Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
122/21.4GDPTM.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS ILÍCITAS
MEIOS DE PROVA
ADMISSIBILIDADE
EXCLUSÃO DA ILICITUDE
NÚCLEO DURO DA PRIVACIDADE
PROPORCIONALIDADE
ADEQUAÇÃO E NECESSIDADE
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. As gravações e fotografias obtidas por particulares constituem em geral prova documental. Sendo a sua admissibilidade e utilização como meios de prova reguladas no artigo 167.º, § 1.º CPP.
II. Torna-se necessário averiguar a licitude ou ilicitude da conduta que esteve na sua origem, uma vez que esta é assumida pelo legislador como uma condição essencial para se poder concluir sobre o juízo de valoração processual.

III. Deverá atentar-se nas normas penais que se lhes referem, nomeadamente aquelas cuja finalidade se prende com a proteção de direitos fundamentais relacionados com a personalidade humana, como a privacidade, a imagem ou a palavra.

IV. A verificação da justa causa, de molde a excluir a responsabilidade criminal do particular e admissão da utilização probatória do material, tem exatamente por foco o momento da obtenção - que não coincide com a sua utilização em processo penal.

V. A jurisprudência vem admitindo a sua utilização como meio de prova, se: a) o conteúdo das gravações ou fotografias não respeitar ao núcleo duro da vida privada dos visados; e b) exista uma justa causa para a sua obtenção.

VI. Esse «núcleo duro» da privacidade deverá abranger quer a intimidade quer a privacidade, embora no que a esta respeita, se entenda haver uma certa elasticidade quanto ao seu exato âmbito de proteção.

VII. Relativamente à compatibilização de interesses que haverá de ocorrer ao nível da prova, vem-se recorrendo à possibilidade de restrição de direitos, prevista no § 2.º do artigo 18.º da Constituição, resolvendo a favor da prevalência do direito à segurança ou dos interesses inerentes à exigência coletiva de uma justiça eficaz, com base em critérios de proporcionalidade, adequação e necessidade. Orientando estes o julgador na ponderação casuística, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, entre o direito à privacidade de um lado e a importância da prova face à gravidade do crime em causa, por forma a concluir sobre a sua admissibilidade ou inadmissibilidade.

VIII. A justa causa na obtenção das imagens haverá, pois, de ser alcançada através de um juízo de ponderação sobre os interesses conflituantes.

Preponderando nesse juízo as causas de exclusão da ilicitude, que poderão justificar o arredar da proibição da conduta do particular que obteve esses meios de prova sem consentimento.

Decisão Texto Integral: I – Relatório
a. No ….º Juízo (1) Local Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum, da competência do tribunal singular, de AA, nascida a …/…/1950, com os demais sinais dos autos, a quem foi imputada a autoria, na forma consumada, de cinco crimes de injúria, previstos no § 1.º do artigo 181.º do Código Penal (CP).

BB, constituída assistente deduziu também contra a arguida um pedido de indemnização civil pelo qual requereu a condenação da demandada a pagar-lhe 5 000€, a título de danos não patrimoniais causados.

A final o tribunal proferiu sentença, na qual absolveu a arguida da prática de dois crimes de injúria, previstos no artigo 181.º, § 1.º CP, mas condenando-a como autora de três crimes de injúria, previstos no artigo 181.º, § 1.º CP, cada um dos quais na pena de 75 dias de multa à razão diária de 5,50€, e operando o cúmulo jurídico das penas correspondentes aos referidos crimes em concurso, fixou a pena única em 200 dias de multa à razão diária de 5,50€. E julgando o pedido civil parcialmente procedente, mais a condenou a pagar à demandante, a titulo de danos não patrimoniais causados, a quantia de 2 250€ e juros moratórios contados da data da notificação para contestar.

b. Inconformada com essa decisão condenatória, dela recorreu a arguida, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (2):

«1. O objeto do presente recurso tem como toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos.

2. A Recorrente e Recorrida discordavam relativamente às janelas comuns do prédio, ao nível do terceiro andar, dado que, a Recorrida frequentemente as abria e a Recorrente imediatamente as fechava (artigo 2.º e 15.º, da sentença).

3. Nos termos da sentença, ora objeto de recurso, a Recorrente foi condenada como autora material, de três crimes de injúrias, p. e p. pelo artigo 181.º n.º 1 do CP.

4. O tribunal a quo considerou provado que: “Ao proferir as expressões referidas em 3., 5. e 9. supra, quis AA ofender a honra, nome, reputação e consideração devidas à assistente, o que logrou conseguir, enxovalhando-a e humilhando-a”(facto provado no artigo 14º).

5. Conforme se constata das alegações da Recorrente, a mesma nunca pretendeu humilhar de qual quer modo a Recorrida, agiu apenas de forma impulsiva e explosiva após as provocações efetuadas pela Recorrida nas 3 horas prévias, ao abrir constantemente as janelas após a Requerente as fechar.

6. Bem como, que a Requerente nada tinha contra a Recorrida, não existindo qualquer disputa entre as duas, sendo apenas o único conflito relacionado com a constante abertura das janelas comuns do prédio, por parte da Recorrida (conforme a declaração de CC, 14ª gravação, minuto 05:24).

7. Não podem, assim, restar dúvidas que, das declarações do ofendido, não é possível aferir tais factos.

8. Nesta conformidade, é evidente que das declarações da Recorrida, dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência e do acervo documental junto aos autos não resulta que: “ (…) quis AA ofender a honra, nome, reputação e consideração devidas à assistente, o que logrou conseguir, enxovalhando-a e humilhando-a”(facto provado no artigo 14º).

9. Assim, o tribunal a quo devia ter julgado como não provado o facto n.º 14, constante da sentença ora objeto de recurso.

10. Pelo que, consideramos, para efeitos da al. a), n.º3, do artigo 412.º do Código de Processo Penal (de ora em diante designado de CPP), que o mesmo foi incorretamente julgado.

11. Depois de uma análise substancial da prova produzida, constatamos que a Recorrente não deu a sua permissão à Recorrida para gravar a conversa de ambas.

12. Por conseguinte, o uso da aludida conversa como meio de prova não é lícito.

13. Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25.09.2013, Juiz Relatora Cacilda Sena, Processo n.º 559/12.0JACBR-A.C2:

“7. Nesse sentido, a determinação de uma medida de garantia patrimonial baseada em “reprodução de vozes públicas ou rumores públicos”, constitui método proibido de prova e, por conseguinte, ilegal e nulo, não podendo, ao abrigo do disposto no art.º 130.º do CPP, ser utilizadas.”

14. No que concerne ao meio de prova apresentado e tendo em atenção que o mesmo se demonstrou proibido, sendo utilizado como principal fundamentação da decisão, a sentença é então fundada em provas nulas. Sendo, a mesma consequentemente considerada como um ato inválido, da qual se coloca respetivamente as despesas devidas a cargo do recorrido, pois foi quem deu causa a esta nulidade, neste sentido dispõe os nos 1 e 2, do artigo 122.º do CPP.

15. Assinale-se ainda o pedido de suspensão provisória do processo, da qual necessita da verificação do preenchimento de diversos requisitos para a sua exequibilidade, conforme prevê o n.º1 do artigo 281.º do CPP.

16. Julga-se estarem cumpridos todos os requisitos para pedir a suspensão provisória do processo, ficando apenas em falta a concordância do Requerido quanto à mesma.

17. A Recorrente devidamente identificada vem recorrer da aludida sentença, por entender que a pena que lhe foi aplicada é manifestamente desproporcional e excessiva.

18. É de realçar que a Recorrente foi provocada pela Recorrida, pelo que não se justifica o grau de culpabilidade que lhe foi aplicada.

19. A Recorrente é primária, não registando quaisquer antecedentes criminais.

20. Nessa medida e apenas no que concerne ao quantum da pena aplicada pelo Tribunal a quo à Recorrente, houve, salvo o devido respeito, violação do disposto no artigo 71.º do CP.

21. É de entendimento, que o Tribunal deverá condenar a Recorrente numa pena mais harmoniosa, proporcional e justa face às circunstâncias acima expostas, de acordo com o disposto no artigo 71.º do CP, não devendo compreender uma compensação monetária muito elevada, pois a Recorrente não detém muitas posses financeiras.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e revogar a aliás douta sentença que condenou a recorrente no pagamento de 1 100€ suspenso na sua execução, por ser desproporcional às finalidades da punição e ser aplicada à recorrente e suspensa na sua execução no tempo que V. Ex.ªs acharem ser conveniente.»

c. Admitido o recurso a assistente respondeu pugnando pela improcedência, concluindo do seguinte modo:

1. Ao contrário do alegado pela recorrente a mesma não exerce um forte juízo de censura do seu comportamento, mas tenta sim desculpabilizar-se com alegações de que foi provocada pela recorrida, o que não oferece qualquer credibilidade, nem resulta provado.

2. Os factos provados do artigo 9 da douta sentença, foram ouvidos por vizinhos.

3. Foram três os crimes de injurias dados como provados e perpetrados em alturas diferentes, o que foi provado também pela prova testemunhal prestada em audiência de julgamento, completamente credível e isenta, que não ofereceu duvidas à Meritíssima Juiz.

4. A recorrente não pede a absolvição da recorrente, mas a diminuição da pena de multa aplicada, o que de todo não se concorda tendo em conta todas as circunstâncias envolventes dos crimes sido devidamente ponderadas conforme dispõe o artigo 71.º, n.º1 do C. P. , pelo o que, deve a pena aplicada ser mantida.

5. No caso dos autos, atentas as exigências decorrentes do critério da culpa, justifica-se a aplicação à arguida uma pena de multa nos moldes em que o foi.

6. Não se entende a referência que a recorrente faz á suspensão provisória do processo, pois que a mesma é completamente extemporânea.

7. Com o devido respeito também não faz sentido o pedido de suspensão da pena de multa.

8. A arguida não demonstrou ter qualquer problema de saúde que a impeça de prestar trabalho comunitário, caso não tivesse possibilidades de pagar a multa.

9. Ao decidir como decidiu, a M.ma Juiz “ a quo “ fez correcta aplicação dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal na determinação da medida da pena e todas as circunstancias que permitiram preencher os elementos objectivos e subjectivos dos crimes pelos quais foi condenada a arguida.

Pelo exposto, pugna-se pela improcedência absoluta do recurso interposto.»

d. Também o Ministério Público respondeu pugnando pela improcedência do recurso, concluindo que:

«1. O Tribunal a quo fundamentou adequadamente os factos que julgou provados na decisão de facto.

2. Com efeito, na sentença recorrida o tribunal a quo referiu, especificamente, os elementos de prova em que se baseou para a factualidade provada e enunciada em todos os pontos, dando especial relevância à credibilidade que os depoimentos da assistente e do seu filho, mereceram ao Tribunal, em detrimento das declarações da arguida.

3. Em discordância com o Recorrente, consideramos que a fundamentação factual constante da sentença recorrida. resulta, face á prova devidamente submetida a contraditório, serem seguros os factos dados como provados, incluindo no ponto 14.

4. A assistente, ao ter gravado conversas que a arguida teve consigo, atuou, pelo menos, em Estado de Necessidade (artigo 34.° do Código Penal), não sendo, desta forma, ilícito o facto por si praticado.

5. E ao não ter praticado um facto ilícito, a gravação pode e deve valer como meio (legítimo) de prova, nos termos do disposto no artigo 167.° do Código de Processo Penal.

6. De harmonia com o disposto nos artigos 167.° do Código de Processo Penal e 34.° e 199.° do Código Penal, andou bem o Tribunal “a quo” em tomar como válidas as gravações das conversações em causa, e que serviram para formar a sua convicção.

7. No que toca ao quantum das penas de multa, aplicadas por cada um dos 3 crimes de injúria, considerando os factos apurados, a culpa elevada da arguida e as exigências de prevenção geral (elevadas) e especial (reduzidas), compreende-se que estamos perante um caso que justifica a fixação da pena concreta de cada um dos crimes, em valor um pouco acima do seu ponto intermédio.

8. Afigurando-se-nos justa, adequada e proporcional a pena de 75 dias de multa, aplicada por cada um dos aludidos crimes.

9. Ora, considerando os factos provados e a ausência de antecedentes criminais da arguida, também afigura-se-nos justa, adequada e proporcional a pena única de 200 dias de multa, aplicada à arguida, pela prática dos referidos crimes de injúria.

Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao recurso.»

e. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu parecer secundando a posição já assumida na primeira instância.

e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi exercido o direito de resposta.

No exame preliminar o relator ordenou que os autos fossem aos vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (3).

De tal preceito resulta que a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

Neste contexto constatamos serem as seguintes as questões que cumpre apreciar e sobre as quais importa decidir: i) Erro de julgamento da questão de facto relativamente ao facto provado 14.º e nulidade da prova; ii) Erro de julgamento da questão de direito (pena é excessiva); iii. Suspensão provisória do processo.

B. O tribunal recorrido considerou provado o seguinte quadro factológico:

«1. Em 2021, BB e AA eram vizinhas, residindo, ambas, no 3º andar do prédio sito na Rua … - Bairro …, Lote …, no ….

2. Embora nunca tivessem discutido o assunto, assistente e arguida não estavam de acordo relativamente às janelas comuns do prédio, sendo que a assistente frequentemente as abria e a arguida imediatamente as fechava.

3. A 23.02.2021, no período compreendido entre as 15:00 e as 16:00, quando BB saía do seu apartamento, no 3° Esq., para ir estender roupa ao terraço e AA subia as escadas até ao patamar do 3º andar, esta, sem motivo aparente, dirigiu-se-lhe, em tom de voz elevado, dizendo "grande mula”, “vaca”, “cabra” e “puta" deixando a assistente sem reação.

4. As expressões proferidas foram ouvidas por DD, filho da assistente, que estava em casa a ter aulas online e, nesse momento, ia a passar no hall de entrada.

5. No dia 24.02.2021, cerca das 08:30, quando a assistente saia de casa para o trabalho, apercebeu-se que a arguida abriu a porta do seu apartamento, gritando "tu abres, eu fecho”, “grande vaca”, “grande besta” e “cabra".

6. Tais expressões foram proferidas em voz alta, sendo os gritos ouvidos por DD, que acordou sobressaltado.

7. No dia 25.02.2021, após as 15:00 depois de ter saído de casa, a assistente recebeu um telefonema do filho DD, informando-a que a arguida se havia colocado em frente à porta do seu apartamento, gritando "puta”, “vaca” e “cabra".

8. Tendo optado por regressar de imediato a casa, ao subir as escadas, a assistente pediu à vizinha do 1.° dto., EE, para ficar atenta caso acontecesse alguma coisa, enquanto ia a casa tranquilizar os filhos.

9. Quando a assistente descia novamente as escadas, a arguida, em tom de voz elevado, dirigiu-se-lhe com as expressões “puta”, "queres tourada, vais ter tourada”, “tu fechas e eu abro”, “ranhosa de merda”, “estupida”, “olha eu não gosto de mulheres”, “lésbica” e “puta".

10. As expressões proferidas foram ouvidas por DD e pelos vizinhos EE, FF e GG.

11. Nessa sequência, a assistente e os filhos passaram a recear permanecer na sua casa, o que lhes causou ansiedade, nomeadamente na gestão das suas rotinas diárias.

12. No dia 08.05.2021, pelas 21:00, realizou-se uma Assembleia de Condóminos no 2° andar dto., propriedade de HH e II, encontrando-se presentes estes, a assistente, a sua mãe JJ, KK e EE (1.° Dto), GG (1° Esq.), LL e MM (r/c dto.) e a arguida.

13. A assistente aproveitou a oportunidade para fazer alusão às injurias de que tinha sido alvo, exibindo um ficheiro de vídeo de uma gravação que fez dos factos descritos em 9. supra.

14. Ao proferir as expressões referidas em 3., 5. e 9. supra, quis AA ofender a honra, nome, reputação e consideração devidas à assistente, o que logrou conseguir, enxovalhando-a e humilhando-a.

15. As condutas da arguida acima descritas foram motivadas pela abertura das janelas comuns do prédio, ao nível do terceiro andar, pela assistente.

16. A arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de vexar e de atingir a assistente na sua honra, consideração e bom nome, o que conseguiu, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com tal avaliação.

*

Mais se provou, relativamente ao pedido de indemnização civil, que:

17. As condutas da arguida foram entendidas pela assistente como uma falta de respeito e humilhação, perturbando o seu equilíbrio emocional e causando-lhe tristeza, até por sentir também o efeito perturbador que toda esta situação teve nos seus filhos.

18. A partir de 25.02.2021, como a assistente tinha que sair todos os dias para trabalhar, para que ela e os seus filhos se sentissem mais tranquilos, pediu à mãe para ficar a residir na sua casa.

19. Pediu, igualmente, à mãe que a acompanhasse quando saia de casa, receando encontrar a arguida e ser novamente ofendida e importunada.

20. A partir de 04.04.2021, data em que os filhos iniciaram as aulas presenciais, após confinamento, a assistente, percebendo a perturbação dos menores e vivendo em constante sobressalto, optou por ir viver, com estes, para casa da sua mãe.

21. Alterando os seus hábitos de vida e mudando, inclusivamente, de residência.

22. Após os factos, a assistente colocou a sua residência à venda.

23. Toda esta situação desgastou a assistente, motivou-lhe ansiedade e entristeceu-a, perturbando grandemente o seu bem-estar psicológico e provocando-lhe dificuldades em dormir.

24. A assistente é pessoa calma e que não gosta de confusões, tendo-se sentido gravemente ofendida na sua honra e consideração, envergonhada perante familiares e vizinhos, vexada e humilhada.

*

Provou-se, ainda, relativamente à situação pessoal da arguida, com relevo para a determinação da pena a aplicar, que:

25. É reformada e aufere, mensalmente, cerca de 460€, a título de reforma.

26. Reside sozinha, em casa própria.

27. Suporta as despesas normais do agregado familiar.

28. Estudou até ao 7.º ano de escolaridade.

29. Não regista antecedentes criminais.»

B.1 E motivou a sua convicção nos seguintes termos:

«O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base na análise critica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade, dispensando-se a descrição pormenorizada dos depoimentos prestados uma vez que a prova se encontra devidamente registada em suporte magnético.

Valorou, desde logo, as declarações prestadas por AA e BB, assim como os depoimentos das testemunhas NN, EE, II, HH, GG, FF, todos à data vizinhos da assistente e arguida, DD e JJ, filho e mãe da assistente, respetivamente.

Assim,

A prova do facto constante do art. 1. supra, resultou, unanimemente, da prova produzida em audiência de julgamento.

A existência de um diferendo entre arguida e assistente, relacionado com as janelas comuns do edifício (art. 2. supra) também não sofreu qualquer contestação, sendo confirmado por estas e pelas testemunhas EE e GG. De salientar que ambas as envolvidas acabaram por reconhecer nunca terem sequer conversado sobre o assunto ou exposto, uma à outra, os seus pontos de vista e as razões que motivavam, naquela altura do ano, a abertura ou o fecho das janelas – explicando, em audiência, AA que chovia no interior do prédio e que a porta do seu apartamento inchava ao ponto de não a conseguir abrir, razão pela qual fechava sempre as janelas, e BB que, estando em confinamento, abria as janelas para circular o ar e evitar cheiros, a comida e a tabaco, no interior do edifício, que subiam ao 3º andar, evidenciando ser bastante sensível aos mesmos. Também resultou para nós assente que nem uma, nem outra alterou o seu comportamento, continuando, incessantemente, a abrir e fechar as janelas, independentemente das situações de confronto verificadas.

A prova produzida levou a que o Tribunal desse como provado o facto carreado para o art. 15. supra.

No que se reporta aos factos vertidos para os arts. 3. a 8. dos factos provados supra, considerou o Tribunal as declarações prestadas pela arguida e pela assistente e o depoimento de DD.

Enquanto a arguida negou veementemente os factos – garantindo nunca ter proferido qualquer das expressões que lhe são imputadas, nunca ter discutido com a assistente e nunca, sequer, lhe ter falado –, fazendo-o de uma forma fria e distante, a assistente e o filho atestaram a factualidade constante da acusação particular e que se deu, praticamente na íntegra, por reproduzida nos factos provados supra.

No confronto entre as duas versões, absolutamente contraditórias entre si, mereceram-nos maior credibilidade as prestadas por BB e DD. Depuseram ambos com rigor, frontalidade e emotividade, parecendo-nos francamente genuínos.

Foi, aliás, evidente para a signatária o estado de perturbação DD ao relatar os acontecimentos ocorridos há pouco mais de 2 anos e que presenciou/ouviu, não sendo, de modo algum esse estado de espirito passível de ser fingido, parecendo-nos ser uma pessoa bastante sensível. Referiu, inclusivamente, o jovem, que, a seu ver, a situação poderia, a qualquer momento escalar para a violência, o que deveras receava. Por si e pela progenitora, de quem manifestou nutrir a maior admiração e afeto. Mais salientou viver em sobressalto e não se conseguir concentrar nos estudos, manifestando à mãe a sua vontade em abandonar aquela residência, sendo para si percetível que a situação afetava psicologicamente a assistente, de forma significativa, embora esta fizesse para não se queixar e para não os preocupar – JJ confirmou o “desespero” do neto.

Não ficámos, pois, com quaisquer dúvidas no sentido de os factos se terem verificado nos exatos termos descritos pela assistente e por DD.

Daí, igualmente, a prova do facto que se deixou consignado no art. 11. dos factos provados.

Já o facto descrito no art. 9. supra, para além de atestado pela assistente, acabou, a final, por ser confessado pela própria arguida.

Com efeito, AA começou por negar, de forma efusiva, todos os factos que lhe eram imputados, refutando alguma vez ter proferido qualquer das expressões injuriosas descritas na acusação, nada tendo, inclusivamente, a ver com uma gravação apresentada pela assistente na Assembleia de Condóminos em que participaram quase todos os condóminos – art. 13. – e cujo teor disse desconhecer em absoluto. Mais alegou que a assistente “pelos vistos quer dinheiro”, não percebendo o motivo para a acusação de que foi alvo.

Mencionou, bem assim, ser doente cardíaca e não se poder enervar, sendo que a assistente “implicava consigo” – nada concretizando, no entanto, quanto a tais “implicações” ou “provocações”, que ficam, evidentemente, por esclarecer, nem resultando dos autos que alguma vez tenha tido motivos para apresentar queixa contra BB.

Sucede que, confrontada com a audição, em audiência, do CD contendo a dita gravação dos factos ocorridos na tarde do dia 25.02.2021 efetuada no telemóvel da assistente, e na qual é perfeitamente audível a sua voz, a arguida alterou, substancialmente, o discurso inicialmente apresentado, admitindo terem sido tais palavras por si proferidas e ter sido este, afinal, o ficheiro áudio/vídeo exibido na Assembleia de Condóminos a que se refere o art. 13. dos factos provados – a subida alteração da postura evidenciada pela arguida foi determinante para o Tribunal avaliar a sua falta da sinceridade e para confirmar a nossa forte convicção relativamente à ausência de veracidade do demais por si declarado.

Ressalvou, contudo, a arguida que a assistente tinha efetuado a gravação “três horas depois de a provocar”, altura em que “se descontrolou” – mais uma vez não esclarecendo a que “provocações” se referia e que atitudes, em concreto, teve a assistente que a levaram a tal “descontrolo” –, garantindo ter sido a única vez que falou, “não aguentando os nervos”.

A arguida foi, como resulta do que se acabou de referir, sempre bastante vaga no seu discurso, sem qualquer sustentação em qualquer outro meio de prova.

DD, EE, FF e GG confirmaram ter ouvido as expressões proferidas pela arguida no interior do prédio onde todos residiam, embora este ultimo não tenha evidenciado recordação das concretas palavras ouvidas, sabendo apenas que a vizinha gritava – permitindo, assim, a prova do facto plasmado no art. 10. supra.

EE, confrontada com o vídeo constante dos autos, asseverou terem sido essas as palavras que ouviu a arguida dirigir à assistente.

A realização de uma Assembleia de Condóminos no edifício e os participantes na mesma mostra-se pacifica, sendo confirmada por todos os condóminos inquiridos em audiência e, bem assim por AA, BB e JJ (art. 12. supra).

Todas as testemunhas atestaram que a assistente aproveitou a presença da maioria dos vizinhos em tal reunião para denunciar a arguida e para exibir um ficheiro de vídeo de uma gravação que havia realizado, alegadamente demonstrativa da veracidade das acusações ali expendidas (art. 13. supra), embora a maioria tenha alegado não ter, no momento, apreendido o teor da gravação, por não ser esta percetível.

Por entenderem que o assunto não era adequado a ser levado a uma assembleia de condóminos, NN, II, GG e HH desvalorizaram a situação, salientando este último não ter admitido discussões na sua casa.

De realçar, bem assim, que nenhum dos condóminos inquiridos corroborou o declarado pela assistente e pela sua progenitora, relativamente às alegadas palavras injuriosas proferidas pela arguida nessa mesma assembleia de condóminos, na sequência da exibição do aludido vídeo.

II limitou-se a dizer que a arguida “acusou-se” e “começou a barafustar” com a assistente, altura em que o marido interveio e acalmou a situação, reiterando não ser aquele o objeto da assembleia, sendo que GG mencionou ter-se admirado que a arguida não se tenha defendido cabalmente das acusações de que foi alvo em plena assembleia. Já HH referiu que “começaram a discutir”, embora não saiba reproduzir o que foi dito e NN disse que no decurso da assembleia “ninguém se ofendeu”, embora a arguida se tenha sentido rebaixada com a situação.

A arguida admitiu apenas ter dito, perante todos os presentes na Assembleia “que era mentira”, garantindo-lhes “nada ter a ver com a gravação” exibida, o que foi corroborado por EE, adiantando esta, todavia, que naquela situação, tanto a arguida como a assistente “falaram alto” uma com a outra.

Considerando que nenhum dos condóminos inquiridos revelou qualquer tipo de animosidade, quer para com a arguida, como para com a assistente, afigurando-se-nos todos como credíveis – de notar que tanto EE como GG atestaram outros factos por si presenciados, confirmando a versão da assistente –, neste concreto ponto ficou, pois, o Tribunal com sérias e pertinentes dúvidas.

Existindo dúvidas no espirito do julgador relativamente à factualidade imputada à arguida no dia 08.05.2021 – que se desconhece se efetivamente se verificou –, deverão as mesmas, como é sabido ser resolvidas a favor desta, em obediência ao princípio constitucionalmente consagrado do in dubio pro reo, o que no caso dos autos se impõe, motivo pelo qual se deu como não provado o facto transcrito para o art. 30. supra.

Por ultimo, no que respeita à factualidade vertida para os arts. 17. a 24. dos factos provados supra, foram determinantes, quer as declarações prestadas pela assistente – de forma serena, mas transparecendo um turbilhão de sentimentos –, como os depoimentos de DD – este, como mencionado supra, extremamente genuíno e emotivo – e JJ, da conjugação dos quais foi possível ao Tribunal atestar as repercussões que as condutas da arguida assumiram na vida de BB e dos seus familiares diretos, quer ao nível psicológico, como a alteração das suas rotinas e a decisão de venda imediata do apartamento – venda esta que foi bem assim confirmada pela arguida, por EE, II e GG.

Também EE se reportou às características da personalidade da assistente (art. 24. supra) e acabou por mencionar que BB há muito falava em mudar de casa, o que foi confirmado por JJ, embora esta assegurasse que a decisão se precipitou com os factos objeto dos autos.

A presença assídua da mãe da assistente no prédio foi confirmada, igualmente, pela arguida e por II.

*

A prova da ausência de antecedentes criminais da arguida resulta do certificado do registo criminal constante de fls. 230.

Os factos referentes à situação pessoal e económica da arguida resulta das declarações pela mesma prestadas em audiência de julgamento.»

C. Apreciando

C.1 Erro de julgamento da questão de facto

Considera a recorrente que não foi feita prova do facto julgado provado no ponto 14.º da sentença. Isto é, que se não provou que: «ao proferir as expressões referidas em 3., 5. e 9. supra, quis AA ofender a honra, nome, reputação e consideração devidas à assistente, o que logrou conseguir, enxovalhando-a e humilhando-a.» Sucede que o mesmo facto é também afirmado no ponto 16.º da factualidade julgada provada. Referem-se esses dois pontos da afirmação factológica às intenções, vontades, conhecimentos e representações mentais da arguida na ocasião da prática dos factos afirmados nos pontos 3., 5. e 9., os quais, porque do foro psíquico do sujeito, não são realidades palpáveis, sensitivamente percetíveis, hipostasiáveis. Sendo insuscetíveis de prova direta. Assim, com ressalva do caso das declarações provenientes do próprio «autor» relativas a tal facto psíquico, a única forma de os determinar consiste em utilizar técnicas de reconstrução indireta. «A maior parte das vezes os atos interiores não se provam diretamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores» (4). Como é bom de ver, os habituais meios de prova permitem apenas conhecer os factos materiais, a partir dos quais se pode seguramente inferir que um determinado sujeito tem uma determinada vontade, o conhecimento de algum facto, uma determinada atitude valorativa. (5) Com efeito, na passagem desses factos conhecidos para a aquisição do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação e inferência através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade (próxima da certeza) – portanto para além de toda a dúvida razoável -, de um facto conhecido. E foi desse modo que se demonstrou a factualidade respeitante às intenções que estavam no foro interno da recorrente quando praticou os factos objetivos que (também) ficaram provados. Sendo por isso evidente a sem razão da recorrente.

Mais alega esta a inadmissibilidade/nulidade (!) de meio de prova reproduzido em audiência, referindo-se concretamente a uma gravação que a ofendida fez de uma conversa existente entre ambas, na escada do prédio em que ambas habitavam (de que ambas eram condóminos), no dia 25 de fevereiro de 2021. Sustenta a recorrente que por não ter dado permissão à recorrida para gravar a conversa entre ambas, essa gravação foi ilícita e nessa medida inutilizável como meio de prova. Sobre esta questão se pronunciaram a assistente e o Ministério Público, dizendo aquela, citando a sentença, que as testemunhas DD, EE, FF e GG confirmaram ter ouvido as expressões (que consta da aludida gravação) que foram proferidas pela arguida no interior do prédio onde todos residiam, embora este último não tenha evidenciado recordação das concretas palavras ouvidas, referindo lembrar-se apenas que uma vizinha gritava. A mais disso, a gravação nada que ver com o conceito de vozes públicas a que alude a recorrente (e a jurisprudência que indica)! O Ministério Público, por seu turno, refere que ao ter gravado conversas que a arguida teve consigo, a assistente atuou, pelo menos, em estado de necessidade, pelo que essa gravação não é ilícita e nessa medida podia ser utilizada como meio de prova (artigo 167.º CPP), como veio a ser. A questão da gravação de conversas privadas sem autorização dos participantes é, em geral ilícita e, a mais disso, inutilizável como meio de prova. Quer-se dizer, a gravação é ilícita por constituir o seu agente em autor de um crime previsto nos artigos 192.º (devassa da vida privada) ou 199.º CP (gravações e fotografias ilícitas). Sendo por isso inadmissível a sua produção ou utilização e valoração desse registo (vídeo, áudio ou outro). A licitude da gravação decorrente do exercício do direito de necessidade, tal como posta pelo Ministério Público, pode resolver (ou não) a questão da reprodução e utilização como meio de prova da gravação assim obtida.

Nesta matéria refere Paulo Dá Mesquita (6) que «no processo penal português, a verdade do processo não é estritamente marcada por um a priori traçado pelo acontecimento histórico objeto dos enunciados factuais do processo. Pelo que, o material probatório não é selecionado e utilizável exclusivamente em função do seu valor gnoseológico, existindo vias com potencial epistémico que são recusadas e material informativo disponível que não pode ser utilizado por outro motivo. (…). Ou seja, admite-se que a verdade material do processo seja distinta da realidade passada dos eventos do mundo exterior supostamente reconstruídos pelo processo, «a verdade material obtida há de, no entanto, corresponder a uma verdade processualmente válida».

Ainda que estando justificada penalmente a conduta do agente, não cremos ser de excluir a eventual ponderação de violação de normas constitucionais ou processuais penais de proibição de valoração de prova que possam ser aplicáveis a particulares. Isto é, não podemos assentar numa equivalência direta, necessária e automática entre a licitude da conduta (por via da justificação) e a sua admissibilidade como prova em processo penal.

Efetivamente, as gravações e fotografias obtidas por particulares são levadas à categoria de prova documental, sendo nessa sede que deverá buscar-se a sua regulamentação processual. Nomeadamente, nos termos do artigo 170.º CPP, deve admitir-se a possibilidade de contestar a sua autenticidade em juízo.

O artigo 167.º, § 1.º CPP é a norma base que regula a admissibilidade de utilização destes meios de prova. Dele emergindo a necessidade de recurso a normas penais para se averiguar da licitude ou ilicitude da conduta, uma vez que esta é assumida pelo legislador como uma condição essencial para se poder concluir sobre o juízo de valoração processual.

Nesse contexto devendo considerar-se todas as normas penais cuja finalidade se prenda com a proteção de direitos fundamentais relacionados com a personalidade humana, nomeadamente a privacidade, a imagem ou a palavra.

Mas a ponderação a efetuar não se cinge aos parâmetros genericamente indicados naquele artigo 167.º, § 1.º CPP. Admitindo a jurisprudência a sua utilização como meio de prova, se:

a) o conteúdo das gravações ou fotografias não respeitar ao núcleo duro da vida privada dos visados; e

b) exista uma justa causa para a sua obtenção.

Esse «núcleo duro» da privacidade deverá abranger quer a intimidade quer a privacidade, embora no que a esta diz respeito, se entenda haver uma certa elasticidade quanto ao seu exato âmbito de proteção.

Já a justa causa na obtenção das imagens haverá de ser alcançada através de um juízo de ponderação sobre os interesses conflituantes.

Nesse juízo preponderam as causas de exclusão da ilicitude, para justificar o arredo da proibição da conduta do particular que obteve a prova sem consentimento.

Os requisitos da legítima defesa ou do direito de necessidade nem sempre são facilmente mobilizáveis. Nomeadamente, no que àquela respeita, quanto à atualidade da agressão ou à impossibilidade de recorrer em tempo útil às autoridades públicas.

Sendo que a verificação da justa causa, por forma a excluir a responsabilidade criminal do particular e admitir a utilização probatória do material, tem exatamente por foco o momento da obtenção - que não coincide com a sua utilização em processo penal.

No respeitante à compatibilização de interesses que haverá de ocorrer ao nível da prova, a jurisprudência vem recorrendo à possibilidade de restrição de direitos, prevista no § 2.º do artigo 18.º da Constituição, resolvendo a favor da prevalência do direito à segurança ou dos interesses inerentes à exigência coletiva de uma justiça eficaz (7), com base em critérios de proporcionalidade, adequação e necessidade. (8) Orientando estes o julgador na ponderação casuística, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, entre o direito à privacidade de um lado e a importância da prova face à gravidade do crime em causa, por forma a concluir sobre a sua admissibilidade ou inadmissibilidade.

No caso sub judice, dadas as singularidades em que ocorreu a gravação em causa, temos por seguro que o conteúdo daquela não só não respeita ao núcleo duro da vida privada da visada (da arguida); como se apresenta evidente a justa causa da sua obtenção, posto que no exercício do direito de necessidade probatória. Isto é, como meio essencial (necessário) para a vítima poder demonstrar a conduta ilícita da arguida (9). Isto é, por imperativo de justiça.

Circunstancialmente estas considerações mostram-se de certo modo irrelevantes para o juízo probatório da causa, uma vez que, como visto, mesmo na ausência daquele meio de prova (o qual até acabou por levar a arguida à confissão do facto 9.º), esse mesmo facto (9.º) sempre se provaria, através da valoração conjugada das declarações da ofendida/assistente com as que foram credivelmente prestadas pelas testemunhas DD, EE, FF e GG (cf. motivação da decisão de facto). Mas no momento em que ocorreu a gravação a assistente não tem consciência da existência ou robustez dessa prova.

De toda a sorte, a utilização da referida gravação na audiência de julgamento, não sendo ilícita (como visto) por via do direito de necessidade (10), poderia nas circunstâncias da própria audiência até ter sido dispensada.

No que realmente releva, id est, no final das contas: não há qualquer invalidade que careça de ser declarada.

Não havendo sinal nos factos provados de qualquer provocação da arguida por banda da ofendida. Sendo por isso manifestamente infundada a afirmação que neste sentido a recorrente verteu nas suas alegações!

C.2 Erro de julgamento da questão de direito (pena excessiva)

A recorrente considera a medida da pena de multa excessiva, por em seu entendimento ter ocorrido violação do disposto no artigo 71.º do CP, sem concretizar de que modo considera violado o citado comando normativo!

A omissão da indicação pela recorrente do sentido em que a norma invocada deveria ter sido interpretada, sustentando a conclusão manifestada (pena é excessiva) leva-nos a crer que nenhuma encontrou, relegando para este Tribunal essa tarefa. Sucede que esse é um ónus que indubitavelmente lhe cabe (artigo 412.º, § 2.º, al. b) CPP).

Pois bem.

Também neste conspecto, relativo à justiça da medida da pena, os recursos constituem remédios jurídicos. Não constituindo uma oportunidade para o Tribunal da Relação fazer um novo juízo sobre a decisão de primeira instância ou a este se substituir. Sendo antes - e apenas - um meio de corrigir o que de menos próprio foi decidido pelo tribunal a quo.

Melhor dizendo: o Tribunal da Relação só deverá interferir na pena fixada, alterando-a, «quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da pena, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Assim, o recurso não visa, nem pretende aqui, eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de 1.ª instância enquanto componente individual do ato de julgar. A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.» (11) O que constatamos é que a sentença recorrida evidencia uma correta compreensão do quadro legal punitivo e, no campo da fixação da medida da pena, realiza uma ponderação e uma valoração assertivas das circunstâncias apuradas (artigo 72.º CP), respeitando os impostergáveis parâmetros relativos às exigências de prevenção geral e às necessidades de prevenção especial (artigo 40.º CP). Não se evidenciando razão para alterar o decidido, nomeadamente quanto às medidas fixada às penas parcelares e única da multa aplicada, nem ao seu quantitativo diário. Sendo que a requerida suspensão da execução da pena de multa carece em absoluto de sustentação legal! Com efeito o princípio da legalidade criminal, expresso na conhecida máxima nullum crimem, nulla poena sine lege, que traduzindo os princípios liberal, democrático e da separação dos poderes, previsto desde logo e expressamente no artigo 29.º, § 3.º da Constituição, expressa não poder haver crime nem pena que não resulte de uma lei prévia, escrita, estrita e certa.

C.3 Suspensão provisória do processo

De modo assaz insólito a recorrente faz alusão a um «pedido de suspensão provisória do processo», afirmando «estarem cumpridos todos os requisitos (…) ficando apenas em falta a concordância do requerido quanto à mesma»! Daí que na sua resposta a assistente, com total acerto, refira não entender «a referência que a recorrente faz á suspensão provisória do processo, pois que a mesma é completamente extemporânea.» Com efeito a suspensão provisória do processo, instituto processual previsto nos artigos 281.º, 282.º CPP (que pode também ser requerido no âmbito do processo sumário – artigo 384.º CPP; ou ser fundamento da abertura de instrução), é um mecanismo de caráter adjetivo, assente no consenso, visando a diversão processual, gizando evitar a acusação, mediante a aplicação de injunções e regras de conduta em casos de pequena ou média criminalidade. Sendo mobilizável antes da acusação; ou depois dela como fundamento da instrução; ou na fase inicial do processo sumário (12). Mas sendo formulada e consolidada a acusação, como sucedeu no presente caso, fica depois dela arredada a mobilização de tal instituto.

Sendo manifestamente desajustada a sua invocação nesta fase de recurso!

Termos em que concluímos não ser o recurso merecedor de provimento.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a douta sentença recorrida.

b) Custas pela arguida/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigo 513.º, § 1.º e 3.º do CPP e artigo 8.º Reg. Custas Processuais e sua Tabela III).

Évora, 5 de março de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Nuno Garcia

Artur Vargues

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 E só as «conclusões» conexas com a motivação apresentada, pois estas são um resumo daquelas, não podendo por isso excedê-las (como estranhamente sucede!).

3 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

4 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1999, pp. 101

5 Michele Taruffo, Simplemente la Verdad – El juez y la constuccion de los hechos, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2010, p. 267.. Em sentido semelhante, e no específico âmbito criminal cf. o Acórdão da Relação de Évora de 8mai2012, no proc. 139/09.7GAABF.E1, relatado por António João Latas, disponível in www.dgsi.pt .

6 A prova do crime e o que se disse antes do julgamento. Estudo sobre a prova no processo penal português, à luz do sistema norte-americano, 2011, Coimbra Editora, p. 266.

7 Jorge de Figueiredo Dias, Para uma Reforma Global do Processo Penal Português, in Para uma Nova Justiça Penal, 1983, Almedina, p. 206.

8 Vejam-se neste sentido as referências jurisprudenciais selecionadas por Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 3.º ed., 2021, Almedina, pp. 552-554; também Milene Viegas Martins, A admissibilidade de valoração de imagens captadas por particulares como prova no processo penal, 2014, AAFDL, pp. 107 ss. E Margarida Sousa Martins, Da Admissibilidade das Gravações e Fotografias Recolhidas por Particulares como Meios de Prova em Processo Penal, 2022, pp.70/76.

9 Este sentido expressa-se, inter alia, no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 29mar2016, proc. 558/13.4GBLLE.E1, Desemb. António Latas.

10 A ofendida não sabia – ou pelo menos não tinha a certeza – de que os outros vizinhos estavam a ouvir o que se passava.

11 Acórdão TRÉvora, de 22/4/2014, proc. n.º 291/13.7GEPTM.E1, Desemb. Ana Barata Brito. No msmo sentido cf. acórdãos TRÉvora, de 29/5/2012, proc. 72/11.2PTFAR.E1, Desemb. António João Latas; e acórdão TRÉvora, de 16/6/2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1, Desemb. Clemente Lima, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

12 Sobre a natureza jurídica da suspensão provisória do processo pode ver-se, por todos, Fernando Torrão, A Relevância Politico-Criminal da Suspensão Provisória do Processo, 2000, almedina, pp. 233 ss.; ver quanto à possibilidade de ser fundamento de abertura de instrução, tb. por todos, Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2.ª ed, 2022, Almedina, pp. 1251/1252.