Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2896/21.3T8FAR.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: ARRENDATÁRIO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
QUOTA INDIVISA
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O arrendatário de todo o prédio, prédio esse não constituído em propriedade horizontal, não tem direito legal de preferência na compra de quota no direito de propriedade sobre o prédio.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autora: (…) – Restauração e Bebidas, Lda.
Recorridas / Rés: (…) – Gestão de Imóveis, Lda. e (…) Inédito, Lda.

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual a A, na qualidade de arrendatária, peticionou o reconhecimento do seu direito de preferência, pedido que formulou nos seguintes termos:
I. Ser reconhecido à Autora o direito de preferir às Rés na compra do prédio identificado em 1.º da presente petição inicial;
II. Ser reconhecido à Autora o direito de haver para si o prédio identificado em 1.º da presente petição inicial, substituindo a Ré (…) Inédito na posição jurídica desta por força do exercício do direito de preferência;
III. Ser ordenado o cancelamento da inscrição da Ap. (…), de 2021/04/15 do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 70, em Faro, da União das Freguesia da Sé e São Pedro, Concelho de Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro com o número (…) e inscrito na respetiva matriz urbana com o artigo (…).
IV. Ser ordenado o cancelamento de quaisquer outras inscrições prediais averbadas ao mesmo prédio e relativas a qualquer transmissão ou oneração do direito de propriedade dos aqui Réus.
Invocou, para o efeito, a sua qualidade de arrendatária relativamente a todo o prédio, onde exerce a atividade de restauração e similares, pelo que lhe assiste o direito de preferência na aquisição do prédio, conforme previsto no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC. Teve lugar a venda, pela 1.ª à 2.ª R., do direito a um terço (1/3) do prédio urbano que constitui o locado, sem que lhe tivesse sido concedido o direito a exercer a preferência nos termos previstos no artigo 1091.º/ 6 e 7, do CC.
Em sede de contestação, as RR salientaram que se trata de imóvel indiviso e detido em compropriedade e invocaram que o contrato de arrendamento a que alude a A é nulo e ineficaz, o que constitui objeto de ação judicial que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro. Impugnam a factualidade alegada pela A, invocam que não assiste à A o direito de preferência e pugnam pela suspensão da instância por causa prejudicial.
Teve lugar audiência prévia.
A instância foi suspensa por pendência de causa prejudicial.
No decurso da suspensão, as partes foram auscultadas sobre a improcedência da ação decorrente da inexistência de direito de preferência, nem sobre a parte arrendada nem sobre a parte objeto de venda, dado que o prédio não está constituído em propriedade horizontal.
A A manifestou oposição, invocando o facto do presente arrendamento incidir sobre a totalidade do prédio em causa, e não sobre uma parte do mesmo.

II – O Objeto do Recurso
Foi proferida sentença julgando a ação totalmente improcedente, absolvendo as Rés dos pedidos.
Inconformada, a Autora apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que determine o prosseguimento dos autos. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«i. A Recorrente “(…) – Restauração e Bebidas, Lda.”, tomou de arrendamento (comercial / não habitacional), em sete de julho do ano de dois mil e quinze (07/07/2015), o prédio urbano sito na Rua (…), n.º 70, em Faro, da União das Freguesia da Sé e São Pedro, Concelho de Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro com o número (…) e inscrito na respetiva matriz urbana com o artigo (…), sem licença de utilização por ter sido inscrito na matriz em data anterior ao ano de 1951.
ii. O arrendamento incidia e continua a incidir sobre a totalidade do prédio urbano supra descrito (que é utilizado, na sua totalidade, para a exploração comercial) e a Recorrente, desde essa data, tem a posse e uso do mesmo, utilizando-o para o desenvolvimento da sua atividade económica, que se prende com a Restauração e Bebida, designadamente, explorando o estabelecimento comercial, Restaurante / Bar, denominado “(…)”.
iii. No dia um de março de dois mil e vinte e um (01.03.2021), a Ré (…) – Gestão de Imóveis, Lda., comunicou à aqui Recorrente que pretendia vender, à Ré (…) Inédito, Lda., em conjunto, a sua quota-parte (1/3) do prédio, identificado supra, e a sua quota-parte (1/3) do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 60 a 68, da União das Freguesia da Sé e São Pedro, Concelho de Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro com o número (…) e inscrito na respetiva matriz urbana com o artigo (…), sem licença de utilização por ter sido inscrito na matriz em data anterior ao ano de 1951.
iv. A Recorrente informou que pretendia exercer o seu direito de preferência de aquisição da quota-parte (1/3) do prédio urbano da qual é arrendatária e acima melhor descrito e identificado.
v. A Ré recusou conceder a preferência do prédio da qual a Recorrente é arrendatária, tendo, nessa sequência, outorgado escritura de compra e venda do mesmo, com a Ré (…) Inédito, em treze de julho de dois mil e vinte e um (13/07/2021) e pelo preço de cento e cinco mil euros (€ 105.000,00).
vi. A Recorrente deu entrada da ação – que originou a decisão que ora se coloca em causa – para exercer o seu direito de preferência, no dia treze de outubro de dois mil e vinte e um (13/10/2021) e depositou o preço, conforme manda a lei.
vii. No dia quatro de outubro de dois mil e vinte e três (04/10/2023), a Recorrente foi notificada de um despacho do douto tribunal a quo (despacho com a referência 129683519), em que equacionava a hipótese de, declarar cessada a suspensão da instância e apreciar o mérito da ação, julgando-a improcedente, em virtude da jurisprudência unânime dos tribunais portugueses e, mais recentemente, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora nos autos que correram os seus termos sob o n.º 3006/21.2T8FAR – J2, deste Juízo Central1, em que, apreciando uma situação em tudo semelhante à dos presentes autos e em que também são intervenientes aos ora rés (…) e (…) Inédito, se considerou não haver direito de preferência, nem sobre a parte arrendada, nem sobre a parte objeto da venda, nos casos em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal.
viii. A Recorrente pronunciou-se, relativamente ao despacho, no dia dezasseis de outubro de dois mil e vinte e três (16/10/2023), tentando fazer ver ao douto Tribunal a quo, que o caso em apreço nos presentes autos não é similar, nem é “em tudo semelhante” aos casos decididos anteriormente pelos Tribunais e para onde foi remetida a sua fundamentação, uma vez que, a Recorrente é arrendatária, com posse e uso, da totalidade de um prédio urbano e no qual desenvolve a sua atividade económica.
ix. Para surpresa da aqui Recorrente, foi proferido despacho saneador / sentença com a absolvição das Rés.
x. Ora, resulta da fundamentação do douto Tribunal a quo, o reconhecimento que as decisões que suportavam e tiveram na base do despacho para que as partes se pronunciassem sobre a possibilidade de uma decisão no saneador, foram para situações que não são semelhantes à dos presentes autos, por não ser a Recorrente arrendatária de parte do prédio indiviso mas sim da sua totalidade.
xi. A decisão no saneador / sentença ancorou-se, sucintamente, nos seguintes fundamentos: “(…) para além de se entender que o arrendatário não tem ainda direito de preferência na venda de quota ideal do prédio arrendado, dado que o objetivo do direito legal de preferência é reunir num só arrendatário e senhorio, o que não se verifica em caso de venda de quota ideal, não sendo aplicável à situação dos autos, salvo melhor opinião, a situação prevista no artigo 1409.º do Código Civil (…) Salvo melhor opinião, aquela argumentação, muito embora referindo-se a um caso distinto, tem plena aplicação no caso concreto, tendo sido esse o sentido do nosso despacho de fls. 248 (ref.ª 129683519, de 4/10/2023) (…) Ora, ainda que se admitisse o exercício do direito de preferência pela autora sempre haveria que atentar às finalidades visadas pelo exercício de tal direito, as quais estão intimamente conexionadas com a extinção dos ónus ou restrições que prejudicam ou limitam o melhor aproveitamento do locado, diminuem o respetivo valor locativo ou potenciam litígios ou ainda a proteção da unidade empresarial, na justa medida em que o exercício de certa atividade comercial (qualquer que ela seja) pressupõe o caracter de estabilidade e continuidade (…) Por último, importa ainda salientar que, a possibilidade da autora vir a adquirir as restantes quotas se mostra arredada em virtude da pendência dos autos de divisão de coisa comum e das subsequentes alienações das quotas sobrantes a favor da 2.ª ré – vide factos provados nºs 5 e 6 – donde resulta afastada, de todo, a possibilidade da autora vir a adquirir, no futuro, a totalidade do prédio em causa, tornando-se a sua única e exclusiva proprietária.”
xii. Com o devido respeito, que é muito, não se compreende nem se pode aceitar a fundamentação do Tribunal a quo, uma vez que, no momento da aquisição da quota-parte, conforme supra descrito, a Ré “(…) Inédito” não era comproprietária do prédio objeto dos autos nem detinha qualquer qualidade que lhe conferisse preferência na aquisição do mesmo.
xiii. Aliás, nesse momento, pelo contrário, a aqui Recorrente era já arrendatária e tinha a posse e uso exclusivo do mesmo, explorando-o comercialmente, conforme era do conhecimento público e tinha, nos termos do artigo 1091.º do Código Civil direito de preferência.
xiv. Caso tivesse sido dada preferência à Recorrente, que se discute nos presentes autos, e que se crê ser da mais elementar justiça, teria sido esta a tomar a posição de comproprietária e não a Ré (…) Inédito e, uma vez que esta não era proprietária à data da outorga da escritura, não se aumentaria o número de comproprietários nem a divisão do prédio.
xv. O facto da Recorrente preferir não iria prejudicar ou limitar o melhor aproveitamento do locado, diminuindo o respetivo valor ou potenciar litígios ou ainda a proteção da unidade empresarial, na justa medida em que o exercício de certa atividade comercial (qualquer que ela seja) pressupõe o carácter de estabilidade e continuidade, bem pelo contrário.
xvi. A aquisição do prédio por esta, em detrimento da Recorrente, violou, grosseiramente, os dispositivos legais do direito de preferência, designadamente, os artigos 1901.º, 416.º a 418.º, 1409.º e 1410.º, todos do Código Civil e, sobretudo, a sua finalidade e propósito. Foi com a aquisição, que se encontra em causa nos presentes autos, que se exponenciou a litigância e o conflito entre as partes, diminui o valor do mesmo e colocou, ainda, em causa a proteção da unidade empresarial, na justa medida em que o exercício de certa atividade comercial (qualquer que ela seja) pressupõe o caracter de estabilidade e continuidade – que ora se encontra em crise.
xvii. Por outro lado, não é, igualmente, defensável que o exercício do direito de preferência, por parte da Recorrente, provocasse um prejuízo à Ré “(…)”, não existindo, no caso, qualquer sacrifício imposto ao comproprietário. Ao preferir, a Recorrente pagaria, à Ré “(…)” o mesmo preço que esta recebeu da Ré “(…) Inédito”, e nas mesmas condições, não se verificando qualquer diminuição do valor daquele.
xviii. Por fim, diga-se, que não é verdadeiro que a Recorrente não possa, caso a presente ação seja procedente, ser, no futuro, a única e exclusiva proprietária.
Tal argumento não colhe. No momento da venda da quota ideal da Ré “(…)”, existiam vários comproprietários do prédio. A venda dessa quota a qualquer um dos comproprietários não representaria a unificação da propriedade numa só pessoa ou entidade, da mesma forma que, por maioria de razão, a venda da quota parte em compropriedade a um terceiro representaria a unificação da propriedade. A venda dessa quota à Ré “(…) Inédito” não tinha esse mérito e, como tal, não se vislumbra que esse argumento possa ser acolhido.
xix. Quanto a este tema remete-se para a fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.03.2021 (proc. n.º 10307/16.0T8PRT.P2.S1), cujo teor de transcreve, parcialmente: (…) “Dito de outro modo e nas palavras do supra mencionado Acórdão do STJ, de 11.07.2019, tendo o legislador de 2006, por um lado, centrado a previsão do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, « na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos, sendo que tais negócios só podem ser validamente realizados sobre esse local quando o mesmo seja dotado da necessária individuação jurídica» e tendo, por outro lado, eliminado o mecanismo de licitação entre vários arrendatários preferentes do mesmo prédio, que se encontrava previsto no n.º 2 do artigo 47.º do RAU, tudo isto «parece só poder significar a não extensão da preferência aos casos em que existam vários arrendatários sobre partes do mesmo prédio indiviso», não tendo sido sua vontade «manter a orientação até então maioritária de atribuir aos arrendatários urbanos um direito de preferência que extravasasse o objeto locado, como ocorre nos casos de arrendamento de parte de um prédio indiviso».
E sendo assim, impõe-se concluir que «o artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, deve ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, (sublinhado nosso) não contemplando os casos, como o dos autos, em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal”.
xx. É esse, precisamente, o objeto dos presentes autos, i.e., a Recorrente é arrendatária da totalidade do prédio urbano e tem, sobre esse negócio, direito de preferência.»
A Recorrida (…) Inédito, Lda. apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que, tal como exarado na sentença proferida, o arrendatário não tem direito de preferência na venda de quota ideal do prédio.

Cumpre apreciar se assiste à Recorrente direito de preferência no negócio jurídico celebrado entre as Recorridas.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. Através de escritura pública de permuta datada de 19/9/2018, (…) deu à 1.ª ré um terço indiviso do prédio urbano composto por edifício de 2 pavimentos e quintal, tendo no rés-do-chão 11 divisões e casa de banho destinado a comércio e no 1.º andar, 11 divisões e casa de banho, destinado a Repartição Pública, sito na Rua (…), n.os 60 a 68, em Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º (…) e inscrito na matriz da freguesia da União de Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) e um terço indiviso do prédio urbano composto por edifício de 2 pavimentos e quintal, destinado a comércio, com 2 divisões no rés-do-chão e 2 divisões no 1.º andar, sito na Rua (…), n.º 70, em Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º (…) e inscrito na matriz da União das Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) sob o n.º (…), recebendo em troca a fração autónoma designada pelas letras (…) a que corresponde o r/c do prédio urbano sito no (…), Alameda (…), em Lisboa, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o n.º (…), da freguesia do Lumiar e ainda 4 cheques, perfazendo o valor de € 82.054,92 (oitenta e dois mil e cinquenta e quatro euros e noventa e dois cêntimos) e cedendo a sua posição processual nas ações judiciais que correm termos sob os nºs 1928/15.9T8FAR – J2, da Instância Local Cível de Faro e 1978/16.8T8FAR – J1, da mesma instância, à 1.ª ré – certidão da escritura que constitui fls. 68 verso e ss., cujos dizeres se dão por reproduzidos.
2. Pela Ap. (…), de 21/9/2018 mostra-se registada (provisoriamente) a aquisição a favor da 1.ª ré, por permuta, com (…), da quota ideal equivalente a 1/3 da propriedade plena do prédio sito na Rua (…), n.º 70, em Faro, descrito na respetiva Conservatória de Registo Predial de faro sob o n.º (…), da freguesia de S. Pedro, tal como resulta da certidão predial de fls. 10 verso e ss., cujo teor se dá por reproduzido.
3. Através de escritura pública datada de 15/4/2021, outorgada no Cartório Notarial de (…), em Faro, a 1.ª ré vendeu à 2.ª ré, pelo preço global de € 190.000,00 (cento e noventa mil euros), o direito a um terço do prédio urbano composto por edifício de 2 pavimentos, destinado a comércio e serviços com quintal sito na Rua (…), n.os 60 a 68, em Faro, inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…), da União das Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), pelo preço de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros) e o direito a um terço do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 70, em Faro, inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…), da União das Freguesias de Faro (Sé e São Pedro) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), pelo preço de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros), tal como resulta da certidão que constitui fls. 16 verso e ss. cujo teor se dá por reproduzido.
4. Pela Ap. (…), de 15/4/2021 mostra-se registada a aquisição a favor da 2.ª ré, por compra, à 1.ª ré, da quota ideal equivalente a 1/3 da propriedade plena do referido prédio (tal como resulta da certidão predial de fls. 10 verso e ss., cujo teor se dá por reproduzido).
5. Pela Ap. (…), de 6/5/2021, mostra-se registada (provisoriamente) a transmissão da posição a favor da 2.ª ré, por cessão de quinhão hereditário de (…) sobre o referido prédio (idem).
6. Pela Ap. (…), de 13/7/2021, mostra-se registada (provisoriamente) a aquisição a favor da 2.ª ré, por compra, a (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…), da quota ideal referente a 1/3 da propriedade plena do referido bem (idem).
7. Através de sentença proferida nos autos que correram os seus termos sob o apenso C, à ação n.º 1978/16.8T8FAR, do J1 – Juízo Local Cível de Faro em que figuravam como requerente a ora 1.ª ré e como requeridos (…) e outros e a ora autora (…) julgou-se a ora 1.ª ré devidamente habilitada para ocupar o lugar dos autores (…) e (…) nos autos principais correspondentes (sentença proferida nos referidos autos que constitui fls. 111 e ss., cujo teor se dá por reproduzido).
8. Através de sentença proferida nos autos que correram os seus termos sob o apenso D, à ação n.º 1978/16.8T8FAR, do J1 – Juízo Local Cível de Faro em que figuravam como requerente a ora 2.ª ré e como requeridos (…) e outros e a ora autora (…) julgou-se a ora 2.ª ré devidamente habilitada para ocupar o lugar da ora 1.ª ré nos autos principais correspondentes (sentença proferida nos referidos autos que constitui fls. 81 e ss., cujo teor se dá por reproduzido).
9. Corre termos sob o n.º 1928/15.9T8FAR, do J2, do Juízo Local Cível de Faro, uma ação de divisão de coisa comum que havia sido instaurada por (…) e mulher, (…) contra (…) e outros, com vista à divisão dos prédios urbanos descritos na Conservatória de Registo Predial de faro sob os nºs … e … (certidão de fls. 135 e ss.).

B – A questão do Recurso
A Recorrente, invocando a sua qualidade de arrendatária de todo o prédio urbano devidamente identificado nos autos, o qual não está constituído em propriedade horizontal, arroga-se titular do direito de preferência no negócio jurídico celebrado entre as Recorridas.
O pedido formulado é no sentido de, na decorrência de tal preferência, lhe ser reconhecido o direito de haver para si o prédio.
Concedendo-se ser a Recorrente arrendatária do prédio, nele exercendo a atividade de restauração e bebidas (não há notícia de que tal litígio judicial tenha já sido dirimido), importa precisar que o exercício da pretendida preferência nunca lhe permitira haver para si o prédio. Uma vez que o negócio relativamente ao qual pretende ser admitida a exercer o direito de preferência teve por objeto a compra e venda do direito a 1/3 do prédio, é manifesto que tal exercício não implicaria no sucesso da pretensão deduzida, no sentido de lhe ser reconhecido o direito a haver para si o prédio.
Ainda assim, passa a apreciar-se se a Recorrente tem direito de preferência na aquisição do direito a 1/3 do prédio.
O artigo 1091.º/1, alínea a), do CC, na redação em vigor à data da celebração da escritura pública de compra e venda[1], estatui que o arrendatário tem direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos.
Como tivemos já ocasião de sustentar[2], o arrendatário de uma parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não goza do direito legal de preferência na venda do prédio, já que tal direito apenas é reconhecido ao arrendatário de todo o prédio urbano ou fração autónoma do prédio objeto de venda. O referido direito legal de preferência está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui objeto do concreto contrato de arrendamento, o qual terá de estar juridicamente autonomizado para que possa ser transacionável. Donde, o arrendatário de parte específica do prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não é titular do direito de preferência legal previsto no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC.
O que não assume relevância no caso em apreço.
Tal como não assume relevância a jurisprudência citada pela Recorrente, designadamente o Ac. do STJ de 25/03/2021, que se refere ao exercício do direito de preferência no negócio jurídico que tem por objeto a compra e venda do direito de propriedade sobre o prédio, e não já a compra e venda de quota alíquota desse direito de propriedade.
A questão que aqui importa tratar é a de saber se o arrendatário de todo o prédio, prédio esse não constituído em propriedade horizontal, tem direito de preferência na compra de quota no direito de propriedade sobre o prédio.
Afigura-se-nos que não.
O direito de preferência consagrado no artigo 1091.º/1, alínea a), do CC reporta-se ao negócio de compra e venda do local arrendado. A compra e venda do direito a 1/3 do prédio que constitui o local arrendado não se reconduz ao negócio de compra e venda do local arrendado.
Por outro lado, a aquisição pelo arrendatário de fração ideal do prédio objeto de arrendamento implica que aquele se torne comproprietário do prédio. Por via disso e nessa medida, ocorre a caducidade do contrato de arrendamento a coberto da confusão, figura jurídica prevista nos artigos 868.º e seguintes do CC, dada a reunião na mesma pessoa jurídica das qualidades de senhorio e arrendatário conjugado com o disposto no artigo 1057.º do CC, nos termos do qual o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.[3] Dado que o contrato de arrendamento tem por objeto todo o prédio, como pode ele restringir-se à quota ideal de 2/3 desse prédio? Como compaginar ainda tal realidade com a regra decorrente no artigo 1405.º, n.º 1, do CC relativa ao exercício pelos comproprietários, em conjunto, de todos os direitos que pertencem ao proprietário singular? Subsiste o sujeito na qualidade de arrendatário, na medida do remanescente, mas fica privado, nessa qualidade, do uso exclusivo do local arrendado, do uso exclusivo de todo o prédio?
Como é sabido, a preferência na alienação do local arrendado visa facilitar a aquisição da propriedade desse local. O que se pretende é conferir ao arrendatário a oportunidade de aceder, definitivamente, ao gozo do imóvel, adquirindo a plena propriedade, em antecipação de terceiro. Incidindo a preferência sobre parte alíquota da propriedade do prédio, não se cumpre o interesse que subjaz ao direito de preferência.
Assim é afirmado pelo Tribunal Constitucional no Ac. n.º 299/2020, de 16/06/2020, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do CC, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro (normativo que previa o direito de preferência do arrendatário titular de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativamente à quota-parte do prédio onde se situasse o locado): “a possibilidade da preferência numa quota do prédio não permite alcançar os objetivos que estão na sua base, pois dessa forma o inquilino não acede de imediato à propriedade (…)”.
Uma vez que o negócio celebrado entre as Recorridas não tem por objeto a compra e venda do local arrendado, não resulta afirmado o direito da Recorrente a preferir nesse negócio, inexistindo fundamento para julgar procedente o pedido formulado no sentido de lhe ser reconhecido o direito a haver para si o prédio identificado na petição inicial.

Improcedem, assim, as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.

*

Évora, 20 de fevereiro de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Eduarda Branquinho

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[1] A lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretizou o ato de alienação, por o direito legal de preferência não passar de uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário, que só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo – Ac. do STJ de 21/01/2016 (proc. n.º 9065/12).
[2] Ac. TRE de 09/09/2021, relatado pela ora Relatora e subscrito pela ora 1.ª Adjunta.
[3] Cfr. Maria Olinda Garcia, Arrendamentos para comércio, pág. 182, conforme citado e acolhido por Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 10.ª edição, págs. 163 e 164.