Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2130/22.9T8LLE.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
REQUISITOS
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Não constitui alteração do decidido em sede de sentença onde se conheceu sobre o mérito da causa a prolação, subsequente a tal sentença, de decisão sobre matéria diversa.
2 - Assim, não há violação do principio do esgotamento do poder jurisdicional quando, posteriormente à sentença, o juiz aprecia e condena alguma das Partes como litigante de má fé;
3 - Não padece, outrossim, a sentença de nulidade por omissão de pronúncia designadamente se o incidente de litigância de má-fé tiver sido despoletado oficiosamente na sentença pelo próprio juiz por haver necessidade de conferir o contraditório às Partes para se pronunciarem previamente à decisão de tal incidente;
4 - Da mesma forma não padece a posterior decisão que aprecia e decide a litigância de má-fé da Parte de excesso de pronúncia por só posteriormente ao cumprimento do prazo para o exercício do contraditório sobre tal matéria se revelar acertado o juiz decidir o incidente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2130/22.9T8LLE.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Local Cível de Loulé - Juiz 1
Apelantes: (…), (…) e (…)
Apelada: (…)
***
Sumário do Acórdão
(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
***
Acordam os Juízes da 1 ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
(…), residente no Lar de Idosos da Santa Casa da Misericórdia de (…), instaurou a presente ação declarativa constitutiva, com processo comum, contra (…), residente na Praceta (…), n.º 4, 2.º andar, porta B, em Faro, (…) e esposa, (…), ambos residentes Praça da (…), n.º 56, 1.º andar, Loulé, pedindo que:
- seja determinado que os réus não adquiriram a propriedade do prédio sito na Rua (…), n.º 86, em Loulé, inscrito na matriz sob o artigo (…) e descrito na CPP de Loulé, sob o artigo (…), da freguesia de Loulé (…), porque a escritura é ineficaz para o efeito pretendido com a mesma, uma vez que não existem os factos constitutivos do direito arrogado com tal escritura.
- Seja determinado o cancelamento do registo predial do mesmo prédio, eliminando a Ap. (…), de 08/09/2021 a favor dos 1.º e 2.º réus, uma vez que a ineficácia da escritura a torna inapta a produzir qualquer efeito.
Para o efeito alegou, em síntese, que em 02/07/2021, os Réus outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial em Vilamoura, através do notário (…) tendo prestado declarações que não correspondem à realidade material e que vieram permitir o registo do prédio melhor identificado nos autos a seu favor.
Citados os Réus os mesmos alegaram que em 1996 o referido prédio lhes foi doado verbalmente por (…) e que, desde esse momento, sempre exerceram poder de facto sobre o imóvel.
Ao abrigo do artigo 593.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, foi dispensada a realização da audiência prévia e, em cumprimento do prazo constante do artigo 593.º, n.º 2, do Código do Processo Civil, foi fixado o valor da causa, foi proferido despacho saneador, identificou-se o objeto de litígio, enunciaram-se os temas da prova, foram admitidos os requerimentos probatórios e agendou-se a audiência final.
Foi realizada a audiência final a que se seguiu a prolação de sentença, que contem o seguinte dispositivo:
“VII - DECISÃO
Nestes termos, pelo exposto e de harmonia com o disposto nos preceitos legais supracitados, julgo a ação procedente, por provada e, em consequência:
a) Declaro impugnados os factos justificados na escritura pública de justificação outorgada no Cartório Notarial em Vilamoura, através do notário (…), datada de 02/07/2021, por não terem os justificantes, aqui réus, (…), (…) e (…), possuído, sem oposição de ninguém, o prédio urbano sito na Rua Dr. (…), n.º 86, freguesia de (…), Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), daquela freguesia e inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), melhor identificado nos autos, na plena convicção de que o faziam em nome próprio e sem lesar o direito de ninguém, de forma ostensiva, pública, pacífica e contínua.
b) Declaro ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial (identificada na alínea a), por forma a que os réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado.
c) Ordeno o cancelamento de quaisquer registos operados com base na referida escritura.
Custas pelos réus.
Notifique e registe.
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Em momento prévio ao trânsito em julgado, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do Código do Registo Predial, determina-se a comunicação da instauração da presente ação à competente Conservatória do Registo Predial (por lapso, tal ainda não foi feito).
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De forma a evitar uma decisão surpresa, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código do Processo Civil, notifique os réus para, no prazo de 10 dias, virem pronunciar-se sobre uma eventual condenação como litigantes de má-fé.
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Após o término do prazo, oportunamente conclua.
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Após trânsito em julgado:
- Comunique a presente decisão ao Cartório Notarial no qual foi lavrada a referida escritura de justificação notarial, por via eletrónica (nos termos do artigo 131.º, n.º 1, alínea d) e artigo 202.º, alínea c), do Código do Notariado).
- Comunique ainda a presente decisão ao registo predial de Loulé e ao Serviço de Finanças de Loulé.
- Extraia certidão da presente sentença, da escritura de justificação notarial impugnada, anexa à petição inicial e remeta aos serviços do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes, desde já se deferindo, caso venha a ser solicitado, a consulta ou envio de certidão de quaisquer elementos dos presentes autos.”
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Os Réus pronunciaram-se sobre a eventual condenação como litigantes de má-fé rematando a sua peça processual do seguinte modo:
“Nestes termos e nos demais de Direito deverá ser considerado que os RR não litigaram de Má Fé e serem absolvidos da condenação como litigantes de Má Fé.”
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De seguida o Tribunal a quo proferiu decisão com o seguinte teor:
“DECISÃO
Incidente de Litigação de Má-Fé
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I – RELATÓRIO
Por sentença proferida em 28/04/2023, foi a ação julgada procedente, por provada e, em consequência foram declarados impugnados os factos justificados na escritura pública de justificação outorgada no Cartório Notarial em Vilamoura, através do notário (…), datada de 02/07/2021, por não terem os justificantes, aqui réus, (…), (…) e (…), possuído, sem oposição de ninguém, o prédio urbano sito na Rua Dr. (…), n.º 86, freguesia de (…), Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), daquela freguesia e inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), melhor identificado nos autos, na plena convicção de que o faziam em nome próprio e sem lesar o direito de ninguém, de forma ostensiva, pública, pacífica e contínua; foi declarada ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado; foi ordenado o cancelamento de quaisquer registos operados com base na referida escritura.
Foram ainda os réus notificados para virem pronunciar-se sobre uma eventual condenação como litigantes de má-fé.
Os réus vieram exercer o contraditório, entendendo que não agiram de má-fé.
Cumpre apreciar e decidir já que a isso nada obsta.
II – DOS FACTOS
Os constantes do relatório e da sentença proferida em 28/04/2023, para a qual remetemos, apenas será agora decidido o presente incidente de forma a permitir o cabal cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código do Processo Civil – que impede que o tribunal profira decisão surpresa sem o exercício do contraditório pela parte visada.
III – DA CONDENAÇÃO DOS RÉUS COMO LITIGANTES DE MÁ-FÉ
Em face dos factos dados como provados e não provados na sentença proferida nos presentes autos, o tribunal entendeu oficiosamente suscitar o presente incidente.
Dispõe o artigo 542.º do Código de Processo Civil que será condenada em multa a parte que tiver litigado de má-fé, entendendo-se que litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer; alterar a verdade dos factos ou ocultar factos relevantes para a decisão da causa, tiver praticado omissão grave do dever de cooperação (conforme artigo 8.º do mesmo diploma) ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Assim, a litigância de má-fé traduz-se na violação do dever de probidade que uma leitura conjugada dos referidos do Código do Processo Civil, impõe às partes: dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias.
A litigância de má-fé consiste, assim, numa utilização abusiva do processo, cujos traços fundamentais são definidos no artigo 542.º do Código do Processo Civil onde se estipulam quatro situações que a integram: (i) dedução de pretensão/oposição, cuja falta de fundamento a parte não ignore; (ii) ter a parte, conscientemente, alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; (iii) prática de omissão grave do dever de cooperação; (iv) e, uso do processo ou dos meios que este lhe coloca à disposição, de forma manifestamente reprovável, de modo a conseguir um objetivo ilegal, entorpecer a ação da justiça, impedir a descoberta da verdade, ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Só se pode condenar como litigante de má-fé a parte que conscientemente alterou a verdade dos factos, nomeadamente, fazendo um pedido a que sabe não ter direito ou que contradiga uma obrigação que deve cumprir.
Para a condenação das partes como litigantes de má-fé seria necessária a comprovação de que as mesmas não acreditam na possibilidade de vencimento das teses que defendem nos autos e que adotem um comportamento processualmente reprovável, isto é, exige-se mais que uma simples lide imprudente, ousada, ou uma conduta meramente culposa. Uma interpretação distinta levaria a uma restrição incomportável dos direitos, constitucionalmente consagrados, de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 09B0681, de 25 de Maio de 2009, relatado pelo Conselheiro Álvaro Rodrigues refere-se “a simples impugnação per positionem da versão de uma das partes seja considerada como integrando a «mala fides» sempre que a versão oposta à alegada seja provada, antes se exigindo que ela seja imputável subjectivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração intencional ou, pelo menos, consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira (…)”.
Revertendo as considerações tecidas ao caso que consta dos autos, atenta a factualidade dada como provada e não provada entendemos que os réus agiram como litigantes de má-fé.
Senão, vejamos.
Em sede de contestação, os réus alegaram que em agosto de 1996, (…), avô paterno dos réus (…) e (…) acordaram com (…) que o prédio descrito no ponto 16 dos factos dados como provados na sentença, ficaria para os réus. Mais alegaram que após o referido acordo, foram sempre os réus que tiveram o poder de facto do imóvel, agindo como se proprietários fossem, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, na intenção e na convicção de que o mesmo lhes pertencia, sem prejudicar ou lesar direitos alheios.
Em face da prova produzida, considerou a signatária que os réus nunca exerceram qualquer poder de facto sobre o imóvel – em sede de declarações de parte, o réu, embora tenha referido que por conta da referida doação (não provada) se considerava proprietário, admitiu que sempre foi o pai que passava férias na casa com a esposa e que apenas habitou a casa com o pai em julho e agosto de 2020; mais se provou que, efetivamente, sempre foi (…) que exerceu poder de facto sobre o referido imóvel, agindo na qualidade de proprietário. Todas as testemunhas foram perentórias em referir que nenhum dos réus habitava a casa, que não tinham conhecimento de que os réus sequer tivessem a chave do imóvel até pelo menos julho de 2020. E ainda que os réus neguem que tivessem conhecimento da escritura de doação outorgada em 29/09/1993, certo é que não é credível que (…) tivesse doado o imóvel aos netos, verbalmente, três anos depois, tal como estes alegam (mas não demonstraram, nem por prova documental, nem por prova testemunhal).
Adotando uma atitude completamente temerária, bem sabendo que nunca tiveram o poder de facto do imóvel e que, efetivamente, a escritura de justificação por si outorgada continha factos que não correspondem à verdade material dos factos, os réus vieram apresentar contestação, tentando deturpar a realidade e manter o por si declarado na referida escritura.
Em face da postura adotada e dos factos dados como provados em sede de sentença, entendemos que houve dolo por parte dos réus ao manterem os factos, que já haviam declarado na referida escritura e que não correspondem à realidade.
Entendemos, assim, que os réus devem ser condenados como litigantes de má-fé.
Deste modo, verificada a litigância de má-fé dos réus condenam-se os mesmos na multa de 4 UCs cada, nos termos do artigo 27.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais (que manda fixar esta multa entre 2 a 100 UC).
Note-se que não serão os réus condenados numa indemnização à parte contrária uma vez que esta não a veio requerer (artigo 542.º, n.º 1, a final, do Código do Processo Civil).
IV – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se condenar como litigantes de má-fé os réus (…), (…) e (…), em multa processual de 4 (quatro) UC’s (unidades de conta), cada.
Notifique.
Após trânsito em julgado do presente incidente, extraia certidão da presente decisão e remeta aos serviços do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes, em conjunto com a sentença proferida nos presentes autos.
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Inconformados, vieram os Réus apresentar requerimento de recurso dirigido a este Tribunal da Relação contendo um segmento de conclusões recursivas notoriamente extenso.
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A Autora respondeu ao recurso rematando a sua resposta do seguinte modo:
1. Pretendem os apelantes nas suas alegações, que a Sentença errou na fixação da matéria de facto, mas também na decisão jurídica de os condenar por litigância de má-fé, e por isso não se conformam com tal decisão, pelo que entenderam recorrer.
2. Discordam que o Tribunal tenha dado como não provado que os RR. soubessem da existência de uma escritura de doação que o seu avô outorgou a favor do seu pai, do imóvel cuja justificação vieram a realizar, por alegada doação verbal ocorrida três anos após a realização da escritura de doação.
3. Pretendem que tal matéria, tendo sido perguntada ao apelante (…), este respondeu que desconhecia a existência de tal escritura e que o próprio avô terá desconsiderado tal doação, até porque o pai declarou a casa em sede de Imposto de Selo, não havendo outra prova a considerar.
4. Ora a declaração em sede de Imposto de Selo, nada tem de extraordinário, pois tendo a doação sido realizada com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo a favor do avô e esposa, haveria sempre lugar à participação em sede de Imposto de Selo, para comunicar à A.T. a caducidade dos usufrutos.
5. A litigância de má-fé revela-se durante o desenrolar da lide, nas afirmações e tomadas de posição, perante o alegado e não antes, nomeadamente em sede de declarações na escritura de justificação.
6. A A. pode concordar que os RR. não conheciam mesmo a existência da escritura, porque se soubessem teriam realizado a justificação afirmando que a doação teria ocorrido em data anterior à doação e não três anos após.
7. Perante a exibição de uma escritura de doação realizada 3 anos antes da suposta doação, os RR. poderiam ter optado por realizar um acordo com a A., confessar o pedido ou nem apresentar contestação, mas não, optaram por contestar, de forma censurável, confirmando o que sabiam não ser verdade, em absoluta lide temerária, para tentar manter o que não lhes cabia na totalidade e é essa conduta que o Tribunal censurou, e não merece reparos.
8. Entendem ainda os apelantes que por a Ré (…), esposa do Réu (…), não tendo declarado na escritura de justificação ter adquirido a propriedade por usucapião, não poderia o Tribunal ter englobado a totalidade dos RR. na matéria provada e nessa parte assiste razão aos apelantes e para o erro do Tribunal terá contribuído o facto de a contestação dos RR. ser única e não especifica para cada um.
9. A Autora agiu correctamente ao demandar a Ré (…), pois estavam em causa bens imóveis, que necessitam do consentimento dos cônjuges casados em comunhão de adquiridos para serem alienados, ou seja por litisconsórcio necessário.
10. Entendem ainda os apelantes que o Tribunal não podia relegar a apreciação da litigância de má-fé processual para momento posterior à prolação da Sentença e ao tê-lo feito, violou a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C., o que acarreta a nulidade dessa parte da Sentença.
11. O incidente de apreciação da má-fé processual dos apelantes foi desencadeado oficiosamente pelo Tribunal no momento da prolação da Sentença em respeito pelo princípio do contraditório, foi dada aos RR. a possibilidade de se pronunciarem, o que vieram a fazer.
12. Esta questão foi já decidida de forma exemplar no Ac. TRG, n.º 2925/21.0T8BCLG1, Relator Antero Veiga, consultável em www.dgsi.pt, e que tem o seguinte sumário:
“- O artigo 613.º do C.P.C., relativo à extinção do poder jurisdicional, deve ser interpretado no sentido de que apenas se esgota com a prolação da sentença o poder relativo ao mérito da causa, sobre as questões aí concretamente decididas.
Nada se referindo quanto à má-fé, esgota-se quanto a tal matéria o poder jurisdicional. Diferente é o caso de em sede de sentença a questão ser abordada, “abrindo-se” aí o incidente, relegando a sua apreciação para momento posterior, dando às partes a possibilidade de se pronunciarem, em cumprimento do artigo 3.º do C.P.C..
Entender em tal caso que ocorre o esgotamento do poder jurisdicional, constitui além do mais um paradoxo, já que assumidamente o juiz sobrestou na apreciação da questão incidental, para cumprimento do contraditório, relegando-a para momento posterior”.
13. Em tal Acórdão se explica:
“- A parte notificada para se pronunciar sobre a questão e avisada de que será proferida sobre o incidente decisão, nenhuma expectativa pode ter no sentido de que a questão “foi apreciada” e não será reapreciada, já que é este o fundamento central do esgotamento do poder jurisdicional”.
Cita ainda tal Acórdão outros, Ac. TRG de 11/05/2022, Proc. n.º 1665/14.1T8BRG-I.G1; TRC de 22/02/2016, Proc. n.º 115/12.2TBPNC.C2, no qual se refere que:
“- O artigo 613.º do C.P.C. deve ser interpretado no sentido de que o poder jurisdicional, que se esgota com a sentença, é o poder jurisdicional relativo ao mérito da causa, sobre as questões aí concretamente decididas, como já se vinha entendendo, mas não abrange nem inibe o juiz de resolver questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerceu influência na sentença (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 126), Ac. TRL de 12/07/2012, Proc. n.º 205/06.0TCSNT.L1-2).
14. Julga-se assim devidamente esclarecida esta questão, devendo a Apelação improceder nesta questão.
15. Entenderam ainda os apelantes que a R. (…) não litigou de má-fé, pelo que deve ser absolvida, por alegadamente não ter declarado possuir o bem, na escritura de justificação mas mais uma vez se vem esclarecer que a litigância de má-fé é uma conduta processual, no desenrolar do processo, e não em actos anteriores e tendo a litigância de má-fé sido perpetrada na contestação, no desenrolar do processo e no julgamento, e não na escritura de justificação que motivou a interposição da acção.
16. Não tendo a R. (…) autonomizado a sua contestação e tendo aderido integralmente às alegações dos demais RR, é óbvio que não pode beneficiar de um regime de excepção face aos mesmos, pelo que deverá improceder o alegado.
17. O que seria relevante para efeitos de legitimidade para constituir mandatário, seria o estado psíquico da A. no momento da assinatura da procuração, o que os apelantes não questionaram, mantendo-se a mandante viva e tendo sofrido uma alteração do seu estado de saúde, a procuração não caduca e o substabelecimento mantém-se válido, não se descortinando que sentido faz tal circunstância justificar uma conduta de má-fé processual.
18. Desconfiando os RR. que a A. tinha uma fragilidade psíquica para se defender, deveriam, por respeito e imperativo ético, abster-se de tomar iniciativas de a prejudicar e lhe retirar um imóvel que afinal lhe foi deixado em testamento.
Se contavam com tais fragilidades para melhor obterem os seus intentos, como parece resultar do que afirmam, compreende-se, mas tal desiderato não tem tutela jurídica, e apenas reforçam a necessidade de tal comportamento ser sancionado como o foi na Primeira Instância, onde o mediatismo da prova confere outro vigor na análise.
19. Não procede assim qualquer dos argumentos arregimentados pelos apelantes, pelo que a decisão deve ser mantida, sem prejuízo da alteração dos factos supra referidos, que resultaram de meros erros materiais que podiam ser alterados em simples aclaração de sentença.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores doutamente suprirão, deve a Apelação improceder, por não provada, mantendo-se a decisão da primeira instância, com a ressalva dos pequenos lapsos na fixação da matéria de facto, que globalmente não afectam a decisão tomada, como é de inteira JUSTIÇA.”
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No Tribunal recorrido foi proferido despacho do seguinte teor:
“Compulsada a sentença proferida, e por considerar que se mantêm inalterados os fundamentos de facto e de direito nos quais se estribou, mantém-se a mesma nos seus exactos termos, não se entendendo que padeça dos vícios apontados em sede de recurso.
Por ser legalmente admissível, tempestivo, interposto por quem tem legitimidade e obedecer às formalidades legais, admito o recurso interposto pelos réus, assim como as contra-alegações apresentadas pela autora.
O presente recurso é de apelação, com efeito meramente devolutivo e deverá subir imediatamente próprios autos, de acordo com o disposto nos artigos 629.º, n.º 1, 637.º, 638.º, n.º 1, 639.º, 645.º, n.º 1, alínea a) e 647.º, n.º 1, todos do Código do Processo Civil.
Subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Évora.
Notifique.”
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Já neste Tribunal da Relação de Évora houve lugar à prolação pelo relator de despacho convidando os Réus/Apelantes ao aperfeiçoamento do segmento recursivo das conclusões atenta a diagnosticada extensão do mesmo.
Os Apelantes acederam ao convite e apresentaram novo segmento de conclusões mais reduzidas com o seguinte conteúdo:
“CONCLUSÕES:
I - O presente recurso vem interposto da sentença, por a mesma errar na determinação da matéria de facto a dar como provada e não provada; por a mesma ser nula, na parte que manda notificar os RR. para se pronunciarem sobre eventual condenação por litigância de má fé, quando tal era questão que deveria ter sido apreciada logo na sentença; e, bem assim, da decisão do incidente de má fé, de 5 de junho de 2023, considerando-se que tal decisão é nula por se pronunciar sobre questões sobre as quais já não podia pronunciar-se e por ter errado ao apreciar os factos integradores da má fé e ao condenar todos os RR. como litigantes de má fé.
II - A sentença veio a dar como não provado o Facto G), mas os Recorrentes entendem que o mesmo deveria ter sido dado como provado, nos termos das declarações de parte do Réu (…), identificadas e transcritas em 7 e 8 das alegações e porque a sentença não fundamenta qualquer falta de credibilidade de tal depoimento nessa parte, pelo que, se entende que a sentença deverá ser revogada, nessa parte e substituída por outra que faça constar nos factos provados o seguinte: “Facto Provado: 18. Os réus desconheciam a escritura de doação constante no ponto 7”.
III - A sentença omitiu quer dos Factos Provados, quer do Não Provados, facto essencial para a boa decisão da causa, nomeadamente para apreciação da má-fé dos RR., o qual resulta do Doc. 8 da p.i. da Recorrida, entendendo-se que se deverá acrescentar ao Factos Provados, o Facto Provado 13-A, com o seguinte teor: “13-A Em 14 de junho de 1999, (…) declarou no processo de imposto sucessório aberto por … (que não era mãe do mesmo) ½ do Imóvel que veio a ser objeto de justificação, através da escritura dada como provada em 14.”
IV - A sentença deu como provado, no Facto Provado 15, porém este foi incorretamente dado como provado, atendo o conteúdo da escritura de justificação que foi dada como provada no Facto provado 14, pelo que, deverá ser aquele revogado e produzida decisão que dê o Facto Provado 15, da seguinte forma: “15. Na escritura descrita no ponto 14, os réus (…) e (…) declararam (…) mantendo-se a restante parte do Facto Provado 15, tal como constante da sentença.
V - Existem ainda factos relevantes, importantes à boa decisão da causa, nomeadamente a apreciação da má fé, que resultam da escritura de justificação e deveriam ter sido dados como provados e não o foram, pelo que, se deverá produzir-se decisão que faça constar como Facto Provado 16, o seguinte:” 16. Na escritura descrita no ponto 14 a Ré (…) declarou: “que o seu marido já era compossuidor do imóvel supra identificado à data do seu casamento, nunca se tendo sentido como dona do imóvel, ou seja, nunca teve o animus possidente, nem tão pouco foi detentora referido prédio, pelo que o mesmo é bem próprio do marido.”
VI - Também julgou erradamente o decisor, ao dar como provado o Facto 16, o qual, atento o teor da certidão predial permanente do prédio, deveria passar ter a seguinte redação: “17. Encontra-se inscrita a aquisição [por usucapião], a favor dos réus (…) e (…), do prédio urbano sito na Rua Dr. (…), n.º 86, freguesia de (…), Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), daquela freguesia e inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), através da Ap. (…), de 08/09/2021”.
VII - Quanto à parte da sentença que refere: “De forma a evitar decisão surpresa, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código do Processo Civil, notifique os réus para, no prazo de 10 dias virem pronunciar-se sobre uma eventual condenação como litigante de má fé”, considera-se que nesta parte a sentença é nula, nulidade que deverá ser declarada, porquanto não se pronuncia sobre a má-fé que é de conhecimento oficioso, remetendo para decisão posterior, quando tal decisão deveria ter sido tomada na própria sentença, o que viola o disposto nos artigo 615.º, n.º 1, alínea d), artigo 613.º, artigos 608.º e 607.º, n.º 1 e n.º 2, todos do CPC.
VIII - Quanto à condenação dos RR. como litigantes de má-fé – nos termos e atento os normativos legais já acima referidos – artigo 615.º, n.º 1, alínea d), artigo 613.º, artigos 608.º e 607.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC – entende-se que o despacho decisão em 06-06-2023 é nulo por conhecer questão sobre a qual o juiz já não podia tomar conhecimento, nulidade que se considera insanável por se fundar na impossibilidade de conhecer da questão nela decidida, pelo que se deverá anular tal despacho.
IX - Ainda que assim não se entende sempre tal despacho deverá ser revogado e substituído por outro que não condene a Recorrente Cristina Fernandes como litigante de má fé, face a matéria de facto dada como provada, que se pretende modificada de acordo com o atrás já exposto, e atentos os documentos juntos aos autos e a leitura da contestação, concluindo-se que sentença enquadra erradamente o comportamento desta Recorrida na escritura de justificação e nos presentes autos, no disposto no artigo 542.º do CPC.
X - Não sendo o Despacho de 06-06-2023 declarado nulo, nos termos acima invocados, e considerando, nomeadamente, o alegado de 46 a 55 das alegações, dever-se-á considerar que a defesa apresentada pelos RR. (…) e (…) não excedeu os limites da boa fé e da defesa dos seus direitos e como tal deverão os RR. ser absolvidos da condenação como litigantes de má-fé.”
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Os Réus não responderam ao aperfeiçoamento das conclusões recursivas.
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O recurso é o próprio e foi admitido adequadamente quanto ao modo de subida e efeito.
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Correram os legais Vistos.
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II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que, in casu, importa apreciar as seguintes questões:
1 - Nulidades de decisão;
2 - Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
3 - Eventual reapreciação de mérito da sentença recorrida centrada nos pressupostos da posse e usucapião.
4 - Eventual litigância de má-fé dos Apelantes.
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III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Consta da sentença recorrida o seguinte quanto a matéria de facto:
“IV.1. Factos Provados
Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
DOS INTERVENIENTES PROCESSUAIS E ASCENDENTES
1. (…) faleceu em 09/01/1999 no estado de casado com (…).
2. (…) faleceu em 20/05/1999, no estado de viúva.
3. (…) é filho de (…).
4. Em 08/04/2021, (…) faleceu, no estado de casado com a autora, sob o regime de comunhão de adquiridos.
5. Os réus (…) e (…) são filhos de (…) e (…) é casado com a ré (…).
6. Em 03/02/2016, (…) outorgou testamento no Cartório Notarial de Sintra, Dra. (…) onde declarou que: “Se falecer no estado de casado, lega, por conta da sua quota disponível a sua mulher (…), natural da freguesia de (…), concelho de Loulé, com ele residente, o prédio urbano sito na Rua (…), n.º 86, em Loulé, freguesia de Loulé (…) concelho de Loulé, inscrito na matriz sob o artigo (…), da referida freguesia. Se, porém, falecer no estado de viúvo, lega, por conta da sua quota disponível, o prédio urbano atrás identificado, ao seu enteado (…), casado natural da freguesia de (…), concelho de Loulé, residente na Rua Dr. (…), n.º 34, cave, frente, Amadora”.
DA DOAÇÃO E POSSE DO IMÓVEL
7. Em 29/09/1993, através de escritura pública realizada no Cartório Notarial de Loulé, (…) e (…) doaram, por conta das suas quotas disponíveis e com reserva de usufruto, a (…) o prédio urbano sito na Rua (…), n.º 86, em Loulé, freguesia de Loulé (…) concelho de Loulé, inscrito na matriz sob o artigo (…), da referida freguesia.
8. (…) manteve-se a residir no prédio em causa até ao seu falecimento em 09/01/1999.
9. Após a morte de (…) e (…), (…) e a autora sempre detiveram a chave e livre acesso ao prédio melhor descrito no ponto 7, à frente de todos, sendo (…) reconhecido como o seu proprietário, com exclusão de outrem.
10. Aquando das suas deslocações ao Algarve, até 2020, a autora e (…) usaram o 1.º andar do prédio para férias ou visitas e emprestaram-no a familiares e amigos para o mesmo fim.
11. O rés-do-chão do prédio melhor descrito no ponto 7 foi arrendado pelo falecido (…) a terceiras pessoas, nomeadamente a (…), com início em 01/05/2014 e a (…), com início em 01/09/2017, que lhe pagaram renda durante a vigência dos respetivos contratos.
12. Até 2020, os réus nunca exerceram qualquer poder de facto sobre o prédio em causa.
13. Até 2021, o prédio mencionado no ponto 7, manteve-se inscrito em nome de (…) e (…) e a descrição passou a ter o n.º (…), da freguesia de (…), Loulé.
DA ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL E RESPETIVO REGISTO
14. Em 02/07/2021, os réus outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial em Vilamoura, através do notário (…).
15. Na escritura descrita no ponto 14 os réus declararam que:
São donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio urbano composto por morada de casas térreas e quintal, destinado a habitação, sito na Rua Dr. (…), número oitenta e seis, em Loulé, freguesia de Loulé (…), concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número (…), daquela freguesia, com o registo de aquisição a favor de (…) e mulher (…), conforme Apresentação (…) do dia 18/04/1963, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), com o valor patrimonial tributário de € 27.293,35, ao qual atribuem o valor de vinte e sete mil e trezentos euros (...)
Que entraram conjuntamente na posse do referido imóvel como se proprietários fossem em comum e partes iguais, por doação verbal feita pelo (…) e … (sendo ele avô da primeira outorgante identificada em I e do primeiro outorgante marido identificado em II), em data imprecisa do mês de agosto do ano de 1996.
Que, à data, o outorgante marido identificado em II era solteiro, maior, nunca tendo transmitido a posse desse imóvel à sua mulher.
Que, assim, justificam que possuem o referido prédio urbano desde aquela época, há mais de vinte anos, de forma pública, pacífica, contínua e de boa fé, ou seja, com o conhecimento de toda a gente, sem violência nem oposição de ninguém, reiterada e ininterruptamente, na convicção de não lesarem quaisquer direitos de outrem e ainda convencidos de serem titulares do respetivo direito, em compropriedade, na proporção de metade para a primeira outorgante identificada em I e da outra metade para o primeiro outorgante marido identificado em II, e assim os julgando as demais pessoas, têm possuído aquele prédio, do qual possuem a chave, mantendo-o e usando-o em parte como arrecadação, estando a outra parte arrendada à senhora (…), de quem recebem a renda, a qual enquanto mera detentora lá reside, pernoita, toma lá as suas refeições e recebe lá os seus amigos;
sendo a primeira outorgante identificada em I e o primeiro outorgante marido identificado em II, que tratam da manutenção do imóvel, pelo que, tendo em consideração as referidas caraterísticas do imóvel, o adquiriram por usucapião, estando impossibilitados de comprovar a referida aquisição pelos meios extrajudiciais normais”.
16. Encontra-se inscrita aquisição por usucapião, a favor dos réus, do prédio urbano sito na Rua Dr. (…), n.º 86, freguesia de (…), Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), daquela freguesia e inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), através da Ap. (…), de 08/09/2021.
DA PROPOSITURA DA AÇÃO
17. Em 15/07/2022, a autora propôs a presente ação.
IV. 2. Factos não provados
Com relevância para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos não compagináveis com os acima indicados, designadamente:
A) Em agosto de 1996, (…), avô paterno dos réus (…) e (…), estabeleceu o seguinte acordo com o filho (…) e a sua esposa, (…): o prédio descrito no ponto 16 ficaria para os réus (…) e (…) após a morte do seu filho (…).
B) … e …, aqui réus, detinham a chave do imóvel descrito no ponto 16 e tinha livre acesso ao mesmo.
C) Após o acordo estabelecido em agosto de 1996, descrito na alínea A), embora (…) e (…) tenham continuado a residir no imóvel, foram sempre os 1.º e 2.º réus que tiveram o poder de facto do imóvel, agindo como se proprietários fossem.
D) … e …, aqui réus, sempre procederam ao pagamento do IMI.
E) … apenas outorgou os contratos de arrendamento mencionados no ponto 11 por o imóvel se encontrar inscrito na matriz a seu favor e uma vez que os réus pretendiam que as rendas revertessem a favor de seu pai, (…).
F) Desde agosto de 1996, os réus sempre mantiveram o poder de facto do imóvel, melhor descrito no ponto 16, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, na intenção e na convicção de que o mesmo lhes pertencia, sem prejudicar ou lesar direitos alheios.
G) Os réus desconheciam a escritura de doação constante do ponto 7.
H) Após a morte de (…) e (…), (…) sempre procedeu ao pagamento dos respetivos IMI até 2021.
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Não se consideraram os demais «factos» insuscetíveis de prova, pela sua natureza conclusiva, probatória ou de direito.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1-Nulidades de decisão
Vieram os Apelantes arguir a nulidade da sentença fundada na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, argumentando que o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre a eventual litigância de má-fé na sentença, remetendo para decisão posterior, quando o deveria ter feito naquela por estar em causa uma questão de conhecimento oficioso.
Arguiram ainda a nulidade da decisão proferida após a sentença e que condenou os mesmos como litigantes de má-fé também com fundamento no disposto na alínea d) do artigo 615.º do CPC por entenderem que naquela o Tribunal a quo conheceu de questão de que o juiz já não podia tomar conhecimento, por dever tê-lo feito na sentença.
Na respectiva resposta ao recurso o Apelado pugnou pela improcedência das nulidades suscitadas conforme se alcança designadamente dos pontos 10 a 13 das conclusões que alinharam na dita resposta.
De forma resumida podemos dizer que os Apelantes invocam omissão de pronúncia no tocante à sentença e excesso de pronúncia no que concerne à decisão proferida em 05/06/2023, sendo certo que no caso de se entender inexistir omissão de pronúncia na sentença não haverá fundamento para considerar existir excesso de pronúncia na decisão proferida em 05/06/2023.
Vejamos, então, se lhes assiste razão.
Decorre do artigo 615.º, n.º 1, do CPC que:
É nula a sentença quando:
[…]
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Relativamente à nulidade prevista nesta alínea d) do n.º 1 do identificado artigo 615.º do CPC, concretamente quanto à chamada “Omissão de pronúncia“, a que alude a primeira parte da dita alínea, diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, em anotação ao mencionado artigo (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ª edição atualizada, Almedina, 2020, pág. 764), que a omissão de pronúncia afere-se “seja quanto às questões suscitadas, seja quanto à apreciação de alguma pretensão”.
E acrescentam ainda que “[…] o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso“, não obrigando, todavia,“[…] a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com «questões» […]”.
Neste sentido saliente-se, entre vários outros, os acórdãos do STJ de 27/03/2014, proferido no Processo 555/2002 e de 08/02/2011, proferido no processo n.º 842/04TBTMR.C1.S1 (ambos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt).
Neste último aresto de 08/02/2011 decidiu-se de forma bastante clara o seguinte:
“Não há que confundir as questões colocadas pelas partes com os argumentos ou razões que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões em determinado sentido: as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões…”.
E acrescenta-se ainda no dito acórdão que “Se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia”.
Por seu turno, quanto ao chamado “Excesso de pronúncia“, prevenido na 2ª parte da supra identificada alínea d), os Autores supra citados, ainda na obra igualmente acima identificada (pág. 764), enquadram-no na “apreciação de questões de facto ou de direito que não tenham sido invocadas e que não sejam de conhecimento oficioso”.
Também na dimensão jurisprudencial existem ideias solidificadas quanto a esta nulidade.
De acordo com o acórdão do STJ de 04/03/2004, proferido no Processo 04B522, (acessível para consulta in www.dgsi.pt ), a nulidade por excesso de pronúncia “reporta-se a questões e não a motivações, ou seja, apenas se reporta a pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes centralizaram o litígio, incluindo as excepções […] e não à sua argumentação em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos”.
Neste mesmo sentido veja-se o Acórdão do STJ de 05/02/2004, proferido no Processo 03B3809, publicado na mesma base de dados.
Correlacionado ainda com a questão ora em tratamento diz-nos o artigo 608.º, n.º 2, do CPC, que:
O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras […]”.
Revertendo agora ao caso concreto percebemos pelo invocado em sede de conclusões recursivas aperfeiçoadas dos Apelantes que os mesmos entendem que houve omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo ao ter sentenciado a causa sem lograr pronunciar-se na mesma sobre a sua eventual litigância de má-fé, o que se impunha tivesse feito por estar em causa a apreciação de uma questão de conhecimento oficioso.
Conforme decorre do exame dos autos (maxime da leitura da petição inicial, contestação, despacho saneador, despacho de identificação do objecto do litigio e temas de prova, assim como das actas de audiência final) e a sentença assim o esclarece na sua parte final ao mencionar “De forma a evitar uma decisão surpresa, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código do Processo Civil, notifique os réus para, no prazo de 10 dias, virem pronunciar-se sobre uma eventual condenação como litigantes de má-fé”, o incidente tendente a apreciar uma eventual conduta como litigante de má-fé foi suscitado oficiosamente pelo próprio Tribunal a quo na dita sentença, o que nenhuma censura deve merecer uma vez que o objecto do mesmo prende-se efectivamente com a apreciação e julgamento de questão de conhecimento oficioso.
Porém, ainda que se trate de matéria de conhecimento oficioso, ao suscitá-la o Tribunal deve conferir prévio cumprimento ao principio do contraditório, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, que estatui o seguinte:
3. O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Invocam os Apelantes uma suposta violação dos preceitos contidos no artigo 607.º, nºs 1 e 2, 608.º e 613.º do CPC.
Prevê-se no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, que:
2-O Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Em comentário a este preceito dizem-nos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa na obra acima referenciada (pág. 753), que:
“[…], não deve ser descurado, relativamente a tais questões, o respeito pelo principio do contraditório, o que, nas concretas circunstâncias, pode determinar a audição das partes para se pronunciarem, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, formalidade apenas dispensada quando se trate de casos de manifesta desnecessidade.
Tal diligência deve ser acautelada também quando o juiz, no uso do poder/dever de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3), configure uma solução ou um efeito jurídico que se revele surpreendente para as partes”.
Por sua vez, em comentário ao disposto no artigo 613.º do CPC, concretamente ao seu n.º 1, que prevê que “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, dizem-nos Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 4.ª edição, Almedina, 2019, pág. 613), o seguinte:
“Não constitui alteração do decidido o proferimento, subsequente à decisão de mérito, de decisão sobre matéria diversa. Assim, não há violação do principio do esgotamento do poder jurisdicional quando, posteriormente à sentença, o juiz condena o autor como litigante de má fé (ac. do TRC de 2.2.2016, Jorge Arcanjo, www.dgsi.pt, proc.º n.º 115/12)”.
Não podemos deixar de acrescentar a este argumentário, por se traduzir num contributo positivo e no mesmo sentido do acabado de expor, a resenha jurisprudencial feita pelo Apelado na sua resposta ao recurso, reiterada nos pontos 12 e 13 das conclusões que alinhou na dita resposta.
Concordamos com tal interpretação dos preceitos legais acabados de indicar acima, designadamente do n.º 2 do artigo 608.º e n.º 1 do artigo 613.º do CPC, o que infirma a posição que os Apelantes tentaram defender no presente recurso e afasta qualquer nulidade por omissão de pronúncia da sentença recorrida e, por conseguinte, o também invocado vicio de nulidade, por excesso de pronúncia, da decisão proferida posteriormente à sentença, precisamente na data de 05/06/2023, que se pronunciou sobre o incidente de litigância de má-fé e culminou com a condenação dos Apelantes.
Improcedem, assim, as nulidades de decisão invocadas pelos Apelantes.

2 - Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Prevê o artigo 640.º do CPC, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil“, Almedina, 5ª ed., 2018, a págs. 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas no mencionado n.º 1 e 2, a), do artigo 640.º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor”.
Decorre do artigo 662.º, n.º 1, do CPC, o seguinte:
1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Refere a propósito deste normativo António Abrantes Geraldes (obra acima citada, pág. 287), que:
“O actual artigo 662.º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava […], através dos nºs 1 e 2, alíneas a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do principio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
Diz-nos também sobre este preceito o Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues (“Noções Fundamentais de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição atualizada, 2019, págs. 463-464), o seguinte: “A redação do preceito [662.º, n.º 1] não parece ter sido muito feliz quando manda tomar em consideração os “factos assentes” para proferir decisão diversa, que só pode ser daqueles mesmos factos considerados assentes, porque o que está em causa é modificar a decisão em matéria de facto proferida pela primeira instância.
[…]
A leitura que se sugere como mais adequada do preceito, salvaguardada melhor opinião, é que ele pretende dizer que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, “confrontados” com a prova produzida ou com um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Nesta sede importa ainda recordar o teor dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, relativo à “Sentença”, que se traduzem no seguinte:
4- Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
5- O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
A este propósito diz-nos José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre na obra já acima citada (pág. 709), o seguinte:
“O principio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração […]: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiências aplicáveis”.
Assim, a prova submetida à livre apreciação do julgador não significa prova sujeita unicamente ao livre arbítrio do mesmo, como, aliás, bem se depreende da leitura do n.º 4 do supra referido artigo 607.º do CPC, que na sua primeira parte impõe ao juiz que analise “criticamente” as provas, indique as “ilações tiradas dos factos instrumentais” e especifique os “demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”.
Neste domínio referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (obra supra citada, pág. 745), o seguinte:
“O juiz deve, pois, expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados.”

Aqui chegados, baixemos agora ao caso concreto.
No respectivo recurso os Apelantes insurgem-se contra a decisão relativa à matéria de facto descriminada na sentença recorrida entendendo que o Tribunal a quo deveria ter considerado como provado o facto vertido sobre a alínea G) dos factos considerados como não provados, o que passaria a constituir o ponto 18 do segmento dos factos considerados como provados, assim como acrescentado aos factos considerados como provados um ponto 13-A e um ponto 16 com teor diferente do que consta actualmente da sentença recorrida e bem assim conferido diferente redacção ao ponto 15 do aludido segmento dos factos tidos como provados e conferido ao actual ponto 17 dos factos considerados como provados a redacção, com algumas alterações, que se encontra neste momento vertida sob o ponto 16 do segmento dos factos tidos por provados.
Relativamente ao facto não provado impugnado percebemos pela leitura da motivação recursiva que os Apelantes indicaram como meio probatório concreto, em que alicerçaram a solução diferente que defendem, passagens das declarações de parte prestadas pelo Co-Réu João Justo, tendo, inclusive, transcrito os excertos que entenderam ser relevantes.
Quanto ao facto que pretendem seja aditado ao segmento dos factos considerados como provados sob o ponto 13-A indicaram um documento carreado aos autos (Doc. n.º 8, junto pela Autora).
Já no tocante aos restantes factos impugnados verifica-se que os Apelantes se estribaram igualmente em documentos juntos aos autos, mormente na escritura de justificação notarial e na certidão de inscrição de aquisição por usucapião, divergindo, na interpretação que deles fizeram, da solução abraçada pelo Tribunal a quo entendendo que a mesma deveria ter sido outra.
Na sua resposta ao recurso a Apelada pugna pela parcial procedência da impugnação.
No cenário acabado de expor consideramos minimamente cumprido o ónus de obrigatória especificação previsto no n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, pelo que passaremos de imediato a conhecer do mérito da impugnação.
Quanto à alínea G) inserta no segmento atinente aos factos considerados como não provados na sentença recorrida sabemos já que os Apelantes motivam a demonstração de tal facto unicamente em pequenos excertos, que transcreveram, das declarações de parte do próprio Co-Apelante (…).
O facto em apreço foi alegado pelos Apelantes na sua contestação (cfr. pontos 20 e 22 da contestação).
Vejamos de que forma motivou o Tribunal recorrido a solução que encontrou para o facto em apreço:
[…]
Os factos constantes dos pontos 8 a 11 e alíneas A) a H) deram-se como provados/ não provados com base na prova produzida em Audiência Final e nos documentos juntos aos autos.
[…]
Todas as testemunhas apresentaram um testemunho que se verificou ser credível por não existir maiores incongruências entre os vários depoimentos. Assim, com exceção do réu (…), todos os intervenientes vieram contar factos semelhantes.
[…]
Assim, verifica-se que todos os factos constantes da contestação não correspondem à verdade e nunca os réus tiveram qualquer poder de facto sobre o imóvel. E mesmo as testemunhas por si arroladas não o puderam afirmar. É ainda curioso que nenhuma das testemunhas que esteve presente aquando da outorga da escritura de justificação notarial foi arrolada como testemunha em tribunal...
Em face do exposto, entendemos que os autores lograram provar os factos elencados na petição inicial (note-se que se trata de uma ação de simples apreciação negativa...), não tendo os réus logrado provar quaisquer dos factos por si alegados na contestação.”
Conforme é sabido, pois decorre da nossa lei civil e processual civil (cfr. artigo 352.º do Código Civil e 466.º do CPC), as declarações de parte só relevam como confissão relativamente ao reconhecimento de factos que sejam desfavoráveis ao declarante e favoreçam a parte contrária.
Em tudo o mais, que não possa valer como confissão, as ditas declarações de parte ficam sujeitas à livre apreciação do Tribunal de acordo com o disposto expressamente no n.º 3 do artigo 466.º do CPC.
Porém, importa reter que tem sido entendimento maioritário, a nível doutrinário e jurisprudencial, que a prova a realizar por meio de declarações de parte (naquilo que escape à confissão), deve ser acompanhada de outros(s), meio(s) probatório(s) que ajude(m) a confirmar o declarado pela Parte, o que se percebe perfeitamente pois a posição do declarante de parte no processo não é a de testemunha, mas sim de alguém interessado num determinado desfecho do processo.
No tocante ao facto em apreço mais nenhum elemento de prova carreado aos autos acompanha a versão do Co-Apelante (…) de que os Apelantes desconheciam a escritura pública de doação outorgada em 29/09/1993.
No contexto exposto julga-se improcedente a impugnação no tocante ao ponto de facto vertido sob a alínea G) do segmento da sentença recorrida atinente aos factos considerados como não provados.
Entendem os Apelantes que deverá acrescentar-se ao elenco dos factos considerados como provados da sentença recorrida um ponto 13-A com a seguinte redacção:
“13-A Em 14 de Junho de 1999, (…) declarou no processo de imposto sucessório aberto por … (que não era mãe do mesmo) ½ do imóvel que veio a ser objeto de justificação, através da escritura dada como provada em 14”.
Este facto foi parcialmente alegado na contestação sob o artigo 9.
Os Apelantes invocam como meio probatório apto a demonstrar o dito facto o documento junto com a petição inicial identificado como “Doc. 8”.
Porém, se cotejarmos o teor deste documento com o teor da escritura pública de doação outorgada em 29/09/1993, a que se refere o ponto 7 dos factos considerados como provados na sentença recorrida (“Doc. 6” junto com a petição inicial), percebemos não ser seguro aceitar que em ambas esteja em causa exactamente o mesmo imóvel, pois não existe identidade de inscrição matricial.
Mas ainda que se trate exactamente do mesmo imóvel afigura-se-nos, outrossim, que o facto pretendido aditar aos factos provados passível de ser retirado do documento identificado como “Doc. 8”, além de não poder assumir a precisa redacção proposta pelos Apelantes, pois, desde logo, a data constante do carimbo aposto no documento não coincide com a mencionada por estes últimos, também não se reveste de relevo para a decisão da presente causa, uma vez que, como bem o salienta a Apelada na respectiva resposta ao recurso, tendo a doação formalizada na escritura pública outorgada em 29/09/1993 sido feita pelos doadores (…) e (…) a (…), com reserva de usufruto a favor dos primeiros (cfr. o facto assente vertido sob o n.º 7 do elenco dos factos considerados como provados), a extinção do mesmo, por morte dos usufrutuários, teria que ser comunicada à autoridade tributária, implicando tal a prévia participação em sede de imposto.
Dito isto, é de julgar igualmente como improcedente a impugnação no tocante ao aditamento factual pretendido.

Prosseguindo na análise da impugnação pretendem os Apelantes a alteração da redacção constante do ponto 15 dos factos considerados como provados entendendo que resulta da escritura de justificação que foram apenas os Réus, ora Apelantes, (…) e (…) e não todos os Réus da presente causa que declararam o que resulta descrito no dito ponto de facto.
A Apelada concorda com a pretendida alteração, aduzindo que se trata de um lapso do Tribunal a quo resultante, provavelmente, dos três Réus na acção não terem autonomizado as defesas em sede de contestação.
Na verdade, são Réus e ora Apelantes, nesta causa, (…), (…), estes irmãos entre si e (…), esposa de (…).
Porém, da leitura da escritura de justificação carreada aos autos com a petição inicial como “Doc. 13”, a que se alude nos pontos 14 e 15 do segmento atinente aos factos considerados como provados na sentença recorrida, resulta expresso que o que consta transcrito sob o ponto de facto n.º 15 como tendo sido declarado nessa escritura pelos “Réus”, na verdade foi feito apenas pelos “Primeiros Declarantes, identificada em I e o outorgante marido identificado em II”
Ora, a primeira declarante identificada em I é a ora Apelante (…) e o outorgante marido identificado em II é o ora Apelante (…).
Procede, assim, a impugnação relativa à matéria de facto no tocante ao ponto impugnado acabado de reapreciar.
Em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto os Apelantes pugnaram, ainda, pelo aditamento ao elenco dos factos considerados como provados de um facto, que entenderam resultar da escritura de justificação, com o seguinte teor:
“16. Na escritura descrita no ponto 14 a Ré (…) declarou: «que o seu marido já era compossuidor do imóvel supra identificado à data do seu casamento, nunca se tendo sentido como dona do imóvel, ou seja, nunca teve o animus possidente, nem tão pouco foi detentora do referido prédio, pelo que o mesmo é bem próprio do marido».”
Para além do ponto de facto que se pretende aditar à matéria de facto provada apenas conter juízos conclusivos sobre factos e não propriamente factos naturalísticos ainda encerra em si conceitos jurídicos (“compossuidor”, “animus possidendi”), sendo certo, por outra banda, que mesmo que se pretenda que o mesmo releve “nomeadamente” no tocante à análise da litigância de má-fé não se vislumbra em que medida é que tal aditamento aos factos provados pode relevar para a verificação, ou não, dessa conduta processual.
Isto dito, improcede a impugnação no tocante ao aditamento do ponto de facto em apreço.
Por fim, pugnaram os Apelantes pela alteração da redacção do teor do facto vertido sob o ponto 16 do segmento da sentença recorrida respeitante aos factos considerados como provados sustentando que resulta da certidão predial permanente relativa ao prédio urbano identificado no dito ponto que a aquisição por usucapião se encontra apenas inscrita a favor dos Réus, ora Apelantes, (…) e (…) e não de todos os Réus da presente causa.
Compulsando a mencionada certidão, que foi junta aos autos com a petição inicial como “Doc. 14”, afigura-se-nos que a redacção do facto contido no ponto 16- do elenco dos factos considerados como provados deverá passar a ser a seguinte:
“16. Encontra-se inscrita a aquisição, (por usucapião), a favor dos Réus (…) e (…), este último casado no regime de comunhão de adquiridos com a Co-Ré (…), do prédio urbano sito na Rua Dr. (…), n.º 86, freguesia de (…), Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), daquela freguesia e inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), através da Ap. (…), de 08/09/2012, mais constando ainda inscrito que «a quota parte de ½ do sujeito ativo (…) constitui seu bem próprio».”
Por todo o exposto, procede parcialmente a impugnação dos Apelantes dirigida à decisão relativa à matéria de facto constante da sentença recorrida alterando-se a redacção dos pontos nºs 15 e 16 do segmento respeitantes aos factos considerados como provados, os quais passam a ter o seguinte teor:
“15. Na escritura descrita no ponto 14 os Réus (…) e (…) declararam que:
São donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio urbano composto por morada de casas térreas e quintal, destinado a habitação, sito na Rua Dr. (…), número oitenta e seis, em Loulé, freguesia de Loulé (…), concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número (…), daquela freguesia, com o registo de aquisição a favor de (…) e mulher (…), conforme Apresentação (…), do dia 18/04/1963, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), com o valor patrimonial tributário de € 27.293,35, ao qual atribuem o valor de vinte e sete mil e trezentos euros (...).
Que entraram conjuntamente na posse do referido imóvel como se proprietários fossem em comum e partes iguais, por doação verbal feita pelo … e … (sendo ele avô da primeira outorgante identificada em I e do primeiro outorgante marido identificado em II), em data imprecisa do mês de agosto do ano de 1996.
Que, à data, o outorgante marido identificado em II era solteiro, maior, nunca tendo transmitido a posse desse imóvel à sua mulher.
Que, assim, justificam que possuem o referido prédio urbano desde aquela época, há mais de vinte anos, de forma pública, pacífica, contínua e de boa fé, ou seja, com o conhecimento de toda a gente, sem violência nem oposição de ninguém, reiterada e ininterruptamente, na convicção de não lesarem quaisquer direitos de outrem e ainda convencidos de serem titulares do respetivo direito, em compropriedade, na proporção de metade para a primeira outorgante identificada em I e da outra metade para o primeiro outorgante marido identificado em II, e assim os julgando as demais pessoas, têm possuído aquele prédio, do qual possuem a chave, mantendo-o e usando-o em parte como arrecadação, estando a outra parte arrendada à senhora (…), de quem recebem a renda, a qual enquanto mera detentora lá reside, pernoita, toma lá as suas refeições e recebe lá os seus amigos;
sendo a primeira outorgante identificada em I e o primeiro outorgante marido identificado em II, que tratam da manutenção do imóvel, pelo que, tendo em consideração as referidas caraterísticas do imóvel, o adquiriram por usucapião, estando impossibilitados de comprovar a referida aquisição pelos meios extrajudiciais normais”.
“16. Encontra-se inscrita a aquisição (por usucapião), a favor dos Réus (…) e (…), este último casado no regime de comunhão de adquiridos com a Co-Ré (…), do prédio urbano sito na Rua Dr. (…), n.º 86, freguesia de (…), Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), daquela freguesia e inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), através da Ap. (…), de 08/09/2012, mais constando ainda inscrito que «a quota parte de ½ do sujeito ativo (…) constitui seu bem próprio»” (Itálicos nossos).
Quanto ao demais que conforma a decisão relativa à matéria de facto provada e não provada mantem-se nos precisos termos em que foi descrita na sentença recorrida.

3 - Eventual reapreciação de mérito da sentença recorrida centrada nos pressupostos da posse e usucapião.
Os Apelantes outorgaram uma escritura de justificação notarial para estabelecimento de trato sucessivo no registo predial através da qual declararam ter adquirido pela usucapião o prédio urbano melhor identificado nos autos, mormente nos factos vertidos sob os pontos 7 e 15 do segmento da sentença recorrida atinente aos factos considerados como provados.
Competia, pois, aos Apelantes na presente acção de impugnação de escritura de justificação notarial, que se consubstancia em acção declarativa de simples apreciação negativa, dirigida contra si pela Apelada, provar os factos constitutivos da causa de aquisição originária do direito de propriedade que declararam na dita escritura e reafirmaram na sua contestação, ou seja os requisitos de posse boa para usucapião.
Conforme se alcança com relativa facilidade da leitura das conclusões recursivas aperfeiçoadas os Apelantes pretenderam chegar à demonstração desses requisitos através da impugnação da decisão relativa à matéria de facto que suscitaram no seu recurso, a qual apenas procedeu de forma muito limitada e sem qualquer influência no tocante à demonstração dos requisitos legais da posse e usucapião do prédio urbano em causa nos autos.
De resto, sempre se retira das ditas conclusões recursivas aperfeiçoadas que o único facto em que os Apelantes verdadeiramente se estribaram para tentar infirmar a procedência da causa respeita à alínea G) dos factos considerados como não provados, que os mesmos sustentaram, sem êxito, ter resultado como provado, pois no mais a impugnação orientou-se essencialmente para a tentativa de infirmar a respectiva condenação em litigância de má-fé, que reapreciaremos já de seguida.
Na verdade, percebemos da leitura da motivação e conclusões recursivas aperfeiçoadas que os Apelantes não lograram apresentar uma solução jurídica compatível com a sua pretensão para a hipótese de a matéria de facto descrita na sentença recorrida se manter no essencial inalterada, como veio a suceder.
E assim manteve-se válida a argumentação exposta na sentença recorrida que permite sustentar a procedência do pedido formulado na presente causa e que nos permitimos transcrever de seguida.
“Cotejados os factos dados como provados, é convicção deste tribunal que, em relação aos réus, não estão verificados os requisitos da usucapião. Senão, vejamos. Da prova produzida, considerou-se provado que (…) e (…) residiram na casa até ao seu falecimento em 1999. Depois, (…) assumiu o poder de facto sobre o prédio – fez obras, pagou pelas mesmas, habitou a casa nas férias ou quando precisava de vir ao Algarve, tinha as chaves do imóvel celebrou contratos de arrendamento, pediu a uma pessoa para cuidar da mesma e tratar dos assuntos mais imediatos quando estivesse ausente (…). (…) veio a falecer em 08/04/2021.
Não logrando os réus conseguir alegar qualquer facto que fundamentasse a aquisição por usucapião, a escritura de justificação notarial é ineficaz, por existir uma dissociação entre os factos aí constantes e a realidade, o que deverá ser declarado.”
Improcede, em consequência, a questão de que acabámos de nos ocupar.
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4 - Eventual litigância de má-fé dos Apelantes
Os Apelantes foram condenados como litigantes de má-fé, em sede de incidente suscitado oficiosamente na sentença recorrida pelo Tribunal a quo, pela decisão proferida em 05/06/2023.
No seu recurso os Apelantes insurgem-se contra essa condenação, deixando tal devidamente salientado nos pontos IX e X das conclusões recursivas aperfeiçoadas.
Na respectiva resposta ao recurso a Apelada defende a manutenção do decidido também a este propósito.
Dir-se-á, desde já, que a procedência da alteração de redacção da parte inicial do facto vertido no ponto 15 dos factos considerados como provados na sentença recorrida não permite afastar de imediato a Co-Apelante (…) de uma eventual condenação como litigante de má-fé, pois, como acertadamente decorre do salientado pela Apelada na sua resposta ao recurso, a apreciação da litigância de má fé no caso em apreço deve levar em consideração a conduta durante o desenvolvimento da lide e não o que sucedeu antes, mormente em sede de declarações prestadas na escritura de justificação notarial.
Por isso e na medida em que a Co-Apelante (…) contestou conjuntamente com os demais Réus, ora também Apelantes, não autonomizando a sua oposição num diverso articulado de contestação, não tem fundamento apartá-la ab initio de uma possível conduta como litigante de má-fé.
Disto isto, prossigamos.
Resulta do artigo 542.º do CPC, atinente à noção e responsabilidade no caso de má fé, o seguinte:
“1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
[….]”
Já sabemos que na decisão do incidente despoletado o Tribunal recorrido entendeu condenar como litigantes de má-fé todos os Apelantes, concretamente em multa correspondente a quatro UCS cada um.
Fê-lo recorrendo à seguinte argumentação:
“Revertendo as considerações tecidas ao caso que consta dos autos, atenta a factualidade dada como provada e não provada entendemos que os réus agiram como litigantes de má-fé.
Se não, vejamos.
Em sede de contestação, os réus alegaram que em agosto de 1996, (…), avô paterno dos réus (…) e (…) acordaram com (…) que o prédio descrito no ponto 16 dos factos dados como provados na sentença, ficaria para os réus. Mais alegaram que após o referido acordo, foram sempre os réus que tiveram o poder de facto do imóvel, agindo como se proprietários fossem, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, na intenção e na convicção de que o mesmo lhes pertencia, sem prejudicar ou lesar direitos alheios.
Em face da prova produzida, considerou a signatária que os réus nunca exerceram qualquer poder de facto sobre o imóvel – em sede de declarações de parte, o réu, embora tenha referido que por conta da referida doação (não provada) se considerava proprietário, admitiu que sempre foi o pai que passava férias na casa com a esposa e que apenas habitou a casa com o pai em julho e agosto de 2020; mais se provou que, efetivamente, sempre foi (…) que exerceu poder de facto sobre o referido imóvel, agindo na qualidade de proprietário. Todas as testemunhas foram perentórias em referir que nenhum dos réus habitava a casa, que não tinham conhecimento de que os réus sequer tivessem a chave do imóvel até pelo menos julho de 2020. E ainda que os réus neguem que tivessem conhecimento da escritura de doação outorgada em 29/09/1993, certo é que não é credível que (…) tivesse doado o imóvel aos netos, verbalmente, três anos depois, tal como estes alegam (mas não demonstraram, nem por prova documental, nem por prova testemunhal).
Adotando uma atitude completamente temerária, bem sabendo que nunca tiveram o poder de facto do imóvel e que, efetivamente, a escritura de justificação por si outorgada continha factos que não correspondem à verdade material dos factos, os réus vieram apresentar contestação, tentando deturpar a realidade e manter o por si declarado na referida escritura.
Em face da postura adotada e dos factos dados como provados em sede de sentença, entendemos que houve dolo por parte dos réus ao manterem os factos, que já haviam declarado na referida escritura e que não correspondem à realidade.
Entendemos assim que os réus devem ser condenados como litigantes de má-fé.”
Embora o tribunal a quo não especifique designadamente no segmento essencial para fundamentar a condenação dos Apelantes, que supra transcrevemos, em qual das alíneas do n.º 2 do artigo 542.º do CPC, se apoia, percebemos que se terá estribado essencialmente na segunda parte da alínea a) desse normativo.
Diz-nos a propósito destes fundamentos de litigância de má-fé José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado” Volume 1, Almedina, 4ª ed., Fevereiro de 2019), o seguinte (pág. 457):
“Segundo o n.º 2, constituem actuações ilícitas da parte:
A dedução de pretensão ou oposição com manifesta falta de fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido ou da exceção (alínea a)) […]”
Ainda no ponto 4 do comentário ao preceito legal do artigo 542.º do CPC (pág. 457), acrescentam os referidos Autores que:
“É corrente distinguir má-fé material (ou substancial) e má-fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má-fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo, portanto, o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé.”
Aprofundemos um pouco mais o que supra já ficou dito sobre os fundamentos jurídicos para responsabilização como litigante de má-fé.
António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (“Código de Processo Civil Anotado” Vol. I, Almedina, 2020, 2ª edição atualizada), salientam em comentário ao referido preceito legal do artigo 542.º do CPC (pág. 616), o seguinte:
“[…] não deve confundir-se a litigância de má-fé com:
a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo;
b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor (RP 02-03-10, 615/09)”.
E como destaca António Meneses Cordeiro (“Litigância de Má-Fé, Abuso Do Direito de Ação e Culpa In Agendo”, Almedina, 2016, pág. 65), alinhado com diversa jurisprudência das nossas Relações:
“Os preceitos atinentes às condutas relativas à litigância de má-fé têm uma aplicação restrita […] Exige-se que as condutas visadas sejam “manifestas” e “inequívocas”, requerendo uma quase certeza, por parte do julgador, dado o desmerecimento que envolvem e suscitando, a este, prudência e cuidado e especiais cautelas”.
Ora estamos de acordo com as posições doutrinárias reveladas supra sublinhando designadamente a prudência e especial cautela que o julgador deve demonstrar na apreciação e condenação das partes como litigantes de má-fé.
Chamamos ainda à colação o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 08/09/2015 (in Proc.º 10562/12.4TCLRS.C1, acessível para consulta in www.dgsi.pt), relatado por Henrique Antunes, que não considerou ser suficiente para a condenação por litigância de má-fé “uma qualquer divergência ou desarmonia entre os factos, tal como a parte os descreve e como, ulteriormente, vêm a ser julgados e provados e qualificados”, visto a litigância de má-fé dever deixar “incólume o direito das partes discutirem e interpretarem livremente os factos”.
Ora bem, já se disse antes que uma eventual conduta como litigantes de má-fé por parte dos Apelantes não deve ser aferida por referência ao declarado na escritura de justificação notarial outorgada em 02/07/2021.
Com efeito, sem prejuízo do que foi declarado em tal acto poder, ou não, ter gerado eventual responsabilidade, inclusive criminal, para os Apelantes, ou alguns deles, o certo é que em sede de apreciação de litigância de má-fé a sua conduta tem de ser analisada em função do desenvolvimento da presente causa.
E nessa medida afigura-se-nos que a circunstância de os Apelantes terem procurado, sem êxito, através da contestação apresentada nestes autos, demonstrar factualmente os requisitos de uma posse boa para usucapião, por forma a provarem a declarada aquisição do direito de propriedade sobre o prédio urbano identificado nos autos, não se mostra suficiente para concluir que terão agido dolosamente, ou pelo menos com negligência grave, ao reagirem dessa forma ao pedido de impugnação da escritura de justificação notarial contra si dirigido pela Apelada, por não deverem ignorar a falta de fundamento de tal oposição, na medida em que se mostra ainda aceitável incluir a situação em apreço na esfera das possibilidades avançadas nas alíneas a) a c) por António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa em sede de comentário ao artigo 542.º do CPC, que supra transcrevemos, mormente na oposição que naufragou por virtude de a Parte não ter conseguido convencer o Tribunal da realidade trazida a juízo.
No contexto descrito deverá, então, a decisão proferida em 05/06/2023 ser revogada e substituída por outra que absolva os Apelantes do incidente de litigância de má-fé
Destarte, procede parcialmente o presente recurso interposto pelos Apelantes.
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V – DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta 1ª Secção Cível em conceder parcial provimento ao recurso de apelação interposto por (…), (…) e (…) decidindo-se, em consequência, o seguinte:
a) Confirmar a sentença recorrida;
b) Revogar a decisão proferida em 05/06/2023, em sede de incidente de litigância de má-fé, substituindo-se por outra de absolvição, como litigantes de má-fé, de todos os Apelantes;
c) Condenar Apelada e Apelantes em custas pelo respectivo decaimento na acção, fixando-se a proporção em 20% para a primeira e em 80% para os segundos – artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC.
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DN
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Évora, 07/03/2024
José António Moita (Relator)
Maria Adelaide Domingos (1ª Adjunta)
Ana Pessoa (2ª Adjunta)