Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
35/23.5PFEVR.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
REPRODUÇÃO DE RELATÓRIO SOCIAL
REMISSÃO PARA O CERTIFICADO DE REGISTO CRIMINAL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A reprodução dos relatórios sociais e a remissão para o certificado de registo criminal no elenco dos factos provados, para além de manifestamente errada – conquanto os mesmos, como é sabido, assumem a natureza de meios de prova, não se confundindo com os factos que atestam – não permite aferir que valoração fez o tribunal dos indicados meio de prova para firmar a sua convicção relativamente aos factos que terá valorado mais à frente em sede de determinação da sanção, factos que, em bom rigor, por não terem sido enunciados, desconhecemos concretamente.
II - A lei, concretamente o artigo 389º-A, nº 1 alínea a) do CPP, permite que a indicação sumária dos factos provados e não provados na sentença, possa ser feita por remissão para a acusação e para a contestação, mas já não para o certificado do registo criminal nem para o relatório social. E bem se compreende que assim seja, pois que, diferentemente da acusação e da contestação – que, constituindo peças processuais, contêm elas próprias uma seleção factual – o CRC e o relatório social constituem meios de prova que se impõe valorar. Ambos contêm informação cuja veracidade se encontra sujeita ao escrutínio judicial subordinado à livre apreciação do julgador.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo sumário que correm termos no Juízo Local Criminal de … - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 35/23.5PFEVR.E1, foi o arguido AA, filho de BB e de CC, nascido em …-…-1988, natural da …, residente na Rua … n. º… em …, mas com morada para efeitos de TIR na Avenida …, cx …, …, condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do C.P., na pena de 5 meses de prisão efetiva e na pena acessória de proibição de conduzir todo e qualquer veículo motorizado pelo período de 8 meses, nos termos do art.º 69º, do C.P.

*

Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“a) Consta dos fatos dos como provados da decisão recorrida.

Ponto 15. Da Factualidade relevante plasmada no relatório social (…). Do relatório social para determinação de sanção, que aqui se dá por reproduzido, de relevante consta: ... O arguido tem vindo a denotar dificuldades em cumprir as suas obrigações, no âmbito das medidas anteriormente aplicadas, não cumprindo em pleno as obrigações estipuladas, reincidindo na prática criminal, durante o período de suspensão de execução da pena. AA apresenta uma baixa responsividade, tendo vindo a manter uma assiduidade irregular, deixando de comparecer às entrevistas agendadas pela Equipa de Reinserção de …, tendo deixado de comparecer naquela Equipa, alterando a sua residência sem comunicar, o que motivou a elaboração de relatório de anomalias, com audição do arguido em Tribunal, no âmbito do processo 70/21.8… e 609/18.6… …

b) Esta forma / solução, no imediato, o que diz, é que se prova que consta do relatório dossier determinado conteúdo e não que se dá como provado esse conteúdo; será exatamente o mesmo que elencar na factualidade provada que a documentação clínica e o relatório de exame pericial, a que se faz referência, dizem isto ou aquilo.

c) Aliás, neste particular conspecto, o tribunal recorrido, socorrendo-se dos elementos aí existentes, deu como provados os factos, e apenas factos, que constam do ponto 15, procedendo a labor de ponderação e avaliação.

d) Entende-se que referir nos factos provados factualidade plasmada no relatório social e ou consta do dossier de utente da DGRSP, procedendo-se então à sua singela e mera transcrição, sem qualquer exercício de expurgação / ponderação/ avaliação, não representa uma enumeração dos factos provados no âmbito decisório. Somente se discorre que nas peças em causa, está plasmado / consta determinado texto.

e) O relatório social, tal como decorre do plasmado no artigo 1º, alínea g) do CPPenal, não é mais do que uma informação sobre a inserção familiar e socioprofissional do arguido elaborada por serviços de reinserção social, pelo que se demanda fazer constar na decisão os factos que o tribunal efetivamente considera provados ou não provados, e, não, pura e simplesmente reproduzir provas ou meios de prova em lugar desses mesmos factos

f) Parece inquestionável, crê-se, que o relatório social / dossier de utente representam um meio de prova/meio de obtenção de prova a ser ponderado, sindicado e objeto de contraditório, não sendo por isso em si mesmo um facto.

g) Este retrato, conforme se vem entendendo, é passível de conduzir à nulidade expressa no artigo 379º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 374º, nº 2, ambos do CPPenal, na medida em que se pode desenhar a ausência de enumeração de factos provados necessários e suficientes para a determinação da medida da pena e, sequentemente, para a escolha da pena em concreto, entendendo outros, poder configurar-se a mácula constante da alínea a)do nº 2 do artigo 410º do CPPenal – insuficiência da matéria de facto para a decisão

h) Ora, nada transparece de modo seguro e inequívoco que demonstre a existência de um mínimo / basilar excurso ponderativo do que se considera como materialidade provada.

i) Ademais, in casu, exulta que o arguido recorrente pretende discutir a matéria respeitante à pena, o que acentua e reclama que se fixem com clareza os factos que se podem retirar, depois de devidamente sindicados e / ou não contraditados, partindo / considerando os aludidos documentos.

j)Desta feita, igualmente se retira operar a nulidade nomeada, ou seja, a fixada no artigo 379º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 374º, nº 2 do CPP.

k) Ante todo o expendido, há que anular a decisão proferida, devendo o tribunal ad quo proferir nova decisão colmatando os vícios salientados, procedendo a todas as diligências e providências entendidas por necessárias, para tal.

l) Na escolha da medida da pena de prisão, em concreto, a Meritíssima juíza a quo valorou, contra o arguido, as seguintes circunstâncias:

m) O facto de ter atuado com dolo direto e com consciência da ilicitude da sua conduta;

n) A existência de dez condenações penais anteriores, DUAS das quais pela prática do crime de condução de veículos em estado de embriaguez

o) Por outro lado a favor do arguido, a meritíssima juíza a quo, atendeu, apenas:

p) A inserção familiar e laboral, a confissão livre e integral e sem reservas dos fatos, e o arrependimento demonstrado.

q) 5. Aqui o arguido/recorrente permite-se discordar, porquanto, a meritíssima juíza a quo deveria ter atendido, também:

r) E, ainda, ao facto, provado nos autos, que factos desta mesma natureza, cometidos pelo arguido-condução em estado de embriaguez - terem ocorrido em data superior a oito anos.

s) O facto de o crime ter sido cometido com dolo directo e por isso intenso, é, de facto, verdade, no entanto há que ter em conta a postura e conduta do arguido, no momento da prática do crime e após a sua prática, numa atitude sempre colaborante com as autoridades, a pronta assunção dos factos e a sempre confissão integral e sem reservas e, ainda, o seu arrependimento que o tribunal a quo, pelos vistos não terá valorado.

t) Mostrando-se, por isso, a pena de prisão aplicada manifestamente injusta, desadequada e desproporcionada.

u) O arguido não cometer o tipo de crime que foi condenado há mais de oito anos.

v) O arguido ter confessado os factos e ter colaborado com as autoridades judiciais em todas as fases processuais - inquérito e audiência de discussão e julgamento.

w) Estar socialmente integrado e ter meio de vida conhecido.

x) E este ser um comportamento desviante desde o ano de 2015, data do cometimento dos últimos crimes da mesma natureza.

y) 13. As circunstâncias acabadas de enumerar devem ser devidamente ponderadas e valoradas para efeitos de aplicação ao recorrente da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi imposta, ainda que subordinada ao cumprimento de deveres e regras de conduta julgadas pertinentes e adequadas, ao abrigo do disposto no art.º50.º, n.ºs1 e 2 do C.P.,e com regime de prova, por se achar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade

z) 14. A douta sentença recorrida ao não atender ao regime agora invocado violou, assim, o art.º 50.º, n.ºs 1 e 2, do C.P., ao não valorar e ponderar que a suspensão da execução da pena de prisão seja subordinada ao cumprimento de deveres e regras de conduta julgadas pertinentes e adequadas

aa) Face a todo o exposto, deverá ser aplicada ao recorrente pena suspensa na sua execução, subordinada ao cumprimento de deveres e regras de conduta julgadas pertinentes e adequadas, ao abrigo do disposto nos art.° 50.º, n.ºs 1 e 2, do C.P., e com regime de prova, por se achar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade.”

Termina pedindo a declaração da nulidade da sentença e, subsidiariamente, a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.

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O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado na sua resposta as seguintes conclusões:

“(...)1-ª – A sentença recorrida não enferma da nulidade nem do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada arguidos no recurso.

2-ª - Não se verificam os pressupostos legais da suspensão da execução da pena de prisão aplicada, por não ser adequada para realizar as finalidades preventivo-especiais, de dissuasão do arguido da prática de novos crimes e da sua ressocialização.

3-ª - A sentença fez correcta interpretação e aplicação das disposições legais pertinentes no caso não violou qualquer norma legal, designadamente as indicadas pelo recorrente – art. 50-º, n-º1 e n-º2, do Cód. Penal, e art. 374º, nº2, do CPP.

4-ª – Em conformidade, deve julgar-se improcedente o recurso e ser integralmente mantida a douta sentença recorrida. (...)”

*

O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado também no sentido da improcedência do recurso.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I - Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir:

A) Determinar se a sentença enferma de nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 389-A, nº 1, alínea a), ambos do CPP.

B) Determinar se os critérios e os parâmetros utilizados pelo tribunal “a quo” para impor o cumprimento efetivo da pena de prisão se revelam adequados ou se a aplicação correta dos critérios legais teria determinado a substituição de tal pena pela de suspensão da sua execução.

* II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados os seguintes factos:

“(…) II. FUNDAMENTAÇÃO:

Factos Provados:

1. No dia 04/06/2023, cerca das 03:45, o arguido circulava na via pública que se desenvolve no Avenida …, em …, conduzindo o automóvel ligeiro de passageiros de passageiros de matrícula …, marca ….

2. O arguido conduzia aquele veículo naquelas circunstâncias de tempo e lugar com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,969 gramas por litro, correspondente à taxa registada de 2,14 gramas por litro, deduzido o erro máximo admissível.

3. O arguido sabia que por ter ingerido bebidas alcoólicas previamente a iniciar a condução podia ter uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l no momento da condução, e, não obstante, decidiu conduzir aquela viatura nessas circunstâncias, conformando-se com tal possibilidade.

4. O arguido agiu de forma livre, esclarecida voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

5. O arguido confessou os factos e mostrou-se arrependido.

6. Tem carta de condução desde 2010/2011.

7. É …, recolhe … que depois vende.

8. Vive em união de facto e a companheira trabalha consigo na mesma actividade.

9. Tal actividade rende-lhes cerca de € 700/800,00 por mês.

10. Têm 3 filhos de 16, 11 e 9 anos.

11. A filha de 16 anos já vive com o seu companheiro.

12. Recebe abono de família no valor de € 250/300,00 por mê4s.

13. Paga € 100,00 de renda.

14. Tem a 4ª classe de escolaridade.

15. Do relatório social para determinação de sanção, que aqui se dá por reproduzido, de relevante consta:

... O arguido tem vindo a denotar dificuldades em cumprir as suas obrigações, no âmbito das medidas anteriormente aplicadas, não cumprindo em pleno as obrigações estipuladas, reincidindo na prática criminal, durante o período de suspensão de execução da pena. AA apresenta uma baixa responsividade, tendo vindo a manter uma assiduidade irregular, deixando de comparecer às entrevistas agendadas pela Equipa de Reinserção de …, tendo deixado de comparecer naquela Equipa, alterando a sua residência sem comunicar, o que motivou a elaboração de relatório de anomalias, com audição do arguido em Tribunal, no âmbito do processo 70/21.8… e 609/18.6…... Relativamente à possibilidade de aplicação de pena de prisão na habitação, o arguido mostra-se motivado para cumprir esta condenação caso lhe seja aplicada. A companheira que sempre acompanhou o seu percurso de vida, manifestou disponibilidade para lhe proporcionar todo o apoio e deu o seu consentimento para que possam ser instalados os equipamentos de vigilância eletrónica para fiscalização da permanência na habitação, no entanto, a mesma avalia com reservas os efeitos da aplicação da medida, realçando as possíveis repercussões da mesma no agregado familiar. No que concerne a habitação, considera-se que a mesma não possui condições estruturais e de habitabilidade, para a implementação e equipamentos de vigilância eletrónica, sendo de realçar a exiguidade da mesma e inexistência de espaço ao ar livre, fator relevante em situação de confinamento. No mesmo sentido, ainda que a habitação disponha de eletricidade, não foi possível confirmar a existência de contrato de fornecimento de eletricidade com pagamentos em dia, alegadamente por o mesmo se encontrar em nome do senhorio. Neste contexto, o arguido verbalizou intenção de vir a indicar nova morada a Tribunal, em …, por forma a viabilizar a aplicação da medida de pena de prisão na habitação, minimizando, deste modo, o impacto da medida na família, dispondo ali, segundo afirma, do suporte de familiares próximos...

16. Na sendo do determinado em audiência de julgamento, do relatório da DGRSP de 08/08/2023, consta: O arguido foi convocado por duas vezes para comparecer na DGRSP, para entrevista necessária à elaboração do relatório solicitado, mas das duas vezes avisou não ter capacidade económica para de deslocar do … a …, para os fins pretendidos. Atento o exposto, foi feita articulação com a Equipa do …, a qual irá elaborar o relatório solicitado, sendo a parte de avaliação do apoio familiar e dos condições habitacionais, da responsabilidade da Equipa do …, que remeterá o competente relatório de caracterização sócio familiar, bem como as declarações de consentimento e protocolo de verificações obrigatórias, à Equipa do ….

17. Do relatório da DGRSP de 11/08/2023, consta: Em deslocação efetuada à morada acima referenciada, a indicada para a execução de uma Pena de Prisão na Habitação – PPH, contactámos com DD (irmã adotiva do arguido), a qual manifestou indisponibilidade para acolher na sua residência AA e os restantes elementos do agregado familiar deste, assinando a declaração de não consentimento, que junto enviamos em anexo. Esta familiar justificou essa sua indisponibilidade, com o facto do marido se encontrar atualmente a cumprir uma pena de prisão, e estar a efetuar diligências no sentido de sair do EP para a residência em questão, em situação de adaptação à liberdade condicional com VE-Vigilância eletrónica, referindo ainda não possuir condições de vária ordem (habitacionais e económicas) para acolher para além dos elementos da sua família nuclear, também o arguido e sua família.

18. No seu certificado de registo criminal constam as condenações que aqui damos por reproduzidas, e que, em suma, são (crime/data da prática):

» Condução sem habilitação - 2008

» Condução sem habilitação – 2009

» 2 crimes de detenção de arma proibida – 2013

» Condução em estado de embriaguez – 2015

» Furto qualificado – 2018

» Ofensa à integridade física – 2019

» Roubo – 2015

» Furto qualificado – 2019

» Detenção de arma proibida - 2021

*

Não existem factos não provados. (…)”

* II.III - Apreciação do mérito do recurso.

O recorrente não impugna a prática dos factos que determinaram a sua condenação, nem questiona a respetiva qualificação jurídica, nem mesmo a medida concreta da pena de prisão que lhe foi aplicada. O que põe em causa é a validade da sentença por deficiências na fundamentação e a decisão do tribunal recorrido de determinação do cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional, que, a mais de infundamentada, considera desajustada. Preconiza concretamente que seja declarada a nulidade da sentença e, a final, que lhe seja aplicada a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão.

*

A) Da invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação.

De acordo com a lei processual penal, concretamente nos termos do artigo 379.º CPP, sentença nula é aquela que se encontra inquinada por vícios decorrentes ou do seu conteúdo ou da sua elaboração. Tal nulidade, ainda que não arguida em recurso, é de conhecimento oficioso, conforme decorre do nº2 do mesmo artigo.

A nulidade da sentença prevista no artigo 379º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do CPP – ou, tratando-se de processo sumário, como sucede in casu, por referência ao 389-A, nº 1 do CPP – ocorre nos casos em que a decisão não contenha a fundamentação que inclua o elenco dos factos provados e não provados, a motivação da convicção probatória realizada com o exame crítico das provas e, bem assim, os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão. Na fundamentação da sentença deverão, efetivamente, consignar-se todos os factos necessários não só ao preenchimento da norma penal da condenação, mas também os relevantes para a determinação da sanção.

Na situação que agora nos ocupa, o recorrente invoca a nulidade da sentença em virtude de, a seu ver, nela se não conterem os factos nos quais o julgador terá feito assentar todo o processo determinativo da pena concreta de prisão, mormente no que tange ao juízo que formulou de inadequação da aplicação da pena substituição de suspensão da sua execução.

E não temos dúvidas, de que lhe assiste razão.

Atentemos nos termos da sentença recorrida na parte relativa à fundamentação de facto que se mostra relevante para apreciação do vício invocado no recurso:

“(…) 15. Do relatório social para determinação de sanção, que aqui se dá por reproduzido, de relevante consta:

... O arguido tem vindo a denotar dificuldades em cumprir as suas obrigações, no âmbito das medidas anteriormente aplicadas, não cumprindo em pleno as obrigações estipuladas, reincidindo na prática criminal, durante o período de suspensão de execução da pena. AA apresenta uma baixa responsividade, tendo vindo a manter uma assiduidade irregular, deixando de comparecer às entrevistas agendadas pela Equipa de Reinserção de …, tendo deixado de comparecer naquela Equipa, alterando a sua residência sem comunicar, o que motivou a elaboração de relatório de anomalias, com audição do arguido em Tribunal, no âmbito do processo 70/21.8… e 609/18.6…... Relativamente à possibilidade de aplicação de pena de prisão na habitação, o arguido mostra-se motivado para cumprir esta condenação caso lhe seja aplicada. A companheira que sempre acompanhou o seu percurso de vida, manifestou disponibilidade para lhe proporcionar todo o apoio e deu o seu consentimento para que possam ser instalados os equipamentos de vigilância eletrónica para fiscalização da permanência na habitação, no entanto, a mesma avalia com reservas os efeitos da aplicação da medida, realçando as possíveis repercussões da mesma no agregado familiar. No que concerne a habitação, considera-se que a mesma não possui condições estruturais e de habitabilidade, para a implementação e equipamentos de vigilância eletrónica, sendo de realçar a exiguidade da mesma e inexistência de espaço ao ar livre, fator relevante em situação de confinamento. No mesmo sentido, ainda que a habitação disponha de eletricidade, não foi possível confirmar a existência de contrato de fornecimento de eletricidade com pagamentos em dia, alegadamente por o mesmo se encontrar em nome do senhorio. Neste contexto, o arguido verbalizou intenção de vir a indicar nova morada a Tribunal, em …, por forma a viabilizar a aplicação da medida de pena de prisão na habitação, minimizando, deste modo, o impacto da medida na família, dispondo ali, segundo afirma, do suporte de familiares próximos...

16. Na sendo do determinado em audiência de julgamento, do relatório da DGRSP de 08/08/2023, consta: O arguido foi convocado por duas vezes para comparecer na DGRSP, para entrevista necessária à elaboração do relatório solicitado, mas das duas vezes avisou não ter capacidade económica para de deslocar do … a …, para os fins pretendidos. Atento o exposto, foi feita articulação com a Equipa do …, a qual irá elaborar o relatório solicitado, sendo a parte de avaliação do apoio familiar e dos condições habitacionais, da responsabilidade da Equipa do …, que remeterá o competente relatório de caracterização sócio familiar, bem como as declarações de consentimento e protocolo de verificações obrigatórias, à Equipa do ….

17. Do relatório da DGRSP de 11/08/2023, consta: Em deslocação efetuada à morada acima referenciada, a indicada para a execução de uma Pena de Prisão na Habitação – PPH, contactámos com DD (irmã adotiva do arguido), a qual manifestou indisponibilidade para acolher na sua residência AA e os restantes elementos do agregado familiar deste, assinando a declaração de não consentimento, que junto enviamos em anexo. Esta familiar justificou essa sua indisponibilidade, com o facto do marido se encontrar atualmente a cumprir uma pena de prisão, e estar a efetuar diligências no sentido de sair do EP para a residência em questão, em situação de adaptação à liberdade condicional com VE-Vigilância eletrónica, referindo ainda não possuir condições de vária ordem (habitacionais e económicas) para acolher para além dos elementos da sua família nuclear, também o arguido e sua família.

18. No seu certificado de registo criminal constam as condenações que aqui damos por reproduzidas, e que, em suma, são (crime/data da prática):

» Condução sem habilitação - 2008

» Condução sem habilitação – 2009

» 2 crimes de detenção de arma proibida – 2013

» Condução em estado de embriaguez – 2015

» Furto qualificado – 2018

» Ofensa à integridade física – 2019

» Roubo – 2015

» Furto qualificado – 2019

» Detenção de arma proibida - 2021 (…)”

* Nos termos do disposto no artigo 374º, nº 2 do CPP, e do artigo 389º-A, nº 1 do mesmo código no que que diz respeito ao processo sumário, depois do relatório e antes do dispositivo, a sentença penal deverá conter a fundamentação, na qual deverão enumerar-se os factos provados e não provados e na qual deverão consignar-se os motivos de facto e de direito que sustentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal examinadas criticamente. Ou seja, a decisão sobre a matéria de facto deverá enunciar, sob pena de nulidade, todos os factos considerados relevantes para a apreciação do objeto do processo, integrando-os expressamente no elenco dos factos provados e não provados. Apenas se concebe que o tribunal não inclua nos factos provados e não provados aqueles que – não obstante constarem da acusação, do pedido cível, da contestação, ou que tenham resultado da discussão ou da documentação admitida nos autos – se não revelem relevantes para a boa decisão da causa ou os que assumam natureza conclusiva, o que, no rigor, deverá assinalar-se na decisão.

Ora, confrontando sentença recorrida no que diz respeito à parte relativa à decisão sobre a matéria de facto que acima transcrevemos, constatamos que a mesma, para além de não elencar os factos relevantes relativos às condições pessoais extraídos do relatório social e os referentes aos antecedentes criminais do recorrente resultantes do seu certificado de registo criminal, ostenta uma manifesta confusão entre factos provados e meios de prova, circunstâncias que, incontornavelmente, afetam a sua validade.

Com efeito, ao invés de consignar nos factos provados os que, em seu entender, após a realização do juízo crítico que lhe competia fazer relativamente aos aludidos meios de prova, resultaram provados e que revestiam interesse para a decisão, o tribunal recorrido optou, incorretamente, por ali consignar ter resultado provado que os referidos documentos têm determinado conteúdo, que reproduziu – no que tange aos relatórios sociais (factos 15., 16. e 17.) – ou para o qual remeteu, dando-o por reproduzido – no que diz respeito ao certificado de registo criminal (facto 18.).

Como é evidente, a reprodução dos relatórios sociais e a remissão para o certificado de registo criminal no elenco dos factos provados, para além de manifestamente errada – conquanto os mesmos, como é sabido, assumem a natureza de meios de prova, não se confundindo com os factos que atestam – não permite aferir que valoração fez o tribunal dos indicados meios de prova para firmar a sua convicção relativamente aos factos que terá valorado mais à frente em sede de determinação da sanção, factos que, em bom rigor, por não terem sido enunciados, desconhecemos concretamente.

E, desconhecendo-se os factos, não se revela possível aquilatar da racionalidade e correção do juízo valorativo que terá permitido concluir pela determinação da sanção, que no caso dos autos o tribunal decidiu fixar em 5 meses de prisão efetiva.

Na verdade, quanto aos factos aportados pelos relatórios sociais que o tribunal terá considerado provados, nada sabemos. Quanto aos relativos aos antecedentes criminais do recorrente, sabemos apenas que o que consta do ponto 18. do elenco dos factos provados, ou seja, que do certificado de registo criminal do recorrente constam as condenações que “em suma, são (crime/data da prática):

» Condução sem habilitação - 2008

» Condução sem habilitação – 2009

» 2 crimes de detenção de arma proibida – 2013

» Condução em estado de embriaguez – 2015

» Furto qualificado – 2018

» Ofensa à integridade física – 2019

» Roubo – 2015

» Furto qualificado – 2019

» Detenção de arma proibida - 2021(…)”.

E em que penas foi o arguido condenado pela prática dos referidos crimes?

Em que datas ocorreram as condenações e os respetivos trânsitos?

As penas aplicadas encontram-se extintas pelo cumprimento ou estão ainda a ser cumpridas?

Todos os antecedentes criminais do recorrente que constam do certificado de registo criminal poderão ser valorados ou alguns já se encontram cancelados nos termos previstos no artigo 11º da Lei nº 37/2015, de 5 de maio?

Nenhuma de tais questões encontra resposta na sentença recorrida.

Registamos que a lei, in casu o artigo 389º-A, nº 1 alínea a) do CPP, permite que a indicação sumária dos factos provados e não provados na sentença possa ser feita por remissão para a acusação e para a contestação, mas já não para o certificado do registo criminal nem para o relatório social. E bem se compreende que assim seja, pois que, diferentemente da acusação e da contestação – que, constituindo peças processuais, contêm elas próprias uma seleção factual – o CRC e o relatório social constituem meios de prova que se impõe valorar. Ambos contêm informação cuja veracidade se encontra sujeita ao escrutínio judicial subordinado à livre apreciação do julgador.

Quanto aos antecedentes criminais, importará consignar na sentença todos os que podem ser tidos em conta na determinação da sanção – excluindo-se de tal elenco os que se encontrem já definitivamente cancelados nos termos do artigo 11.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio – o que deverá ser feito, naturalmente, com indicação dos crimes, das datas da sua prática, das datas das condenações e dos respetivos trânsitos em julgado e das penas aplicadas.

No que tange aos factos a extrair do relatório social – documento que, conforme claramente resulta dos artigos 370º CPP e 1.º, al. g) ambos do CPP, constitui uma mera “informação sobre a inserção familiar e sócio-profissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborada por serviços de reinserção social, com o objetivo de auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos nesta lei” (artigo 1.º, al. g) do CPP) – deverá o tribunal selecionar, através do juízo de racionalidade que deverá presidir à livre apreciação das provas, os que se revelam credíveis e que assumem relevância para a escolha e determinação da pena aplicar, fazendo-os igualmente constar do elenco dos factos provados.

Em resumo, não contendo a sentença a enunciação dos factos provados relativos às condições pessoais do recorrente consignadas nos relatórios sociais juntos aos autos, nem os atinentes aos seus antecedentes criminais e revelando-se tais factos indispensáveis para a regularidade do processo determinativo da sanção, não se revela possível sindicar a correção de tal processo, nos termos solicitados no recurso. Deste modo se evidencia que a decisão sindicada não respeitou o dever de fundamentação imposto pelo artigo 389º-A, nº 1, alínea a) do CPP, pelo que enferma da nulidade prevista no artigo 379.º, nº 1.º, al. a) do mesmo Código. (1)

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A decisão que antecede, relativa à verificação da nulidade da sentença, prejudica obviamente o conhecimento segunda questão acima enunciada suscitada pelo recorrente. Nesta conformidade, impõe-se determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para reforma da sentença com suprimento da nulidade assinalada.

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III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, decidindo consequentemente:

A) Declarar nula a sentença recorrida por falta de enumeração dos factos relativos às condições pessoais do recorrente consignados nos relatórios sociais juntos aos autos e referentes aos seus antecedentes criminais, com relevância para a decisão da causa, nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 389º-A, nº 1, alínea a), ambos do CPP.

B) Determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para reforma da sentença pelo mesmo tribunal, devendo a sentença reformada proceder ao suprimento da nulidade assinalada.

Sem custas.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 05 de março de 2024

Maria Clara Figueiredo

J. F. Moreira das Neves

Maria Margarida Bacelar

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1 Em idêntico sentido decidiu também o recente acórdão desta Relação, de 18.12.2023, proferido no processo nº 5/23.3PTEVR.E1, relatado pelo desembargador Moreira das Neves, que subscreve o presente acórdão na qualidade de 1º adjunto e que se encontra disponível para consulta em www.dgsi.pt.