i. é apresentado pelo assistente, o mesmo deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo de forma completa os factos da vida real imputados ao arguido e os factos que constituem o elemento subjectivo do crime respectivo.

É isso mesmo que resulta da remissão para a al. b) do nº 3 do artº 283º do C.P.P., feita na última parte do nº 2 do artº 287º do mesmo Código.

Nos termos daquela al. b), o r.a.i. deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neste teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Um r.a.i. bem estruturado, e em obediência a todo o nº 2 do artº 287º do C.P.P., deve (em casos como o destes autos) conter uma primeira parte com as razões relativas à discordância quanto ao arquivamento, com os actos de instrução que se pretendem levar a cabo, com os meios de prova e com a indicação dos factos que com eles se pretendem provar; e uma segunda parte com uma verdadeira acusação que servirá de vinculação temática para o tribunal e será indispensável para o exercício de verdadeiro contraditório por parte do arguido. (a este propósito, entre muitos outros, ac. da rel. de Lisboa de 4/6/2013).

A não exigência de formalidades especiais prevista logo no início do nº 2 do artº 287º do C.P.P., nada tem que ver com a necessidade da alegação de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, sejam eles integradores do elemento objectivo, sejam do elemento subjectivo, do tipo de crime em causa, sendo certo que a verificação destes últimos também é condição de aplicação de uma pena.

A relevância de uma clara narração dos factos é também evidente face ao que dispõe o artº 309º, nº 1, do C.P.P., o qual dispõe que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos (…) no requerimento para abertura da instrução.

Quanto ao elemento subjectivo, não é necessário que se utilizem as palavras “habituais”, mas com essas ou outras com o mesmo significado, têm que ser alegados os factos que consubstanciam tal elemento, sabendo-se que não deve haver “presunções de dolo”.

Como refere o Prof. Figueiredo Dias “… a ideia de um “dolus in re ipsa”, que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo” – [cf. R.L.J., 105, pág. 142].

Se o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, após abstenção do MºPº em deduzir acusação, não é legalmente apelidado de acusação, substancialmente é isso que ele deve ser e daí a remissão do artº 287º, nº 2, para o artº 283º, nº 3, als. b) e c), ambos do C.P.P. (neste sentido: Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 167).

É que a não ser assim, teria que ser o juiz de instrução a substituir-se ao assistente, na pesquisa dos factos potencialmente criminosos, o que seria clara violação do princípio do acusatório, constitucional e legalmente previsto. O juiz de instrução investiga autonomamente os factos (artºs 289º e 291º, nº 1, do C.P.P.), mas sempre dentro dos limites definidos no requerimento de abertura de instrução.

“Uma instrução concebida como suplemento investigatório seria absolutamente incongruente com a repartição de funções entre a magistratura do Ministério Público e a magistratura judicial que constituiu a pedra de toque do modelo processual no Código de 1987 e do mesmo passo constituiria um desvio incompreensível à dimensão material da estrutura acusatória de que o mesmo reveste, em observância do preceituado no nº 5 do artº 32º da Constituição” - Nuno Brandão, A Reforma do Direito Processual Penal Português em Perspetival Teórico-prática, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, pág. 229 e 230.

Como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho, C.R.P.Anot., 4ª edição, vol. I, pág. 522, “a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulação orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também órgão de acusação.”

A “acusação” que o requerimento para abertura da instrução deve conter tem que ser auto-suficiente, não sendo admissível (tal como não é para a acusação formulada pelo MºPº) a remissão, ou qualquer outra forma de referência, feita para outra peça processual ou para documentos. Estes servem para provar os factos que se alegam e não para suprir a obrigação de os alegar. E é preciso distinguir bem os factos das provas que os sustentam.

Nos termos do Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 7/05, D.R. de 4/11/05, “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artº 287º, nº 2, do C.P.P., quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

A reforma operada ao C.P.P. pela L. 48/07 de 29/8, em nada alterou qualquer dos preceitos legais pertinentes, designadamente o nº 2 do artº 287º do C.P.P., pelo que inexistem quaisquer razões para não seguir o decidido no referido Ac. de Fixação de Jurisprudência.

Por último, refira-se que o T.C. já rejeitou a inconstitucionalidade do nº 2 do artº 287º, quando exige, sob pena de rejeição, que o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, contenha os elementos referidos no artº 283º, nº3, als. b) e c), ambos do C.P.P. (Ac. do T.C. nº 358/04, D.R. IIª série de 28/6/04).

Ora, no caso dos autos verificamos que o r.a.i. foi rejeitado porque se entendeu que o mesmo não contém todos os factos suficientes para ser legalmente possível a realização da instrução.

Acontece, porém, que não se referem quais são os factos em falta, pois se se entende que não estão todos descritos é porque alguns estão.

Ao que parece, entendeu-se que quanto ao elemento objectivo faltam alguns factos, mas quanto ao elemento subjectivo faltam todos, designadamente quanto ao dolo.

Atente-se que o que está em causa no despacho recorrido é apenas a falta dos factos suficientes e não qualquer das questões abordadas no despacho de arquivamento do Ministério Público.

Ora, no caso dos autos, se é verdade que o r.a.i. procede a um descrição dos factos um pouco confusa, não se compreendo, por exemplo, as referências feitas no parágrafo que começa por “Mais referiram os Assistentes em declarações prestadas …”, pois que se alude a factos que, segundo os próprios assistentes estão a ser investigados pela P.J. no âmbito de outro processo, é certo que os mesmos tiveram o cuidado de separar a apreciação que fazem das razões que levaram ao arquivamento da descrição dos factos pelos quais pretendem que os arguidos sejam pronunciados.

Compulsada essa descrição não se pode concluir que relativamente ao elemento objectivo dos vários crimes imputados aos arguidos (ameaça agravada, injúria, dano qualificado, furto e ameaça simples) faltem factos quanto a eles todos (atente-se que relativamente ao crime de introdução em local vedado ao público, apesar de nos artºs 8º a 11º do r.a.i. se tecerem considerações, aquando da indicação dos crimes imputados, nenhuma referência é feita a esse crime).

Assim:

Quanto aos crimes de injúria e ameaça agravada, alega-se que:

No dia 22/9/2021 quando os assistentes se encontravam no seu prédio, a arguidaCC, dirigiu-se-lhes dizendo: “Mato-vos, eu vou a … e mato-vos filhos da puta; Dou-vos um tiro nos cornos; Nunca aqui vão contruir nada pois eu parto tudo, assim eu começarem a construir o muro eu parto tudo. Ao mesmo tempo, a referida Arguida incentivava pessoas que com ela se encontravam, cerca de cinco pessoas, a avançarem na direcção dos Assistentes e seus acompanhantes, fazendo gestos que imitavam o degolar e cortar de pescoço”.

O que é que objectivamente falta? Nada.

Quanto ao crime de dano qualificado, alega-se que:

No dia 2/10/2021, cerca das 17,00 horas, os arguidos CC e o seu filho DD entraram no prédio dos assistentes e derrubaram os tijolos do muro que estava a ser construído pelos assistentes, assim o inutilizando.

Julga-se que é o suficiente para que se conclua que está preenchido o elemento objectivo do crime de dano, mas apenas na sua forma simples, pois que quanto ao imputado crime de dando qualificado, não se detecta na descrição factual feita qualquer circunstância que consubstancie a imputada al. d) do nº 2 do artº 213º do Cód. Penal, ou qualquer outra.

Assim sendo, quanto a eventual qualificação, bem andou a decisão recorrida em rejeitar o r.a.i..

Quanto ao crime de furto, alega-se que:

No dia 9/11/2021 a arguida foi vista dentro do prédio rústico dos assistentes a “furtar/roubar … tijolos, areia e ferro …”

Ora, aqui sim, a descrição de factos que possam consubstanciar a prática de crime de furto é completamente omissa, pois que os assistentes limitam-se a alegar o tipo de crime que estará em causa – furto -, para além de utilizarem uma outra palavra – “roubo” – que se tem um significado comum, tem também um determinado conteúdo jurídico (o qual, aliás, não tem qualquer correspondência com os factos descritos).

O r.a.i. não tem os factos suficientes que possam consubstanciar um crime de furto. Acrescenta-se ainda (e adiantando) que relativamente ao crime de furto que é imputado, o r.a.i. é completamente omisso também no que diz respeito ao elemento subjectivo, designadamente, entre o mais, quanto à intenção de apropriação.

Quanto ao crime de ameaça simples, alega-se que:

No dia 12/11/2021 a arguida, referindo-se aos assistentes, disse a HH que “Eu parto tudo o que eles ali fizerem, ali eles nunca vão construir nada, eu dou cabo de tudo”.

Ora, resulta do artº 153º, nº 1, do Cód. Penal que a ameaça tem que ser com aprática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.

Acontece que ameaça consistiu em dizer “eu parto tudo”, “dou cabo de tudo”, sendo isso, só por si, insuficiente, pois que não se alega qual o valor do muro para, eventualmente, se poder concluir que estavam em causa bens patrimoniais de considerável valor (está fora de causa a ameaça com qualquer outro crime dos referidos na indicação disposição legal).

Assim sendo, quanto a este crime, bem andou a decisão recorrida.

Vejamos agora o elemento subjectivo que no entender do despacho recorrido está totalmente em falta.

Importa previamente tecer as seguintes considerações:

Com bem se refere no acórdão desta relação de 28/2/2023:

“I - São apenas dois os elementos que compõem o dolo, uma vez que o artigo 14º do CP o define como correspondendo ao conhecimento e vontade de realização do facto que preenche os elementos típicos objetivos do crime, descortinando-se em tal definição apenas o elemento cognitivo e o elemento volitivo; precisamente porque a consciência da ilicitude se reporta à culpa e não ao dolo, a mesma não encontra qualquer referência no mencionado preceito, encontrando-se prevista autonomamente como causa de exclusão da culpa no artigo 17º nº1 do CP.

II - O princípio do acusatório e da vinculação temática ao objeto do processo, subjacente à previsão do 283º nº 3, alínea b) do CPP, exige apenas que da referida peça se faça constar – sob pena de a mesma se encontrar irremediavelmente afetada do vício da nulidade – a factualidade que integra os elementos do tipo legal, razão pela qual os mencionados princípios em nada são postos em causa com a falta de referência na acusação à consciência da ilicitude, através da fórmula “bem sabendo [o arguido] ser a sua conduta proibida por lei” ou qualquer outra de sentido equivalente.

II - O objeto da jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 1/2015 de 27 de Janeiro reporta-se tão somente à inaplicabilidade do mecanismo processual da alteração não substancial de factos, previsto no artigo 358º do CPP, aos casos de falta de descrição, na acusação, dos factos integradores dos elementos subjetivos do tipo, em especial do dolo, nos quais se não inclui o facto atinente à consciência da ilicitude nos crimes em que o relevo axiológico em causa for inquestionável, como é manifestamente o caso do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.”

No caso em apreço todos os crimes se enquadram no chamado direito penal clássico, pelo que a consciência da ilicitude decorre da própria representação e vontade de praticar os factos que preenchem objectivamente o tipo penal.

Isto numa perspectiva. Noutra, temos como certo que a consciência da ilicitude não faz parte do dolo, tal como o mesmo se prevê no artº 14º do Cód. Penal, onde se referem apenas os elementos cognitivo (saber) e volitivo (querer) do mesmo.

A consciência da ilicitude (ou melhor, a falta dela) surge no artº 17º do Cód. Penal por referência à culpa e não ao dolo.

Assim sendo, para se considerar o r.a.i. completo basta que o requerente alegue os acima referidos elementos cognitivo e volitivo.

No sentido do aqui expresso, podem ver-se os seguintes acórdãos desta relação:

- De 14/3/2023 assim sumariado, na parte que interessa:

II. Os elementos intelectual e volitivo do dolo terão sempre de constar da acusação sob pena de essa factualidade não poder ser integrada em julgamento, conduzindo essa falta de narração à absolvição do arguido.

III. Quanto ao dolo emocional essa descrição nem sempre carece de constar na acusação, pois a locução “bem saber o agente ser proibida por lei a sua conduta”, não é facto que deva ser autonomamente narrado na acusação quando se está perante um crime do direito penal clássico, como sucede no caso concreto de difamação dirigida propositadamente a um funcionário de um centro de saúde em exercício de funções, através do facebook.

IV. Em casos como o assinalado a consciência de o agente ter agido bem sabendo tratar-se a sua conduta proibida por lei decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo: elemento intelectual e volitivo).

V. Apenas no direito contraordenacional ou penal secundário ou quando se esteja perante novas incriminações não suficientemente solidificadas na comunidade é de exigir o “conhecimento da proibição legal” por parte do agente e consequentemente é obrigatória a narração na acusação desse elemento como forma de realização do dolo do tipo.

- De 24/5/2022), assim sumariado:

Não é nula a acusação em que se não imputa ao arguido que a sua atuação foi consciente, isto é, que atuou sabendo que estaria a praticar um crime, uma vez que o conhecimento da proibição legal não integra o elemento subjetivo do tipo de ilícito (artigo 14.º do C. Penal), relevando apenas em sede de culpa, nos termos do artigo 17.º do Código Penal.

- De 26/6//2018:

I - A consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal. Pelo contrário, é a inconsciência da ilicitude que, em certas circunstâncias que revelem que a mesma não pode ser censurada ao agente, pode excluir a culpa e, por essa via, a responsabilidade criminal.

II. Não deve ser rejeitada a acusação pela circunstância desta não conter a alegação de que o arguido “ «sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal», ou expressão equivalente.

- De 12/3/2019, assim sumariado na parte que interessa, com especial referência à inaplicabilidade do AFR 1/2015):

I - A jurisprudência fixada na AFJ nº 1/2015 do STJ não se reporta à exigência de articulação da “consciência da ilicitude” na acusação, pois o objeto daquela fixação de jurisprudência, ditado pela questão relativamente à qual se verificou oposição de julgados, centrou-se na inaplicabilidade do mecanismo previsto no art. 358º do CPP para a alteração não substancial de factos aos casos de falta de descrição, na acusação, [dos factos integradores] dos elementos subjetivos do crime - máxime o dolo –, não se afirmando explicitamente na fixação de jurisprudência que “a consciência da ilicitude” teria que ser autonomamente descrita na acusação e julgada provada na sentença, para que o arguido pudesse ser condenado pelo crime doloso respetivo. II - Assim, não tendo que constar da acusação e da sentença a locução “o arguido agiu com consciência da ilicitude” ou semelhante, não há sequer lugar ao cumprimento do disposto no art. 358º do CPP, pelo que se impõe proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos e à determinação concreta da pena a aplicar.

- De 11/10/2022:

II - A ausência de menção na acusação sob escrutínio, nos termos do art.º 311 CPP, de que o arguido agiu com consciência da ilicitude, não constitui motivo de rejeição da mesma, pois aquela consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal, perante o normativo constante do art.º 17.º do CP; ao contrário, é a inconsciência da ilicitude que, em certas circunstâncias que revelem que a mesma não pode ser censurada ao agente, pode excluir a culpa e, por essa via, a responsabilidade criminal.

- De 10/1/2023 :

V. Mas em geral o sentido da ilicitude do facto ressalta da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Et pour cause, nestes casos carecerá de sentido questionar se o agente atuou conscientemente, se tinha pleno conhecimento da proibição, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim realizá-lo. Porque se não tinha isso terá necessariamente de lhe ser censurável (artigo 17.º/2 CP).

De referir ainda, no mesmo sentido, os seguintes acórdãos da relação do Porto:

- de 12/7/2013:

Se o tipo de crime em causa tem um relevo axiológico suficientemente caracterizado e comunitariamente enraizado e difundido (como é o crime de injurias) a ausência na acusação da consciência da ilicitude (saber que a conduta é proibida e punida por lei) não é relevante podendo ocorrer a condenação pelo crime, porque como decorre do art.º 17º2 CP uma falta de consciência da ilicitude vir a traduzir-se numa falta censurável de consciência do ilícito fundamentadora de uma culpa dolosa a requer a punição a esse titulo.

- de 26/5/2021:

I - Depois do AFJ nº 1/2015 é pacifico o entendimento sobre o conteúdo da acusação e sua consequências.

II - A falta de descrição na acusação e no acórdão dos elementos relativos á consciência da ilicitude, não releva, a não ser nos casos abrangidos pela previsão contida no artigo 17º do Código Penal, ou seja, apenas releva se for devido a erro do seu autor que não lhe é censurável.

III - Estando enraizada na comunidade a ilicitude da conduta, a descrição da consciência da ilicitude não tem de constar com caracter obrigatório da acusação e da decisão, com vista à sua condenação, mas apenas se tiver carácter axiologicamente neutro e se desconhecer sem culpa tal valoração de ilícito da acção empreendida.

Vem isto a propósito de que se entende que a descrição da consciência da ilicitude, nos casos dos crimes em causa, é dispensável.

Quanto ao demais integrador do elemento subjectivo, alegou-se no r.a.i. o seguinte:

Quanto ao crime de ameaça agravada alegou-se que “A arguida quis e conseguiu conscientemente provocar nos Assistentes, destinatários das suas palavras, medo e inquietação, palavras e sinais por ela proferidos e com pontencialidade para tal.”

Ora, resulta do referido que foi alegado o suficiente para se entender estarem descritos os factos consubanciadores do elemento subjectivo do crime de ameaça (independentemente de ser dispensável a efectiva ocorrência de medo, bastando a adequação para tal): ao actuar como actuou de forma consciente, a arguida quis provocar medo e inquietação nos assistentes.

Já quanto ao crime de injúria, os assistentes limitam-se a alegar que “as expressões proferidas pela Arguida ofenderam a honra e consideração dos Assistentes”, o que é insuficiente para preencher o elemento subjectivo do crime de injúria.

Nada se alega quanto ao modo de actuação da arguida e intenção dessa mesma actuação.

Os assistentes limitam-se a referir que ficaram ofendidos, nada mais, o que é insuficiente.

Quanto ao crime de dano qualificado, alegou-se que os arguidos “agiram conscientemente com o propósito de destruírem o muro em construção, o que conseguiram”, pelo que se entende que o elemento subjectivo (no entendimento que se tem do mesmo, conforme acima referido) se encontra suficientemente alegado.

Julga-se que o conhecimento do carácter alheio resulta necessariamente da alegação de que o muro tinha sido mandado contruir no prédio do assistente AA e a seu mando.

Quanto ao crime de furto, já acima se deixou referido que a descrição factual é totalmente omissa, quer quanto ao elemento objectivo, quer quanto ao elemento subjectivo.

Por último, quanto ao crime de ameaça simples, está a questão prejudicada, atenta a falta da descrição completa do elemento objectivo do mesmo.

Do exposto resulta que bem andou a decisão recorrida quanto aos crimes de injúria (falta do elemento subjectivo), de furto (falta dos elementos objectivo e subjectivo), de ameaça simples (falta do elemento objectivo) e de dano qualificado (falta de elemento objectivo quanto à qualificação).

Quanto aos restantes crimes (ameaça agravada e dano simples), deverá o despacho recorrido ser substituído por outro que não rejeite o r.a.i. pelos motivos nele eferidos.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso parcialmente procedente, revogando parcialmente o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro, nos termos acima referidos.

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Sem custas, uma vez que o decaimento no recurso não foi total.

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Évora, 5 de Março de 2024

Nuno Garcia

Jorge Antunes

Edgar Valente