Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6885/21.0T8STB.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
REGISTO DA ACÇÃO
CONTRADITÓRIO
IMPULSO PROCESSUAL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Constituem pressupostos da deserção da instância, não só que o processo esteja parado há mais de seis meses a aguardar o impulso processual da parte com ele onerada (pressuposto objetivo), mas também que a omissão desta se deva negligência (pressuposto subjetivo) – (artigo 281.º, n.º 1, do CPC).
- Para o decretamento da deserção da instância a necessidade de audição prévia da parte para se aferir se ela atuou com negligência, requisito necessário, em conjugação com o decurso do prazo de seis meses sem impulso dos autos, tem de ser aferida em cada caso concreto, consoante o que já antes tenha sido determinado pelo tribunal e consoante o comportamento que já antes as partes tenham assumido.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 6885/21.0T8STB.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I

1. A presente ação declarativa com processo comum e pedido de impugnação de deliberação social deu entrada em 14-12-2021.

2. Sendo Autora (…) e (…) – Hospital de Medicina Veterinária de (…), Lda..

3. A Ré foi citada e deduziu contestação em 02-02-2022.

4. Em 22-03-2022 foi nos autos proferido o seguinte despacho:

“Nos termos do disposto no artigo 9.º, alínea e), do Código do Registo Comercial e artigo 168.º, n.º 5, do CSC, o registo é obrigatório e a sua não realização impede o prosseguimento da ação, enquanto não for feita prova do mesmo.

Assim notifique a Autora para, no prazo de 10 dias, comprovar o registo da ação sob pena de não prosseguimento da mesma.”

5. Em 05-04-2022 veio a A. dar conta das diligências efetuadas na Conservatória do Registo Comercial, não se encontrando, porém, o registo ainda efetuado, requerendo novo prazo de 10 dias para que a A. comprove nos autos o registo da ação.

6. Na mesma data foi proferido o seguinte despacho:

“(…) aguardem os autos que se mostre comprovado o registo da ação, sem prejuízo do prazo de deserção da instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do CPC.”

7. Em 08-09-2022 a A. veio informar que o pedido de registo de ação deu entrada na Conservatória do Registo Comercial de Palmela em 05-09-2022, estando a aguardar a sua efetivação. Juntou comprovativo desse pedido de registo.

8. Em 15-11-2022 foi ordenada a notificação da A. para que documentasse o registo da ação.

9. Em 23-11-2022 a A. veio requerer novo prazo de 20 dias para o efeito, alegando ter incorrido em erro, pelo facto de ter contra a Ré várias ações pendentes, penitenciando-se por esse erro.

10. Por despacho de 25-11-2022 tal prazo foi concedido.

11. Em 01-02-2023 foi proferido o seguinte despacho:

“Aguardem os autos o decurso do prazo de deserção da instância.”

12. Em 26-05-2023 veio a Autora informar que “já requereu o registo da presente ação junto da Conservatória do Registo Comercial de Palmela, o qual, corresponde à Ap. (…), de 2023-05-25”, juntando comprovativo do pedido.

13. Em 18-08-2023 veio a Autora comunicar que registo da ação, requerido 2023-05-23, encontra-se ainda pendente, “como comprova consulta da certidão permanente da sociedade R., código de acesso (…).”

14. Em 02-11-2023 a Mmª Juíza proferiu o seguinte despacho:

«Nos presentes autos foram juntos requerimentos que nada demonstram em termos de impulso processual.

Foi junto código de acesso a certidão permanente a comprovar o pedido de registo da presente ação.

Sucede que tal código devolve a informação “Não existe qualquer certidão com esse número”.

Assim, volvidos seis meses e na falta de impulso processual por parte da A., julgo deserta a instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do CPC.

Custas pela A.»

Inconformada com tal decisão veio a Autora recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso:

1. O registo da ação foi concretizado através da Ap. (…), de 2023/05/25, e corresponde à Insc. (…) averbada à matrícula – código de acesso à certidão permanente: … (válido por 1 ano);

2. Por despacho datado de 05-04-2022 ( Refª 94580495 ) a Meritíssima Juiz a quo decidiu o seguinte:

“(…) Assim sendo, aguardem os autos que se mostre comprovado o registo da ação, sem prejuízo do prazo de deserção da instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do CPC. (…)”

3. Por despacho datado de 25/11/2022 (Refª 96116315) – notificação expedida a 28/11/2022 e concretizada a 02/12/2022 – foi prorrogado por 20 dias o prazo para a A. concretizar o registo da ação;

4. Por despacho datado de 01/02/2023 (Refª 96438573), consignou-se: “(…) Aguardem os autos o decurso do prazo de deserção da instância (…)”, e, em 26/05/2023, a A. informou ter requerido o registo da ação junto da Conservatória do Registo Comercial de Palmela (Ap. …, de 2023-05-25), tendo junto documento comprovativo dessa apresentação e protestado juntar comprovativo do registo (logo que o mesmo estivesse feito) – requerimento a que corresponde a Refª 45690880;

5. Em 18/08/2023 a A. voltou a informar os autos que o pedido de registo se mantinha pendente e facultou aos autos o código de acesso à certidão permanente para reforço da confirmação da mencionada pendência desde 25/05/2023; – requerimento a que corresponde a (Refª 46327698);

6. Através das informações e documentos juntos em 26/05/2023 e 18/08/2023, a A. cumpriu com o dever de diligência a que estava obrigada, tendo que aguardar ( por não depender da sua vontade ) que o registo da ação se concretizasse;

7. O facto de inexistir, na data em que a sentença foi prolatada, qualquer certidão associada ao código de acesso facultado, não significa ter existido falta de impulso processual por parte da Autora;

8. A única conclusão que se impunha era a de que, através do referido código (à data já inativo), não era possível aceder à certidão permanente da sociedade, e, por essa via, não era possível confirmar se o pedido de registo da ação apresentado em 25/05/2023 se mantinha pendente, deferido ou indeferido;

9. Nessa medida, deveria a Meritíssima Juiz a quo ter alertado a A. para a mencionada situação e para a possível inativação do código de acesso à certidão (até porque bem sabia, desde 18/08/2023, da pendência do pedido de registo), dando-lhe a possibilidade de facultar novo código de acesso à certidão permanente (n.º 3 do artigo 3.º e artigo 6.º, ambos do CPC);

10. Só assim se teria concretizando o princípio da cooperação, entre magistrados, mandatários e partes, subjacente à condução e intervenção no processo, de modo a obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (artigo 7.º do CPC, já previsto no diploma preambular do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro ) e, só depois de o fazer, em caso de inação, concluir pelo eventual desinteresse da A. na manutenção da lide;

11. Considerando que o presente recurso versa sobre matéria de direito, desde já se indicam as normas jurídicas que, na ótica da Recorrente, foram violadas (alínea a) do nº 2 do artigo 639.º do CPC ): n.º 3 do artigo 3.º, artigo 6.º, artigo 7.º e n.º 1 do artigo 281.º, todos do CPC;

12. Ao abrigo da alínea b), do n.º 2 do artigo 639.º do CPC, a Recorrente indica o sentido como tais norma deveriam ter sido interpretadas e aplicadas:

- artigo 7.º do CPC (princípio da cooperação): Como pedra angular de toda a estrutura processual civil, tendo a Meritíssima Juiz a quo constatado que nenhuma certidão permanente estava associada ao código de acesso facultado pela A., deveria ter ordenado a sua notificação para facultar aos autos outro código de acesso, tanto mais que a Meritíssima Juiz bem sabia que o registo da ação foi apresentado em 25/05/2023 e estava pendente, pelo menos, em 18/08/2023.

Por sua vez, este princípio está intimamente ligado ao dever de gestão processual consagrado no artigo 6.º do CPC, na medida em que, ao exercer os deveres de cooperação, o magistrado está a gerir o processo, eliminando, por um lado, o que não interessa, e, por outro lado, facilitando e estimulando o envolvimento das partes no processo, por forma a garantir a justa composição do litígio, em tempo breve e de modo eficaz.

Ora, ao julgar a instância deserta, com os fundamentos que invocou, a Meritíssima Juiz a quo, não só não evidenciou uma atuação cooperante com a A. (citado artigo 7.º), como não procurou acautelar a justa composição do litígio nos indicados termos (cit. artigo 6º), optando por não conhecer do mérito da ação, embora soubesse que o registo da ação havia sido apresentado pela A. .

Significa, isto, que à data da sentença, teria que admitir a possibilidade do registo, ou, ainda se encontrar pendente, ou, concluído (recusado ou aceite), e, sem notificar previamente a A., não deveria ter considerado existir uma conduta negligente suscetível de determinar a deserção da instância (o que só deveria ser considerado se face à aludida notificação a A. evidenciasse um comportamento omissivo) .

- n.º 3 do artigo 3.º do CPC: Ínsito ao princípio da cooperação (cit. artigo 7.º), do ponto de vista do tribunal, existem vários poderes-deveres ou deveres funcionais, entre eles, o dever de consulta que tem por finalidade evitar que sejam proferidas decisões com base em questões, de facto ou de direito, sem que tenha sido possibilitada à parte (neste caso, à A.) a oportunidade de sobre elas se pronunciar.

Ora, sabendo a Meritíssima Juiz a quo que não estava associado nenhuma certidão ao código de acesso facultado, e sabendo que tal código está ativo apenas num determinado período, deveria ter ordenado a notificação da A. para, no mínimo, requerer o que tivesse por conveniente.

Não o tendo feito, considerando a situação em apreço, é manifesto ter existido violação do dever de assegurar o contraditório, e, nessa medida, do princípio da cooperação de onde emana.

- n.º 1 do artigo 281.º do CPC: A aplicação desta norma exige que a falta de impulso processual tenha origem numa atuação negligente da parte.

Para tal, exige-se que o comportamento omissivo seja negligente; que seja necessário ao prosseguimento da instância; e que o prazo decorrido seja superior a 6 meses (podendo ser 6 meses e um dia).

Ora, tendo a A. informado que fez a apresentação do registo da ação, e, tendo documentado esse facto, não se afigura ter existido negligência por parte da A. (que, para além de diligenciar na apresentação do registo da ação, outra coisa não poderia fazer que não fosse aguardar a sua concretização, e, disso, informar os autos como fez ).

Por outro lado, tendo a A. sido notificada em 02/12/2022 de que o prazo para apresentação do registo foi prorrogado por 20 dias, e, tendo esta sucessivamente informado os autos da sua pendência em 26/05/2023 e em 18/08/2023, não se vê como foi ultrapassado o prazo de 6 meses previsto na norma, inexistindo fundamento para a sua aplicação.

A final requer que se conceda provimento ao recurso, anulando a sentença recorrida e, ordenando que os autos baixem à 1ª instância para prosseguimento da lide, tudo com as legais consequências decorrentes.

Não foram apresentadas contra-alegações.


II

Do objeto do recurso:

Considerando a delimitação que decorre das conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), importa apreciar:

- Se o processo estava em condições de ser julgada deserta a instância, por falta de impulso processual da parte onerada com o registo da ação.


III

A factualidade a considerar extrai-se da tramitação dos autos descrita no relatório supra, que ora se dá por reproduzida.

Cumpre apreciar e decidir.


IV

Fundamentação

Prescreve o artigo 277.º do Código de Processo Civil que:

«A instância extingue-se com: (…) c) A deserção;»

Dispõe o artigo 281.º do Código de Processo Civil que:

«1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

(…)

4 - A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.

5 - No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.»

A deserção da instância que em processo declarativo, ao contrário do processo executivo, não opera automaticamente, é uma causa de extinção da instância determinada por o processo estar parado há mais de seis meses – pressuposto objetivo – devido a negligência das partes em promover o seu andamento, em situações que lhes caiba, especialmente, o ónus de impulso processual – pressuposto subjetivo – (cfr. n.º 1 do artigo 281.º, e n.º 1 do artigo 277.º, todos do CPC).

A necessidade de audição prévia da parte para se concluir se ela atuou com negligência, sendo esse um requisito necessário, em conjugação com o decurso do prazo de seis meses – para o decretamento da deserção da instância – artigo 281.º do CPC –, tem de ser aferida em cada caso concreto.

No caso, dúvidas não há que a apelante está onerada com o registo da ação, por força do disposto no artigo 9.º, alínea e), do Código do Registo Comercial, que determina:

«Estão sujeitas a registo: (…) e) As ações de declaração de nulidade ou anulação de deliberações sociais, bem como os procedimentos cautelares de suspensão destas;»

E do disposto no artigo 168.º, n.º 5, do CSC, que prescreve:

«5 - As ações de declaração de nulidade ou de anulação de deliberações sociais não podem prosseguir, enquanto não for feita prova de ter sido requerido o registo; nas ações de suspensão das referidas deliberações, a decisão não será proferida enquanto aquela prova não for feita.»

O registo da ação é, pois, obrigatório e a sua não realização impede o prosseguimento da ação, enquanto não for feita prova do mesmo.

Resulta dos autos que tal prova ainda não foi feita.

Considerando a obrigatoriedade do registo da ação de impugnação de deliberação social, importa determinar se essa falta de prova, essa falta de andamento, ocorre por mais de seis meses, no momento em que a decisão posta em crise foi proferida, devido a negligência da apelante.

E se, essa conclusão de negligência dispensa a audição prévia da parte onerada, nos termos do n.º 3 do artigo 3º do CPC.

Assim permitindo a decisão de deserção da instância.

Vejamos, o que resulta dos autos:

Em 01-02-2023 foi proferido o seguinte despacho:

“Aguardem os autos o decurso do prazo de deserção da instância.”

Em 26-05-2023, ou seja, dentro do prazo de seis meses, veio a Autora informar que “já requereu o registo da presente ação junto da Conservatória do Registo Comercial de Palmela, o qual, corresponde à Ap. (…), de 2023-05-25”, juntando comprovativo do pedido.

Em 18-08-2023, ainda dentro do novo prazo de seis meses, veio a Autora comunicar que registo da ação, requerido 2023-05-23, encontra-se ainda pendente, “como comprova consulta da certidão permanente da sociedade R., código de acesso (…).”

Em 02-11-2023 a Mmª Juíza proferiu o seguinte despacho:

«Nos presentes autos foram juntos requerimentos que nada demonstram em termos de impulso processual.

Foi junto código de acesso a certidão permanente a comprovar o pedido de registo da presente ação.

Sucede que tal código devolve a informação “Não existe qualquer certidão com esse número”.

Assim, volvidos seis meses e na falta de impulso processual por parte da A., julgo deserta a instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do CPC.

Sucede que este despacho foi proferido dentro do prazo de seis meses do anterior requerimento da Autora (18-08-2023) dando conta que o pedido de registo da ação se mostrava pendente e facultando ao tribunal o respetivo código de acesso. Ou seja, não se esgotara o prazo de seis meses desde o último impulso processual.

Entre 18-08-2023 e 02-11-2023, não ocorreu qualquer despacho.

A informação obtida pelo tribunal em uso do código de acesso ao registo online facultado pela apelante, de que “não existe qualquer certidão com esse número”, exigia um pedido de esclarecimento junto da Autora, no âmbito dos poderes de gestão processual do juiz (artigo 6.º CPC) e, em respeito do prévio exercício do contraditório para prevenir uma decisão-surpresa (artigo 3.º, n.º 3, do CPC).

Desde logo porque em 26-05-2023, igualmente a menos de seis meses do despacho que declarou a deserção (02-11-2023), a Autora juntara comprovativo do pedido de registo da ação através da Ap. (…), de 2023-05-25.

Assim, não estão, por ora, verificados os pressupostos de natureza objetiva e subjetiva que permitam julgar deserta a instância, devendo antes ser ouvida a parte onerada com o registo da ação, no caso, a autora, da razão de ser da informação obtida quanto ao registo da ação, ou comprovar tal registo.

Após o que o tribunal decidirá.

Ocorreu violação do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do CPC, devendo o recurso proceder.

Síntese conclusiva: (…)


V

Termos em que, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que se substitui por outra determinando a notificação da recorrente para se pronunciar sobre a informação obtida pelo tribunal quanto ao registo da ação, ou desde logo, comprová-lo.

Após tal pronúncia, o tribunal a quo decidirá da questão e dos ulteriores termos do processo.

Sem custas.

Évora, 07 de março de 2024

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Cristina Dá Mesquita (1ª Adjunta)

Eduarda Branquinho (2ª Adjunta)