Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
177/14.8TBSTB.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
REQUISITOS
CUMPRIMENTO
NEGLIGÊNCIA GRAVE
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - a exoneração do passivo restante permite que o Devedor se liberte de dívidas e se possa reabilitar economicamente, benefício que só é concedido ao Devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé;
- o Devedor que infringe culposamente os deveres de não ocultar rendimentos, de informar o Tribunal e o Fiduciário sobre os seus rendimentos no prazo que, por várias vezes, lhe foi fixado, de comprovar a sua situação de desempregado e das diligências encetadas na procura de profissão remunerada e de informar o Tribunal e o Fiduciário do seu domicílio no estrangeiro, não é merecedor da exoneração do passivo que não foi liquidado no âmbito do processo de insolvência.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Devedor: AA
Recorridos / Credores: B..., SA e outros

Decretada que foi a insolvência do Devedor, este requereu a exoneração do passivo restante, o que foi liminarmente deferido por decisão de 29/10/2014, tendo sido excluído de cessão o valor correspondente a um salário mínimo nacional.
O período de cessão terminou em abril de 2022.
Por despacho de 06/10/2023, foram notificados os credores, o fiduciário e o Devedor para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem quanto ao despacho final de exoneração, nos termos do artigo 244.º do CIRE.
O B..., S.A. pronunciou-se pela recusa da exoneração do passivo restante com fundamento no incumprimento dos deveres previstos no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE a que o Insolvente se encontrava adstrito, designadamente, informação ao tribunal e fiduciário sobre os rendimentos e património por si detido, já que para tanto foi notificado. Decorridos mais de seis meses, não foram juntos os documentos solicitados, o que, no entender do Credor B... indicia uma clara tentativa de ocultação ao processo dos rendimentos recebidos pelo Insolvente durante aquele período. Tanto mais que a informação relativa a rendimentos se encontra informatizada e pode ser acedida online.
O Fiduciário pronunciou-se pela recusa da exoneração, atento o incumprimento reiterado dos deveres do insolvente quanto à sua situação socioeconómica.
Em resposta, o Devedor, no que concerne aos recibos de vencimento em falta, invocou que se encontra desempregado, pelo que não tem qualquer tipo de recibo de vencimento a entregar; que tem vindo a diligenciar pela obtenção dos documentos em falta, não tendo sido possível obter declaração/certidão da inexistência de rendimentos ou dispensa de IRS; nunca ocultou ou dissipou qualquer património ou rendimento, tendo cumprido com todas as obrigações no âmbito do incidente da exoneração do passivo restante. Requereu a concessão da exoneração do passivo restante.

II – O Objeto do Recurso
Foi proferida decisão recusando a exoneração do passivo restante ao Devedor por violação dolosa dos deveres previstos nas alíneas a), b), d), do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, em conformidade com o disposto no artigo 243.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do CIRE.

Inconformado, o Devedor apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que conceda a exoneração do passivo restante.
As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1 - O Recorrente foi declarado insolvente através de sentença de declaração de insolvência, pelo que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 248.º do CIRE e artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais, o Recorrente encontra-se isento do pagamento da taxa de justiça para a prática doa to processual em questão.
2 - Veio o Tribunal Recorrido, por sentença, proferir decisão final de recusa da exoneração do passivo restante.
3 - A recusa teve como fundamento a violação do pressuposto legal, previsto nos termos do disposto no artigo 243.º, n.º 3, do CIRE, nomeadamente, “a ausência dos mesmos ou a procura ativa de emprego demonstra manifesta indiferença pelo Tribunal e pelos deveres em que ficou constituído por força do deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. Assim, e considerando o incumprimento e o lapso temporal decorrido sem que tenha entregue os documentos referentes aos rendimentos auferidos ou à ausência de rendimentos, assim como, diligências de procura de emprego, inscrição em centro de emprego, ou subsídios auferidos, afigura-se necessário concluir que o mesmo não é merecedor do benefício da exoneração do passivo restante”.
4 - O Recorrente, não aceitando a decisão, recorre da mesma, por carecer de fundamento factual e legal, considerando os pressupostos cumulativos impostos pelos artigos 243.º e 244.º do CIRE.
5 - Ao contrário do justificado pelo Tribunal Recorrido, o Insolvente cumpriu com as suas obrigações no âmbito do incidente da exoneração do passivo restante.
6 - Para efeitos da decisão proferida, claramente que, o Tribunal Recorrido não considerou os atos praticados nos autos pelo Insolvente, nem a informação e as justificações que o Insolvente apresentou nos autos e diretamente junto do Administrador Judicial.
7 - Não existem dúvidas que, o Insolvente informou e remeteu ao Administrador de Insolvência/Fiduciário toda a informação e documentação relacionada com os seus rendimentos e situação profissional, tal como se lê dos requerimentos do Insolvente datados em 02.12.2023, 21.02.2023, 06.09.2023, 26.10.2023 e 03.11.2023, nomeadamente que, ““(…) informar e esclarecer que, o Insolvente não se encontra em situação de desemprego declarada, nunca tendo auferido o subsidio de desemprego, pois, considerando a data da declaração de insolvência (2014) e sendo o Insolvente Membro dos Órgãos Estatutários (MOE), para efeitos da atribuição do Subsídio de Desemprego, o mesmo ainda não se encontrava regulamentado.”
8 - Certo é que desde a declaração de insolvência do aqui Insolvente e tal como informado nos autos, a situação profissional e pessoal do insolvente não sofreu alterações.
9 - Nunca o Insolvente ocultou ou dissimulou quaisquer rendimentos que auferiu durante os cincos anos do período de cessão. Não há dúvidas!
10 - O Insolvente nunca ocultou um cêntimo, nem ao Administrador de Insolvência / Fiduciário, nem aos Credores.
11 - E ao contrário do fundamentado pelo Tribunal Recorrido, e mesmo que o Insolvente tenha atrasado o envio da documentação/informação ao Administrador de Insolvência / Fiduciário, certo é que, os seus rendimentos são inexistentes.
12 - E mesmo em relação à “falta de informação”, a mesma sempre foi justificada (ou falta dela), apenas não foi remetida aos autos, nem ao Administrador Judicial, por inexistência da mesma e por não ter sido possível a sua obtenção, considerando a inexistência dos rendimentos do Insolvente.
13 - O Insolvente em momento algum teve intenção de prejudicar os Credores no ressarcimento do valor dos seus créditos, além disso.
14 - E mesmo relativamente à impossibilidade de entrega da documentação (justificado nos autos) do Insolvente ao Administrador de Insolvência / Fiduciário nunca poderá ser considerado fundamento para a recusa final da exoneração do passivo restante ao Insolvente, considerando que, tal como já referido, o Insolvente sempre diligenciou e justificou nos autos a impossibilidade verificada no envio da documentação.
15 - A verdade é que o Insolvente sempre diligenciou por informar os presentes autos da situação em que se encontrava, quer seja a título profissional, quer a título pessoal, e nunca omitiu qualquer rendimento do Tribunal a quo, do Administrador de Insolvência / Fiduciário ou de qualquer Credor.
16 - Insolvente mudou-se para casa dos pais, para um país estrangeiro, em busca de novas e melhores oportunidade de trabalho e tal informação consta dos autos.
17 - No entanto, viu a sua situação profissional agravada com o surgimento da pandemia COVID-19 e os efeitos da mesma, e para quem se encontrava desempregado, tal como era o caso do Insolvente, a situação de novas oportunidades agravou-se.
18 - Verdade é que, considerando os elementos constantes nos presentes autos e ainda a postura e a diligência do Insolvente inexistem quaisquer fundamentos para a decisão proferida.
19 - Para que o ato do Recorrente conduza ao preenchimento da situação prevista no artigo 243.º, n.º 4, alínea a), do CIRE torna-se imprescindível que essa infração tenha sido cometida com dolo ou grave negligência e que esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência, o que não se verifica no caso em concreto.
20 - O ónus da alegação e da prova da verificação dos factos legais de recusa da exoneração do passivo restante (que são os mesmos que fundamentam a cessação antecipada do procedimento de exoneração, taxativamente enunciados no artigo 243.º, n.º 1, do CIRE), impendem sobre o fiduciário e os credores da insolvência, aquando da sua notificação para se pronunciarem sobre a concessão ou não da exoneração (artigo 244.º, n.º 1, do CIRE) ou, no silêncio destes, é o tribunal que terá de coligir elementos de prova que lhe permitam concluir pela prova de facticidade da qual decorra encontrarem-se preenchidos os requisitos legais de recusa da exoneração.
21 - Certo é que, no caso em concreto, inexiste qualquer fundamento para que o Tribunal a quo proferisse a decisão aqui recorrida, bem pelo contrário. Além disso, não basta a violação das obrigações impostas pelo artigo 239.º, n.º 1, do CIRE para considerar haver fundamento automático para recusa da exoneração do passivo.
22 - Ao invés, é imprescindível a tríplice verificação, portanto cumulativa, dos seguintes pressupostos: o referido elemento objetivo traduzido na violação de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º; um nexo causal consistente na circunstância de dessa violação decorrer um prejuízo efetivo para a satisfação dos créditos da insolvência; e, por último, um elemento subjetivo traduzido na prática do referido comportamento inadimplente com dolo ou negligência grave.
23 - Não existem dúvidas que o Insolvente cumpriu com todas as suas obrigações, não se verificando quaisquer dos pressupostos de verificação cumulativa para efeitos de recusa da exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 243.º do CIRE.
24 - Com o devido respeito, acerca matéria e da decisão proferida, claramente que o Tribunal Recorrido decidiu de forma errada, pela omissão de formalidades legalmente exigíveis, e considerando a informação e prova junta aos autos, interpretou erradamente a postura e o comportamento do Insolvente no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, da mesma forma que, interpretou erradamente e retirou conclusão não aplicável ao disposto no artigo 243.º, n.º 3 do CIRE, devendo por isso a decisão ser devidamente alterada com a substituição da decisão aqui recorrida e consequentemente ser proferida decisão de exoneração do passivo restante ao aqui Insolvente.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se o Devedor incorreu na violação dolosa ou com grave negligência dos deveres previstos nas alíneas a), b), d), do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, prejudicando, por esse facto, a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

III – Fundamentos
A – Factos Provados em 1.ª Instância
1. Nos presentes autos de insolvência foi declarado insolvente AA.
2. Foi proferido despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante em 29/10/2014, tendo sido excluído de cessão o valor correspondente a um salário mínimo nacional.
3. O período de cessão foi iniciado em 1 de julho de 2017, nos termos do artigo 6.º, n.º 6, do DL 79/2017, de 30/06.
4. O período de cessão terminou em abril de 2022, por força da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, que reduziu o período de cessão para três anos e fez terminar todos os processos em que se mostrasse ultrapassado tal prazo.
5. Por informação de 20/09/2019, referente ao primeiro ano de cessão, veio o Sr. Fiduciário informar que o insolvente comunicou encontrar-se desempregado e a residir no estrangeiro, não auferindo quaisquer rendimentos.
6. Quanto ao segundo ano e seguintes do período de cessão, não foi fornecida pelo insolvente qualquer resposta ao Sr. Fiduciário.
7. Por despacho de 14/11/2022 foi determinada a notificação ao insolvente para remeter ao Sr. Fiduciário todos os documentos/informações referentes à sua situação económico-financeira. 8. O insolvente ofereceu resposta (requerimento de 03/12/2023) sustentando sempre ter cumprido as suas obrigações e ter remetido todos os documentos e valores devidos a título de cessão ao Sr. Fiduciário. Concluiu dever ser-lhe concedida a exoneração do passivo restante.
9. Em 29/12/2022 veio o Sr. Fiduciário informar não ter rececionado quaisquer documentos e não dispor de informações para elaboração de relatório referente ao insolvente.
10. Por requerimento de 06/02/2023 veio o Sr. Fiduciário comunicar que o insolvente não enviou os documentos solicitados, concluindo dever ser recusada a exoneração do passivo restante.
11. Por requerimento de 22/02/2023 veio o insolvente informar encontrar-se a diligenciar pela obtenção dos documentos em falta, sendo que não auferiu quaisquer rendimentos suscetíveis de cessão e ter sempre cumprido todas as obrigações e procedido à entrega de documentos, situação que não documenta, nem comprova por qualquer meio.
12. Foi, por despacho de 11/04/2023, determinada a notificação ao Sr. Fiduciário para indicar os concretos documentos em falta e subsequente notificação ao insolvente para diligenciar pela sua junção.
13. Em 17/04/2023 veio o Sr. Fiduciário indicar estarem em falta os seguintes documentos:
- recibos de vencimento ou documento comprovativo dos rendimentos auferidos e detalhados, que seja emitido pela Segurança Social desde julho de 2017 até junho de 2022 (tem de entender-se abril de 2022);
- declaração anual de valores auferidos no mesmo período temporal emitido pelo ISS;
- declaração de IRS referente aos anos de 2017, 2018, 2019, 2020, 2021 e respetivas notas de liquidação;
- em caso de situação de desemprego, declaração do Instituto do Emprego e Formação Profissional, com data de início e fim;
- documentos comprovativos de procura ativa de trabalho ao longo do período em que se encontrou desempregado;
- contratos de trabalho e rescisão ao longo do período.
14. Veio o insolvente, requerer a prorrogação sucessiva do prazo para entrega dos aludidos documentos entre 28/04/2023 e 07/09/2023, ou eventual prorrogação do período de cessão, que lhe foi indeferida.
15. Por despacho de 06/10/2023 e atentos os sucessivos pedidos de prorrogação, sem que nada fosse entregue pelo insolvente, foi indeferida a prorrogação e notificados os credores, fiduciário e insolvente para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem quanto ao despacho final de exoneração, nos termos do artigo 244.º do CIRE.
16. O B..., S.A. pronunciou-se pela recusa da exoneração do passivo restante por requerimento de 16/10/2023.
17. O insolvente veio emitir pronúncia no sentido do cumprimento da totalidade dos seus deveres e que tem vindo a diligenciar pela obtenção dos documentos pretendidos. Conclui não ter auferido quaisquer rendimentos e pelo cumprimento integral dos seus deveres, devendo ser-lhe deferido o pedido de exoneração do passivo restante.
18. O Sr. Fiduciário, por requerimento de 14/11/2023, pronunciou-se pela recusa da exoneração, atento o incumprimento reiterado dos deveres do insolvente quanto à sua situação socioeconómica.
19. O insolvente não sofreu condenação pela prática de qualquer dos crimes previstos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal.

B – O Direito
Nos termos do disposto no artigo 235.º do CIRE, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência se não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.
Entre essas disposições consta o artigo 239.º do CIRE, cujo n.º 2 estatui que o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
Segue o n.º 3 determinando que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Trata-se de uma medida inovadora de proteção do devedor pessoa singular, permitindo que se liberte do peso das suas dívidas, podendo recomeçar de novo a sua vida[1]. Destina-se, pois, a promover a reabilitação económica do devedor a que alude o preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de março.
Não descurando, no entanto, os interesses dos credores, tal regime impõe ao devedor a cedência do seu rendimento disponível a um fiduciário nomeado pelo tribunal, que afetará, no final de cada ano, os montantes recebidos ao pagamento dos itens enunciados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, designadamente distribuindo o remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores. A excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excecional.[2]
Decorrido o período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados – cfr. artigos 244.º, n.º 1 e 245.º do CIRE.
Proferido que seja o despacho inicial da exoneração, o devedor fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no artigo 239.º do CIRE. Terminado o período da cessão, cabe ao juiz decidir sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, sendo que a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente – cfr. artigo 244.º/1 e 2, do CIRE.
Aplica-se, assim, o regime inserto no artigo 243.º do CIRE nos termos do qual a recusa da exoneração ocorre quando venha a verificar-se que o devedor não é digno de beneficiar do referido procedimento, implicando na recusa superveniente da exoneração – artigo 243.º, n.º 1, do CIRE. Cabe, neste caso, apreciar se o devedor dolosamente ou com grave negligência violou alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência – cfr. artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.
Nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE, durante o período da cessão, o devedor fica (…) obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
(…)
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
(…).
Ora vejamos.
O período de cessão decorreu entre 1 de julho de 2017 e abril de 2022.
A 20/09/2019, o Devedor informou o Fiduciário que se encontrava desempregado, sem auferir rendimentos, e a residir no estrangeiro.
Nenhuma outra informação foi prestada pelo Devedor, seja ao Fiduciário, seja ao Tribunal.
Notificado o Devedor, pelo Tribunal, para remeter ao Fiduciário os documentos comprovativos da sua situação económico-financeira, apresentou-se a responder ter cumprido as suas obrigações, ter remetido ao Fiduciário todos os documentos e valores devidos a título de cessão.
Seguiram-se informações do Fiduciário dando conta de nada ter sido remetido pelo Devedor, não dispondo de elementos para elaborar o relatório final.
Seguiram-se outras interpelações ao Devedor para entregar os documentos enunciados no n.º 13 dos factos provados.
O Devedor requereu, por mais do que uma vez, a prorrogação de prazo para o efeito, afirmou estar a diligenciar pela obtenção dos mesmos.
Certo é que não acedeu a disponibilizar as informações e documentos que lhe foram reiteradamente solicitadas. O que afirmou ter feito – cfr. n.º 8 dos factos provados.
A descrita conduta do Devedor traduz a violação culposa dos deveres de não ocultar rendimentos (o Devedor, reiteradamente, afirma não ter recebido quaisquer rendimentos suscetíveis de cessão, o que, no entanto, não logrou demostrar), de informar o Tribunal e o Fiduciário sobre os seus rendimentos no prazo que, por várias vezes, lhe foi fixado, de comprovar a sua situação de desempregado e das diligências encetadas na procura de profissão remunerada, de informar o Tribunal e o Fiduciário do seu domicílio no estrangeiro. O que acarretou prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, obstaculizando fossem encetadas diligências com vista à cobrança de rendimentos suscetíveis de cessão – cfr. artigo 241.º/1, do CIRE.
De nada vale ao Devedor a afirmação reiterada de que nenhum rendimento auferiu. Cabia-lhe disponibilizar elementos documentais comprovativos de tal circunstância, ao que nunca procedeu.
Não estando provado que o Devedor, no decurso do período de cessão, nenhum rendimento auferiu (facto no qual alicerça a sua pretensão recursiva), e demonstrada que está a violação culposa dos deveres legais consagrados nas alíneas a), b) e d) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, cabe concluir ser de acompanhar integralmente a sentença proferida em 1.ª Instância.

Concluindo: (…)

IV – DECISÃO
Decide-se pela improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 07 de março de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Mário João Canelas Brás
José Manuel Tomé de Carvalho
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[1] Vide Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis 2005, pág. 167.
[2] Cfr. Ac. TRC de 07/03/2017 (Jorge Manuel Loureiro).