Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
428/21.2GESLV.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO
TRADUÇÃO DA ACUSAÇÃO
NULIDADE INSANÁVEL
ARGUIDO ESTRANGEIRO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A omissão de entrega a um arguido estrangeiro (francês) de tradução da acusação na sua língua materna, quando o mesmo foi assistido por intérprete no momento em que foi ouvido no inquérito, configura nulidade insanável.
II - Todo o processado, posterior à referida omissão, enferma do mesmo vício (nulidade insanável), cabendo aos serviços do Ministério Público a correção da nulidade cometida, com tradução da acusação para a língua francesa e subsequente notificação da mesma, devidamente traduzida, ao arguido.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

Nos autos 428/21.2GESLV, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Silves, Juiz 2, pelo MP foi deduzida acusação contra o arguido (A), pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de furto qualificado na forma tentada, e um crime de introdução em lugar vedado ao público, p.p., pelos Artsº 204 nº1 al. e), 22 nº1 e 191, todos do C. Penal.

Remetidos estes autos à secção central com vista à marcação do julgamento, foi proferido, pelo Mmº Juiz a quo o seguinte despacho (transcrição):

Questão Prévia.
Da nulidade do processado por falta de tradução da acusação.
Por despacho de 15 de Abril de 2023, foi o Arguido (A) acusado da prática, em autoria material, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo art. 204º, nº 1, al. e), conjugado com o art. 22º, nº 1, ambos do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, em concurso real com um crime de introdução em lugar vedado ao publico, p. e p. pelo art. 191º, do mesmo diploma legal.
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 283.º, n.º 5, e 277.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, a acusação é comunicada às pessoas indicadas nesse n.º 3, entre elas se contando, desde logo, o Arguido.
Essa comunicação é feita nos termos do n.º 4 do referido artigo 277.º, pelo que, no que respeita ao arguido, a regra, é a de que o seja “por notificação mediante contacto pessoal ou via postal registada”.
No entanto o acto em crise - acusação pública deduzida - respeita a um cidadão estrangeiro (francês) que foi assistido por intérprete no momento em que foi ouvido no inquérito e, a despeito de tal, foi utilizada a língua portuguesa, não tendo sido entregue ao Arguido a tradução da acusação na língua francesa.
Ademais nem ressumbra dos autos que o Arguido tenha sido regularmente notificado na morada que indicou aquando a prestação de TIR.
Ora, estabelece o n.º 1 do artigo 92.º do Código de Processo Penal que, “nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade”.
No entanto, acautelando as situações de intervenção no processo de pessoa que não conheça ou não domine a língua portuguesa, o nº 2 dispõe que “… é nomeado, sem encargo para ela (para essa pessoa), intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada”.
Ademais resulta do artigo 61.º n.º1 al. j) do Código de Processo Penal que “O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de: (…) tradução e interpretação, nos termos dos artigos 92.º e 93.º.”
No vertente caso, o Arguido deveria, assim, ter sido notificado do teor do despacho de acusação na sua língua materna, o que não se verificou. Resta, pois, apurar a consequência de uma tal omissão.
Neste domínio, vigora entre nós o princípio da legalidade, definido no 118.º do Código de Processo Penal, cujo n.º 1 estabelece que “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, estatuindo o seu n.º 2 que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”.
Inexistindo norma especial que comine expressamente com nulidade a omissão de entrega ao notificando estrangeiro de tradução da acusação na sua língua materna, importa atentar ao disposto nos artigos 119.º e 120.º do Código de Processo Penal, onde consta o elenco das situações que integram, respectivamente, a categoria das nulidades insanáveis e a das nulidades dependentes de arguição ou sanáveis.
Dispõe o artigo 120.º al. c) do n.º 2 do Código de Processo Penal que constitui nulidade dependente de arguição “a falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória”, aqui se incluindo, naturalmente, todos os actos orais ou escritos que importe traduzir para a língua de algum dos intervenientes, em harmonia, de resto, com o estabelecido no acima referido artigo 92.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Todavia, a este nível, importa ainda considerar as Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho, respectivamente, nsº 2010/64/EU de 20/10 e 2012/13/EU de 22/12, que regulamentam o direito à nomeação de intérprete e à disponibilização de tradução dos actos processuais aos arguidos estrangeiros e ao direito à informação em processo penal.
Neste sentido, a primeira dela, nos seus Artsº 1 a 3 refere o seguinte:
“Artigo 1º
Objeto e âmbito de aplicação
1. A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus.
2. O direito a que se refere o n.º 1 é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.
3. Caso a lei de um Estado-Membro determine que, no caso de infrações de menor gravidade, as sanções são impostas por uma autoridade que não é um tribunal competente em matéria penal e que a imposição dessa sanção é passível de recurso para um tribunal com essas características, a presente diretiva só se aplica à ação que correr termos nesse tribunal na sequência do recurso.
4. A presente diretiva não afeta o direito nacional no que diz respeito à presença de um defensor legal durante todas as fases do processo penal, nem no que diz respeito ao direito de acesso dos suspeitos ou acusados aos documentos do referido processo.
Artigo 2º
Direito à interpretação
1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias.
2. Os Estados-Membros asseguram que, caso tal seja necessário à garantia da equidade do processo, seja disponibilizada interpretação para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal diretamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de carácter processual.
3. O direito à interpretação referido nos n.ºs 1 e 2 inclui a assistência adequada a pessoas com deficiência auditiva ou da fala.
4. Os Estados-Membros asseguram a existência de um procedimento ou método que permita apurar se o suspeito ou acusado fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete.
5. Os Estados Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária interpretação e, caso esta seja disponibilizada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da interpretação não ser suficiente para garantir a equidade do processo.
6. Se for caso disso, pode recorrer-se a tecnologias de comunicação como a videoconferência, o telefone ou a Internet, a menos que a presença física do intérprete seja necessária para garantir a equidade do processo.
7. Nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes disponibilizem interpretação nos termos do presente artigo às pessoas submetidas a esses mandados que não falam ou não compreendem a língua do processo.
8. A interpretação disponibilizada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.
Artigo 3º
Direito à tradução dos documentos essenciais
1. Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo.
2. Entre os documentos essenciais contam-se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças.
3. As autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial. O suspeito ou acusado ou o seu defensor legal podem apresentar um pedido fundamentado para esse efeito.
4. Não têm de ser traduzidas as passagens de documentos essenciais que não sejam relevantes para que o suspeito ou acusado conheça as acusações e provas contra ele deduzidas.
5. Os Estados-Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária a tradução de documentos ou passagens de documentos e, caso esta seja facultada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da tradução não ser suficiente para garantir a equidade do processo.
6. Nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes facultem a tradução escrita do mandado de detenção europeu às pessoas submetidas a esses mandados que não compreendem a língua em que o mesmo é redigido ou a língua para a qual tenha sido traduzido pelo Estado-Membro de emissão.
7. Como exceção às regras gerais estabelecidas nos n.os 1, 2, 3 e 6, podem ser facultados uma tradução oral ou um resumo oral dos documentos essenciais em vez de uma tradução escrita, na condição de essa tradução oral ou esse resumo oral não prejudicarem a equidade do processo.
8. A renúncia ao direito à tradução de documentos previsto no presente artigo fica sujeita ao requisito de que o suspeito ou acusado tenha previamente recebido aconselhamento jurídico, ou obtido, por outra via, pleno conhecimento das consequências da sua renúncia, e de que essa renúncia seja inequívoca e voluntária.
9. A tradução facultada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.
Por sua vez, a Diretiva 2012/13/UE, relativa ao direito à informação em processo penal, prevê no seu Artº 3, sobre o direito a ser informado sobre os direitos, a consagração, na sua al. d), do direito à interpretação e tradução.
É ainda seguro, que tais disposições têm por escopo garantir o direito dos acusados a um processo equitativo, tal como a CEDH estabelece, no seu nº3 do seu artigo 6.º quando afirma que “O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada;
(…)
e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo
Como se escreveu no Acórdão da Relação de Évora de 08/03/22, Proc. 53/19.8GACUB.B.E1: “As Diretivas em referência – que consagram o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal – não se encontram transpostas no ordenamento jurídico português, sendo certo que se mostram esgotados os respetivos prazos de transposição, que terminaram, respetivamente, em 27.11.2013 e 02.06.2014.
Encontramos no Tratado de Funcionamento da União Europeia (T.F.U.E), concretamente no seu artigo 288 o princípio segundo o qual uma Diretiva, à partida, só produz efeitos na ordem interna do Estado-Membro após ser transposta, vinculando, porém, os Estados-Membros à sua transposição.
Todavia, para além da aplicabilidade direta a possibilidade de aplicação de uma norma comunitária na ordem jurídica dos Estados-Membros pode resultar do chamado efeito direto, que surge como uma “criação jurisprudencial” num primeiro momento relativa ao “direito comunitário originário” (Tratados) – expressamente reconhecido pela primeira vez no acórdão Van Gend & Loos, de 05.02.1963 e, em 1964 (no quadro da afirmação do princípio do primado), no Acórdão Costa c. ENEL – que tem sido estendido pela jurisprudência comunitária, no que diz respeito ao efeito direto vertical, ao “direito comunitário derivado”, onde se incluem as Diretivas.
Segundo a Jurisprudência do Tribunal de Justiça o efeito direto vertical de uma Diretiva, ou seja, o que é feito valer pelos particulares perante os poderes públicos (neste caso, o tribunal e o Estado português), existirá posto que se encontrem preenchidos cumulativamente determinados pressupostos, a saber:
- Que não tenha sido efetuada a sua transposição para a legislação nacional ou que a mesma tenha sido objeto de transposição incorreta;
- Que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas;
- Que as disposições da Diretiva confiram direitos a particulares
particulares;
- Que esteja esgotado o prazo de transposição.
No que diz respeito à verificação destes requisitos relativamente às duas Diretivas acima identificadas, acompanhamos, sem hesitações, a posição defendida por João Gomes de Sousa no estudo acima citado – e que pelo mesmo autor foi aplicada no Acórdão da Relação de Évora de 28.12.2018, no proc. n.º 55/2017.9GBLGS.E1 por si relatado, disponível em www.dgsi.pt – no sentido de que os mesmos se encontram preenchidos, pelo que se impõe concluir pelo efeito direto dos dois atos da Direito da União que acima identificámos.
Assim e analisando mais de perto cada um dos mencionados requisitos, verificamos que o primeiro e o último se encontram indiscutivelmente preenchidos, pois que, conforme já demos nota, nenhuma das duas Diretivas foi transposta para o ordenamento jurídico português, encontrando-se há muito esgotados os prazos fixados para as suas transposições (o que ocorreu, respetivamente, em 27.11.2013 e 02.06.2014). No que diz respeito ao terceiro requisito que enunciámos, nenhuma dúvida pode igualmente subsistir relativamente à sua verificação, uma vez que as duas Diretivas em referência, nas normas aplicáveis à situação dos autos, conferem indiscutivelmente direitos a particulares, concretamente o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal.
Finalmente, no que tange ao preenchimento do segundo critério definido – que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas – e que se apresenta como o que gera maior dificuldade de verificação, fazendo apelo à jurisprudência do Tribunal de Justiça, convocamos, atenta a sua clareza e assertividade, o acórdão do Tribunal de Justiça Susanne Gassmayr c. Bundesminister für Wissenschaft und Forschung de 1 de julho de 2010 (Processo C-194/08)[6], no qual podemos ler:
“(…) 44 - Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, em todos os casos em que, tendo em conta o seu conteúdo, as disposições de uma diretiva sejam incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar contra o Estado nos tribunais nacionais, quer quando este não tenha feito a sua transposição para o direito nacional nos prazos previstos na diretiva quer quando tenha feito uma transposição incorreta (…)
45 - Uma disposição de direito da União é incondicional quando prevê uma obrigação que não é acompanhada de condições nem subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à intervenção de qualquer ato das instituições da União ou dos Estados-Membros. Uma disposição é suficientemente precisa para ser invocada por um particular e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos (…).”
Assim sendo, encontrando-se verificados todos os critérios/requisitos dos quais depende a atribuição de efeito directo vertical às aludidas Directivas – uma vez que as mesmas não foram transpostas para o ordenamento jurídico nacional nos prazos fixados para o efeito, contêm normas que conferem direitos a particulares e que são claras, precisas e incondicionais e respeitando o primado do Direito da União Europeia, constitucionalmente reconhecido pelo Artº 8 nº4 da Constituição da República Portuguesa, teremos de concluir que as referenciadas normativas (nsº 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho), nos preceitos transcritos, têm efeito directo vertical na ordem jurídica nacional, pelo que poderão ser aplicadas nos presentes autos, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno.
Assim, a imperatividade resultante da aplicação das normas das Diretivas e da Jurisprudência do TJ, atendendo ao princípio do primado do Direito da União reconhecido pelo artigo 8º, nº 4 da CRP, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União, o que, no que à economia do caso dos autos diz respeito, determina a desaplicação do regime da sanação das nulidades estabelecido pelo citado artigo 120.º, nº 3 do Código de Processo Penal, em virtude de o mesmo se não revelar compatível com os direitos fundamentais a um processo equitativo e com o respeito pelos direitos de defesa decorrentes dos artigos 47.° e 48.°, n.° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como do artigo 6.° da CEDH, à luz dos quais deverão ser interpretados os artigos 2.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1 da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13.” [neste sentido vejam-se os Acórdãos da Relação de Évora de 8 de Março de 2022 e de25 de Outubro de 2022, Processos n.ºs 53/19.8GACUB-B.E1 e 128/22.6GDFAR.E1].
Na verdade, decorre do acórdão do TJUE, no Proc. C–242/22 PPU, de 01/08/22 – na sequência de um pedido de decisão prejudicial apresentado pela Relação de Évora no âmbito do Processo nº 53/19.8GACUB.B.E1 que:
O artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, lidos à luz do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual a violação dos direitos previstos nas referidas disposições destas diretivas deve ser arguida pelo beneficiário desses direitos num determinado prazo, sob pena de sanação, quando esse prazo começa a correr ainda antes de a pessoa em causa ter sido informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados.”
Em face do exposto, declara-se nula a notificação do despacho de acusação proferido a fls. 121 e seguintes e o processado subsequente, porque dele dependente, e determina-se a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para que este proceda à tradução do mesmo, nos termos que resultam do supra exposto e para que notifique o Arguido regularmente de tal acusação.
Notifique.
DN, dando baixa na distribuição.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP, com as seguintes conclusões (transcrição):

1º A M.ma Juiz recorrida entendeu declarar a nulidade da notificação efectuada ao arguido, bem como o processado subsequente porque dele dependente, bem como determinar a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para que procedam à tradução da acusação, bem como à notificação regular do arguido para essa acusação;
2º Ora, é nosso entendimento que à M.ma Juiz recorrida não assiste razão;
3º Em primeiro lugar não resulta dos autos em lugar algum que o arguido não perceba ou não entenda, a língua portuguesa, escrita ou falada;
4º Em segundo lugar ao contrário do afirmado pela M.ma Juiz recorrida, não é verdade que não tenha sido tentada a notificação do arguido na morada que foi indicada nos autos no TIR prestado pelo arguido;
5º Em terceiro lugar, resulta à saciedade dos autos que é desconhecido, em absoluto, o paradeiro do arguido, existindo mesmo a possibilidade, e o risco, de a sua identificação não ter qualquer correspondência com aquela que consta dos autos, já que não era portador de qualquer elemento de identificação aquando da sua detenção pelo exigir, neste quadro e nestas condições, que se já devia ter efectuado a tradução da acusação para a língua francesa, afigura-se-nos um acto meramente formalista, desnecessário, e contrário à economia e simplicidade processual;
6º Em quarto lugar, discordamos da interpretação extensiva que a M.ma Juiz recorrida faz do preceituado pelo art. 120º, nº2, al. c), do C.P.P.,
7º Invocou a M.ma Juiz recorrida a este título, as Directivas do Parlamento Europeu e do Conselho nºs 2010/64/EU, de 20/10, e 2012/13/EU, de 22 de Dezembro, mas sem qualquer necessidade, já que nesta matéria o que é exigido pelo direito comunitário está em total conformidade com a lei nacional aplicável (Acórdão de 10.09.2019, do Tribunal da Relação de Lisboa, disponível in www.dgsi.pt);
8º No sentido de que a falta de notificação do arguido não constitui uma nulidade sanável mas antes e apenas uma mera irregularidade, podem-se ver os doutos Acórdãos de 17 de Janeiro de 1995, do Tribunal da Relação de Lisboa, in CJ, Ano XX, Tomo I Pág. 155, e de 31 de Janeiro de 2007, do Tribunal da Relação do porto, disponível in www.dgsi.pt;
9º Em quinto lugar, e por último, tendo a M.ma Juiz recorrida constatado a omissão da notificação do arguido com a apresentação da tradução da peça da acusação e determinado a invalidade dessa notificação, nada impedia que tivesse ordenado a sua sanação nos termos previstos pelo artº 122º do C.P.P., sendo eu essa sanação pode ocorrer pelos próprios serviços da Seção de processos, sem necessidade alguma de dar sem efeito a distribuição já ocorrida, e sem ordenar a remessa dos autos aos serviços do Ministério Publico para reparar tal invalidade;
10º De facto, o art. 123º, n.º 2, prevê a possibilidade de, oficiosamente, se reparar qualquer invalidade/irregularidade, quando dela se tomar conhecimento, se esta afectar o valor do acto praticado;
11º Quando este preceito legal prevê a possibilidade de "ordenar-se oficiosamente a reparação”, quer dizer que a autoridade judiciária pode tomar a iniciativa de reparar a irregularidade, determinado que os respetivos serviços diligenciem nesse sentido, não ordenando a remessa dos autos ao Ministério Público.
12º Neste sentido, e para salvaguarda dos princípios da economia processual, e do respeito pelo princípio do Juiz natural, pode-se ver Paulo Pinto de Albuquerque, (in "Comentário ao Código de Processo Pena, UCE, 2ª Edição actualizada, pág. 790), e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.12.2016 e de 06.02.2017 do Tribunal da Relação de Évora de 07.03.2017 (processos nº 874/15.GCFAR.E1 e 89/15.BT9ABF.E1), do Tribunal da Relação do Porto, de 11.04.2018 e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08.09.2020 e 13.01.2021, todos disponíveis in www.d gsi. pt.;
13ª Atenta a fundamentação que vai supra exposta, deverá a douta decisão recorrida ser substituída por outra que receba a acusação e ordene aos próprios serviços da Secção a reparação da irregularidade julgada como verificada, considerando-se assim que foi violada o disposto pelos arts. 123º, nº2 e 311 e 312º, todos do C.P.P.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente o douto despacho ora recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a reparação da invocada irregularidade pelos serviços da Seção de Processos, com o oportuno cumprimento do disposto pelo art. 312º, nº1, do C.P.P.

C – Respostas ao Recurso
Inexistem respostas ao recurso.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exmª Procuradora-Geral Adjunta, que militou pelo insucesso do recurso.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão ao recorrente, quando solicita a revogação do despacho supra transcrito e a sua substituição por outro que determine a reparação da invocada irregularidade - relacionada com a não notificação da acusação ao arguido - pelos serviços da Secção de Processos, com o oportuno cumprimento do disposto pelo Artº 312 nº1 do CPP.

B – Apreciação

Exposta a questão em discussão, eminentemente jurídica, é a mesma, mau grado os seus contornos, de fácil resolução, atenta a jurisprudência recente do TJUE, e vai no sentido apontado no douto despacho recorrido que supra se transcreveu, na esteira também de um entendimento já defendido pelos aqui relator e adjunto, em aresto de 15/10/22, no Proc. 128/22.6GDFAR.E1, desta Relação, que seguiremos de perto.
Antes de entrarmos na substância da questão, importa dizer que alguns dos argumentos apresentados pelo recorrente não têm, com o devido respeito, qualquer relevância.
Falamos de ter sido tentada, ou não, a notificação do arguido na morada que foi indicada no TIR, de não constar dos autos que este não perceba ou entenda a língua portuguesa e de ser em absoluto desconhecido o seu paradeiro, havendo até a possibilidade de a sua identificação não ter correspondência com a que está mencionada no processo.
Na verdade, trata-se de um arguido de nacionalidade estrangeira, com última residência conhecida em solo francês, pelo que não faz sentido questionar se o mesmo entende, ou não, a língua portuguesa, já que, enquanto não se provar o contrário, a necessidade de lhe traduzir os documentos relevantes para a sua defesa, como a acusação, é evidente.
Isso mesmo aliás, foi reconhecido pelo próprio MP, quando, em sede de inquérito, o interrogou com a presença de intérprete.
Por outro lado, como bem assinala a Exmª Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação, “A circunstância de ser desconhecido o seu paradeiro e a possibilidade de a sua identificação não ter qualquer correspondência com aquela que consta dos autos, por não ter sido portador de elemento de identificação aquando da sua detenção, não justificam a desnecessidade de tradução, mas justificam diligências, num caso, de apuramento de paradeiro com vista à notificação e caso não venha a ser possível o envio do processo para julgamento sem tal notificação (factualidade prévia e a demonstrar) e no outro de autonomização / identificação de quem se sujeita a julgamento, já que quanto à língua que entenda não terá tido dúvidas o Ministério Público em fase de inquérito em saber qual seja, uma vez que lhe terá nomeado intérprete em ato processual.
No primeiro dos casos suprarreferido, pode, na verdade suceder, que se venha a apurar o desconhecimento atual do paradeiro do arguido e, por esse facto, venha a ser inviabilizada a sua notificação. No entanto, a factualidade que pressupõe a verificação daquela conclusão não se mostra verificada na situação em presença pelo que não é caso de a ela fazer, no momento, apelo.”
O arguido é de nacionalidade francesa e apesar de, como se disse, ter sido assistido, em inquérito, quando foi ouvido, por um intérprete, nos termos do Artº 92 nº2 do CPP, não foi a acusação proferida pelo MP objecto de qualquer tradução, não tendo sido entregue ao arguido a sua tradução na língua francesa.
Importa assim saber se este quadro revela alguma nulidade e qual o seu regime, e ainda, se devem ser aplicadas as normas decorrentes do Direito da União Europeia, em função da sua produção de efeitos na ordem jurídica interna.
Ora, a este nível, importa referenciar as Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho, respectivamente, nsº 2010/64/EU de 20/10 e 2012/13/EU de 22/12, que regulamentam o direito à nomeação de intérprete e à disponibilização de tradução dos actos processuais aos arguidos estrangeiros e ao direito à informação em processo penal.
Neste sentido, a primeira dela, nos seus Artsº 1 a 3 refere o seguinte:
Artigo 1º
Objeto e âmbito de aplicação
1. A presente diretiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus.
2. O direito a que se refere o n.º 1 é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.
3. Caso a lei de um Estado-Membro determine que, no caso de infrações de menor gravidade, as sanções são impostas por uma autoridade que não é um tribunal competente em matéria penal e que a imposição dessa sanção é passível de recurso para um tribunal com essas características, a presente diretiva só se aplica à ação que correr termos nesse tribunal na sequência do recurso.
4. A presente diretiva não afeta o direito nacional no que diz respeito à presença de um defensor legal durante todas as fases do processo penal, nem no que diz respeito ao direito de acesso dos suspeitos ou acusados aos documentos do referido processo.
Artigo 2º
Direito à interpretação
1. Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias.
2. Os Estados-Membros asseguram que, caso tal seja necessário à garantia da equidade do processo, seja disponibilizada interpretação para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal diretamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de carácter processual.
3. O direito à interpretação referido nos n.ºs 1 e 2 inclui a assistência adequada a pessoas com deficiência auditiva ou da fala.
4. Os Estados-Membros asseguram a existência de um procedimento ou método que permita apurar se o suspeito ou acusado fala e compreende a língua do processo penal e se necessita da assistência de um intérprete.
5. Os Estados Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária interpretação e, caso esta seja disponibilizada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da interpretação não ser suficiente para garantir a equidade do processo.
6. Se for caso disso, pode recorrer-se a tecnologias de comunicação como a videoconferência, o telefone ou a Internet, a menos que a presença física do intérprete seja necessária para garantir a equidade do processo.
7. Nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes disponibilizem interpretação nos termos do presente artigo às pessoas submetidas a esses mandados que não falam ou não compreendem a língua do processo.
8. A interpretação disponibilizada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.
Artigo 3º
Direito à tradução dos documentos essenciais
1. Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo.
2. Entre os documentos essenciais contam-se as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças.
3. As autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial. O suspeito ou acusado ou o seu defensor legal podem apresentar um pedido fundamentado para esse efeito.
4. Não têm de ser traduzidas as passagens de documentos essenciais que não sejam relevantes para que o suspeito ou acusado conheça as acusações e provas contra ele deduzidas.
5. Os Estados-Membros asseguram que, nos termos da lei nacional, o suspeito ou acusado tenha o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária a tradução de documentos ou passagens de documentos e, caso esta seja facultada, tenha a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da tradução não ser suficiente para garantir a equidade do processo.
6. Nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes facultem a tradução escrita do mandado de detenção europeu às pessoas submetidas a esses mandados que não compreendem a língua em que o mesmo é redigido ou a língua para a qual tenha sido traduzido pelo Estado-Membro de emissão.
7. Como exceção às regras gerais estabelecidas nos n.os 1, 2, 3 e 6, podem ser facultados uma tradução oral ou um resumo oral dos documentos essenciais em vez de uma tradução escrita, na condição de essa tradução oral ou esse resumo oral não prejudicarem a equidade do processo.
8. A renúncia ao direito à tradução de documentos previsto no presente artigo fica sujeita ao requisito de que o suspeito ou acusado tenha previamente recebido aconselhamento jurídico, ou obtido, por outra via, pleno conhecimento das consequências da sua renúncia, e de que essa renúncia seja inequívoca e voluntária.
9. A tradução facultada nos termos do presente artigo deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa.”
Por sua vez, a Diretiva 2012/13/UE, relativa ao direito à informação em processo penal, prevê no seu Artº 3, sobre o direito a ser informado sobre os direitos, a consagração, na sua al. d), do direito à interpretação e tradução.
É ainda seguro, que tais disposições têm por escopo garantir o direito dos acusados a um processo equitativo, tal como a CEDH estabelece, no seu nº3 do seu Artº 6 quando afirma que “O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada;
(…)
e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo
Como se escreveu no Acórdão desta Relação de 08/03/22, Proc. 53/19.8GACUB.B.E1:
“As Diretivas em referência – que consagram o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal – não se encontram transpostas no ordenamento jurídico português, sendo certo que se mostram esgotados os respetivos prazos de transposição, que terminaram, respetivamente, em 27.11.2013 e 02.06.2014.
Encontramos no Tratado de Funcionamento da União Europeia (T.F.U.E), concretamente no seu artigo 288 o princípio segundo o qual uma Diretiva, à partida, só produz efeitos na ordem interna do Estado-Membro após ser transposta, vinculando, porém, os Estados-Membros à sua transposição.

Todavia, para além da aplicabilidade direta a possibilidade de aplicação de uma norma comunitária na ordem jurídica dos Estados-Membros pode resultar do chamado efeito direto, que surge como uma “criação jurisprudencial” num primeiro momento relativa ao “direito comunitário originário” (Tratados) – expressamente reconhecido pela primeira vez no acórdão Van Gend & Loos, de 05.02.1963 e, em 1964 (no quadro da afirmação do princípio do primado), no Acórdão Costa c. ENEL – que tem sido estendido pela jurisprudência comunitária, no que diz respeito ao efeito direto vertical, ao “direito comunitário derivado”, onde se incluem as Diretivas.
Segundo a Jurisprudência do Tribunal de Justiça o
efeito direto vertical de uma Diretiva, ou seja, o que é feito valer pelos particulares perante os poderes públicos (neste caso, o tribunal e o Estado português), existirá posto que se encontrem preenchidos cumulativamente determinados pressupostos, a saber:
- Que não tenha sido efetuada a sua transposição para a legislação nacional ou que a mesma tenha sido objeto de transposição incorreta;
- Que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas;
- Que as disposições da Diretiva confiram direitos a particulares

particulares;
- Que esteja esgotado o prazo de transposição.

No que diz respeito à verificação destes requisitos relativamente às duas Diretivas acima identificadas, acompanhamos, sem hesitações, a posição defendida por João Gomes de Sousa no estudo acima citado – e que pelo mesmo autor foi aplicada no Acórdão da Relação de Évora de 28.12.2018, no proc. n.º 55/2017.9GBLGS.E1 por si relatado, disponível em www.dgsi.pt – no sentido de que os mesmos se encontram preenchidos, pelo que se impõe concluir pelo efeito direto dos dois atos da Direito da União que acima identificámos.
Assim e analisando mais de perto cada um dos mencionados requisitos, verificamos que o primeiro e o último se encontram indiscutivelmente preenchidos, pois que, conforme já demos nota, nenhuma das duas Diretivas foi transposta para o ordenamento jurídico português, encontrando-se há muito esgotados os prazos fixados para as suas transposições (o que ocorreu, respetivamente, em 27.11.2013 e 02.06.2014). No que diz respeito ao terceiro requisito que enunciámos, nenhuma dúvida pode igualmente subsistir relativamente à sua verificação, uma vez que as duas Diretivas em referência, nas normas aplicáveis à situação dos autos, conferem indiscutivelmente direitos a particulares, concretamente o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal.
Finalmente, no que tange ao preenchimento do segundo critério definido – que as disposições da Diretiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas – e que se apresenta como o que gera maior dificuldade de verificação, fazendo apelo à jurisprudência do Tribunal de Justiça, convocamos, atenta a sua clareza e assertividade, o acórdão do Tribunal de Justiça Susanne Gassmayr c. Bundesminister für Wissenschaft und Forschung de 1 de julho de 2010 (Processo C-194/08)[6], no qual podemos ler:
“(…) 44 - Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, em todos os casos em que, tendo em conta o seu conteúdo, as disposições de uma diretiva sejam incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar contra o Estado nos tribunais nacionais, quer quando este não tenha feito a sua transposição para o direito nacional nos prazos previstos na diretiva quer quando tenha feito uma transposição incorreta (…)
45 - Uma disposição de direito da União é incondicional quando prevê uma obrigação que não é acompanhada de condições nem subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à intervenção de qualquer ato das instituições da União ou dos Estados-Membros. Uma disposição é suficientemente precisa para ser invocada por um particular e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos (…).”
Assim sendo, encontrando-se verificados todos os critérios/requisitos dos quais depende a atribuição de efeito directo vertical às aludidas Directivas, uma vez que as mesmas não foram transpostas para o ordenamento jurídico nacional nos prazos fixados para o efeito, contêm normas que conferem direitos a particulares e que são claras, precisas e incondicionais e respeitando o primado do Direito da União Europeia, constitucionalmente reconhecido pelo Artº 8 nº4 da Constituição da República Portuguesa, teremos de concluir - como muito acertadamente o tribunal a quo - que as referenciadas normativas (nsº 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho), nos preceitos transcritos, têm efeito directo vertical na ordem jurídica nacional, pelo que poderão ser aplicadas nos presentes autos, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno.
Nessa medida, citando ainda o aludido aresto:
“Todos os atos processuais levados a efeito nas fases preliminares do processo penal com intuito eminentemente informativo e concretizador das garantias de defesa dos arguidos deverão ser objeto de tradução para língua dominada pelos seus destinatários, sob pena de total esvaziamento dos referidos atos, que, praticados no processo sem tradução, mais não assegurariam do que o cumprimento estritamente formal de normas processuais, sem qualquer correspondência material no que diz respeito aos fins que visam prosseguir.
(…)
A imperatividade resultante da aplicação das normas das Diretivas e da Jurisprudência do TJ, atendendo ao princípio do primado do Direito da União reconhecido pelo artigo 8º, nº 4 da CRP, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União, o que, no que à economia do caso dos autos diz respeito, determina a desaplicação do regime da sanação das nulidades estabelecido pelo artigo 120º, nº 3 do CPP aplicado na decisão recorrida, em virtude de o mesmo se não revelar compatível com os direitos fundamentais a um processo equitativo e com o respeito pelos direitos de defesa decorrentes dos artigos 47.° e 48.°, n.° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como do artigo 6.° da CEDH, à luz dos quais deverão ser interpretados os artigos 2.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1 da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13.”
Na verdade, o acórdão do TJUE, no Proc. C–242/22 PPU, de 01/08/22 – na sequência, aliás, de um pedido de decisão prejudicial apresentado por esta Relação no âmbito do Processo nº 53/19 acima referido, é claríssimo sobre esta matéria, quando plasma o seguinte:
“O artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, lidos à luz do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual a violação dos direitos previstos nas referidas disposições destas diretivas deve ser arguida pelo beneficiário desses direitos num determinado prazo, sob pena de sanação, quando esse prazo começa a correr ainda antes de a pessoa em causa ter sido informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados.”
A análise jurídica efectuada pela Mmª Juiz a quo, ao contrário do afirmado pelo recorrente, não merece, por isso, qualquer censura, pois mais não faz do que dar cumprimento ao citado acórdão do TJUE, o qual, recorde-se, vincula os órgão jurisdicionais a que seja submetido problema idêntico e, no quadro do direito da UE, enquanto direito que produz efeitos na ordem jurídica interna, como, evidentemente, é o caso, ficando assim prejudicada a argumentação recursiva no sentido de ser a secção do processos a corrigir a alegada nulidade, procedendo à tradução em falta.
Por outro lado, não se trata de qualquer formalismo excessivo ou desadequado, mas apenas o cumprimento de legislação imperativa à qual, com o devido respeito, não se pode escapar.
Atentas as normas comunitárias invocadas, o seu primado sobre a norma interna e o que supra se escreveu, nada mais resta a esta instância que - dando cumprimento a este acórdão do TJUE, o qual vincula os órgãos jurisdicionais portugueses e no quadro do Direito da União Europeia que produz efeitos na ordem jurídica interna portuguesa e prevalece sobre o nosso direito interno - não aplicar o regime decorrente do Artº 120 nº2 al. c) do CPP, mas antes, confirmando o douto despacho recorrido, considerar o processado como nulo, desde a notificação do despacho de acusação, porque dele dependente, nulidade essa insanável, cabendo naturalmente aos serviços do Ministério Público a correcção da nulidade por si cometida, procedendo à tradução da acusação para língua francesa e a sua correspondente notificação ao arguido.
Assim sendo, o recurso terá de improceder.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter o despacho recorrido.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 20 de fevereiro de 2024
Renato Barroso
Beatriz Marques Borges
Fernando Pina