Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5483/16.4T8STB.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REQUISITOS
ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
ÓNUS DA PROVA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – A nulidade da decisão nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 615º do CPC só existe no caso de faltar de todo a fundamentação.
2 - Se a pretendida impugnação da matéria de facto não satisfaz os ónus exigidos pelo art. 640º do CPC, nomeadamente no que se refere a concretização e especificação, pecando por generalidade, deve a mesma ser rejeitada.
3 – Numa acção de preferência, não tendo o autor demonstrado a qualidade de onde derivaria o direito de preferência que invocou, a sua condição de arrendatário, improcede necessariamente a sua pretensão de preferir.
3 – Sendo o valor da causa de €2.409.826, provando-se a má fé substancial do autor, justifica-se a sua condenação como litigante de má-fé no pagamento de €10.000,00 a favor dos quatro réus que solicitaram indemnização e em multa no montante de 10 UC.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I
O autor, C.A., intentou a presente acção de processo comum contra os réus L.M., C.N., J.B., J.D. e Agro-Helfil- Sociedade de Agricultura de Grupo, Lda, peticionando que:
a) seja declarado o direito do A. preferir à 5°R, Agro-Helfil ­Sociedade de Agricultura de Grupo, Lda., na compra da totalidade do prédio rústico denominado "Água Derramada", inscrito na matriz rústica sob o artigo 71 da Secção "N-N1" e na matriz urbana sob os artigos 765, 767 e 768, na união da freguesia de Grândola e Santa Margarida da Serra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o nº12013 da freguesia de Grândola;
b) sejam declarados nulos, por simulados, as aquisições, por cessão, dos respectivos quinhões hereditários à 5°R, Agro-Helfil - Sociedade de Agricultura de Grupo, Lda., pelos l°R, 2°R, 3°R e 4°R. e declarados válidos os contratos de compra e venda dissimulados, e por consequência;
c) seja reconhecido o direito do A. de haver para si a totalidade do prédio denominado "Água Derramada", pelo preço global de € 2.409.826,00, nos seguintes termos:
- 4/24 indivisos do prédio, pelo valor de € 644.730,00 de que eram legítimos proprietários os l°R e 2°R, L.M. e C.N., bem como o seus quinhões hereditários pelo valor global de € 120.870,00;
- 4/24 indivisos do prédio, pelo valor de € 334.130,00, de que era legítimo proprietário o 3°R, J.B., bem como o seu quinhão hereditário pelo valor global de €65.870,00;
- ­12/24 indivisos do prédio, pelo valor de €1.160.000,00, de que era legítimo proprietário o 4°R, J.D., bem como o seu quinhão hereditário pelo valor global de valor de € 64.226,00;
- Ordenado o cancelamento das respectivas inscrições das aquisições efectuadas a favor da 5ª R, relativas a venda da referida herdade, bem como quaisquer inscrições feitas posteriormente a elas e com elas correspondentes;
d) - sejam devidamente compensados os encargos do levantamento da hipoteca que incide sobre o prédio do montante a ser pago pelo A. no exercício do seu direito de preferência;
f) - sejam condenados os Réus nas custas do processo a que deram causa.
II
Para fundamentar os seus pedidos o A. alega, em suma, que em 01.03.2004, foi reduzido a escrito o Contrato de Arrendamento Rural celebrado entre o A. e o 4°R., J.D., que à data era proprietário e cabeça-de-casal da herança de E.L., falecido em 03.09.1998, com quem o A. celebrou verbalmente o referido Contrato de Arrendamento Rural, em dia não concretamente apurado, mas certamente em Março de 1980, tendo depois requerido nos autos a rectificação do nome do contraente para J.A.L., pai de E.L., com quem havia celebrado verbalmente o referido contrato.
Mais alegou não ter sido respeitada a sua preferência na venda que foi feita pelos herdeiros à R. Agro-Helfil dos seus quinhões hereditários, vendas essas simuladas com o intuito de impedir o A. de preferir na venda total da propriedade, pretendendo agora o A. que seja reconhecido o seu direito de preferência.
III
Contestando, os RR. L.M., C.N. e J.B. alegaram, em suma, que nunca celebraram qualquer contrato de arrendamento, desconhecendo por completo o alegado, e nunca aceitariam a celebração de qualquer contrato, escrito ou verbal, sobre a Herdade de Água Derramada, pugnando pela inexistência do mesmo e invocando a nulidade do contrato que o A. alega ter celebrado tendo por objecto a herdade, porquanto o R. J.D. não era proprietário, nem cabeça de casal, não podendo celebrar qualquer contrato nas condições referidas pelo A.
Mais alegam que nunca receberam do A. qualquer importância referente a qualquer contrato de arrendamento rural. Por último confirmam os RR. que venderam as partes e direitos que detinham no prédio à R. Agro-Helfil negando qualquer conluio para enganar o A., tendo cada negociação sido autónoma e cada negócio feito de forma diferente pois não existia acordo entre os proprietários em relação a várias matérias.
Sempre tendo existido litígio entre os herdeiros na exploração e administração da propriedade, com processos quer de inventário e partilha, prestação de contas entre outros, sendo do conhecimento do A. esse litígio, tendo o A. deposto em vários processos como testemunha indicada pelo R. J.D., sendo que em nenhum dos depoimentos se arrogou a qualidade de arrendatário em relação à Herdade Água Derramada.
Concluem pela improcedência da acção e absolvição dos RR. do pedido. E invocam a litigância de má fé do A. pedindo a sua condenação em muita e indemnização nunca inferior a € 25.000,00.
IV
Por seu turno, o R. J.D. contestou, alegando, em suma, que nunca celebrou com o A. qualquer contrato de arrendamento rural, da Herdade da Agua Derramada. Mais referiu que o irmão E.L. desde muito novo sofreu de doença psiquiátrica, tendo sido inabilitado e declarado incapaz, sendo muito raro ir a Grândola, e tendo sido internado numa casa de saúde mental no Telhal onde veio a falecer em 03 de Setembro de 1998, sendo completamente falso e sem qualquer fundamento o A. dizer que celebrou um contrato de arrendamento com o E.L.. Mais referiu que só após o falecimento dos pais e por causa de um negócio de compra e venda de cavalos é que conheceu o A. e posteriormente o A. propôs ao R. a compra da pastagem da herdade.
Referiu, ainda, que entre os RR havia divergência em relação à administração da herança e diversos litígios em tribunal, tendo-se os restantes RR. afastado da herdade, não tendo conhecimento do que se passava na mesma. O R. celebrou com o A. contrato de venda de pastagem, mais referindo que não poderia celebrar qualquer outro contrato pois todos os herdeiros teriam que aceitar e dadas as divergências nunca concordariam com a celebração de qualquer outro contrato.
Alegou, ainda, que o A. era o homem de confiança na herdade dado que o R. vivia em Lisboa e que, dada a confiança existente entre ambos, o R. assinou o contrato junto aos autos a pedido do A,. para este obter subsídios pois necessitava de um documento que lhe desse mais poderes do que a venda de pastagem mas com a promessa de que o A. não utilizaria o contrato para qualquer outro fim.
Todos os serviços feitos pelo A. eram sempre pagos à parte, nomeadamente manutenção das árvores, cortes, aceiros, limpeza de terrenos, nunca tendo o A. semeado na herdade, limitando-se a pastar gado bovino na herdade que se alimentava do que nascia espontaneamente.
Quanto à venda da sua parte da herdade, somente tomou conhecimento de que os outros herdeiros pretendiam vender quando lhe foi comunicado pelo seu advogado de que os outros herdeiros estavam em negociações para venda das suas partes e acabou também por vender depois de constatar que os restantes herdeiros tinham concretizado as vendas
V
Finalmente, a R. Agro-Helfil contestou alegando, em resumo, a inexistência ou a nulidade do contrato de arrendamento rural invocado pelo A. não lhe assistindo qualquer direito de preferência. Mais alega que o A. litiga de má-fé por exercer o seu direito à acção consciente de que este é totalmente desprovido de fundamento e com o exclusivo fito de obter fim diverso de ver reconhecido judicialmente um direito que, como é do seu pleno conhecimento, inexiste, causando prejuízos à R. ao impedi-la de explorar o prédio rústico de que se tomou proprietária. Mais alegou que a utilização que o A. fez do prédio durante todo o período em que dele usufruiu foi apenas colocar lá o gado para este se alimentar da pastagem natural e espontânea, sendo os restantes trabalhos efectuados pelo mesmo pagos pontualmente pelo R. J.D. ao A.
Mais referiu que o A. era contratado para trabalhar como capataz nas campanhas de extracção de cortiça sendo o contrato de arrendamento simulado e, logo, nulo.
Mais alegou que mesmo que não se verificasse simulação o R. J.D. não tinha poderes para celebrar o contrato de arrendamento por ser apenas comproprietário de uma quota de 12/24 avos sobre o prédio, e simultaneamente era titular de um quinhão hereditário correspondente a 1/3 de herança ainda não partilhada, por óbito de E.L., logo o contrato seria nulo.
Alegou, ainda, que entre os RR. herdeiros não existiu qualquer acordo na venda dos respectivos quinhões hereditários relativos à herdade nem simulação de venda, tendo a R. negociado a compra da herdade com cada uma das estirpes proprietárias, encontrando-se as aquisições tituladas por escrituras públicas e devidamente registadas.
Conclui pela improcedência do peticionado pelo A. e absolvição da R. do pedido, e invoca a litigância de má fé do A. pedindo a sua condenação em multa e indemnização.
VI
Prosseguindo o processo, foi realizada audiência prévia na qual, não tendo sido possível o acordo entre as partes, foi fixado o valor da causa, foi rejeitada a reconvenção deduzida pela 5ª R., e, em sede de condensação, foi indicado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
VII
Por último, foi proferida a sentença que veio a ser a recorrida, a qual julgou totalmente improcedente o peticionado pelo A. nos autos, absolvendo os RR. do pedido, e condenou o A. por litigância de má fé no pagamento de indemnização no montante de €10.000,00 a favor dos RR. L.M., C.N., J.B. e Agro-Helfil Sociedade de Agricultura de Grupo, Lda. e, ainda, no pagamento da multa no montante de 10 UC.
VIII
Contra o decidido na sentença, reagiu o autor através do presente recurso de apelação, cuja alegação termina com as seguintes conclusões:
a) Vem o presente recurso interposto da douta sentença que, julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de preferência que, nos termos do disposto no art.º 31º do DL 294/2009, lhe permite, enquanto rendeiro do prédio rústico denominado “Água Derramada”, preferir na compra, pela totalidade ou, na proporção das quotas de cada um dos titulares, face aos diferentes negócios jurídicos utilizados para concretizar a alienação do imóvel a favor da 5ª RR, Agro-Hefil,
b) Recurso que se estende à condenação do A, como litigante de má-fé, no pagamento de 10.000,00€, a favor do 1º, 2º, 3º, e 5º RR e multa no montante de 10 UC,
c) A douta sentença fez uma errada apreciação e valoração da prova, quer documental, quer testemunhal e uma errada subsunção dos factos ao direito aplicável.
d) Tendo os 1º e 3º RR intentado os processos de prestação de contas que correram termos sob os nº 232/09.6T2STC e n.º 405/09. não podiam os RR, ali autores deixar de ter conhecimento do teor dos contratos juntos aos autos;
e) Dando assim o seu consentimento tácito aos negócios jurídicos realizados pelo 4º R, que aceitaram e ratificaram por esta via;
f) Os RR tiveram conhecimento que o A. liquidou, em 2003 o valor de 5000,00€, no âmbito do contrato de arrendamento de pastagens celebrado com o 4º R em 1998;
g) Os RR tiveram conhecimento que em 2007 o A. liquidou o valor de 5500,00€, e em 2008 o valor de 6000,00€, valores que os RR receberam na proporção da sua quota parte;
h) O depoimento de parte dos RR foi desvalorizado em tudo o que excedeu a afirmação de que desconheciam em absoluto os contratos celebrados pelo cabeça de casal e que, se os conhecessem, não teriam dado autorização para a sua outorga violando o princípio da indivisibilidade da confissão.
i) Resultando do depoimento de parte do 3º R conhecimento de que o A. tinha gado na Herdade, que era informado pelo 1º R. de que este realizava trabalhos agrícolas e que o cabeça de casal se referia ao A. como rendeiro, deviam tais declarações ter vido valoradas em conformidade com o dever inserto no art.º 5º nº 2 do CPC.
j) Dando-se como provado que “os RR nunca tentaram destituir judicialmente o 4º R das funções que desempenhava conformando-se com a gestão que aquele efectuava enquanto cabeça de casal da herança de J.A.L.”;
k) E que os 3º e 4º RR sabiam da permanência do A. na Herdade da Água Derramada”;
l) Que “o 3º R. tomou conhecimento pelo 1º R. que o cabeça de casal se referiu ao A. como “rendeiro”;
m) “As despesas decorrentes dos trabalhos realizados e cobrados pelo A. na Herdade Água Derramada foram do conhecimento dos restantes RR nos processos judiciais de prestação de contas.
n) Ao dar como não provado que em 01.03.2004, foi reduzido a escrito o Contrato de Arrendamento Rural celebrado entre o A. e 4ºR., J.D., e ao declarar a respectiva nulidade por simulação, a decisão recorrida viola os mais elementares princípios da boa fé e confiança
o) Validando a posição de manifesto abuso de direito dos RR em geral e do 4º R em particular;
p) As partes queriam celebrar e celebraram um contrato de arrendamento Rural, o 4º R motivado pelo aumento de receitas por contraposição à simples venda de pastagem e o A. para formalizar a situação existente, demonstrando formalmente a exploração que já fazia da Herdade, para efeito do controlo aos produtores e atribuição de ajudas comunitárias decorrentes da entrada em vigor do Regulamento (CE) Nº 1678/98 de 29 de Julho de 1998;
q) O valor de 5000,00€ liquidados em 2003, mencionados nos processos de prestação de contas, como referente a venda de pastagens desse ano está dentro da média dos valores cobrados pelos arrendamentos rurais praticados na zona, por referência aos hectares explorados pelo A.
r) Indiciando logo na altura a existência de uma situação de facto subsumível ao regime do arrendamento rural, anterior à celebração do contrato de arrendamento de 2004,
s) O A. não precisava de ter celebrado o contrato de arrendamento de 2004 para poder ter acesso a quaisquer subsídios, pois dos mesmos já era beneficiário desde que foram instituídas as ajudas e apoios comunitários, no contexto dos Regulamentos CE nº3887/92, do Regulamento CE nº 3508/92
t) Com a transposição para a ordem jurídica portuguesa do Regulamento CE) Nº 1678/98 de 29 de Julho de 1998, a actividade agropecuária, onde se inclui a necessidade de promover pelo cultivo e manutenção de culturas forrageiras para garantir a criação e produção de gado em respeito pelas normas legais, entre o cabeça de casal e o A. passaram a ser celebrados contratos de aluguer e de arrendamento de pastagens;
u) Com consequente aumento dos valores liquidados anualmente, que passou em 1998 para € 4.788,46, com inclusão de uma cláusula penal em caso de incumprimento;
v) Valor que em 2003, foi actualizado para os 5000,00€; em 2007 para 5500,00€ e em 2008, para 6000,00€ anuais, conforme consta da certidão do processo 405/09.1T2GDL, cuja análise, conforme se refere na sentença recorrida, serviu de base à fundamentação da convicção;
w) Foi dado como provado sob o facto nº 47 que: “Entre o A. e o R. J.D. sem conhecimento dos restantes RR. e sem consentimento ou autorização, foram celebrados contratos de venda de pastagem, nomeadamente em 08/07/1996, em 05/06/1997, em 18/01/1998 pelo valor de 960.000$00 (€ 4.788,46), em 15/02/2001, pelo valor de 700.000$00 (€ 3.491,58); em 24/02/2002, pelo valor de € 1.950,00;
x) Não existe qualquer prova documental dos contratos de 15/02/2001 e 24/02/2002; que constam apenas alegados no art.º 183 da contestação do 1, 2 e 3 RR, desacompanhados de qualquer prova;
y) O juiz não está vinculado à denominação que as partes dão aos negócios jurídicos que celebram;
z) Os valores liquidados pelo A assumiram a natureza de renda, indo de encontro aos praticados no âmbito do arrendamento rural para a zona;
aa) Pelo que deve ser dado como provado que: desde 2003, o A. liquidou a renda anual no valor de 5000,00€, em 2007 de 5500,00€ e a partir de 2008, de 6000,00€ anuais;
bb) O pedido de declaração de nulidade do contrato, seja por ilegitimidade do cabeça de casal para o outorgar desacompanhado dos outros proprietários, seja por vício da formação da vontade conforme alega o 4º RR, tem de improceder por constituir abuso de direito;
cc) Pois é repugnante à consciência jurídica que alguém de boa fé se tenha aproveitado da inexistência de redução a escrito de um contrato de arrendamento rural, nos termos em que o mesmo é caracterizado no DL 249/2009;
dd) Tendo o cabeça de casal directa e intencionalmente camuflado a posição jurídica do A. enquanto arrendatário rural, sob a aparência de que este, ao longo dos anos, se limitou a comprar pastagens, beneficiando contudo dos pagamentos efectuados em conformidade com a existência de um arrendamento.
ee) Vindo agora invocar a nulidade do mesmo, afirmando que não tem o significado que dele decorre e que nunca celebrou nem quis celebrar qualquer contrato de arrendamento,
ff) Qualquer vício que pudesse afectar a sua validade deve ser desconsiderado, na medida em que atenta contra quaisquer princípios de boa fé e ética na formação dos contratos,
gg) Pelo que, se impõe considerar que os Réus estavam impossibilitados de invocar a nulidade do contrato de arrendamento, seja por um qualquer vício na formação da vontade, conforme pretendido pelo 4º R, seja por ilegitimidade do cabeça de casal ter outorgado o contrato de arrendamento rural desacompanhado dos restantes herdeiros conforme defendem os 1º, 2º e 3º RR, porque se comportaram de forma a criarem no A. uma expectativa factual, sólida, de que poderia confiar na continuação e existência do contrato de que era titular. A conduta dos R. revela-se social e eticamente reprovável, excedendo o fim social e económico do direito, razão pela qual a decisão nunca poderia ter declarado nulo o contrato de arrendamento por qualquer das razões supra, face ao que dispõe o artigo 334º CC.
hh) Na verdade, estando o contrato de arrendamento com a assinatura do A. e do 4º R reconhecida presencialmente perante notário; faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, nos termos do disposto no art.º 375 e 376º do CPC
ii) Não tendo a virtude de fazer prova da verdadeira intenção das partes quando celebraram o contrato de arrendamento, já faz prova plena a declaração expressa no contrato de que “O primeiro outorgante declara dar de arrendamento ao segundo outorgante, o prédio…” E de que “O prédio é arrendado para exploração agropecuária”;
jj) A confissão, extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º, n.ºs 1 e 4, e 358º, n.º 2 do CC.
kk) Pelo que deve ser dado como provado que “Em 01.03.2004, foi reduzido a escrito o Contrato de Arrendamento Rural celebrado entre o A. e 4ºR., J.D.”,
ll) Por outro lado, não pode deixar de se considerar como simulados os contratos cessão dos respectivos quinhões hereditários, que dissimularam o contrato de compra e venda da totalidade da herdade denominada “Água Derramada” a um único comprador,
mm) Pois se assim não fosse, os réus haveriam certamente de alienar a totalidade do prédios através de apenas um acto notarial de transmissão.
nn) Nenhum dos R, declarou que vendeu o seu quinhão hereditário;
oo) Todos foram unânimes a afirmar ter vendido “a sua parte” da herdade, o que leva a concluir que, tal como alegado pelo A., a real intenção dos 1ºR, 2ºR, 3ºR e 4ºR era transmitir a totalidade da propriedade a um terceiro, sem que, com isso, o A. pudesse preferir na compra da totalidade do prédio;
pp) Simulação que tem por consequência considerar formalmente válido os contratos de compra e venda dissimulados, que os Réus quiseram celebrar e celebraram,
qq) Dando-se igualmente como provado que: “Os 1ºR, 2ºR, 3ºR e 4ºR, não obstante bem saberem que o A. era e é rendeiro do referido prédio, e de terem plena consciência de que o mesmo teria, nessas vendas, o direito de preferência, nada comunicaram ao A.”;
rr) E que “A real intenção dos 1ºR, 2ºR, 3ºR e 4ºR era transmitir a totalidade da propriedade a um terceiro, sem que, com isso, o A. pudesse preferir na compra da totalidade do prédio”;
A douta sentença recorrida, fez uma errada apreciação da prova testemunhal e documental, incorreu em erro de julgamento e falta de fundamentação, violando as disposições constantes do art.º 241, 334º, 351, 352º, 358, 393º, n.º 2, 394º- todos do Código Civil, dos artº 5º, 607º, 639º, 640º, 659ºdo CPC, bem como do art.º 2º, 4º, 2 e 3 do artº 31º do DL 294/2009 do DL 249/2009 do CPC.
IX
Pela Ré AGRO-HELFIL foi apresentada resposta às alegações de recurso, com as seguintes conclusões:
I -O denominado contrato trazido aos autos para justificar um suposto direito de preferência, outorgado por J.D. e C.A., é um contrato simulado, pois na realidade os intervenientes não quiseram celebrar qualquer contrato entre si, pretendendo o Autor apenas obter um documento que lhe permitisse inscrever o prédio no seu parcelário, de modo a receber subsídios e ajudas públicas, o que veio a conseguir.
II - Foi necessário para receber benefícios monetários, pois os contratos de venda ou aluguer de pastagens não eram suficientes para o Autor obter os benefícios pretendidos.
III - A utilização da Herdade feita pelo Autor manteve-se igual à que antes fazia com o título de beneficiário dos contratos de pastagem, não se traduzindo a celebração do contrato em qualquer alteração no modo de utilização do prédio.
IV - Os comproprietários J.B. e L.M., nunca deram o seu prévio ou posterior acordo à celebração do documento em análise, do qual nunca tiveram conhecimento, pois nunca lhes foi comunicado e nas prestações de contas sempre foram indicados como rendimentos as vendas de pastagem, nunca foram relacionados rendimentos respeitantes a rendas.
V - Mesmo que tivessem conhecimento ou, por omissão, tivessem aceite a gestão de J.D., como o Recorrente afirma, ainda que sem fundamento, nunca o dito contrato se poderia considerar como válido, porquanto a exigência legal é que o assentimento dos comproprietários tem de ser prestado por escrito e tal nunca se verificou.
VI - O contrato outorgado por J.D. constitui um acto de administração extraordinária que só poderia ser válido se tivesse sido outorgado por todos os comproprietários ou, posteriormente, reconhecido por escrito pelos não outorgantes
VII - O "arrendamento" da parte pertencente ao quinhão hereditário também não é válido, por falta de poderes de J.D. para, sozinho, o outorgar.
VIII - A simulação pressupõe a existência de um acordo entre declarante e declaratário, pelo que imputando o Autor esse acordo apenas aos declarantes, não pode haver simulação.
IX - Nunca o Recorrente podia beneficiar da preferência na venda dos quinhões hereditários, pelo que ao adquiri-los a Recorrente tornou-se comproprietária do prédio e, assim, passou a estar graduada em primeiro lugar em qualquer venda, pelo que o suposto rendeiro nunca poderia preferir.
X - O contrato celebrado padece do vício da nulidade por simulado e por violação dos artigos 1024 e 2091, ambos do Código Civil e é ineficaz em relação aos comproprietários não outorgantes.
Termos em que deverá este Venerando Tribunal indeferir a pretensão recursiva, mantendo-se integralmente a decisão da 1º instância.
X
Pelo Réu J.D. também foram apresentadas contra-alegações, que concluiu nos seguintes termos:
a) No presente recurso o ora apelante pretende que seja anulada a decisão que não lhe reconheceu o direito de preferência na aquisição da Herdade da Água Derramada que reivindica, nos termos do disposto no art. 31º do DL 294/2009 (lei do arrendamento rural) com base num contrato de arrendamento rural que outorgou em 01.03.2004 com o ora apelado, J.D. e ainda que seja anulada a sua condenação como litigante de má-fé em indemnização a pagar a parte dos RR e multa;
b) Como bem declarou a douta sentença recorrida, o contrato de arrendamento rural datado de 01/03/2004, em que o apelante sustenta o seu alegado direito de preferência é nulo, por simulação, pois as partes - ora apelado, desacompanhado dos restantes comproprietários do prédio e apelante, nunca pretenderam celebrar um contrato de arrendamento rural sobre a herdade mas sim elaborar um documento para ser presente às autoridades agrícolas, para obtenção de subsídios agro-pecuários dos bovinos deste que desde 1995 pastava na herdade, pois o contrato de aluguer e venda de pastagens que os vinculava, não era titulo suficiente para inscrever o apelante no parcelário e receber os subsídios, não tendo existido um acordo de vontades integrativo de um arrendamento rural;
O apelante, pessoa da sua inteira confiança, sempre apenas se limitou a pastorear gado bovino na Herdade, o qual se alimentava do que nascia espontaneamente, não tendo o apelante feito uma utilização diferente da herdade da que vinha fazendo após a celebração do alegado contrato de arrendamento;
Todos os demais trabalhos por este realizados na Herdade eram pagos como prestação de serviços;
Nunca semeou a Herdade, a qual era essencialmente florestal, sendo as árvores e respectivos frutos, que ocupam mais de 2/3 da propriedade, exploradas pelo ora apelado, enquanto gestor da herdade;
c) O apelante reconhecendo que sabia que os restantes apelados (1 º a 3º RR, adiante designados por apelantes não signatários) eram proprietários da Herdade e que estes não haviam assinado o alegado contrato de arrendamento rural, sabendo ainda que existiam gravíssimos desentendimentos entre os apelados, que só eram resolvidos judicialmente, conforme processos de prestação de contas em que participou como testemunha, pretende fazer valer como vinculativo para os apelados não signatários, o conteúdo de tal contrato, invocando que estes ao intentarem as acções de prestação de contas contra o ora apelado, e recebendo o produto da gestão da herdade, dão o seu consentimento tácito aos negócios Jurídicos celebrados pelo ora apelado, aceitando e ratificando assim o por este processado;
d) O ora apelado enquanto cabeça de casal da herança de E.L. e co-proprietário da herdade não tem poderes para desacompanhado dos restantes co-herdeiros e co-proprietários assinar o contrato de arrendamento rural, cujo prazo mínimo de vigência é, por lei, de 7 anos, não constituindo assim um acto de administração ordinária, que pudesse ser praticado pelos poderes que detinha, nos termos dos artvs 2079º, 1024º e 2091 º nºl do Código civil;
e) Nas acções de prestações de contas em que interveio, o apelante nunca referiu a existência de qualquer contrato de arrendamento rural e não consta das contas apresentadas o pagamento de qualquer renda pelo que pelas mesmas os apelados não signatários não tinham forma de se aperceber da celebração de qualquer contrato de arrendamento;
O ora apelante intentou a presente acção de preferência desacompanhado de seu filho que numa providência cautelar que, depois da compra do prédio, intentaram contra o IFAP, alegadamente também era titular de um contrato de arrendamento rural da Herdade da Água Derramada, celebrado em 2001 e que terminaria em 2022. No seu depoimento (…), filho do apelante, diz nunca ter celebrado qualquer contrato de arredamento da herdade, mas apenas um acordo de cedência;
f) A coexistência de diversos contratos da Herdade - arrendamentos rurais, cedência - apenas é justificado com o objectivo do recebimento de subsídios do IFAP;
g) Sendo o contrato de arrendamento nulo, por simulação, o apelante não tem qualquer direito de preferência sobre a alienação da herdade;
h) Mesmo que assim não fosse o invocado direito também não existiria, pois, tendo a apelada compradora começado por adquirir o quinhão hereditário de L.M. e C.N. na herança de E.L. tornou-se comproprietária do prédio, sendo que o direito do comproprietário prevalece sobre o direito de preferência do arrendatário
i) Face ao enorme desentendimento dos apelados vendedores, que era do inteiro conhecimento do apelante, nunca estes se iriam conluiar na venda das suas partes na Herdade, tanto mais que a mesma foi feita em momentos diferentes e por preços relativos diferentes
Termos em que deve o presente recurso ser indeferido e mantida integralmente a sentença recorrida como é de Justiça.
XI
Admitindo o recurso, a primeira instância consignou, quanto a nulidades, o seguinte:
“Alega o recorrente a nulidade da sentença por insuficiência da fundamentação de facto, todavia compulsados os autos e a decisão objecto de recurso resulta, a nosso ver, que não assiste razão ao recorrente visto que a sentença fez cabal aplicação do direito aos factos que considerou resultarem provados da prova produzida nos autos, referindo os fundamentos de facto e de direito em que se apoia a decisão final proferida, tendo apreciado as questões colocadas pelas partes, pelo que nenhuma nulidade há a suprir.”
XII
Tendo presente que o objecto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (cfr. arts. 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são em primeiro lugar a eventual nulidade da sentença, e de seguida a apreciação da própria decisão, designadamente no julgamento da matéria de facto, e subsequentemente na aplicação do Direito.
XIII
Na sentença recorrida foi declarado que resultou provada a seguinte factualidade com interesse para a resolução da causa:
1 - A pedido do A. o R. J.D. assinou o documento datado de 01.03.2004, para que o A. se pudesse candidatar ao recebimento das ajudas e subsídios processados pelo IFAP;
2 - O contrato de venda de pastagem não era suficiente para poder receber qualquer ajuda e o R. J.D. acedeu a assinar o referido documento só para apresentação nos serviços agrícolas para obtenção dos subsídios;
3 - Após apresentação desse documento junto dos serviços de agricultura o A. passou a figurar nos serviços de agricultura como rendeiro da Herdade da Água Derramada recebendo desse modo as ajudas e subsídios;
4 - O R. J.D. era cabeça de casal da herança;
5 - Do escrito referido em 1.) consta que J.D., na qualidade de proprietário e cabeça-de-casal, dá de arrendamento o prédio rústico denominado “Água-Derramada”, inscrito na matriz rústica sob o artigo 71 da Secção “N-N1” e na matriz urbana sob os artigos 765, 767 e 768, na União da freguesia de Grândola e Santa Margarida da Serra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o nº12013 da freguesia de Grândola, ao aqui A;
6 - Mais consta do referido escrito que “O prédio é arrendado para exploração agropecuária por parte do segundo outorgante e demais fins que estejam de acordo com as características do prédio”.
7 - (…) “Com as actualizações, o valor acordado pela renda é de presentemente € 5.000,00 (cinco mil euros) anuais”;
8 - Em 1976 a Herdade da Água Derramada foi alvo de expropriação no âmbito da reforma agrária, sendo então proprietários S.L. e H.P..
9 - Entre 1976 e 1988 a propriedade esteve sob o domínio do Estado,
10 - A herdade da Água Derramada era uma propriedade que pertencia em parte ao R. J.D. e a duas irmãs entretanto falecidas, tendo-lhes sucedido os respectivos maridos e uma filha, respectivamente, L.M., J.B. e C.N.;
11 - A herdade resultou de um testamento deixado pelo avô do R. J.D. que deixou a sua filha, mãe do R. ¼ da propriedade, a um tio H. ¼, ao R. J.D. 1/8, a sua irmã B. 1/8, a sua irmã S.L. 1/8 e a seu irmão E.L. 1/8.
12 - Após o falecimento dos pais do R. J.D., tendo J.A.L., pai do R. J.D. falecido em 03.05.1994, o R. J.D. herdou mais ¼ do prédio;
13 - E.L., era irmão do R. J.D. e das esposas dos RR. L.M. e J.B., era filho de J.A.L. e de S.L.;
14 - Até à data de falecimento de J.A.L. e de S.L. a administração da herdade cabia a estes;
15 - E.L. sofria de esquizofrenia e outras doenças do foro mental e não se encontrava em Grândola;
16 - E.L. esteve internado na casa de Saúde do Telhal e na Casa de Saúde de Carnaxide por diversos períodos entre 1967 e 1979, e foi declarado inabilitado;
17 - E.L. faleceu em 03.09.1998;
18 - O R. J.D. tinha no A. o seu homem de confiança na Herdade;
19 - O R. J.D. após o falecimento dos pais conheceu o A., através de um dos cunhados, tendo o A. efectuado uma oferta de aquisição dos cavalos e outros bens existentes na herdade uma vez que os herdeiros não viviam na herdade e era necessário tratar desses assuntos;
20 - Algum tempo depois o A. propôs ao R. J.D. a compra da pastagem da herdade;
21 - Do prédio misto de que eram proprietários os 1ºR, 2ºR, 3ºR e o 4ºR, a parte rústica da herdade encontra-se descrita sob o artº 71 da respectiva matriz a qual tem a área de 688,6275 hectares;
22 - Em 18.12.2015, a 5ºR adquiriu, a L.M. e C.N. (1ºR e 2ºR), 4/24 indivisos do prédio denominado “Água Derramada”, pelo valor global de € 664.730,00;
23 - Em 18.12.2015 a 5ºR adquiriu, por cessão, o direito e acção no quinhão hereditário que L.M. e C.N. (1ºR e 2ºR) detinham na herança ilíquida e indivisa de S.L. e subsequente quinhão hereditário de 1/3 que esta tinha na herança ilíquida e indivisa de E.L., correspondente à quota ideal de 4/72 indivisos do referido prédio, pelo valor global de € 120.870,00;
24 - Em 18.12.2015 a 5ºR adquiriu, a J.B. (3ºR), 4/24 indivisos do prédio, pelo valor global de € 334.130,00;
25 - A 5ºR adquiriu ainda, a J.B. (3ºR), por cessão, o direito e acção ao quinhão hereditário que detinha da herança ilíquida e indivisa de M.B.L. e subsequente quinhão hereditário de 1/3 que esta detinha na herança ilíquida e indivisa de E.L., correspondente à quota ideal de 4/72 indivisos do referido prédio, pelo valor global de € 65.870,00;
26 - Em 22.01.2016, a 5ºR adquiriu, a J.D. (4ºR), 12/24 indivisos do prédio em questão, pelo valor global de € 1.160.000,00;
27 - Em 22.01.2016 a 5ºR adquiriu ainda, a J.D. (4ºR), por cessão, o quinhão hereditário de 1/3 que lhe pertencia na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de E.L., pelo valor global de € 64.226,00;
28 - As aquisições supra referidas encontram-se inscritas no registo predial a favor da aqui 5ºR, pelas apresentações AP. 863, AP.864, AP. 865 e AP. 866, todas de 22.01.2016 e AP. 3441 e AP. 3442, de 27.01.2016;
29 - A 5ºR constituiu hipoteca sobre o prédio em Março de 2016;
30 - O A. veio a tomar conhecimento do negócio, através da 5ºR, por cartas datadas de 02.02.2016 e 24-02-2016, recepcionadas, respectivamente, em 08.02.2016 e 29- 02-2016;
31 - Os anteriores proprietários não anunciaram ao A. a sua intenção de vender, nem que já tinham vendido o prédio;
32 - O A. teve conhecimento do acto notarial através da certidão de registo predial do prédio, verificando, então, o registo daqueles actos notariais de aquisição.
33 - Cada negociação foi autónoma e cada negócio foi feito de forma diferente por não haver acordo entre os proprietários em relação a várias matérias;
34 - Cada proprietário negociou as suas partes ou direitos de forma que entendeu e sem conhecimento uns dos outros;
35 - O R. J.D. nunca manifestou interesse na venda e somente após a verificação da venda efectuada pelos outros RR. e após ter sido interpelado para a divisão e partilha, resolveu transmitir a sua parte;
36 - Existia entre os comproprietários da herdade de Água Derramada, L.M., C.N., J.B. e J.D. um litígio na exploração e administração da propriedade;
37 - (…) O que era do conhecimento do A.;
38 - Durante mais de 20 anos existiram processos em Tribunal, nomeadamente de inventário e partilha, prestação de contas, nos quais eram parte os RR.;
39 - Os 1.º 2.º e 3.º RR nunca tiveram acesso à administração da herdade nem aos rendimentos que daí advinham, nomeadamente da cortiça ou da pinha, não dando autorização aos negócios celebrados;
40 - Foi sempre em tribunal que foram decididas algumas verbas a pagar aos RR. na sequência de estes apresentarem acções de prestação de contas e após vários anos;
41 - Correram a este propósito varias acções: processo n.º 232/09.6T2STC, apensos A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, N, O, do Juízo de Pequena e Média Instância Cível do Tribunal de Grândola; processo n.º 405/09.1T2GDL, do Juízo de Grande Instancia Cível, Tribunal de Santiago do Cacém, Juiz 2; acção especial de divisão de coisa comum do Tribunal Judicial da Comarca de Grândola com o n.º 89/90; Processo de inventário de 1951 que correu termos no Tribunal Judicial de Alcácer do Sal;
42 - O A. por diversas vezes foi testemunha indicada por parte do R. J.D. contra os RR. L.M., C.N. e J.B.;
43 - Em nenhum julgamento ou inquirição o A. referiu que era titular de um contrato de arrendamento rural em relação à herdade da Água Derramada, referindo sempre a venda de pastagens;
44 - Nos processos de prestação de contas respeitantes ao prédio da herdade da Água Derramada sempre que se faz referência aos proveitos do prédio, quer anteriores quer posteriores a 01.03.2004, refere-se como proveito do prédio a venda das pastagens;
45 - Nenhum dos intervenientes nesses processos faz referência ao pagamento de rendas;
46 - Nenhum dos RR. pretendeu arrendar qualquer parcela da herdade da Água Derramada;
47 - Entre o A. e o R. J.D. sem conhecimento dos restantes RR. e sem consentimento ou autorização, foram celebrados contratos de venda de pastagem, nomeadamente em 08/07/1996, em 05/06/1997, em 18/01/1998 pelo valor de 960.000$00 (€ 4.788,46), em 15/02/2001, pelo valor de 700.000$00 (€ 3.491,58); em 24/02/2002, pelo valor de € 1.950,00;
48 - O A. recebeu de J.D. varias importâncias para executar trabalhos de limpeza de árvores, cortes, limpezas de estradas;
49 - O A. contactava trabalhadores para trabalhar nas campanhas de extracção de cortiça que acompanhava na herdade;
50 - O A. era contratado para realizar trabalhos com tractor na gradagem de mato e aceiros e na extracção da cortiça, serviços que facturou;
51 - (…) trabalhos que não eram do conhecimento dos restantes RR.
52 - O R. J.D. depositava confiança no A. que acompanhava os negócios de venda de cortiça e de pinha quer na tiragem, quer na pesagem, quer na negociação;
53 - A actividade desenvolvida pelo A. na herdade era a pastagem do gado bovino na herdade, que se alimentava da erva que nascia espontaneamente;
54 - Era do conhecimento público em Grândola que os herdeiros da Herdade da Água Derramada não se entendiam.
*
Foi ainda consignado na sentença recorrida que nada mais resultou provado com relevância para a apreciação e resolução da causa, nomeadamente não resultou provado que:
- Em 01.03.2004, foi reduzido a escrito o Contrato de Arrendamento Rural celebrado entre o A. e 4ºR., J.D.,
- O A. celebrou verbalmente com E.L. Contrato de Arrendamento Rural, em dia não concretamente apurado, mas certamente em Março de 1980;
- O A. tem vindo a liquidar pontualmente 5.000 euros anuais a titulo de renda;
- O A celebrou verbalmente com J.A.L. contrato de arrendamento rural sobre a herdade da Água Derramada;
- Ocupando o prédio ora em causa, no que à parte rústica diz respeito, a área de 816,652500 hectares;
- O prédio objecto dos presentes autos representa 20/24 avos do Prédio denominado Água Derramada em termos de descrição matricial;
- Os 1ºR, 2ºR, 3ºR e 4ºR, não obstante bem saberem que o A. era e é rendeiro do referido prédio, e de terem plena consciência de que o mesmo teria, nessas vendas, o direito de preferência, nada comunicaram ao A.;
- A real intenção dos 1ºR, 2ºR, 3ºR e 4ºR era transmitir a totalidade da propriedade a um terceiro, sem que, com isso, o A. pudesse preferir na compra da totalidade do prédio;
- Através da venda descrita o que os 1ºR, 2ºR, 3ºR e 4ºR transmitiram a 5ºR, foi o conteúdo de um direito - o “quinhão hereditário” e o fizeram apenas e com o único intuito de enganar o aqui A, de modo que este ficasse formalmente impedido de preferir na compra da totalidade da herdade.
XIV
Tendo presentes os elementos acima elencados, resta analisar e decidir das pretensões do recorrente.
A) Como se constata da leitura das conclusões supra transcritas, o apelante recorre por entender que a sentença recorrida “fez uma errada apreciação da prova testemunhal e documental, incorreu em erro de julgamento e falta de fundamentação”.
Foi obviamente devido a esta referência à falta de fundamentação que a primeira instância, ao admitir o recurso, teve a preocupação de se pronunciar nos termos previstos no art. 617º, n.º 1, do Código de Processo Civil, declarando que não existia nulidade da sentença por falta de fundamentação, visto que a sentença fez como lhe competia a aplicação do direito aos factos que considerou resultarem provados da prova produzida nos autos e referiu os fundamentos de facto e de direito em que se apoia a decisão final proferida.
Compreende-se o cuidado da instância recorrida, e corroboramos o seu entendimento de que não existe a nulidade aludida na expressão utilizada pelo apelante, a falta de fundamentação, admitindo que foi intenção deste a sua arguição (na verdade afigura-se, perante o conjunto da sua argumentação, que ele pretendeu antes expressar a sua discordância quanto à fundamentação e não propriamente invocar falta de fundamentação, nomeadamente quando no corpo das alegações se refere efectivamente a nulidade da sentença “por insuficiência da fundamentação quanto à preferência probatória que deu a determinados elementos em prejuízo de outros” ).
Importa recordar que as nulidades da sentença, que estão taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC, correspondem a vícios formais que afectam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, susceptíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida, e muito menos com diferentes valorações em matéria de prova.
No que aqui releva, não se podendo duvidar que o art. 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, fulmina de nulidade a decisão que não especifique os fundamentos que a justificam, no seguimento do disposto no art. 154º, n.º 1, também do CPC, que impõe a fundamentação das decisões proferidas no processo, entendemos como indiscutível que no caso não se verifica de todo tal nulidade.
Conforme vem sendo decidido uniformemente pela jurisprudência, a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, que é motivo de nulidade da decisão, é a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão.
Ou seja, a nulidade da decisão nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 615º do CPC só existe no caso de faltar de todo a fundamentação, o que só excepcionalmente acontecerá.
Uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não integra a referida causa de nulidade. Só a ausência de qualquer fundamentação é susceptível de conduzir à nulidade da decisão.
Essa causa de nulidade verifica-se apenas quando o tribunal julga (e por isso não comete qualquer omissão de pronúncia) mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão.
Explica Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 687, que essa nulidade só existe quando falta em absoluto a indicação dos fundamentos da decisão, não bastando a mera deficiência de fundamentação.
Nestes termos, pelas razões expostas, acompanha-se a primeira instância, e julga-se inexistente a falada nulidade.
*
B) Sustenta o apelante, para além dessa referência à fundamentação, que a sentença recorrida fez uma errada apreciação da prova testemunhal e documental, incorreu em erro de julgamento.
Na realidade, em face do conteúdo das suas extensíssimas alegações, constata-se que o recorrente pretende questionar o julgamento da matéria de facto, na medida em que declarou provados factos que considera desfavoráveis à sua posição e declarou não provados outros factos que lhe seriam favoráveis.
Porém, a pretensão de impugnação da matéria de facto por alegado erro de julgamento deve obedecer às especificações obrigatórias impostas pelo art. 640º do Código de Processo Civil, sendo que no caso concreto, manifestamente, tal não se verifica, limitando-se o recorrente a uma natural atitude de inconformismo com o julgado e a exprimir discordância de forma genérica, não indicando concretamente, por referência individualizada à matéria de facto dada como provada e não provada, quais são concretamente os pontos dados por provados que pretende que sejam dados como não provados, e quais os pontos declarados não provados que pretende ver dados como provados, e ainda quais são concreta e precisamente os meios de prova que imponham essas alterações.
Na verdade, em algumas passagens satisfaz um ou outro desses ónus, mas em nenhum caso satisfaz todos eles, que só funcionam, evidentemente, de forma cumulativa.
Relembramos o que dispõe o nº 1 do referido art. 640º:
Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
E o nº 2 refere:
No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
Como resulta das conclusões que apresentou (bem como das próprias alegações) o recorrente não indicou, em relação a cada ponto que pretende impugnar, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida.
A transcrição genérica nas alegações (não nas suas conclusões) dos depoimentos de parte e testemunhais prestados em audiência, obviamente não satisfaz o ónus legal de especificação: remete para o tribunal a tarefa de escolher as passagens relevantes de onde o recorrente pretende extrair as conclusões desejadas.
E o mesmo se diga da referência genérica à prova documental disponível nos autos, não se especificando concretamente que documentos e em que ponto impõem decisões diferentes das assumidas pelo tribunal.
Não constitui impugnação do julgamento da matéria de facto nos termos legais a discordância genérica com o julgado, quanto a factos provados e a factos não provados, acompanhada da indicação também genérica e global de um acervo probatório disponível que deveria levar a diferente julgamento.
Importa ainda sublinhar que, de acordo com as normas conjugadas dos artigos 635º, n.ºs 3 a 5, e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, são as conclusões que delimitam o objecto do recurso, pelo que a matéria constante das alegações mas que não seja levada às conclusões não integra esse objecto.
Citamos a este respeito a posição de Abrantes Geraldes (em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª edição, Almedina, página 147):
As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do artigo 635º, n.º 3, do CPC. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo.
E no mesmo sentido a síntese de Amâncio Ferreira (em Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2000, página 108):
Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objeto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.”
Por outras palavras, o tribunal de recurso só conhece de acordo com o que for levado às conclusões, que delimitam o âmbito do recurso, como expressão sintética das pretensões do recorrente.
Ora, vistas as conclusões do presente recurso, e como ficou acima explicado, entendemos que o recorrente não cumpriu os requisitos exigidos no n.º 1 do artº 640º do CPC, exigíveis imperativamente quando se pretende impugnar o julgamento da matéria de facto, limitando-se a manifestar, ao longo dessas conclusões, inconformismo sobre o julgado, mas sem atacar, verdadeiramente, o acervo factual provado e não provado, pela forma que a lei impõe.
Nos termos legais, tal omissão importa a rejeição do recurso no que concerne ao falado erro de julgamento da matéria de facto.
Assim, rejeita-se o recurso da decisão relativa à matéria de facto (consignando-se ainda que, tal como vem sendo entendimento do STJ, a rejeição da impugnação da matéria de facto não está dependente da observância prévia do contraditório).
De qualquer modo, ainda com relação à matéria de facto, recordamos que a possibilidade legal de alteração do julgamento feito na primeira instância está sempre dependente do conjunto de circunstâncias aludidas no n.º 1 do art. 662º do Código de Processo Civil.
Estatui o n.º 1 da referida disposição legal, enfaticamente, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Ora, tendo presentes os termos dessa disposição legal, diremos que, ainda que fosse de conhecer a impugnação deduzida, do exame dos factos assentes e da prova produzida (não existe qualquer documento superveniente), nenhum elemento nos surge que imponha decisões diversas das tomadas na sentença recorrida.
Ao contrário, da apreciação global desses elementos probatórios resultou uma convicção convergente com a afirmada pela primeira instância, a qual acompanhamos inteiramente.
Em consequência das razões expostas, nenhuma modificação se introduziria nos factos dados como provados, mantendo-se inalterada a matéria de facto dada como provada e não provada.
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C) O apelante instaurou a presente acção de preferência fundamentando o seu pedido no direito de preferência previsto actualmente no art. 31º da Lei do Arrendamento Rural (DL n.º 294/2009, de 13 de Outubro).
Estabelece este artigo, no seu n.º 2, que “no caso de venda ou dação em cumprimento de prédios que sejam objecto de arrendamento agrícola ou florestal, aos respectivos arrendatários cujo contrato vigore há mais de três anos, assiste o direito de preferirem na transmissão.
Disposição similar já constava do anterior regime legal do arrendamento rural, concretamente no art. 28° n° 1 do DL n° 385/88, de 25/10, vigente à data (2004) em que o recorrente diz ter celebrado o que apresenta como o contrato de arrendamento rural que integra na sua causa de pedir.
Diga-se, no entanto, que, por força do disposto no art. 39º da lei actual, sobre aplicação no tempo do novo regime, seria este último o regime legal a considerar, uma vez que o arrendamento alegado já estaria em período de renovação iniciado após a entrada em vigor da nova lei (o aludido arrendamento teria sido celebrado pelo prazo de seis anos).
De qualquer modo, o decisivo é que pretendendo o apelante preferir em vários negócios que incidiram sobre o prédio objecto dos autos, e que tiveram como efeito a transmissão da propriedade sobre o prédio, os seus pedidos têm como pressuposto necessário e indispensável, antes do mais, a titularidade do direito de preferência invocado.
E a titularidade desse direito, como resulta da norma citada, pressupõe em primeiro lugar a qualidade de arrendatário rural.
Consequentemente, o autor, agora apelante, invocou a sua condição de arrendatário rural do prédio em causa, por força do “contrato de arrendamento rural” que teria celebrado com o R. J.D., e que juntou com a petição inicial (doc. de fls. 14).
Trata-se de um escrito (um manuscrito) denominado expressamente contrato de arrendamento rural, datado de 01.03.2004, do qual consta que o aqui R. J.D., na qualidade de proprietário e cabeça-de-casal (era comproprietário e cabeça de casal na herança indivisa que integrava também o direito a uma quota sobre a propriedade), deu de arrendamento ao A. o prédio rústico denominado “Água-Derramada”, inscrito na matriz rústica sob o artigo 71 da Secção “N-N1” e na matriz urbana sob os artigos 765, 767 e 768, na União da freguesia de Grândola e Santa Margarida da Serra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o nº12013 da freguesia de Grândola.
Mais consta do referido escrito que o prédio era arrendado para exploração agro-pecuária por parte do segundo outorgante, e demais fins que estejam de acordo com as características do prédio, e que o valor da renda era de € 5.000,00 (cinco mil euros) anuais.
Assim ficou consignado nos pontos 5, 6 e 7 dos factos provados.
Contudo, também ficou provado que foi a pedido do A. que o R. J.D. assinou o documento datado de 01.03.2004, para que o A. se pudesse candidatar ao recebimento das ajudas e subsídios processados pelo IFAP, isto porque o contrato de venda de pastagem não era suficiente para poder receber qualquer ajuda, e o R. J.D. acedeu a assinar o referido documento só para apresentação nos serviços agrícolas para obtenção dos subsídios; e que após apresentação desse documento junto dos serviços de agricultura o A. passou a figurar nos serviços de agricultura como rendeiro da Herdade da Água Derramada recebendo desse modo as ajudas e subsídios (conforme números 1, 2 e 3 da factualidade provada).
Além disso, “nenhum dos RR. pretendeu arrendar qualquer parcela da herdade da Água Derramada” (n.º 46), “a actividade desenvolvida pelo A. na herdade era a pastagem do gado bovino na herdade, que se alimentava da erva que nascia espontaneamente” (n.º 53), “o R. J.D. tinha no A. o seu homem de confiança na Herdade” (n.º 18), e entre os dois foram celebrados sucessivos negócios anuais de venda de pastagem da Herdade, sem conhecimento dos outros RR. (cfr. n.ºs 20 e 47).
Ou seja, a elaboração do escrito em causa destinou-se apenas aos fins práticos mencionados (a sua apresentação junto dos serviços responsáveis pela atribuição de ajudas e subsídios a actividades agrícolas, que contemplavam arrendatários rurais) e não à constituição de qualquer vínculo de natureza arrendatícia.
Apurou-se ainda, para esclarecimento da relação do A. com a Herdade, que ele recebeu do R. J.D. várias importâncias para executar trabalhos de limpeza de árvores, cortes, limpezas de estradas; contactava trabalhadores para trabalhar nas campanhas de extracção de cortiça que acompanhava na herdade; era contratado para realizar trabalhos com tractor na gradagem de mato e aceiros e na extracção da cortiça, serviços que facturou; trabalhos que não eram do conhecimento dos restantes RR.; e o R. J.D. depositava confiança no A. que acompanhava os negócios de venda de cortiça e de pinha quer na tiragem, quer na pesagem, quer na negociação (tudo conforme os n.ºs 48 a 52 dos factos provados).
Em face deste conjunto de factos, concluiu-se na sentença recorrida que, sendo pressuposto fundamental do exercício do direito de preferência pelo A. a prova da existência de um contrato de arrendamento que fundamentasse o seu direito de preferência, o ora apelante não logrou demonstrar a existência de um contrato de arrendamento.
Com efeito, resultou provado que a pedido do A. o R. J.D. assinou o manuscrito em causa apenas para que o A. se pudesse candidatar ao recebimento das ajudas e subsídios processados pelo IFAP, isto porque o contrato de venda de pastagem não era suficiente para poder receber qualquer ajuda; e o A. continuou a desempenhar na Herdade as funções descritas, por conta do R. J.D., que remunerava os serviços prestados.
Nem o R. J.D. nem nenhum dos outros RR. quiseram dar de arrendamento qualquer parcela da Herdade (n.º 46 dos factos provados).
O aparecimento do documento referido explica-se pelo relacionamento de confiança que existia entre o A. e o R. J.D., que aliás se prolongou no tempo, mantendo-se o A. como prestador de serviços diversos na Herdade, para além da sua actividade própria ligada à pecuária, para o que comprava a pastagem ali existente, para alimentar os seus bovinos.
Como salienta a sentença recorrida, não pode “reconhecer-se que aquele documento constituía a formalização de um contrato de arrendamento rural porque a realidade existente não correspondia a nenhum acordo de vontades integrativo de um arrendamento, nem no momento, nem em momento anterior ou posterior”.
Note-se, aliás, que não há nos factos apurados notícia do pagamento da renda aludida no dito manuscrito, elemento que seria essencial à demonstração de uma situação de arrendamento.
O escrito em questão não tem a virtualidade de instituir o A. numa qualidade que não tem (arrendatário rural), visto que não traduziu a constituição de contrato nenhum; e não pode por isso ser idóneo a fundamentar as pretensões deduzidas pelo A. contra os RR. (aliás estranhos à elaboração do documento, salvo o aludido R. J.D.).
Desde modo, como também se conclui na sentença em apreço, “o comportamento do A. e do R. J.D. traduz simulação (artigo 240.° do Código Civil) pois manifestamente havia o intuito de enganar terceiros, ou seja, desde logo a instituição que atribuía os subsídios de que o A. beneficiou e todos aqueles que pudessem vir a ficar prejudicados nos seus interesses pela aparente existência de um arrendamento”.
Consequentemente, impõe-se a conclusão de que a declaração negocial exarada no documento junto a fls. 14, junto com a petição inicial, é nula por simulação (cfr. artigo 240.° do Código Civil), face à divergência entre a vontade real e a vontade declarada com intuito de enganar terceiros.
Acompanhamos o entendimento da primeira instância, acrescentando que se trata de simulação absoluta, visto que sob o negócio simulado, nulo, não existe nenhum outro que as partes quisessem dissimular (cfr. art. 241º do CC).
Aqui chegados, torna-se inevitável também a conclusão de que, não reunindo o A. a qualidade básica para o exercício do direito de preferência, tal circunstância determina a total improcedência do peticionado pelo A., mostrando-se em consequência prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pelas partes, nomeadamente os restantes fundamentos de oposição apresentados pelos RR (v. g. os poderes do R. J.D. para outorgar tal contrato, ou a possibilidade de preferir nos actos jurídicos em causa).
Por tudo o exposto, acordamos em confirmar a sentença impugnada, no que respeita à improcedência total dos pedidos, decisão que nenhuma censura merece.
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D) Insurge-se ainda o apelante contra a sua condenação como litigante de má fé. Concretamente, logo na al. b) das conclusões menciona que o recurso “se estende à condenação do A, como litigante de má-fé, no pagamento de 10.000,00€, a favor do 1º, 2º, 3º, e 5º RR e multa no montante de 10 UC”.
Embora não volte à questão, nas ditas conclusões, para indicar os fundamentos da discordância, entendemos que essa condenação ficou impugnada e devemos conhecer do acerto da decisão.
A este respeito pode ler-se na sentença recorrida a fundamentação seguinte:
“Invocam os RR. que o A. litiga de má fé porquanto veio o mesmo intentar a presente acção de preferência invocando a qualidade de arrendatário rural, mediante a celebração de contrato de arrendamento com o J.D. quando tal escrito junto aos autos somente foi redigido para ser apresentado junto das autoridades agrícolas a fim de o A. se poder candidatar ao recebimento de subsídios.
Nos termos do disposto no nº 2, do artigo 542º, do Cód. do Proc. Civil, “diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão de impedir a descoberta da verdade".
Com efeito, a má fé é sancionada no processo com condenação em multa e indemnização à parte contrária, se esta o requerer – nº 1 do citado preceito.
Como bem refere o Ac RP, de 06/10/2005, in www.dgsi.pt, «O dever de litigar de boa fé, isto é, com respeito pela verdade, mostra-se como um corolário do princípio do “dever de probidade ou de probidade processual” e/ou de cooperação, fixados nos art.s 266º e 266º-A do C.P.C., para além dos deveres que lhe são inerentes, imposto sempre às respectivas partes.
A mais grave violação desses deveres constitui justamente a litigância de má fé, cujos contornos se acham definidos no artº 456º daquela lei adjectiva civil.»
Neste domínio, é comum distinguir-se má-fé material (ou substancial) de má-fé instrumental: na primeira, a má-fé relaciona-se com o mérito da causa, ou seja, a parte, com um propósito malicioso pretende convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida; na segunda, a parte, voluntariamente, faz do processo um uso reprovável ou deduz oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.
No caso sobre que nos debruçamos, resultou provado que «A pedido do A. o R. J.D. assinou o documento datado de 01.03.2004, para que o A. se pudesse candidatar ao recebimento das ajudas e subsídios processados pelo IFAP; O contrato de venda de pastagem não era suficiente para poder receber qualquer ajuda e o R. J.D. acedeu a assinar o referido documento só para apresentação nos serviços agrícolas para obtenção dos subsídios; Após apresentação desse documento junto dos serviços de agricultura o A. passou a figurar nos serviços de agricultura como rendeiro da Herdade da Água Derramada recebendo desse modo as ajudas e subsídios;».
Não pode, em consequência, deixar de se concluir pela falsidade consciente com que o A. pretendeu fazer crer nos autos que celebrara com o R. J.D. um contrato de arrendamento sobre a herdade o que lhe dava a qualidade de rendeiro e o direito de preferir na venda da herdade.
Tendo o A. feito um uso reprovável do escrito assinado pelo R. J.D., alterando a verdade dos factos a fim de deduzir a presente acção com base no seu direito de preferir, pedido cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer, atento o seu conhecimento dos factos, resultante da sua participação nos mesmos, fazendo um uso manifestamente reprovável dos meios processuais não contribuindo para a descoberta da verdade material, e desta forma entorpecendo a acção da justiça, o que integra o estatuído nas alíneas do n.º 2 do art.º 542.º CPC, preenchendo os requisitos para se concluir pela litigância de má fé por parte do A.
Conforme resulta do disposto no art. 542.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a parte que litiga de má-fé é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
No que respeita à indemnização, prescreve o art. 543.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil que: «1. A indemnização pode consistir: a) No reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos; b) No reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé. 2. O juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, fixando-a sempre em quantia certa.».
Na fixação da indemnização por litigância de má-fé há que atender ao grau de culpabilidade do litigante de má-fé e às despesas efectuadas pelo ofendido mas apenas as resultantes daquelas que emergem dos factos que caracterizam a má-fé. A indemnização tem o desiderato de ressarcir os ofendidos dos danos por eles sofridos com os factos traduzidos em litigância de má-fé, nomeadamente a necessidade de se defenderem de acção infundada apresentada pelo A. com a necessidade de constituição de mandatário para contestar o peticionado pelo A.
In casu, os RR. L.M., C.N., J.B. e Agro-Helfil peticionam a condenação do A. no pagamento de indemnização por litigância de má fé, afigurando-se, atento o supra exposto, como adequada a fixação nos autos de indemnização no montante de € 10.000,00.
Relativamente à multa, esta visa punir o comportamento do litigante, e na fixação do montante da multa deve ter-se em atenção os reflexos da violação da lei na tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e considerando, ainda, o valor da presente acção (cfr. Ac. TRE 17.01.2019 in www.dgsi.pt).
Assim sendo, tendo em conta que estamos perante uma causa com alguma expressão económica: € 2.409.826,00, e considerando que importa ponderar que a justa fixação da multa é também em função das condições económicas daquele que será sancionado com a multa; condições económicas a extrair e deduzir dos elementos dos autos e que, à míngua de elementos concludentes como é o caso, deve respeitar o princípio da proibição do excesso, sem necessidade de recorrer a uma específica averiguação sobre a situação económica do litigante de má-fé – (Ac. TRC 14.06.2’16 , in www.dgsi.pt ), atendendo a que a multa vai de 2 a 100 UC (cfr. art. 27.º/3 do RCP) e usando de proporcionalidade e razoabilidade, entende-se ajustado a aplicação ao A. da multa de 10 UC por litigância de má fé”.
Perfilhamos inteiramente as doutas considerações da sentença recorrida, contra as quais aliás o recorrente nada argumenta.
É certo que nesta matéria a boa prática impõe a prudência, e a lei aconselha nomeadamente a que se tenha em conta as condições económicas do sancionado, que em rigor não foram apuradas no processo.
Porém, a este respeito o que sabemos é que o A. apresentou-se nesta acção voluntariamente disposto a pagar em 30 dias, caso os seus pedidos procedessem, a quantia de € 2.409.826,00 (cfr. art. 31º, n.º 6, da LAR).
Tendo em conta também a moldura a considerar (2 a 100 UCs) a fixação da multa em 10 UCs (€1020) afigura-se equilibrada e ajustada ao sancionamento do comportamento processual que se pretende censurar.
E a atribuição da indemnização de €10.000 aos quatro RR. que a peticionaram, significando obviamente €2.500 para cada um deles, também se afigura adequado a satisfazer as finalidades dessa indemnização, considerando nomeadamente as despesas e incómodos derivados da necessidade de se defenderem no processo, cuja complexidade e melindre estão bem expressos no seu valor.
Em resumo, também a condenação do A. a título de litigante de má fé que foi proferida na primeira instância não nos merece censura, pelo que acordamos na sua confirmação integral.
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DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar inteiramente improcedente a presente apelação e em consequência confirmar na íntegra a sentença recorrida.
Custas da fase recursal a cargo do recorrente, dado o decaimento (cfr. art. 527º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 9 de Junho de 2022
José Lúcio
Manuel Bargado
Francisco Xavier