Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
330/22.0GTABF.E1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: AMNISTIA
ÂMBITO
CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - O crime de condução de veículo em estado de embriaguez está excluído da amnistia concedida pela Lei nº 38-A/2023, de 02/08, independentemente da fase processual em que os autos respetivos se encontrem.
II - O artigo 7º da Lei nº 38-A/2023, de 02/08, muito embora utilize a expressão “condenados” (“não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei ... os condenados por ... crimes … de condução de veículo em estado de embriaguez”), exclui a aplicação da amnistia em causa a todos os agentes que forem autores do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tenham, ou não, sido já “condenados”.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira – Juiz 3, foi, em 19-10-2023, proferido o seguinte despacho (transcrição):

Através da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto o legislador procedeu ao perdão de diversas penas e à amnistia de algumas infracções criminais.

A amnistia concedida é aplicável a ilícitos praticados até 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do crime (art. 2º nº 1 do diploma legal).

No que importa ao caso dos autos, lê-se no art. 4º da referida lei que são amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.

Segundo o art. 128º nº 2 do Código Penal a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.

O presente procedimento criminal corre por conta de um crime de condução em estado de embriaguez, ilícito punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (art. 292º nº 1 do CP).

Os factos em causa nos presentes autos datam de 01/09/2022 (fls. 32).

Nessa data o arguido contava 24 anos de idade.

Por fim, o caso dos autos não se enquadra, a nosso ver, em qualquer das excepções previstas no art. 7º da Lei nº 38-A/2023.

Com efeito, o art. 7º nº 1 al. d) § ii) exclui a aplicação da amnistia concedida naquela Lei 38-A/2023, no que concerne a casos de condução de veículo em estado de embriaguez, nos seguintes termos:

Artigo 7.º

Exceções

1 — Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

(...)

d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:

(...)

ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal.

Da norma decorre pois (no que importa ao caso) que da amnistia (instituto que, de acordo com o supramencionado art. 128º nº 2 do CP, é aplicável tanto a condenados como a casos em que não houve ainda condenação) fica excluído quem já tenha sido condenado pelo crime em causa — não tendo havido condenação não há exclusão de aplicação da amnistia.

Contra o que acaba de concluir-se antecipamos pelo menos alguns argumentos.

Desde logo, a solução aparenta gerar alguma incongruência lógica, amnistiando-se certos arguidos e outros não consoante, apenas, aquilo que, à revelia da sua actuação foi a marcha processual (ou, até mesmo, podendo beneficiar da amnistia quem tenha um contributo obstaculizante do processo). O argumento não convence. Com efeito, esta diferença é uma decorrência inerente à natureza dos institutos da amnistia e do perdão em causa. Pense-se, por exemplo, no caso de um arguido que, por causa de uma marcha processual mais célere, já expiou integralmente uma pena de prisão por conta de um crime que depois é amnistiado, e um arguido que por qualquer motivo (estar foragido, por exemplo) não iniciou o cumprimento de uma pena igual a vê, agora, ser apagada do ordenamento em virtude da amnistia. Parece desigual mas, dada a sua natureza e o modo como funciona, é consequência inevitável de toda e qualquer amnistia (e, mutatis mutandis, também de qualquer perdão de penas).

Um outro contra-argumento de apelo à congruência lógica nos ocorre: o legislador amnistiou crimes aos quais, aplicando as regras de exclusão do art. 7º, não perdoaria a pena? Fará sentido? Foi essa a solução da lei? A resposta parece ser, numa primeira abordagem, negativa. Mas a verdade é que o disposto noutras normas da Lei nº 38-A/2023 leva incontroversamente à conclusão que em certos casos esta mesma foi escolha do legislador. Pense-se, por exemplo, em todos os casos de concurso de vários crimes amnistiados em que o condenado sofre, em cúmulo jurídico, pena de 130 dias (ou mais) de multa, ou prisão superior a um ano. No primeiro caso (multa), de acordo com a Lei nº 38-A/2023, são amnistiados todos os crimes, e por isso extinguem-se por amnistia todas as penas — mas, se não intercedesse a amnistia, o legislador não permitiria qualquer perdão à pena (art. 3º nº 2 al. a) e nº 4 do diploma). No segundo caso (prisão), extinguem-se também in totum as consequências penais em virtude da amnistia — mas se não operasse a amnistia a prisão única do concurso de crimes só seria perdoada até um ano. A conclusão inelutável é precisamente essa: em certos casos a Lei nº 38-A/2023 amnistiou os crimes, mas nem por isso aquela lei permitiria o perdão (integral, no caso da prisão) das respectivas penas. Ou seja, o que à partida seria um argumento convincente, por a solução oposta aparentar levar a um resultado “contraditório”, acaba desarmado pela constatação de que essa mesmo foi, incontroversamente, a linha de raciocínio escolhida pelo legislador para certos casos.

Contra o que se conclui pode arguir-se, por outro lado, que o legislador terá usado a expressão condenados apenas porque usou de “pouco cuidado” no rigor legislativo, pois na verdade quereria referir-se a todos os casos que se reportem aos crimes excluídos independentemente do momento processual da acção penal. Não somos insensíveis a tal argumento, mas em nosso entender o mesmo também não colhe. Ab initio, a palavra condenados nem sequer é aquela que nos parece a mais natural, em termos de linguagem, que seria usada se fosse essa a intenção do legislador. Querendo-se excluir da amnistia os autores de todos crimes do art. 7º parece-nos que seria uma escolha de linguagem mais natural ter-se usado, precisamente, a palavra autores; Ou querendo-se excluir todos os crimes mencionados no art. 7º parece-nos que seria mais natural o legislador ter consagrado algo de semelhante a “O perdão a amnistia previstos na presente lei não têm aplicação aos crimes de...”. Todavia, parece-nos que para interpretar a letra da lei é desnecessário recorrer a estas considerações, que tanto de subjectivo têm. E assim porque se o legislador em várias das alíneas do art. 7º usou a expressão condenados noutras não usou essa expressão: as alíneas j), k) e l) daquele art. 7º não mencionam condenados. Mais, na al. l) o legislador escolheu precisamente a palavra autores (em vez de condenados) para esclarecer quem fica excluído do perdão e amnistia.

Deste contraponto extrai-se que, tanto quanto resulta do teor do art. 7º, a opção do legislador pela palavra condenados foi consciente e intencional.

Ainda um outro argumento contrário se suscita: fará sentido que o legislador tenha expressamente excluído da amnistia os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo (al. l) do art. 7º) e não exclua os autores de um crime com contornos semelhantes? Amnistia-se a infracção maior (o crime) mas não a menor (a contraordenação)? Também não somos insensíveis ao argumento e diremos mesmo que, não fosse o que se assinala em seguida, o subscreveríamos. Sucede que a opção de se amnistiar o crime e não a contraordenação é, no caso da Lei 38-A/2023, a regra: em todos os casos de crimes que foram amnistiados em que exista comportamento relacionado ou semelhante (mas menos grave) punido como mera contra-ordenação que tutele os mesmos bens jurídicos, o legislador amnistiou o crime mas não a contraordenação. Com efeito, a Lei 38-A/2023 amnistiou todas as infracções penais (salvo as excluídas no art. 7º) cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa e não amnistiou nenhuma contraordenação (apenas perdoou sanções acessórias de certas contraordenações). Em decorrência, pense-se em casos de infracções de regras de segurança rodoviária: o crime (comportamento mais grave) de condução sem habilitação legal do art. 3º nº 1 do Decreto-lei nº 2/98 foi amnistiado, mas uma mera contraordenação leve (comportamento menos grave) correspondente, por exemplo, a um excesso de velocidade já não o foi. E (entrando já no campo de abrangência do perdão concedido na lei em causa) resultados semelhantes a esta regra não se verificam apenas no contraponto entre contraordenações e crimes. O mesmo sucede com crimes, mais graves, que exigiram a aplicação de prisão substituída ou suspensa, cujas penas são perdoadas quando não são perdoadas multas, aplicadas por infracções menos graves, caso a multa seja superior a 120 dias (art. 3º nº 2 da Lei 38-A/2023). Do que se conclui o seguinte: o argumento de que não fará sentido lógico ter-se amnistiado o crime mas não uma contraordenação relacionada ou semelhante seria, em circunstâncias habituais, um argumento forte contra o entendimento que perfilhamos. Todavia, na economia da Lei 38-A/2023 esse argumento não nos convence, uma vez que esta lei adoptou precisamente, e propositadamente, essa solução como regra. Não nos cabe, evidentemente, dizer se a escolha do legislador foi melhor ou pior, mas parece-nos que a constatação seguinte será insofismável: dentro dos pressupostos dos seus arts. 4º e 7º, a Lei 38-A/2023 amnistiou todos os crimes e não amnistiou nenhuma contraordenação que tutele os mesmos bens jurídicos. Assim sendo, não nos parece que a teleologia inerente àquela lei leve à conclusão de que deve também considerar-se excluído do perdão quem não é excluído pela letra da lei. Ou seja, uma vez que a teleologia que perpassa a lei é no sentido de amnistiar crimes e não amnistiar contraordenações, entendemos que não pode concluir-se no sentido de que, ao contrário dessa solução geral, afinal está excluído da amnistia quem a letra da lei não exclui.

Em conclusão.

O art. 4º da Lei 38-A/2023 estatui que são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.

O crime em causa nos autos é punido com pena não superior a 1 ano de prisão ou 120 dias de multa.

Do art. 7º nº 1 do diploma decorre que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos naquela lei (...) no âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por (...) crimes de (...) condução de veículo em estado de embriaguez.

O arguido não foi julgado nem condenado pelo crime em causa nos autos. Em decorrência, o caso dos autos não está excluído, na letra da lei, da amnistia concedida.

Do mesmo modo, não vemos que, considerando o restante teor e a teleologia da lei em questão, o caso dos autos deva, sem apoio na letra da lei (letra essa que aparenta ter sido escolhida propositadamente), considerar-se excluído da amnistia.

Pelo que supra fica exposto, declaro extinto, por amnistia, o procedimento criminal dos presentes autos.

Sem custas (arts. 513º nº 1 e 522º, todos do Código de Processo Penal).

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Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. Não se conformando com o despacho judicial, proferido em 19.10.2023, que declarou extinto, por amnistia, o procedimento criminal contra o arguido (A), acusado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, dele vem o Ministério Público interpor recurso, o qual incide sobre matéria de direito, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

2. Entende-se que o Tribunal a quo violou e interpretou erradamente o artigo 7.º, da Lei n.º 38-A, 2023, de 2 de Agosto.

3. O Tribunal interpretou tal norma no sentido de que, ao utilizar a expressão “condenados”, o legislador não excluiu a aplicação da amnistia àqueles que forem autores do crime de condução de veículo em estado de embriaguez e ainda não tiverem sido condenados.

4. Entendemos que a interpretação mais correcta com o pensamento legislativo é no sentido de excluir a aplicação da amnistia aos autores da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, do Código Penal.

5. Em sede de interpretação de normas há que ter em conta o que dispõe o artigo 9.º do Código Civil, sendo certo que a letra da lei não é suficiente para resolver os problemas de interpretação.

6. Além do teor verbal, hão de ser considerados «a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos» (ou seja, a interpretação lógico-sistemática), assim como «a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica», bem assim «a história da génese do preceito», que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e finalmente o «fim particular da lei ou do preceito em singular» (ou seja, a interpretação teleológica) - cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3.ª ed., p. 111.

7. O legislador decidiu sistematicamente prever nos artigos nos artigos 3.º a 6.º os casos em que podia ser aplicada a amnistia e o perdão e, de seguida, sob a epigrafe “Excepções”, estabelecer no artigo 7.º os casos em que não podem ser aplicadas qualquer daquelas medidas de clemência.

8. No n.º 1 da citada disposição legal, o legislador elenca expressamente os casos que “não beneficiam do perdão e da amnistia”, fazendo intencionalmente menção à vontade de não aplicar a amnistia a todos esses crimes, apesar de usar a expressão “condenados”, ao invés de usar a expressão “autores”, ou de simplesmente enumerar os crimes em causa.

9. Do n.º 3, da citada disposição legal, resulta que o legislador pretendeu excluir os crimes elencados nos n.ºs 1 e 2, do artigo 7.º, ressalvando que tal exclusão não prejudica a aplicação da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.

10. Parece-nos claro que a intenção do legislador foi excluir crimes puníveis com prisão não superior a um ano atendendo nomeadamente a critérios de necessidades de prevenção elevadas, do tipo de agente do crime e do tipo de vítima mais vulnerável (cfr. artigos 292.º, n.ºs 1 e 2, 278.º, n.º 3, 279.º, n.º 5, do Código Penal, artigo 6.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, artigos 30.º, 32.º, n.º 2, da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, artigos 172.º, n.º 2 e 176.º-A, do Código Penal, artigos 13.º, 14.º, 23.º, n.ºs 2 e3, 25.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, artigo 7.º, n.º 1, al. d), ii), i), al. f), vii), x), al. g), al. h), e n.º 2, da Lei n.º 38-A/2023).

11. No que concerne ao elemento histórico, e no que ao crime de condução em estado de embriaguez diz respeito, já anteriormente, o legislador excluiu a aplicação da amnistia e do perdão aos autores do crime de condução de veículo em estado de embriaguez (cfr. artigo 2.º, n.º 1, al. c, da Lei n.º 29/99, de 12.05).

12. Não faria sentido que, o legislador excluísse da amnistia a contra-ordenação relativa à condução sob o efeito do álcool (com uma taxa compreendida entre 0,5 g/l e 1,19 g/l de álcool no sangue) e o perdão da pena aplicada pela prática deste crime, e pretendesse amnistiar a prática do crime de condução em estado de embriaguez (com uma taxa igual ou superior a 1,2 g/l de álcool no sangue).

13. Atento o exposto, e levando em conta todos os elementos de interpretação da lei, é de excluir a aplicação da amnistia aos autores da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do Código Penal, pelo que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, seguindo os seus ulteriores termos.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, seguindo os seus ulteriores termos.

V. Exas. farão, como sempre, JUSTIÇA.

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Por despacho de 1-12-2023 o recurso foi admitido.

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Não foi apresentada resposta ao recurso.

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No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer nos termos seguintes:

É claro que em caso de dúvida da interpretação da Lei, partindo sempre do princípio de que este usou a fórmula mais correta, deverá fazer-se apelo à interpretação sistemática, apurar o pensamento do legislador através de atas ou outros elementos escritos, acontecimento que motiva a lei, tradição do nosso ordenamento jurídico etc…

Ora, em nosso entender, não é necessário nada disso pois a Lei 38-A/2023 de 2 de agosto é clara nos seus próprios termos.

Esquecendo o pressuposto temporal da prática do ilícito, bem como a idade do infrator que não estão aqui em causa, a referida Lei refere que o seu objeto é o perdão de penas e a amnistia de infrações e que esta ocorre por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

Logo de seguida, no artº 2º o Legislador enumera que estão abrangidas pela presente Lei:

- as sanções penais, nos termos definidos nos artigos 3º e 4º

- as sanções acessórias relativas a contraordenações (sublinhado nosso) nos termos definidos no nº 5º,

- as sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares nos termos do artº 6º

Ora, desde logo, em caso da prática de crime haverá que recorrer

- ao artigos 3º para aplicação do perdão de penas sobre a pena aplicada, o que pressupõe que haja julgamento e condenação - quer este já se tenha realizado quer este tenha ainda que realizar-se e proferir-se sentença condenatória.

- e ao art º4º no caso de amnistia de infrações penais, que em geral define o seu âmbito e assim, nem necessidade de qualquer condenação prévia, estas são logo amnistiadas desde que a sua pena abstratamente aplicável não seja superior a um ano ou a 120 dias de multa.

E a Lei 38-A/2023 depois de concretizar o perdão das sanções acessórias relativas a contraordenações e a amnistia de infrações disciplinares e disciplinares militares (artº 5º e 6º) passa a estabelecer um regime de exceção (artº 7º) à aplicação quer do perdão quer da amnistia que até ali decretara em termos genéricos!!!

Ora o crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artº 292 do Código Penal consta expressamente da Lei como não beneficiando, no âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, do perdão e da amnistia previsto na presente Lei!

Artº 7º, nº1, alínea d) ii).

Retirar do fato de o Legislador utilizar a expressão “ condenados” não quer dizer, de modo algum, que não beneficiam de perdão mas beneficiam de amnistia ou que só não beneficiam os já condenados mas aqueles casos em ainda não tiver havido sentença condenatória à data da publicação da lei beneficiam de amnistia (ou de perdão)…

Claro que em nosso entender e com o devido respeito.

Para além de que expressões sugeridas como autores, também nem é uma expressão jurídica apenas utilizada com um único sentido – a acusação imputa fatos a alguém na qualidade de autor (por oposição à figura do cúmplice) mas só se poderá afirmar juridicamente que fulano foi autor de certo crime após uma decisão judicial que conheça de mérito e transitada em julgado…

Veja-se que o Legislador mesmo no âmbito do artº 7º n1º utiliza outras expressões quando passa a excecionar da aplicação do perdão e da amnistia a situações que não constituem crime mas infrações de outra natureza como seja nas alíneas K) e L).

Por outro lado, que sentido faria que o Legislador expressamente excluísse do perdão e da amnistia os autores de contraordenações praticadas sob a influência do álcool (alínea L) e amnistiasse ou perdoasse as mesmas condutas com um teor de álcool superior e qualificadas por serem mais graves como crime?!

Seria uma inversão total dos valores jurídicos que o Código Penal protege, à revelia quer da letra da lei, quer da tradição jurídica, quer mesmo das medidas de política legislativa encetadas nos últimos anos, quer por via legislativa quer por dispêndio do dinheiro público, como vista a diminuir quer a ingestão de álcool quer a condução nesse estado, bem como os efeitos nefastos que o mesmo tem em várias áreas da sociedade desde a violência doméstica, aos acidentes de viação ou exercício adequado da parentalidade...

Termos em que emitimos parecer no sentido da procedência do recurso, devendo revogar-se a decisão judicial e ser proferida sentença.”

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Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, respondeu o arguido, alegando, em síntese, que “deverá ser mantida a decisão do Tribunal a quo, considerando-se o procedimento criminal extinto por amnistia, e, assim, o arguido absolvido do crime pelo qual vem acusado”.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice o recorrente limita o recurso à questão de saber se é de excluir a aplicação da amnistia aos autores da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do Código Penal, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.

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Apreciando e decidindo

As regras de interpretação legal, plasmadas no artigo 9.º do Código Civil, e que são aplicáveis a todos os ramos do Direito, demandam do intérprete que não se cinja à letra da lei, antes reconstruindo «a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.» e presumindo, no seu labor hermenêutico, que «o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

Dir-se-á, pois, que, sempre que a letra da lei consinta (ou não obste) a que dela se extraia mais do que um sentido, será de optar por aquele sentido que se revele mais conforme com os princípios basilares do sistema jurídico e, em particular, do ramo do Direito em que a norma se insere; que seja mais coerente à luz no contexto político-social em que a lei foi criada, por um lado, e em que a lei será aplicada, por outro, e que, quando comparado com a aplicação de outras normas do mesmo sistema, ramo e visando tutelar o mesmo tipo de interesses jurídicos, não conduza a soluções absurdas e, como tal, incompreensíveis para o cidadão comum, em nome de quem se administra a Justiça num Estado de Direito Democrático.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06-04-2022 (disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 1301/19.0PBAVR.P1), «Nenhuma interpretação da Lei pode levar a uma aplicação absurda da mesma, esta é uma regra que já nos vem do Direito Romano: “interpretatio facienda est, ut ne sequantur absurdum”.»

Nesta nossa interpretação da lei atendemos, pois, ao preceituado no artigo 9º do Código Civil (preceito legal que genericamente regula a matéria da interpretação da lei), onde se estabelece, como principal marca orientadora, que a interpretação da lei deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Interpretar uma lei mais não é do que determinar o seu sentido e o alcance com que ela se deve impor na comunidade jurídica a que se destina.

Uma interpretação meramente literal do preceito em análise dá apoio à tese sustentada na decisão recorrida.

Porém, como decorre dos princípios gerais de interpretação, a letra da lei, se bem que constitua um importante elemento de interpretação, não é o único, nem, porventura, o mais importante.

Por ocasião da Jornada Mundial da Juventude realizada em Portugal, entre os dias 1 e 6 de agosto, marcada pela visita do Papa ao país, foi publicada a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações.

Em traços gerais, a amnistia é uma medida de clemência que o Estado concede, em certas circunstâncias, anulando o preenchimento de determinados tipos legais de crimes, cometidos por um conjunto mais ou menos amplo de pessoas, até determinada data.

Enquanto a amnistia extingue o procedimento criminal (sendo que, no caso de já ter havido condenação, faz cessar a execução da pena e dos seus efeitos), o perdão destina-se a extinguir a pena, total ou parcialmente.

Ora, a proposta de lei n.º 97/XV/1.ª, refere na sua exposição e motivos que “considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana, justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento. Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina”.

E, como bem refere o recorrente, em entendimento que sufragamos, “De acordo com a interpretação do Tribunal, nos casos acima elencados, apenas é excepcionado o perdão e não a amnistia, o que não nos parece fazer sentido atendendo à letra da lei “não beneficiam do perdão e da amnistia”.

Conforme referimos, a interpretação do Tribunal a quo baseia-se unicamente na expressão “condenados”. Então, somente após transitada em julgado a sentença, pode o autor ser considerando “condenado” por aqueles crimes.

Se considerássemos apenas a referida expressão, então por que não entender que aqueles que já tivessem sido condenados pela prática dos crimes enunciados no artigo 7.º não podiam beneficiar da amnistia e do perdão? Ou seja, se tais indivíduos já registassem qualquer condenação pela prática de tais crimes – atendendo à expressão usada “os condenados por crimes de” -, então, não podiam beneficiar de qualquer das medidas de clemência.

Colocamos tal hipótese apenas por mero exercício interpretativo, na medida em que não compreendemos por que motivo o Tribunal a quo extrai da expressão “não beneficiam do perdão e da amnistia os condenados por crimes de (…)” o entendimento de que não beneficiam dessas medidas aqueles que ainda não tiverem sido condenados apenas no âmbito de determinado processo em que estiverem a ser julgados.

O legislador também não disse isto.

Podíamos questionar se a solução seria mais feliz se o legislador tivesse utilizado a expressão “arguidos”, ao invés da expressão “condenados”. Porventura, até nesse caso, estaria sujeita a ambiguidade, eventualmente surgindo uma tese de que o agente do crime que ainda não tivesse sido constituído arguido em determinado processo podia beneficiar da amnistia, mas o arguido não.

Considerando que, conforme referimos, o legislador também não pretendeu dizer o que o Tribunal a quo sufragou na decisão recorrida, temos de interpretar a lei.

É certo que “a amnistia bem como o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliações nem restrições; e na determinação do sentido dos mesmos diplomas não é admitida a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas sim e só a interpretação declarativa”.

Em sede de interpretação de normas há que ter em conta o dispõe o artigo 9.º do Código Civil:

“1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

A letra do artigo 7.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto não é suficiente para resolver os problemas de interpretação.

Assim sendo, é necessário recorrer aos demais elementos de interpretação mencionados no artigo 9.º, do Código Civil.

Assim, além do teor verbal, hão de ser considerados «a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos» (ou seja, a interpretação lógico-sistemática), assim como «a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica», bem assim «a história da génese do preceito», que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e finalmente o «fim particular da lei ou do preceito em singular» (ou seja, a interpretação teleológica) - cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3.ª ed., p. 111.

Nesta sequência, entendemos que releva o facto de o legislador ter decidido sistematicamente prever nos artigos nos artigos 3.º a 6.º os casos em que podia ser aplicada a amnistia e o perdão e, de seguida, sob a epigrafe “Excepções”, estabelecer no artigo 7.º os casos em que não podem ser aplicadas qualquer daquelas medidas de clemência.

No n.º 1, da citada disposição legal, o legislador elenca os casos que “não beneficiam do perdão e da amnistia” previstos naquela lei, pretendendo claramente com tal expressão excepcionar a amnistia em todos esses casos, apesar de utilizar a expressão “condenados” em vez de, por exemplo, “autores” ou de simplesmente enumerar os crimes em causa.

No n.º 2 o legislador diz que as “medidas previstas” na presente lei (amnistia e perdão) “não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções”.

E, por sua vez, no n.º 3, refere que “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos”. O legislador pretendeu excluir os crimes elencados no artigo 7.º, ressalvando que tal prejudica a aplicação da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes.

É também ter necessário em consideração os crimes excluídos no artigo 7.º, que acima enumeramos (em particular quanto à amnistia), donde resulta a intenção clara de excluir a aplicação da amnistia mesmo a crimes puníveis com prisão não superior a um ano quando estão em causa necessidades de prevenção elevadas (por ex., crime de condução de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, crime de dano contra natureza, crime de poluição, respectivamente previstos nos artigos 292.º, n.ºs 1 e 2, 278.º, n.º 3, 279.º, n.º 5, do Código Penal, crimes praticados contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções), crimes informáticos (acesso ilegítimo, previsto no artigo 6.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro), crimes ligados ao fenómeno desportivo (crime de participação em rixa no âmbito de espetáculo desportivo ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, crime de invasão da área do espetáculo desportivo, previstos nos artigos 30.º e 32.º, n.º 2, da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho) ou crimes em praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis (crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável e crime de aliciamento de menores para fins sexuais, previstos nos artigos 172.º, n.º 2 e 176.º-A, do Código Penal).

No que concerne ao elemento histórico, há que ter em devida conta os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência.

Nesta sequência, e no que concerne ao crime de condução em estado de embriaguez que aqui nos ocupa, já anteriormente, nomeadamente aquando a aplicação da Lei n.º 29/99, de 12.05 (Amnistia 1999), o legislador excluiu a aplicação da amnistia e do perdão aos infractores “ao Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool ou de estupefacientes”

Por outro lado, não faria sentido que, no âmbito da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, o legislador excluísse da amnistia a contra-ordenação relativa à condução sob o efeito do álcool (com uma taxa compreendida entre 0,5 g/l e 1,19 g/l de álcool no sangue) e o perdão da pena aplicada pela prática deste crime, punido com uma pena de até 1 ano de prisão ou 120 2 Cfr. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02.06.1999, processo 9941072: “O crime do artigo 292 do Código Penal (condução de veículo automóvel sob a influência do álcool) não se encontra abrangido pela Lei da amnistia n.29/99, de 12 de Maio”. E, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15.12.1999, processo 2752/99: “1. Do texto da al.c), do n.º 1, do art.2º, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, decorre claramente que o legislador excluiu os benefícios concedidos (amnistia e perdão) aos infractores do Código da Estrada, seu Regulamento, legislação complementar e demais legislação rodoviária, quando tenham praticado a infracção sob a influência do álcool ou de estupefacientes ou com abandono de sinistrado, independentemente da pena. 2. Certo é que o crime do art.292º, do Código Penal, é inquestionavelmente um crime rodoviário, na medida em que visa tutelar ou proteger a segurança rodoviária, contra factos e estados de perigosidade relativos ao exercício da condução de veículo rodoviário, como aliás, claramente resulta da respectiva epígrafe - condução de veículo em estado de embriaguez - sendo que a circunstância de se encontrar inserido na lei substantiva penal não lhe retira a natureza de infracção rodoviária, consabido que o legislador tendo optado por sancionar a generalidade das infracções de trânsito nos quadros do direito de mera ordenação social, qualificando como contra-ordenações as infracções que anteriormente constituíam transgressões, remeteu para o Código Penal e legislação avulsa os comportamentos merecedores de qualificação de crime. 3. Assim, é evidente que o arguido, enquanto autor material de um crime rodoviário, excluído está dos benefícios concedidos pela Lei n.º 29/99 (amnistia e perdão).”

O recurso é, assim, procedente.

Decisão

Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, revogar o despacho recorrido e determinar a substituição por outro que determine o prosseguimento dos autos, seguindo os seus ulteriores termos.

- Sem custas.


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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 5 de março de 2024

Laura Goulart Maurício

António Condesso

Moreira das Neves