Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1034/19.7T9STC.E1
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: CRIME DE BURLA
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Na lógica segundo a qual o Direito Penal assume intervenção meramente subsidiária e residual, não podendo substituir-se aos regimes de intervenção civil, no caso, temos que:
- A ação, tal qual descrita (sem qualquer menção a facto de ardil ou erro criado), apenas se suportará no aproveitamento da condição de incapacidade da vítima (que não se concretiza);

- Ora, para tal situação, versa o artigo 2199.º do Código Civil, sob a epígrafe “Incapacidade acidental” que “É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”;

- Existindo pois um meio próprio (ação do foro civil) apta a arguir e demonstrar tal invalidade (com prévia demonstração da situação de incapacidade);

- Por outro lado, a ação de eventual dissipação do património do falecido terá de aferir-se por reporte à legitimidade do título outorgal que o admite (o referido testamento), também ali não se descrevendo qualquer ardil ou erro com base no qual se possa, a final, e em plano de causalidade direta, extrair o prejuízo da vítima (neste caso já o herdeiro);

Ora, nesta conformidade, não só se entende que a existência de um instituto e ação própria no domínio civil afasta a intervenção da tutela penal, esta última também não se permite suportar em descrição factual da qual se permita extrair o recurso ao convencimento por meio de erro ou ardil que astuciosamente se criou, prejudicando o processo de formação da vontade da vítima (originária).

Dito por outra forma, a escassez da redação de factos com base nos quais se permite a imputação de tal ação, impedirá que, mesmo caso o Tribunal venha a dar como provados todos os factos descritos na acusação pública, condene a arguida pelo crime imputado, por se mostrarem omissos factos essenciais dos quais se permitisse extrair o mencionado ardil ou astúcia (cujo aditamento, a suceder em julgamento, por contender com a perfeição do tipo legal, integraria uma alteração substancial).

Nesta medida, julga-se não verificado o ilícito objeto de imputação singular à arguida (burla qualificada, p. e p. pelas disposições legais explicitadas na acusação), em face do que, sob ponderação do disposto no artigo 311º, n.ºs 1, 2 e 3, alínea d), se rejeita a acusação do Ministério Público, nessa parte, por manifestamente infundada.

II - Sendo o pedido de indemnização civil apresentado pelo demandante exclusivamente sedimentado no teor factual no qual assentava a imputação de crime de burla qualificada à arguida, a rejeição da acusação nesta parte, conduziu necessariamente à rejeição do referido pedido de indeminização civil por deixar de subsistir o princípio de adesão a que se alude no artigo 71º do CPP.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
No Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo Central Criminal de … - Juiz …, o Ministério Público e AA, demandante nos presentes autos, por não se conformarem com o despacho de 13 de Outubro de 2023 que rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação deduzida contra a arguida BB, pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, alínea a), ambos do Cód. Penal, dele interpuseram o presente recurso.

A competente motivação é rematada com a formulação das seguintes conclusões:

Do Ministério Público

“1 - Há que analisar se tais factos da acusação integram a prática do crime de burla.

2 - O crime de burla, previsto e punido pelo art.º 217, do C. Penal apresenta-se como a atuação de alguém que pretendendo obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente tenha provocado, determina outrem à prática de atos que lhe causem ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial.

3 - Constituem elementos do tipo objetivo do crime de burla, previsto e punido pelo art.º 217.º do Código Penal:

a) A utilização ilícita de meio enganatório;

b) A criação de erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados;

c) A determinação de outrem à prática de factos de disposição patrimonial;

d) O prejuízo patrimonial.

O erro constitui a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, provocada pelo agente, usando de artifícios ou astúcia que funciona como vício do consentimento da vítima.

4 - O engano equivale ao que leva o burlado mentalmente a conceber factos que lhe são apresentados de forma diversa da que eles têm na realidade.

5 - Assim, não se vislumbra, salvo o devido respeito por opinião contrária e que é sempre muito elevado, o disposto no art.º 311, do C. P. Penal como d. interpretado no d. despacho recorrido no sentido da rejeição parcial da acusação.

6 - Assim, somos de parecer que deverá o d. despacho judicial recorrido deverá ser substituído por d. despacho judicial que determine a autuação como processo comum com intervenção de Tribunal Coletivo, recebendo-se a acusação deduzida pelo Ministério Público, nos seus precisos termos, e se determine a realização de audiência de julgamento, designando-se as duas datas – para efeitos do disposto no art.º 312, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.

7 - Deste modo, considera-se que valorando as provas, os factos e as normas legais em apreço corretamente, conjugando-as e analisando-as à luz das regras da experiência, e assim observadas estas premissas, outro resultado não se afigura pode ser obtido que não seja a justeza do recebimento integral da acusação deduzida, atento nomeadamente o supra descrito.

Nestes termos e nos demais de direito, que os Venerandos Desembargadores se dignarão suprir, concedendo provimento ao recurso e, em consequência revogando o d. despacho judicial recorrido na parte em causa e determinando o recebimento da acusação deduzida contra a arguida também pelo aludido tipo de crime, V. Excelências, agora, como sempre, farão a já costumada, JUSTIÇA.

Do AA, demandante nos presentes autos

Em 13/10/2023 o Meritíssimo Juiz de Direito Presidente do Coletivo do Juízo Central Criminal de … – Juiz … do Tribunal Judicial da Comarca de …, proferiu o douto despacho recorrendo (no CITIUS sob a referência …) em que, além do mais, julgou como «(…) não verificado o ilícito objeto de imputação singular à arguida BB (burla qualificada, p. e p. pelas disposições legais explicitadas na acusação), em face do que, sob ponderação do disposto no artigo 311.º, n.ºs 1, 2 e 3, alínea d), se rejeita a acusação do Ministério Público, nessa parte, por manifestamente infundada. (…)».

2. Através daquele mesmo despacho judicial o seu signatário também rejeitou «(…) o pedido de indemnização civil apresentado nestes autos por AA, cujo fundamento se sedimenta, exclusivamente, no teor factual do qual se estriba a imputação de crime de burla qualificada (face ao qual se rejeitou a acusação pública nos termos acabados de explicitar), por deixar de subsistir o princípio de adesão a que se alude no artigo 71.º do CPP. (…)».

3. Tal douto despacho judicial – de rejeição parcial da acusação pública – foi, entretanto, objeto de recurso de apelação, interposto em 02/11/2023 pelo Digno Magistrado do Ministério Público (cfr. no CITIUS sob a referência …), cujas alegações e respetivas conclusões o ora recorrente subscreve inteiramente.

4. Consequentemente, o aqui recorrente também considera, à semelhança do já peticionado por aquele Digno Magistrado do Ministério Público naquele seu recurso, que o mencionado douto despacho judicial recorrendo deverá ser revogado por, em clara violação do regime legal aplicável, posto que sem fundamento bastante para tal, ter rejeitado parcialmente a douta acusação pública e o pedido de indemnização civil (este oportunamente apresentado pelo demandante, ora recorrente).

5. Obviamente que não olvidamos que a douta acusação pública poderá, eventualmente, ser considerada como um tanto ou quanto incompleta, pouco precisa e rigorosa e mesmo algo imperfeita… porém, e salvo melhor entendimento de Vossas Excelências, tal acusação – não obstante todas as muitas deficiências que lhe possam ser apontadas –, contém, manifestamente, os elementos mínimos legalmente imprescindíveis e essenciais para que pudesse e devesse ter sido admitida pelo Meritíssimo Juiz de julgamento, aqui recorrido… sendo que não deveria, pois, essa acusação ter sido rejeitada!

6. Destarte, temos assim que, na referida acusação pública são elencados factos “mais do que suficientes” que, objetiva e subjetivamente e, ademais, conjugados com todos os meios de prova e analisados à luz das regras de experiência comum, são claramente indiciadores da prática do crime de burla qualificada, imputável à coarguida BB.

7. Ademais, saber se tais factos – e demais elementos de prova indicados na acusação pública, como é o caso, por exemplo, do extenso e bem detalhado Relatório da Polícia Judiciária (recebido em 07/10/2022, no CITIUS sob a referência …) – são mesmo adequados, ou não, para obter a condenação daquela coarguida (também) pelo crime de burla qualificada… essa é uma verificação que, naturalmente, terá de ser feita pelo Juiz de julgamento… mas apenas e só no final da respetiva audiência de discussão e julgamento, e não agora, em sede de saneamento do processo!

8. O crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.º, do Código Penal, apresenta-se, pois, como a atuação de alguém que, pretendendo obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente tenha provocado, determina outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.

9. Ora, a descrição dos factos que vem apresentada na douta acusação pública, suportada nos diversos meios de prova nela elencados, não permite, sem mais, como foi decidida pelo Meritíssimo Juiz “a quo” no douto despacho recorrendo, a rejeição liminar (ainda que apenas parcial) da acusação… porquanto, no caso sub judice seria sempre possível “aproveitar” essa mesma acusação e, se fosse caso disso, em sede de audiência de discussão e julgamento deste processo, proceder então a uma alteração não substancial, ou até mesmo a uma alteração substancial dos factos, nos termos do disposto, entre outros, nos artigos 358.º e 359.º do CPP.

10.Assim, não se vislumbra, salvo o devido respeito por opinião contrária, como é que o disposto no artigo 311.º do CPP pode servir de fundamento de direito – desde logo porque mais nenhum outro foi invocado – para a rejeição parcial da acusação, e, ainda por cima, com a “qualificação” de… manifestamente infundada!

11.Aliás, e bem ao invés, o que é manifesto, isso sim, é que tal acusação, ainda que porventura se venha a revelar no futuro (mormente no final do julgamento) como total ou parcialmente improcedente e / ou infundada, atualmente não pode ser considerada, de modo algum, como manifestamente infundada.

12.E, nessa conformidade, entende o ora recorrente que deverá o douto despacho recorrendo ser revogado e ordenada a sua substituição por outro, onde se determine, designadamente:

- a autuação deste processo como processo comum, com intervenção de Tribunal Coletivo;

- o recebimento da douta acusação deduzida pelo Ministério Público, nos seus precisos termos, bem como a admissão de todos os meios de prova aí requeridos;

- a admissão do Pedido de Indemnização Cível apresentado pelo demandante, ordenando-se a notificação dos demandados para o contestarem;

e, finalmente,

- sejam designadas as datas para a respetiva audiência de discussão e julgamento.

Nestes termos, e nos mais de direito,

que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, requer-se agora que:

a) seja concedido integral provimento ao presente recurso e, consequentemente, que seja totalmente revogado o douto despacho judicial recorrendo e este substituído por outro, que receba a acusação pública por todos os crimes nela constantes; e, bem assim,

b) seja admitido o Pedido de Indemnização Cível apresentado pelo demandante, ora recorrente, seguindo-se os demais tramites processuais até final.

Assim de fazendo JUSTIÇA!

***

Nesta instância, aquando da vista a que se refere o art.416º do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

***

A DECISÃO RECORRIDA

O despacho recorrido objecto do presente recurso é do seguinte teor:

«O Tribunal é o competente Registe e autue.

*

Da rejeição (parcial) da acusação pública:

Formula o Ministério Público, a fls. 532 e segs., acusação pública, por via da qual imputa à arguida BB 1 (um) crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, alínea a), e bem assim àquela arguida, em coautoria face aos arguidos CC e DD, o cometimento adicional de 1 crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255º, alínea a) e 256, n.º 1, alíneas d), e) e f), 3 e 4 do Código Penal.

Em traços gerais, as imputações incriminatórias em referência reconduzem-se às seguintes situações factuais:

- burla: ter a arguida BB, em 23/09/2019, “aproveitando-se da incapacidade psíquica de EE, nessa data internado no Hospital …, em … (onde faleceu a 14/10/2019), convenceu-o a colocar a sua impressão digital num testamento, para se apropriar do seguinte legado (descrito no 2º parágrafo da acusação”. Ter, após na gestão do património que se legitimou em tal testamento (eficaz após óbito do mencionado EE), disposto do mesmo, fazendo-o em proveito próprio e de familiares. Face a tal atuação, ter prejudicado a posição sucessória do filho do falecido, AA);

- falsificação de documento: ter a arguida BB, em 17/10/2019, solicitado na Junta de Freguesia de … uma declaração cujo requerimento continha informação falsa, da mesma constando “viveu em comunhão de mesa e habitação (união de facto) desde 15 de novembro de 2009 com o EE (…) até à data do falecimento ocorrido em 14/11/2009”, declaração que coadjuvou com as declarações adicionais dos demais arguidos (sob compromisso de honra).

Suscitando-nos dúvidas evidentes, face ao texto firmado na acusação pública, da existência de suporte factual bastante passível de integrar o preenchimento das referidas incriminações penais, e em especial no que tange ao crime de burla, importará neste momento tomar posição.

Assim, cumpriria neste momento, face à dedução da mencionada acusação pública contra os arguidos, ao abrigo do disposto no artigo 311º do Código de Processo Penal (doravante abreviadamente designado por CPP), receber a acusação e designar data para a realização de audiência de julgamento, com vista à apreciação dos crimes que ao arguido são imputados.

Porém, conforme determina o n.º 1 da disposição legal acabada de citar, recebidos os autos no tribunal, o juiz deve proceder ao saneamento do processo, pronunciando-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que possa desde logo conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

Por outro lado, e nos termos do n.º 2 da já citada disposição legal, pode o Juiz, caso os autos hajam sido remetidos para julgamento sem passar pela fase de instrução, rejeitar a acusação se a entender manifestamente infundada.

Concretiza o n.º 3 da mesma norma legal que e considerará a acusação manifestamente infundada quando não contenha a identificação do arguido, quando não contenha a narração dos factos, as normas incriminatórias que os suportam ou se os factos não configurarem crime.

Vejamos assim o que se nos oferece dizer: Da imputação pelo crime de burla:

Senão vejamos, fazendo previamente, um breve enquadramento do tipo legal em apreço: Estatui o artigo 217º, n. 1 do Código Penal que “1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

Por outro lado, estatui o artigo 218º do citado normativo que “1 - Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 - A pena é a de prisão de dois a oito anos se:

a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;

b) O agente fizer da burla modo de vida;

c) O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença; ou

d) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica. (…)”. Dito isto:

O ilícito da burla apresenta-se como a atuação de alguém que, pretendendo obter para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo, se socorre de erro ou engano sobre factos que astuciosamente tenha provocado ou aproveitado, determinando outrem à prática de atos que lhe causem ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial.

Trata-se de uma forma evoluída de captação do alheio servindo-se do erro e do engano para obter os mesmos resultados que outros conseguem com recurso a meios violentos. O ataque ao património não se realiza através de meios materiais (apreensão da coisa por recurso a violência ou intimidação) mas através de meios intelectuais.

O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é assim o património na perspetiva de proteger a situação de disposição que o sujeito tem sobre uma coisa. Visa-se assegurar a proteção dos interesses patrimoniais das pessoas de boa-fé, que regem os seus atos de acordo com os valores sociais dominantes, consagrados na ordem jurídica, enquanto sistema global de ordenação. Diga-se, ademais, que a noção de património, para o presente efeito, assenta na conceção económico-jurídica, a qual se afigura como prevalente na nossa Doutrina e Jurisprudência, e que passa por reconduzir o património ao conjunto de todas as situações e posições com valor económico, detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica, cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Parecer “Crime de Emissão de Cheque sem provisão”, publicado na Coletânea de Jurisprudência, Tomo 3/92, a págs. 65 e segs.

Assentando na ideia segundo a qual o presente tipo assenta no erro/engano, A. M. Almeida Costa (in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Volume II, a pág. 300) refere que no plano criminal se exige que “a consumação do delito dependa, não de um qualquer domínio-do-erro (ainda que efetivo) mas de um domínio-do erro jurídico-penalmente relevante”, tendo em consideração uma restrição adicional do desvalor de ação subjacente à burla, cuja definição remete para o princípio da boa fé (em sentido objetivo), acrescentando ainda que “uma exigência de consideração pelos interesses legítimos da outra parte, nele radica o decisivo critério da lealdade que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, portanto, o limite da relevância do domínio-do-erro no quadro da burla”.

Resulta assim, em síntese, da noção legal (geral) constante do artigo 217º do Código Penal que, para que um ato possa ser classificado como integrador do crime de burla, torna-se necessária a verificação dos seguintes elementos constitutivos:

- Intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;

- Por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;

- Determinando a vítima à prática de atos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial;

- Dolo, traduzido na vontade de praticar o facto, com consciência de que a sua ação, por insidiosa, se afigura apta à obtenção de benefício ilegítimo, em prejuízo patrimonial para o burlado ou para terceiro, e a noção de que tal comportamento é ilícito (cfr. artigo 14º do Código Penal).

Ora, transpondo as considerações legais em evidência para o caso dos autos, temos que:

A ação feita imputar à arguida BB decompõe-se em dois segmentos, sendo o primeiro o da celebração (convencimento) de testamento por EE, que se refere genericamente padecer de incapacidade psíquica, em seu benefício (convencendo-o a apor impressão digital no testamento junto aos autos a fls. 4 e segs.), e o seguindo, legitimado em tal ato, conducente à diminuição do ativo patrimonial deixado por óbito daquele, em prejuízo do único descendente.

Ora, em momento algum da acusação se descreve qual o meio de astúcia ou erro utilizado pela arguida para tal “convencimento”, nem tão pouco se refere qual o grau de proximidade ou conhecimento dos envolvidos, por forma a poder enquadrar uma tal ação.

Ao invés, refere-se tão somente que a arguida convenceu EE a apor a impressão digital em testamento (realça-se outorgado por notária), e bem assim que, à data em que tal sucedeu, o testador se encontraria em situação de incapacidade psíquica, que nem tão pouco se identifica ou descreve.

Ora, na lógica segundo a qual o Direito Penal assume intervenção meramente subsidiária e residual, não podendo substituir-se aos regimes de intervenção civil, temos que:

- A ação, tal qual descrita (sem qualquer menção a facto de ardil ou erro criado), apenas se suportará no aproveitamento da condição de incapacidade da vítima (que também não se concretiza);

- Ora, para tal situação, versa o artigo 2199.º do Código Civil, sob a epígrafe “Incapacidade acidental” que “É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”;

- Existindo pois um meio próprio (ação do foro civil) apta a arguir e demonstrar tal invalidade (com prévia demonstração da situação de incapacidade);

- Por outro lado, a ação de eventual dissipação do património do falecido terá de aferir-se por reporte à legitimidade do título outorgal que o admite (o referido testamento), também ali não se descrevendo qualquer ardil ou erro com base no qual se possa, a final, e em plano de causalidade direta, extrair o prejuízo da vítima (neste caso já o herdeiro);

Ora, nesta conformidade, não só se entende que a existência de um instituto e ação própria no domínio civil afasta a intervenção da tutela penal, esta última também não se permite suportar em descrição factual da qual se permita extrair o recurso ao convencimento por meio de erro ou ardil que astuciosamente se criou, prejudicando o processo de formação da vontade da vítima (originária).

Dito por outra forma, a escassez da redação de factos com base nos quais se permite a imputação de tal ação, impedirá que, mesmo caso o Tribunal venha a dar como provados todos os factos descritos na acusação pública, condene a arguida pelo crime imputado, por se mostrarem omissos factos essenciais dos quais se permitisse extrair o mencionado ardil ou astúcia (cujo aditamento, a suceder em julgamento, por contender com a perfeição do tipo legal, integraria uma alteração substancial).

Nesta medida, julga-se não verificado o ilícito objeto de imputação singular à arguida BB (burla qualificada, p. e p. pelas disposições legais explicitadas na acusação), em face do que, sob ponderação do disposto no artigo 311º, n.ºs 1, 2 e 3, alínea d), se rejeita a acusação do Ministério Público, nessa parte, por manifestamente infundada.

Notifique.

*

Nessa medida, recebo apenas a acusação pública no segmento factual alusivo ao cometimento, pelos três arguidos (BB, CC e DD) de 1 crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255º, alínea a) e 256º, n.º 1, alíneas d), e) e f) e 3 do Código Penal (afigurando-se-nos ser desprovida de sustentação fáctica a condição punitiva referida no n.º 4 do artigo 256º).

*

Consequentemente, rejeito o pedido de indemnização civil apresentado nestes autos por AA, cujo fundamento se sedimenta, exclusivamente, no teor factual do qual se estriba a imputação de crime de burla qualificada (face ao qual se rejeitou a acusação pública nos termos acabados de explicitar), por deixar de subsistir o princípio de adesão a que se alude no artigo 71º do CPP.

Adicionalmente, sempre se acrescentaria que o mesmo apenas se poderia deduzir contra a arguida BB e nunca contra CC e DD, quanto aos quais apenas se imputa o cometimento de crime de falsificação (e não de burla).

*

Uma vez que a delimitação do objeto dos autos se mostra condicionada ao despacho acabado de proferir, sendo também certo que a intervenção de Tribunal Coletivo deixará de subsistir caso o mesmo seja circunscrito ao crime de falsificação de documento (punível com pena de prisão até 5 anos), determino, por ora, que se aguarde pelo trânsito em julgado da presente decisão.

Notifique.

*

O OBJECTO DO RECURSO

Perante os factos considerados provados pela 1ª instância, importa agora curar do mérito dos recursos, tendo-se em atenção que é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer - Cfr. o Ac do STJ de 3.2.99 in BMJ 484, pág 271; o Ac do STJ de 25.6.98 in BMJ 478, pág 242; o Ac do STJ de 13.5.98 in BMJ 477, pág 263; SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal” cit., págs. 74 e 93, nota 108; GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, pág. 335; JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387; e ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363).«São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal “ad quem” tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem).

A - A questão essencial suscitada pelo Ministério Público/Recorrente (nas conclusões da sua motivação) é a seguinte:

1) Se existe fundamento para rejeitar parcialmente a acusação deduzida pelo Ministério Público, com base na interpretação do artigo 311º, n.ºs 1, 2 e 3, alínea d), do C.P.P., concretamente por se ter entendido no despacho recorrido não existir a prática de um crime de burla.

B - A questão essencial suscitada pela Demandante cível (nas conclusões da sua motivação) é a seguinte:

1) Se deve ser admitido o Pedido de Indemnização Cível apresentado pelo demandante, seguindo-se os demais tramites processuais até final.

Apreciando:

A - No caso sub judicio, a única questão submetida pelo Recorrente Ministério Público à apreciação desta Relação é a seguinte:

a) se existe fundamento para rejeitar parcialmente a acusação deduzida pelo Ministério Público, com base na interpretação do artigo 311º, n.ºs 1, 2 e 3, alínea d), do C.P.P., concretamente por se ter entendido no despacho recorrido não existir a prática de um crime de burla.

Quid juris?

Nos termos do disposto nos arts.276º e 283º nº 1 e nº 3, als. a) a f) do C.P.P., a acusação deverá conter, sob pena de nulidade, a identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, a indicação das disposições legais aplicáveis e a indicação das provas a produzir.

Não requerendo o arguido/acusado instrução, é o processo remetido para julgamento.

De acordo com o preceituado no art.º 311º do CPP, recebidos os autos no tribunal, o juiz pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais, que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

Inexistindo aquelas e se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução – o que se verifica in casu –, então o juiz do processo despacha no sentido:

“a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do nº 1 do artigo 284º e do nº 4 do artigo 285º, respectivamente.”

Segundo o nº3 da citada norma legal “a acusação considera-se manifestamente infundada”:

“a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não identificar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam, ou

d) Se os factos não constituírem crime.”

No caso sub judice o Tribunal recorrido entendeu rejeitar parcialmente a acusação deduzida pelo Ministério Público (nos termos do disposto no artigo 311º, n.ºs 1, 2 e 3, alínea d), do CPP), porquanto, na sua tese, a acção imputada “à arguida BB decompõe-se em dois segmentos, sendo o primeiro o da celebração (convencimento) de testamento por EE, que se refere genericamente padecer de incapacidade psíquica, em seu benefício (convencendo-o a apor impressão digital no testamento junto aos autos a fls. 4 e segs.), e o segundo, legitimado em tal ato, conducente à diminuição do ativo patrimonial deixado por óbito daquele, em prejuízo do único descendente.

Ora, em momento algum da acusação se descreve qual o meio de astúcia ou erro utilizado pela arguida para tal “convencimento”, nem tão pouco se refere qual o grau de proximidade ou conhecimento dos envolvidos, por forma a poder enquadrar uma tal ação.”

Vejamos:

Como se sabe, o tipo legal de crime de burla é descrito pelo art.º 217º, nº 1, do Cód. Penal nos termos seguintes: "quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido ...".

Assim, são elementos constitutivos do tipo legal em questão:

a) A intenção do agente de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo;

b) A indução astuciosa do ofendido, por parte do agente, em erro ou engano sobre factos, com o objectivo referido em a);

c) A determinação do ofendido, por esse modo, à prática de actos que causem a este ou a outra pessoa prejuízos patrimoniais.

Reportando-se à conduta típica e ao nexo de imputação objectiva que caracterizam a burla, escreve A. M. ALMEIDA COSTA (1) que a burla constitui «um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de "disponibilidade fáctica" do legítimo detentor dos mesmo ao tempo da infracção».

E prossegue, dizendo que, «por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento» (2). «Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios» (3).

Mas, para haver um crime de burla, «não basta (…) o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo» (4). «De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais» (5).

Deste modo, «tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial» (6).

Ademais, o cit. nº 1 do art.º 217º exige que o erro ou engano em que caiu o burlado tenha sido astuciosamente provocado pelo agente.

Ao adoptar esta formulação, o legislador penal afastou, sem dúvida, o pressuposto (exigido na vigência do art.º 451º, nº 3º, do Cód. Penal de 1886) da verificação de uma mise-en-scène como elemento do crime de burla (7). Para haver burla, deixou, portanto, de ser necessário que o agente pratique actos materiais tendentes a favorecer uma visão falsa ou deturpada da realidade, isto é, acompanhe a mentira da realização de actos exteriores destinados a dar-lhe maior credibilidade e, assim, de uma encenação dirigida a facilitar o convencimento do sujeito passivo.

Mas o requisito da astúcia tão pouco se reconduz ao recurso a uma “mentira qualificada” (8) – como pretendia BELEZA DOS SANTOS (in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 76º, pp. 276, 278, 295, 322 e 323). «Com efeito, no plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista» (9). «Por outro lado, a experiência de todos os dias revela que, longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de “economia de esforço”, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima» (10).

É, portanto, «numa tal adequação de meios – adequação essa que, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o “ponto óptimo” no menos sofisticado dos procedimentos - que radica, em suma, a inteligência ou astúcia que preside ao estereotipo social da burla e, sob pena de um divórcio perante as realidades da vida, tem de subjazer à fattispecie do nº 1 do art. 217º» (11).

Basta, pois, que o comportamento do agente seja convincente e hábil quanto baste para iludir o cuidado que, nesse domínio de actividade, é exigível e normalmente existe em cada um.

Alinhadas estas considerações de ordem geral, forçoso se torna concluir que, no caso sub judicio, não estão reunidos os mencionados elementos constitutivos do crime de burla.

Efectivamente, não se vislumbra, qual tenha sido a astúcia praticada pela arguida que tenha levado EE a, em erro, determinar-se à prática de actos que causaram prejuízos patrimoniais ao ofendido AA, filho único do falecido EE.

Como certeiramente notou o Tribunal recorrido “Ora, em momento algum da acusação se descreve qual o meio de astúcia ou erro utilizado pela arguida para tal “convencimento”, nem tão pouco se refere qual o grau de proximidade ou conhecimento dos envolvidos, por forma a poder enquadrar uma tal ação.

Ao invés, refere-se tão somente que a arguida convenceu EE a apor a impressão digital em testamento (realça-se outorgado por notária), e bem assim que, à data em que tal sucedeu, o testador se encontraria em situação de incapacidade psíquica, que nem tão pouco se identifica ou descreve.

Ora, na lógica segundo a qual o Direito Penal assume intervenção meramente subsidiária e residual, não podendo substituir-se aos regimes de intervenção civil, temos que:

- A ação, tal qual descrita (sem qualquer menção a facto de ardil ou erro criado), apenas se suportará no aproveitamento da condição de incapacidade da vítima (que também não se concretiza);

--Ora, para tal situação, versa o artigo 2199.º do Código Civil, sob a epígrafe “Incapacidade acidental” que “É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”;

- Existindo, pois, um meio próprio (ação do foro civil) apta a arguir e demonstrar tal invalidade (com prévia demonstração da situação de incapacidade);

- Por outro lado, a ação de eventual dissipação do património do falecido terá de aferir-se por reporte à legitimidade do título outorgal que o admite (o referido testamento), também ali não se descrevendo qualquer ardil ou erro com base no qual se possa, a final, e em plano de causalidade direta, extrair o prejuízo da vítima (neste caso já o herdeiro).”

De sorte que, no caso dos autos, poderá subsistir matéria a demandar em sede adequada, – o Direito prevê meios próprios, e que se situa num patamar bem distinto do patamar dos bens tutelados pelo direito penal –, mas não um ilícito de natureza penal.

É que – tal como se salientou no Ac. da Rel. de Lisboa de 18/5/2010, proferido no Processo nº 4324/06.5TASNT.L1 e relatado pela Desembargadora Filomena Lima – «Ao direito penal apenas interessa o círculo de lesão de interesses fundamentais da vida em sociedade, não sendo todos os comportamentos relapsos ou ilícitos são idóneos para integrar tal círculo de interesses.

O crime de burla tutela valores e interesses relativos ao património e não interesses obrigacionais e sendo, por vezes, muito ténue a fronteira entre uns e outros haverá que ter especial cuidado com a demarcação das respectivas áreas. (…)»

Eis por que, e sem necessidade de mais considerações, o despacho recorrido não merece censura.

B - Se deve ser admitido o Pedido de Indemnização Cível apresentado pelo demandante, seguindo-se os demais tramites processuais até final.

Sob a epígrafe Princípio de adesão, o art.º 71.º do C. Processo Penal, estabelece:

O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

É o chamado princípio da adesão obrigatória da acção civil ao processo penal que apenas sofre as excepções previstas na lei.

É que «Os factos que são objecto do processo criminal crime – art.º 1º, al. a) do CPP podem ser também fundamento de responsabilidade civil, enquanto lesem interesses susceptíveis de reparação patrimonial, nos termos da lei civil (art.º 129º do Código Penal)» (12). Por isso, «a prática de uma infracção criminal é possível fundamento de duas pretensões dirigidas contra os seus agentes: uma acção penal, para julgamento, e, em caso de condenação, aplicação das reacções criminais adequadas, e uma acção civil, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado causa» (13).

«Processualmente, são vários os sistemas aceites pelas diversas legislações para fazer valer a responsabilidade civil emergente de um crime, variando entre um sistema de identidade, em que não há qualquer discriminação processual, um sistema de absoluta independência, em que para cada um dos tipos de responsabilidade se seguem processos autónomos, ou um sistema de interdependência» (14). O Código de Processo Penal vigente adoptou este último sistema ao estatuir, no seu art.º 71º, que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei” (15).

De modo que «a acção civil corre em simultâneo com a penal e a final o tribunal há-de proferir decisão sobre a questão penal e sobre o pedido de indemnização civil» (16).

Porém, no caso sub judice como notou a decisão recorrida sendo o pedido de indemnização civil apresentado por AA, exclusivamente sedimentado no teor factual no qual assentava a imputação de crime de burla qualificada à arguida BB, a rejeição da acusação nesta parte, conduziu necessariamente à rejeição do referido pedido de indeminização civil por deixar de subsistir o princípio de adesão a que se alude no artigo 71º do CPP.

Eis por que o presente recurso irá improceder in totum.

DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo Demandante cível AA, mantendo-se na integra o despacho recorrido.

Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente Demandante cível AA em 4 (quatro) UCs.

Évora, 20 / 02 /2024

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1 In “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, 1999, pp. 292-293.

2 Ibidem.

3 Ibidem.

4 Ibidem.

5 Ibidem.

6 A. M. ALMEIDA COSTA, ibidem.

7 Cfr., neste sentido, A. M. ALMEIDA COSTA in ob. e vol. citt., p. 296.

8 «Nesta óptica, dir-se-ia que, na vida corrente, em particular no mundo dos negócios, não apenas existem múltiplas actividades que veiculam uma visão distorcida da realidade, sem que, por isso, devam considerar-se, de facto, enganosas (v.g., na órbita da publicidade comercial), mas sobretudo compete, em primeira linha, às pessoas adoptar as cautelas necessárias à defesa dos seus interesses» (A. M. ALMEIDA COSTA in ob. e vol. citt., p. 297). «Em conformidade, só na hipótese de o comportamento – pelo especial engenho ou astúcia que reveste – se mostrar susceptível de iludir o cuidado que, no sector em causa, normalmente se espera de cada um, se estaria perante uma situação merecedora de tutela jurídico-criminal» (ibidem).

9 A. M. ALMEIDA COSTA in ob. e vol. citt., p. 298.

10 A. M. ALMEIDA COSTA, ibidem.

11 A. M. ALMEIDA COSTA in ob. e vol. citt., p. 298.

12 GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, 4ª ed., 2000, p. 125.

13 MAIA GONÇALVES in “Código de Processo Penal Anotado e comentado”, 11ª ed., 1999, p. 216.

14 GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso…” cit., vol. cit., p. 127.

15 «Se for instaurado pedido de indemnização civil em separado, sem observância das condições estabelecidas pelo nº 1 do art. 72º do CPP vigente, a acção civil não pode prosseguir, por falta de um requisito de validade que se reflecte na competência do tribunal» (GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso…” cit., vol. cit., p. 131, in fine). «O tribunal é então materialmente incompetente e consequentemente o réu na acção civil deve ser absolvido da instância art. 288º, nº 1, al. a), do CPC» (GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso…” cit., vol. cit., pp. 131-132).

16 GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso…” cit., vol. III, 2ª ed., 2000, pp. 296 in fine e 297