Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1063/23.6T8OLH.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: CASSAÇÃO DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
RECORRIBILIDADE
DECISÃO ADMINISTRATIVA
AMNISTIA
PERDÃO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - O titular da carta de condução cassada tem o direito de impugnar judicialmente a decisão da autoridade administrativa que procedeu a tal cassação.
II - A decisão do Tribunal de Primeira Instância sobre o mérito dessa impugnação judicial admite recurso para o Tribunal da Relação.
III - A cassação da carta de condução tem de ser aplicada, sempre, desde que se verifique a perda total de pontos atribuídos ao condutor.
IV - À cassação da carta de condução pela perda total de pontos (aplicada ao abrigo do disposto no artigo 148º, nº 4, al. c), do Código da Estrada) não é aplicável o perdão estabelecido na Lei nº 38-A/2023, de 02/08.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Por decisão da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária (ANSR), proferida em 25/08/2023, foi determinada a cassação do título de condução nº (…..), de que é titular (A), nos termos do disposto no artigo 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada.
1.2. (A) impugnou judicialmente esta decisão administrativa, para o Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Olhão, sendo distribuída ao Juiz 2.
1.3. A referida impugnação foi conhecida por despacho, nos termos do disposto no artigo 64º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO), proferido em 22/11/2023, sendo julgada improcedente.
1.4. Inconformado, recorreu (A) para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada as seguintes conclusões:
«I. O presente recurso tem como objecto toda a matéria da douta Sentença, Decisão em que se julgou e se decidiu declarar a improcedência de todos os fundamentos de recurso apresentado pelo ora apelante, e consequentemente, declarou-se julgar improcedente aquele recurso de contra-ordenação.
II. A sentença recorrida fixa-se em que, a cassação do título de condução não é nem uma pena, nem uma sanção acessória, pelo que está absolutamente excluída do âmbito e aplicação da Lei 38-A/2023.
III. E, sempre com a devida vénia por entendimento diverso, não pode o recorrente conformar-se com tal decisão, porquanto, independentemente de se tratar ou não de uma pena ou de uma sanção, o facto é que se trata da determinação da aplicação de uma medida em função da prática de contraordenação, com origem em sanções e penas.
IV. Porquanto o art.º 148.º do CE, o que nos transmite é, o Sistema de pontos e cassação do título de condução, face às contraordenações praticadas.
V. Ora, relativamente ao que prescreve o n.º 4 do mesmo dispositivo legal é relativa à subtração de pontos devida ao condutor que culmina “in casu concreto” nos efeitos previstos na al. c):
VI. “A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.”
VII. Resulta pois evidente que, a cassação do título de condução mais não é do que uma sanção acessória relativa à perca de pontos tal como ali convencionado, pelo que no nosso entendimento, não colhe o induzido pela sentença recorrida, quanto à referida matéria em analise.
VIII. Ademais, e sempre com o devido respeito por entendimento diverso, o evocado “Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 20/2022” pelo Tribunal recorrido, quanto aos factos de direito em análise, nada têm a ver com a matéria constante no referido acórdão,
IX. Em boa verdade, o que ali está em discussão é matéria do âmbito político e de partidos políticos pelo que não pode nunca ter aplicação direta ao caso concreto, bem como para se discernir se face a essa matéria se, se trata ou não de uma consequência administrativa e/ou não de uma pena acessória ou medida de segurança;
X. Pelo que e como tal, não se consegue concretizar qual o alcance pretendido com o dito acórdão, por parte do Tribunal “a quo”, indo essa concreta matéria impugnada por infundada e incongruente.
XI. Sendo que mais acresce, que nesta medida, sempre teria aplicação o peticionado pelo recorrente, quanto à aplicação da Lei 38-A/2023.
XII. E, neste concreto entendimento, sempre com a devida vénia por opinião diversa, não se vislumbra que a cassação da carta de condução consubstancia uma mera consequência legalmente prevista somente da perda total de pontos, mas uma verdadeira sanção acessória que culmina na retirada do título de condução ao recorrente.
XIII. Releva ainda o facto de, tratando-se de uma consequência administrativa, vem a mesma no âmbito de uma pena acessória ou medida de segurança, consubstanciando uma verdadeira sanção acessória.
XIV. Acresce ainda que o Tribunal “a quo” tão pouco analisou a questão aduzida pelo recorrente quanto aos factos particulares que este refletiu, para a não aplicação da cassação do título de condução.
XV. E no entanto, apesar de no caso dos autos se ter mostrado provado que o recorrente, e desde logo admitido por este, que perdeu os 12 pontos da carta de condução, ficando sem pontos.
XVI. Sendo certo que em consequência, dali decorre a determinação da cassação da carta de condução, não se pode o recorrente conformar que inexista margem de ponderação das circunstâncias concretas, por falta de fundamento legal, em face a tudo o supra exposto.
XVII. E ainda, pelas condições particulares apresentadas pelo recorrente na sua impugnação judicial, que efetivamente se considera não foram tidas em linha de conta com o ali evocado.
XVIII. Ou seja, sempre o recorrente apelou ao bom senso, no sentido de ser tido em linha de conta o facto de este ter necessidade de manter consigo o título de condução.
XIX. Discordamos pois, nesta perspetiva, por interpretação diversa, e consequentemente impugna-se este concreto facto, porque deveria tal fundamento ter procedido.
XX. E ainda assim, o recorrente sempre pretendeu perante o Tribunal recorrido, de existir a faculdade de o mesmo permitir perante a lei a devida discricionariedade na apreciação dos referidos factos que evitasse a vinculação do ato de cassação do título de condução do ali também condutor.
XXI. E não obstante, mais se avançou que, apesar do grau de censurabilidade que resulta da perda de pontos pelo recorrente, ainda assim, nunca o mesmo com a sua conduta colocou em perigo a segurança da circulação rodoviária e a segurança das pessoas face ao transito de veículos, não sendo de todo premente a proteção do bem jurídico em causa.
XXII. Já naquela sede, se apelou ao Mm.º Juiz de Direito para a possibilidade de ser abrangido pela Lei do Governo que estabelece o perdão de penas e amnistia de infrações praticadas que foi publicada em Diário da República e entrou em vigor a 1 de setembro.
XXIII. Posto isto, não se conformando o recorrente como já referido de não ter sido atendido face ao exposto e pela necessidade acrescida que o recorrente tinha em manter o título de condução ativo, e de todo o conteúdo do ali peticionado.
XXIV. Requer-se a V. Exas. a possibilidade de considerar-se o fundamento da matéria de facto e concomitantemente o fundamento de direito da mencionada amnistia, de forma a ser o mesmo abrangido por esta.
XXV. Existe pois a necessidade de se impugnar a decisão de cassação do título de cassação, desde logo para a presente decisão não se tornar definitiva, evitando caso seja atendível a pretensão do impugnante, a entrega do referido título de condução.
XXVI. A lei referente à amnistia prevê ainda que, "nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, que sempre seria da competência do juiz da instância do julgamento ou da condenação, ajuizar da possibilidade da aplicação da amnistia ao caso concreto", o que não sucedeu efetivamente.
XXVII. Já sobre a decisão final discorda o recorrente na improcedência de todos os fundamentos apresentados por si, recorrente, pelo que devia aquela decisão ser favorável ao recorrente pelo ali evocado e bem assim julgar essa sua pretensão como totalmente procedente;
XXVIII. Destarte, entendemos que sempre se deveria atender ao peticionado pelo recorrente e revogar-se a decisão recorrida na sua totalidade o que desde já se requer a V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores.
XXIX. Discordamos pois, nesta perspetiva, por interpretação diversa, e consequentemente impugna-se este concreto facto que rejeitou que a cassação do título de condução equivaleria a uma sanção acessória conforme se retira da referente aplicação da Lei 38-A/2023, porque em boa verdade sempre deveria tal fundamento do recorrente ter procedido.
Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado e considerado procedente e consequentemente ser revogada a sentença recorrida nomeadamente atento o pedido do recorrente no segmento que se verifica quanto à aplicação da Lei 38-A/2023.
Termos em que, e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá a impugnação judicial interposta pelo Recorrente ser julgada procedente, absolvendo-se o recorrente da cassação do título de condução conforme sempre foi requerido.
Porém Vossa Excelência decidirá como for de Justiça
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»

1.5. O recurso foi admitido, na 1.ª instância.
1.6. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de o recurso dever ser rejeitado, por inadmissibilidade legal ou, no caso de assim não se entender, dever ser negado provimento ao recurso e, em consequência, ser confirmada a decisão recorrida, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1. O arguido interpôs recurso da sentença que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão administrativa proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, na qual foi determinada a cassação do respectivo título de condução.
2. A decisão recorrida não cabe no âmbito de previsão do art.º 73.º do RGCO, pelo que se terá de concluir pela respectiva irrecorribilidade.
3. Em conformidade, e tendo em mente que, nos termos do disposto no art.º 414.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação não está vinculado à decisão de admissão do recurso proferida pelo Tribunal de primeira instância (art.ºs 414.º, n.ºs 2 e 3 e 420.º, n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal), deve ser rejeitado o recurso interposto, por inadmissibilidade legal.
Caso assim não se entenda, o que por mera cautela se admite, sempre se dirá que:
4. A cassação do título de condução de veículo com motor não tem no nosso ordenamento jurídico uma única natureza, existindo previsões autónomas no Código Penal e no Código da Estrada.
5. No Código Penal, encontra-se previsto no artigo 101.º e constitui uma medida de segurança não privativa da liberdade, aplicada pela via judicial a agente imputável ou inimputável, tendo como pressuposto a sua perigosidade, revelada pela prática de certos ilícitos típicos.
6. No Código da Estrada, o regime da cassação tem sofrido variações ao longo do tempo, mas com a entrada em vigor das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, a cassação do título de condução, nos termos dos artigos 148.º e 169.º, n.º 4, passou a ser da exclusiva competência - actualmente - do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, dependendo o seu decretamento da verificação, em processo autónomo, da perda total dos pontos atribuídos ao condutor.
7. Quer isto dizer que a cassação do título de condução, ao abrigo do artigo 148.º do Código da Estrada, não é uma medida de segurança, revestindo-se de natureza administrativa, dela cabendo impugnação para os tribunais nos termos do regime geral das contra-ordenações (cfr. n.º 13 do artigo 148.° do Código da Estrada).
8. Assim, a cassação do título de condução determinada pela ANSR, ao abrigo do disposto no art.º 148.° do Código da Estrada, não reveste a natureza jurídica de «sanção acessória», “constitui[ndo] consequência necessária (automática) da perda de todos os pontos detidos por dado condutor”.
9. Ou seja, o recorrente viu ser-lhe subtraída a totalidade dos doze pontos que lhe haviam sido atribuídos, na decorrência da prática de (quatro) contra-ordenações, o que teve como consequência (necessária) a cassação do seu título de condução, por decisão proferida pela autoridade administrativa, correspondente “a acto vinculado, sem qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto”, “por falta de fundamento legal”, conforme evidenciado pela decisão recorrida.
10. Ainda que a decisão administrativa contestada consubstanciasse uma sanção acessória, a Lei 38-A/2023, de 02.08 não seria aplicável ao recorrente.
11. Com efeito, tal lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (art.º l.º).
12. A aludida lei restringiu o seu âmbito subjectivo de aplicação aos indivíduos - jovens - com idade compreendida entre 16 e 30 anos de idade (à data da prática do facto) - art.º 2.°, n.º 1, pelo que nunca seria aplicável ao recorrente, que nasceu em 19-04-1966, conforme consta dos autos.
Termos em que, deverá ser rejeitado o recurso interposto, por inadmissibilidade legal, ou,
Caso assim não se entenda, o que por mera cautela se admite,
Deverá ser negado provimento ao recurso e, em consequência, ser confirmada a douta sentença recorrida.
Vossas Ex.ªs, porém, decidirão como for de JUSTIÇA!»

1.7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer, limitando-se a apor “Visto”.
1.8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

1.8. Da questão prévia da (in)admissibilidade do recurso
O Ministério Público, na resposta ao recurso, suscita a questão da irrecorribilidade, para o Tribunal da Relação, da decisão da 1.ª instância, que julgando improcedente a impugnação judicial, confirmou a decisão administrativa da cassação do título de condução, em consequência da perda total de pontos, decretada ao abrigo do disposto no artigo 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada.
A jurisprudência encontra-se dividida quanto à admissibilidade ou não de recurso para o Tribunal da Relação de tal decisão.
A tese da irrecorribilidade radica, essencialmente, no argumento de que a cassação da carta de condução, prevista no artigo 148º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, não é uma sanção acessória, razão pela qual, a decisão do tribunal, proferida em sede de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que decretou aquela cassação, confirmando-a, por não constar do elenco das decisões judiciais que admitem recurso para a relação, previsto no artigo 73º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, aplicável ex vi do artigo 132º do Código da Estrada, não é recorrível para o Tribunal da Relação[1].
Salvo o devido respeito, não acompanhamos esta posição.
Acolhemos o entendimento jurisprudencial, que se crê ser maioritário[2], no sentido da admissibilidade do recurso, para a Relação, da sentença ou despacho que confirma a decisão administrativa que decretou a cassação do título de condução, ao abrigo do disposto no artigo 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada.
Sobre esta concreta questão e decidindo no sentido da orientação que sufragamos, já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 425/2019, de 10/07/2019.
Transcreve-se o que, a esse propósito, se refere no enunciado Acórdão do TC:
«(...) Não se ignora, evidentemente, que o Regime Geral das Contraordenações não refere expressamente que a decisão judicial que confirma a decisão administrativa que decretou a cassação do título de condução é recorrível para o Tribunal da Relação.
Tal recorribilidade, todavia, não só corresponde à solução que vem sendo sufragada na jurisprudência dos tribunais comuns (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.06.2012, referente ao processo n.º 528/11.7TBNZR.C1, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 01.07.2013, proferido no processo n.º 1915/11.6TBFAF.G1 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09.05.2018, respeitante ao processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 30.04.2019, referente ao processo n.º 316/18.0T8CPV.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt), como constitui a única interpretação teleologicamente sustentável dos preceitos legais aplicáveis no caso.
Veja-se que, conforme notado supra, a cassação do título de condução encontra-se umbilicalmente ligada a condenações anteriores, no âmbito das quais são, obrigatoriamente, impostas sanções acessórias de inibição de conduzir (ou, no âmbito do processo penal, injunções ou penas acessórias), sendo o decretamento da cassação do título de condução a “sanção final”, resultado do somatório de todas elas, ou, mais rigorosamente — e em face do sistema atual —, da subtração dos pontos correspondente a cada uma delas.
Não há dúvida, pois, de que a letra do preceito constante do artigo 73.º, n.º 1, al. b) do Regime Geral da Contraordenações ficou aquém do espírito da lei, situação a que não será seguramente estranho o facto de nos encontramos perante um regime que remonta ao ano de 1982 – Decreto-Lei n.º 733/82, de 27 de outubro – e o Código da Estrada, que introduziu a figura da cassação, ter sido aprovado doze anos mais tarde.
Trata-se, portanto, de um caso em que se impõe «[a]larga[r] ou estende[r] então o texto, dando-lhe um alcance conforme ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. Não se tratará de uma lacuna da lei, porque os casos não diretamente abrangidos pela letra são indubitavelmente abrangidos pelo espírito da lei» (cf. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, pág. 185 e 186).
Veja-se que a interpretação extensiva se limita a clarificar o pensamento legislativo de determinada norma, em situações de redações excessivamente restritas, e não a aplicá-la a casos que ela não antecipou, como sucede, por exemplo, no processo analógico.
Na realidade, a única interpretação possível do referido normativo é, precisamente, aquela que permite o recurso para o Tribunal da Relação da decisão de primeira instância que confirma a decisão administrativa que decreta a cassação do título de condução, a qual consubstancia, sem qualquer dúvida, a medida mais severa prevista em todo o Código da Estrada. Com efeito, mal se compreenderia que se admitisse recurso de uma decisão judicial que confirma a condenação de uma sanção acessória de inibição de condução pelo período de um mês e não se admitisse o recurso de uma decisão judicial que confirma a cassação do título de condução, determinando a perda definitiva do título de condução de que o infrator é titular, bem como a interdição, pelo período de 2 anos, da faculdade de obtenção de novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria.
Na realidade, só esta interpretação – imposta, não por um argumento de identidade de razão, mas a fortiori – se apresenta congruente com o espírito do sistema, correspondendo à única solução concordante com a teleologia subjacente à previsão do recurso, para o Tribunal da Relação, da «condenação do arguido» que «abran[ja] sanções acessórias», independentemente do valor da coima; isto é, com o facto, incontornável, de tais sanções consubstanciarem uma restrição de direitos fundamentais (cf. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contraordenações Anotações ao Regime Geral, Viseu, Vislis Editores, 3ª edição, janeiro de 2006, p. 476).
Esta é, também, a única interpretação conforme com a Constituição – designadamente com o princípio da tutela jurisdicional efetiva –, que constitui um dos critérios fundamentais ao nível da determinação do sentido da letra da lei. Com efeito, «se uma interpretação, que não contradiz os princípios da Constituição, é possível segundo os demais critérios de interpretação, há de preferir-se a qualquer outra em que a disposição viesse a ser inconstitucional. A disposição é então, nesta interpretação, válida. Disto decorre, então, que entre várias interpretações possíveis segundo os demais critérios sempre obtém preferência aquela que melhor concorde com os princípios da Constituição. “Conforme à Constituição” é, portanto, um critério de interpretação» (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 2.ª edição, 19, pág. 411).
(...)»
Acolhendo-se os fundamentos expostos, entendemos ser admissível o recurso em apreço nos autos, pelo que, improcede a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, na 1.ª instância.
Não existindo outra questão que obste ao conhecimento do mérito do recurso, passamos à respetiva apreciação.


2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. É consabido que as conclusões formuladas pelo recorrente extraídas da motivação do recurso balizam ou delimitam o objeto deste último (cf. artigo 412º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do disposto nos artigos 41.º n.º 1 e 74.º n.º 4, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro).
2.2. In casu, atentas as conclusões extraídas da motivação do recurso interposto pelo recorrente são as seguintes as questões suscitadas:
- Saber se a decisão de cassação do título de condução, decretada ao abrigo do disposto no artigo 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada, admite um critério de discricionariedade, na apreciação dos factos e ponderação da situação concreta, em termos de a cassação poder deixar de ser aplicada, ainda que se verifique a perda total de pontos atribuídos ao condutor;
- Saber se tem aplicação, in casu, a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.


2.3. A decisão recorrida é do seguinte teor:
«(...)
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Da análise dos presentes autos, e não tendo sido impugnada a factualidade de facto, resultam provados os seguintes:
1 - No dia 2020/09/29, pelas 09:40, no local Rua Doutor José Colaço Fernandes Vila Real S. António, comarca Faro, distrito Faro, mediante condução do veículo, com matrícula (…..) praticou a seguinte infração: O condutor utilizava o telemóvel de forma continuada, durante a marcha do veículo, sem fazer uso de microfone com sistema de alta voz ou de auricular.
2 - No dia 2020/09/10, pelas 08:50, no local EN398-Moncarapacho Olhão, Comarca Faro, Distrito Faro, mediante condução do veículo, com matrícula (…..) foi praticada a seguinte infração: o condutor do referido veículo transpôs a linha longitudinal mista (Marca M3), existente no local, separadora de sentidos de trânsito, estando mais próxima a linha continua.
3 - No dia 2019/01/24, pelas 10:57, no local rua dr. cândido guerreiro faro, comarca Faro , distrito Faro, mediante condução do veículo automóvel ligeiro, com matrícula (…..) praticou a seguinte infração: O condutor utilizava o telemóvel de forma continuada, durante a marcha do veículo, sem fazer uso de microfone com sistema de alta voz ou de auricular.
4 - No dia 2016/11/05, pelas 12:07 horas no local EN270 KM 54,3 FONTE DO BISPO, conduzindo o veículo, com matrícula (…..) praticou a seguinte infracção: O referido veículo circulava, dentro localidade, pelo menos, à velocidade 93 Km/h, correspondente à velocidade registada 98 Km/h, deduzido o valor do erro máximo admissível, sendo o limite máximo de velocidade permitido no local 50 Km/h. A veloc. foi verificada através do cinemómetro radar fotográfico Multanova MUVR-6FD N°05-06-2629, aprov. pela ANSR através do desp. n°1863/2014 de 02JAN e pelo IPQ através do desp. aprov. Modelo n°111.20.12.3.09 de 31MAI12, verificado pelo IPQ em 08/09/2016.
5 - Ao total de doze pontos detidos pelo condutor, foram automaticamente subtraídos quatro pontos pelas decisões administrativas condenatórias referentes às contraordenações muito graves e dois pontos pelas decisões administrativas condenatórias referentes às contraordenações graves, em cumprimento do estabelecido no n.º 1 do artigo 148.° do Código da Estrada, tendo o condutor ficado com zero pontos.

Factos não provados:
Inexistem com relevância para a boa decisão da causa.

MOTIVAÇÃO:
Fundou o Tribunal a sua convicção relativamente à prova dos factos no teor do vasto acervo documental resultante dos autos e cujo conteúdo não foi impugnado.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O que o recorrente pretende e resulta da Impugnação apresentada é a aplicação da Lei 38A/2023 aos autos de cassação do título de condução por perda da totalidade de pontos.
Cumpre apreciar.
Decorre do art. 148.º, n.º 4, al. c) e 10 do CE que a subtração de pontos ao condutor tem como efeitos a cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos na sua totalidade, e sendo ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos.
A cassação da carta de condução consubstancia uma consequência legalmente prevista da perda total de pontos.
Trata-se de uma consequência administrativa e não de uma pena acessória ou medida de segurança (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 20/2022 disponível em www.dgsi.pt).
Cassada que seja a carta de condução, “não é concedido novo título de condução” antes de decorridos dois anos, nos termos do art. 148.º, n.º 11 do CE.
Ou seja, a cassação traduz-se no facto de uma pessoa anteriormente habilitada deixar de ser titular de título de condução e estamos perante uma medida de natureza administrativa associada à obtenção de título e não perante uma pena acessória de inibição de conduzir.
Nos termos do art. 148.º, n.º 4 al. c) do CE a cassação é uma consequência automática da perda da totalidade de pontos. A decisão é proferida pela entidade administrativa, o Presidente da ANSR, num ato vinculado, sem qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto.
No caso dos autos mostra-se provado que o recorrente perdeu os 12 pontos da carta de condução, ficando sem pontos. Em consequência, dali decorre a determinação da cassação da carta de condução, inexistindo margem de ponderação das circunstâncias concretas, por falta de fundamento legal.
Conforme já referido, a cassação do título de condução não é nem uma pena, nem uma sanção acessória, pelo que está absolutamente excluída do âmbito e aplicação da Lei 38-A/2023.

V. DECISÃO
Em face de tudo o exposto, nos termos das disposições e fundamentos supra referidos, decide o Tribunal julgar improcedente o presente recurso de contra-ordenação.
Face ao decaimento do arguido, condena-se o mesmo em 2 UC a título de custas, nos termos conjugados do disposto nos art.s 8.º n.º 4 do Regulamento de Custas Processuais e 92, 93.º n.º 4 e 94.º n.º 3 do RGCO.
(...).»

2.4. Apreciação do mérito do recurso
Está em causa o despacho judicial que julgou improcedente a impugnação da decisão administrativa, proferida pelo Exm.º Presidente da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária (ANSR), que determinou a cassação da licença de condução de que o ora recorrente é titular, pela perda total de pontos, nos termos do disposto no artigo 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada.
Resulta da factualidade dada como provada nos pontos 1 a 4 que a perda de pontos atribuídos ao condutor, ora recorrente, por referência à carta de condução de que é titular, ocorreu em consequência da prática de quatro contraordenações por que foi cominado, por decisões administrativas, definitivas, tratando-se de duas contraordenações graves (utilização do telemóvel, durante a marcha do veículo, sem fazer uso de microfone com sistema de alta voz ou de auricular) e duas contraordenações muito graves (sendo uma por circular em excesso de velocidade, dentro de uma localidade, ultrapassando em 43 Km/h a velocidade máxima permitida e a outra por ter transposto uma linha longitudinal mista, marca M3, separadora de sentidos de trânsito, estando a linha contínua mais próxima, considerando o sentido de marcha em que seguia).
O recorrente não põe em causa a perda da totalidade dos pontos, por referência à carta de condução de que é titular, em consequência da prática das referenciadas contraordenações, por que foi cominado, por decisões da ANSR, definitivas.
Propugna, todavia, o recorrente, existir margem de ponderação para, em face das circunstâncias do caso concreto – alegando não ter, com a sua conduta, colocado em perigo a segurança da circulação rodoviária, nem das pessoas, face ao trânsito de veículos e não ser premente a proteção do bem jurídico em causa – e das suas condições particulares – designadamente, o facto de “ter necessidade de manter o título de condução ativo” –, o tribunal recorrido obstar à cassação do título de condução.
Defende, por outro lado, o recorrente, dever ser aplicada a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, qualificando a “cassação do título de condução”, prevista na al. c) do n.º 4 do artigo 148º do CE, como uma sanção acessória e manifestando que “sempre seria da competência do juiz da instância do julgamento ou da condenação, ajuizar da possibilidade da aplicação da amnistia ao caso concreto”.
Pugna, assim, o recorrente, pela revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que o “absolva da cassação do título de condução”.
Apreciando:
Sob a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, dispõe o artigo 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada, que «A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor
Salvo o devido respeito pelo entendimento contrário, sufragamos a orientação que foi acolhida pelo Tribunal a quo e que vem sendo reiteradamente defendida pela jurisprudência dos Tribunais da Relação, no sentido de que a cassação do título de condução decretada pela autoridade administrativa, ao abrigo do disposto na al. c), do n.º 4, do artigo 148º do Código da Estrada, verificada que esteja a subtração da totalidade dos pontos atribuídos ao condutor, depende tão somente da verificação desse pressuposto legalmente previsto e não de qualquer outro, designadamente, da formulação de qualquer juízo sobre a perigosidade do condutor, tendo em conta os factos praticados e a sua personalidade[3].
Em nosso entender, a cassação do título de condução pela subtração da totalidade dos pontos atribuídos a condutor habilitado com quele título, não é uma medida de segurança penal, cuja aplicação dependa da verificação, em concreto, de um estado de perigosidade do agente, revelado pela sua personalidade, para a condução, conforme previsto no artigo 101º do Código Penal, nem reveste a natureza de sanção acessória[4], constituindo uma medida administrativa que se «prefigura como uma medida de avaliação negativa da conduta estradal dos condutores, conforme a gravidade da infração cometida»[5] e que tem na sua base a finalidade visada pelo legislador de sinalizar em termos de perigosidade determinadas condutas contraordenacionais ou criminais, rodoviárias, que põem em causa bens jurídicos fundamentais, constitucionalmente protegidos, como a segurança, a integridade física e a vida das pessoas, sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores uma tal tipo de condutas comportam, pondo em causa a Segurança Rodoviária e a vida de todos os que circulam nas estradas.
A acolher-se a posição de que a subtração da totalidade dos pontos atribuídos ao condutor com carta de condução, não determinaria a cassação do título de condução, seria permitir que um condutor sem quaisquer pontos continuasse a dispor de título válido, esvaziando de sentido o regime da carta por pontos e, em particular a norma da al. c) do n.º 4 do artigo 148º do Código da Estrada.
Ao instituir o regime da “carta por pontos”, prevendo a cassação do título de condução em caso de subtração da totalidade dos pontos (al. c) do n.º 4 do artigo 148º do CE), o legislador estabeleceu mais um requisito ou condição negativa para a manutenção do título de condução atribuído, qual seja, a de o condutor não praticar infrações rodoviárias por que venha a ser condenado (e especificamente as contraordenações graves ou muito graves, referenciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 148º do CE ou os crimes enunciados no n.º 2 do mesmo artigo, em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja aplicada e cumprida a injunção de proibição de conduzir), e que determinem a perda da totalidade dos pontos atribuídos.
Como se faz notar no Ac. da RC de 15/01/2020[6], «A licença de condução não assume cariz definitivo e imutável, situado no âmbito dos direitos absolutos. O seu carácter transitório revela-se, não só na periodicidade da respectiva validade e na sujeição a diversas restrições, renovações e actualizações tendentes a verificar se as condições físicas e psíquicas do agente se mostram adequadas ao exercício da condução de veículos (cf. artigos 121º, 122º a 130º, do Código da Estrada), mas também, no sistema de aquisição e perda de pontos, acima referenciado (artigo 121º-A e 148º, do Código da Estrada).
A vigência do título que habilita conduzir veículos automóveis depende, assim, do comportamento estradal do condutor, conforme este observe ou viole as regras estradais. No primeiro caso são atribuídos pontos à sua carta de condução, no segundo são-lhe retirados pontos, de acordo com a gravidade da infracção cometida.»
O regime da carta por pontos, como escreve no Acórdão do TC n.º 260/2020, de 13 de maio[7], «tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.»
Perfilhamos do entendimento de que a enunciada condição negativa imposta pelo legislador, para a manutenção do título de condução pelo condutor a quem foi atribuído, é plenamente justificada pelos potenciais riscos da atividade da condução para bens jurídicos fundamentais, tais como a integridade física e a vida dos utentes das estradas e a segurança e rodoviária, que constitui uma prioridade da política criminal[8], perante os números da sinistralidade rodoviária no nosso país e as trágicas consequências que lhe estão associadas.
Assim, ao determinar a cassação do título de condução, decorrente da perda da totalidade dos pontos atribuídos, no caso de condenação, por decisão da autoridade administrativa definitiva ou sentença transitada em julgado, pela prática das contraordenações graves e/ou muito graves previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 148º do Código da Estrada ou dos crimes referenciados no n.º 2 do mesmo artigo, em proibição de conduzir, o que se verifica é a valoração de sanções e/ou de penas em que o condutor foi condenado pelo cometimento de infrações rodoviárias e que acarretaram a perda de pontos, nas condições de manutenção do título de condução atribuído[9].
A prática de uma única infração rodoviária não determina automaticamente a cassação do título de condução, pela perda dos pontos atribuídos ao condutor. O que determina aquela cassação são sucessivas condenações do condutor, pela prática de infrações, que, no seu conjunto, implicaram a perda da totalidade dos pontos atribuídos e não tendo o condutor, nem pelo decurso do tempo, nem pela sua conduta posterior. conseguido adquirir outros pontos.
A perda total dos pontos atribuídos ao condutor, tem como efeito automático a cassação da licença de condução, prevista na alínea c) do n.º 4 do artigo 148º do Código da Estrada, que é decidida em processo autónomo, pelo Presidente da ANSR, conforme decorre do disposto no n.º 10 do artigo 148º e do n.º 3 do artigo 169º, ambos do CE, onde apenas haverá que aquilatar da verificação dos requisitos legais estabelecidos no artigo 148 n.ºs 1 e 2, do CE, sem necessidade de ponderação de quaisquer outras circunstâncias.
Assim, contrariamente ao propugnado pelo recorrente, não existe qualquer margem de discricionariedade conferida pelo legislador, para que, verificada que seja a perda total de pontos, nos termos sobreditos, poder deixar de ser aplicada a cassação da licença de condução, prevista na al. c) do n.º 4 do artigo 148º do CE.
O Tribunal Constitucional, por diversas vezes, chamado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional da referenciada interpretação da norma em questão, decidiu, entre outros, nos Acórdãos n.º 704/2023 e 710/2023, «Não julgar inconstitucional a norma da alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, segundo a qual a perda de todos os pontos detidos por determinado condutor constitui condição suficiente para a cassação do respetivo título de condução.»
Destarte, em conformidade com o exposto, tendo o recorrente perdido a totalidade dos 12 pontos que lhe foram atribuídos, por referência à carta de condução de que é titular, em consequência da prática de quatro contraordenações, sendo duas graves e as outras duas muito graves, por que foi cominado, por decisões definitivas, nos termos previstos no artigo 148º, n.º 1, alíneas a) e c), do CE, forçoso será concluir ter sido corretamente determinada a cassação da respetiva carta de condução, em processo autónomo que a ANSR organizou para o efeito, ao abrigo do disposto no n.º 10 do artigo 148º do Código da Estrada e tudo à luz das normas legais acima citadas, designadamente, da al. c) do n.º 4 do referenciado artigo 148º.
Improcede, assim, esta vertente do recurso.
Importa agora conhecer da questão sobre se tem aplicação, ao caso dos autos, a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Embora o recorrente não faça expressa referência ao artigo 5º da Lei n.º 38-A/2023, a questão que suscita prende-se com o âmbito de aplicação do perdão previsto nessa norma, a qual dispõe que «São perdoadas as sanções acessórias relativas a contraordenações cujo máximo da coima aplicável não exceda 1000 €.».
No referente à delimitação subjetiva de quem pode beneficiar do perdão previsto no artigo 5º da Lei n.º 38-A/2023, entendemos abranger todas as pessoas que hajam praticado as contraordenações em causa, até às 00:00 horas de 19/06/2023, independentemente da sua idade e não apenas as pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade, à data da prática do facto, como acontece em relação às “sanções penais”, o que resulta do âmbito de aplicação definido no artigo 2º da enunciada Lei [referindo-se o seu n.º 1 às “sanções penais” relativas aos ilícitos praticados por pessoas entre os 16 e 30 anos de idade, à data dos factos e remetendo para os artigos 3º e 4º, que preveem, respetivamente, o perdão de penas e amnistia de infrações penais, enquanto o n.º 2, estabelece estarem abrangidas pela mesma lei, alínea a), as sanções acessórias relativas a contraordenações, nos termos definidos no artigo 5º, não fazendo menção à idade].
A idade do ora recorrente não levaria, pois, a afastar a aplicação do perdão estabelecido no artigo 5º da Lei n.º 38-A/2023.
Já no quanto à delimitação objetiva do âmbito de aplicação do perdão estabelecido no artigo 5º da Lei n.º 38-A/2023, entendemos isento de dúvida, não abranger, a cassação da licença de condução, pela perda de pontos, aplicada ao abrigo do disposto no artigo 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada.
Desde logo porque, conforme decorre do supra exposto, tal medida de cassação da licença de condução, não é uma sanção acessória.
Por outro lado, ainda que assim não se entendesse, uma vez que as contraordenações graves e muito graves, enunciadas nos pontos 1 a 4 da matéria factual provada, por cuja prática o ora recorrente foi cominado, por decisão definitiva, permanecem averbadas no Registo Individual de Condutor, tendo as mesmas determinado subtração de pontos, nos termos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 148º do Código da Estrada, culminando na perda da totalidade dos pontos, nunca o perdão previsto no artigo 5º da Lei n.º 38-A/23, de 2 de agosto, teria como consequência a “recuperação” dos pontos perdidos, pressuposto este imprescindível a que deixassem de subsistir os requisitos legais subjacentes à decisão de cassação da licença de condução, decretada ao abrigo do disposto no artigo 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada.
Por último, ressalvado o devido respeito, não tem cabimento legal o entendimento propugnado pelo recorrente no sentido de o juiz ter margem de discricionariedade para poder “ajuizar da possibilidade da aplicação da amnistia ao caso concreto”.
Na verdade, atendendo à natureza das normas relativas à amnistia e ao perdão (normas de carácter excecional), mostra-se há muito pacífico que estas não comportam interpretação extensiva, nem o recurso à analogia, pelo que, a amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições[10].
Não, pode, pois, ser atendida a pretensão do recorrente relativamente à aplicação da Lei n.º 38-A/23, de 2 de agosto.
O recurso deve, pois, ser julgado improcedente e, consequentemente, manter-se a decisão recorrida.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em:
Negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente (A) e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (cf. artigo 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ex vi do disposto nos artigos 92º, n.ºs 1 e 3 e 93º, n.º 3, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro e artigo 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
Notifique.

Évora, 20 de fevereiro de 2024
Fátima Bernardes
Filipa Costa Lourenço
Fernando Pina

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[1] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. deste TRE de 07/11/2013, proc. n.º 124/22.3T8SSB.E1; Ac. da RC de 29/06/2023, proc. n.º 188/21.7T9FLG.P1 e Acórdãos da RP de 18/04/2021, proc. n.º 194/20.9T9ALB.P1, de 17/05/2023, proc. n.º 1159/22.1T9VCD.P1 e de 25/10/2023, proc. n.º 406/22.4T9FLG.P1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[2] Considerando os acórdãos publicados, não só aqueles em que a questão foi tratada – v.g. entre outros, Ac. da RP de 07/11/2023, proc. n.º 1294/19.3Y2VNG.P1 – como todos os outros em que foi objeto de apreciação a sentença ou despacho, proferida(o) na 1.ª instância, em sede de impugnação judicial, da decisão administrativa que aplicou a medida de cassação da licença de condução, nos termos previstos no artigo 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada.
[3] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. deste TRE de 03/12/2019, proc. 1525/19.0T9STB.E1, Ac.s da RC de 08/05/2019, proc. 797/18.1T8VIS.C1, de 23/10/2019, proc. 83/19.0T8OHP.C1 e de 15/01/2020, proc. 576/19.9T9GRD.C1; Ac.s da RP de 09/05/2018, proc. 644/16.9PTPRT-A.P1 e de 30/04/2019, proc. 316/18.0T8CPV.P1 e Ac. da RG de 27/01/2020, proc. 2302/19.3T8VCT.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[4] Crê-se ser consensual o entendimento de que a cassação do título de condução, prevista no artigo 148º, n.º 4, al. c), do CE, não reveste a natureza jurídica de sanção acessória.
[5] Cf. Ac. da RC de 15/01/2020, proferido no proc. n.º 576/19.9T9GRD.C1. No mesmo sentido, vide, entre outros, Ac. da RL de 10/11/2021, proc. n.º 477/20.8T9ALM.L1-3 e Ac. da RP de 18/01/2023, proc. n.º 2629/22.7T8VFR.P1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[6] Proferido no proc. n.º 576/19.9T9GRD.C1 e acessível em www.dgsi.pt.
[7] In https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200260.html
[8] Cf. al. a) do artigo 3º, alíneas r) e s) do artigo 4º e al. q) do artigo 5º e anexo ao artigo 20º, todos da Lei n.º 55/2020, de 27 de agosto.
[9] Seguindo-se de perto a linha de entendimento acolhida no Ac. do TC n.º 461/2000.
[10] Cf., por todos, no âmbito da aplicação da Lei n.º 29/99 de 12 de maio, Assento do STJ n.º 2/2001, de 14/11/2001, in DR I-A, de 21/05/2002 e Acórdão do STJ de 27/09/2006, proc. 06P2951, in www.dgsi.pt e, no âmbito da aplicação do perdão de penas de prisão previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, vide, AUJ n.º 2/2023, de 15/12/2022, in DR 1ª Série, de 01/02/2023.