Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4330/21.0T8STB-E.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
INEFICÁCIA
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Nos termos do artigo 81.º, n.º 1, do CIRE, com a declaração de insolvência, o insolvente fica imediatamente privado dos poderes de administração e de disposição sobre os bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a ser da competência do administrador da insolvência, assumindo, por isso, este a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
II – Esta transferência imediata dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente do devedor para o administrador da insolvência não depende de um qualquer ato concreto e formal de apreensão de bens, bastando-se com o trânsito da sentença de declaração de insolvência.
III - Em caso de violação desta determinação legal, os atos de administração e de disposição praticados pelo insolvente em data posterior à da declaração de insolvência, relativamente a bens integrantes da massa insolvente, são ineficazes quanto à massa falida, respondendo esta apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa.
IV – Só não será assim se, cumulativamente, se tratar de um ato celebrado a título oneroso com terceiros de boa fé anteriormente ao registo da sentença da declaração de insolvência, efetuado nos termos dos n.ºs 2 ou 3 do artigo 38.º do CIRE, consoante os casos, e não tiver em causa algum dos tipos referidos no n.º 1 do artigo 121.º do mesmo Diploma Legal.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 4330/21.0T8STB-E.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
I - Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Comércio de Setúbal – Juiz 2, nos autos de insolvência n.º 4330/21.0T8STB, em que foi declarada insolvente (…), por sentença proferida em 23-08-2021, e transitada em 29-09-2021,[2] foi, em 25-11-2021, proferido despacho judicial, a dispensar a referida insolvente da liquidação do veículo automóvel apreendido, com a matrícula (…), de marca Citroen C4 Cactus 2017, desde que mediante o depósito do valor de € 8.500,00 a favor da massa insolvente.
Uma vez que a insolvente não procedeu ao depósito do mencionado valor, e, notificada para se pronunciar sobre tal circunstância, nada disse, por despacho judicial de 22-02-2022, foi dado sem efeito a dispensa de liquidação relativamente ao identificado veículo, sendo a insolvente e respetivo mandatário notificados para procederem à entrega dessa veiculo, no prazo de 10 dias, à Sra. Administradora da Insolvência.
Como a insolvente não procedeu a tal entrega, apesar de notificada, após o silêncio desta à notificação para esclarecer a razão de tal não entrega, foi proferido despacho judicial, em 24-05-2022, a notificar, novamente, a insolvente e respetivo mandatário para procederem à entrega do veículo, com a matrícula (…), no prazo de 10 dias, à Sr.ª Administradora de Insolvência.
Por despacho judicial de 13-07-2022 foi deferido o auxílio de força pública, em face do reiterado incumprimento da insolvente em proceder à entrega do referido veículo.
Por requerimento de 07-02-2023, a Sra. Administradora da Insolvência deu conhecimento ao tribunal que o veículo automóvel de matrícula (…) foi transmitido pela insolvente, em 13-09-2022, a (…), seu filho.
Em 30-03-2023 foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:
Nesta conformidade, e por violação dolosa dos deveres previstos nas alíneas a), b), e d) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, em conformidade com o disposto no artigo 243.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do CIRE, e declaro a cessação antecipada da exoneração do passivo restante relativamente a (…).
Notifique.
Publicite e registe – artigo 247.º do CIRE.
Após o exercício do contraditório, ao qual a insolvente não respondeu, foi proferida, em 23-07-2023, sentença com o seguinte teor decisório:
Em face do exposto, declaro ineficaz a transmissão do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Citroen, modelo “C4 Cactus” com a matrícula (…), do ano de 2017, a gasolina, com 1,199 cc, com o valor estimado de € 8.500,00, ocorrida em 13- 09-2022 a (…), com o NIF (…), residente na Rua da (…), n.º 43, 2.º Direito, 2615-315 Alverca do Ribatejo.
Notifique e comunique à Conservatória do Registo Automóvel.
Inconformada com a sentença proferida, veio a insolvente interpor recurso, o qual terminou com as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida viola os princípio do CIRE.
2. Pois o recorrente em nada tentou lesar a massa.
3. A recorrente não pode entregar algo que não possui.
4. A recorrente não violou nada no CIRE.
5. Não existiu gratuitidade no negócio.
6. O veiculo foi transmitido onerosamente.
7. E pago ao credor hipotecário.
8. A decisão proferida não pode ser considerada.
9. A recorrente em nada prejudicou a massa e os credores.
Nestes termos e nos demais, requer-se a V. Exa. que seja revogada a sentença proferida.
ASSIM SE FARÁ A ACOSTUMADA JUSTIÇA.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos, foram os autos aos vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, a questão que importa decidir é:
1) A insolvente violou alguma disposição legal constante do CIRE.
III – Matéria de Facto
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. Após a declaração de insolvência e no âmbito das diligências realizadas pela Sr.ª A.I. apurou-se ser a insolvente proprietária do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Citroen, modelo “C4 Cactus” com a matrícula (…), do ano de 2017, a gasolina, com 1,199 cc, com o valor estimado de € 8.500,00.
2. Em face dessa informação, os autos prosseguiram para liquidação do ativo ou em alternativa a insolvente proceder à entrega do valor correspondente, com vista à dispensa da liquidação do ativo, o que foi determinado nos autos;
3. Em 22-02-2022, a dispensa de liquidação foi dada sem efeito, e a insolvente foi notificada para proceder à entrega do referido automóvel à administradora judicial, o que nunca ocorreu.
4. A insolvente transmitiu o veículo automóvel de matrícula (…) em13- 09-2022 a (…), com o NIF (…), residente na Rua da (…), n.º 43, 2.º Direito, 2615-315 Alverca do Ribatejo;
5. (…) é filho da insolvente;
6. A insolvente procedeu à transmissão do veículo automóvel ao filho, após a declaração da sua insolvência, apesar de ter sido ordenada a apreensão do mesmo a favor da massa insolvente e de ter sido notificada pelo Tribunal para proceder à entrega à administradora judicial.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) a insolvência violou alguma disposição legal constante do CIRE.
1 – A insolvente violou alguma disposição legal constante do CIRE
Entende a Apelante que não violou qualquer disposição legal constante do CIRE, pois não tentou lesar a massa insolvente, nem prejudicou a massa insolvente e/ou os credores, não podendo entregar algo que não possuía, sendo que o negócio realizado foi oneroso e pago ao credor hipotecário.
Apreciemos.
Ainda que a recorrente não indique qual é a disposição legal que, em seu entender, não violou, tal disposição legal terá de se reportar ao disposto no artigo 81.º, nºs. 1, 4 e 6, do CIRE, por ser a disposição legal que a sentença recorrida entendeu ter sido violada.
Estatui o artigo 81.º do CIRE que:
1 - Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
2 - Ao devedor fica interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo.
3 - Não são aplicáveis ao administrador da insolvência limitações ao poder de disposição do devedor estabelecidas por decisão judicial ou administrativa, ou impostas por lei apenas em favor de pessoas determinadas.
4 - O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
5 - A representação não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário.
6 - São ineficazes os actos realizados pelo insolvente em violação do disposto nos números anteriores, respondendo a massa insolvente pela restituição do que lhe tiver sido prestado apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa, salvo se esses actos, cumulativamente:
a) Forem celebrados a título oneroso com terceiros de boa fé anteriormente ao registo da sentença da declaração de insolvência efectuado nos termos dos n.os 2 ou 3 do artigo 38.º, consoante os casos;
b) Não forem de algum dos tipos referidos no n.º 1 do artigo 121.º.
7 - Os pagamentos de dívidas à massa efectuados ao insolvente após a declaração de insolvência só serão liberatórios se forem efectuados de boa fé em data anterior à do registo da sentença, ou se se demonstrar que o respectivo montante deu efectiva entrada na massa insolvente.
8 - Aos actos praticados pelo insolvente após a declaração de insolvência que não contrariem o disposto no n.º 1 é aplicável o regime seguinte:
a) Pelas dívidas do insolvente respondem apenas os seus bens não integrantes da massa insolvente;
b) A prestação feita ao insolvente extingue a obrigação da contraparte;
c) A contraparte pode opor à massa todos os meios de defesa que lhe seja lícito invocar contra o insolvente.

Em face do disposto no citado artigo, para além da situação prevista no Título X,[3] a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a ser da competência do administrador da insolvência, assumindo, por isso, este a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. Atente-se que esta transferência imediata dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente do devedor para o administrador da insolvência não depende de um qualquer ato concreto e formal de apreensão de bens,[4] bastando-se com o trânsito da sentença de declaração de insolvência.
Por outro lado, nos termos do artigo 46.º do CIRE, a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo, excetuando-se apenas os bens isentos de penhora, que apenas serão integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e não se tratar de situação de impenhorabilidade absoluta.
Por fim, em caso de violação desta determinação legal, os atos de administração e de disposição praticados pelo insolvente em data posterior à da declaração de insolvência, relativamente a bens integrantes da massa insolvente, são ineficazes quanto à massa falida, respondendo esta apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa. Só não será assim se, cumulativamente, se tratar de um ato celebrado a título oneroso com terceiros de boa fé anteriormente ao registo da sentença da declaração de insolvência, efetuado nos termos dos n.ºs 2 ou 3 do artigo 38.º do CIRE, consoante os casos, e não tiver em causa algum dos tipos referidos no n.º 1 do artigo 121.º do mesmo Diploma Legal.
Vejamos, então, a situação concreta.
Em face dos factos que constam do presente relatório, bem como dos factos que foram dados como provados, e que não foram impugnados em sede de recurso, constata-se que a sentença que declarou insolvente a recorrente foi proferida em 23-08-2021, tendo transitado em 29-09-2021. Nessa data, a insolvente era proprietária do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Citroen, modelo “C4 Cactus”, com a matrícula (…), do ano de 2017, a gasolina, com 1,199 cc, e com o valor estimado de € 8.500,00 (facto provado 1). Em 25-11-2021, a insolvente foi dispensada da liquidação do referido veículo automóvel, desde que procedesse ao depósito do valor de € 8.500,00, o que não veio a ocorrer, razão pela qual, em 22-02-2022, foi dado sem efeito a dispensa de liquidação relativamente ao veículo, sendo a insolvente notificada para proceder à sua entrega à Sra. Administradora da Insolvência, o que aquela nunca cumpriu (factos provados 2 e 3).
Em 13-09-2022, a insolvente transmitiu o mencionado veículo a (…), que é seu filho (factos provados 4 e 5).
Assim, é inegável que a insolvente cerca de um ano após o trânsito em julgado da sentença que a declarou insolvente procedeu à transmissão de um bem que integrava a massa insolvente, e para a entrega do qual já tinha, inclusive, sido notificada, pelo que, à data dessa transmissão, já não dispunha dos poderes de administração e de disposição sobre tal veículo automóvel (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE). Tal circunstância determina a ineficácia desse ato perante a massa insolvente, sendo que, por não ter sido demonstrada sequer a existência de qualquer pagamento do adquirente do referido veículo automóvel à insolvente (no caso, filho e mãe, respetivamente), cai por terra o primeiro dos requisitos previsto na alínea a) do n.º 6 do citado artigo 81.º, o que determina, sem mais delongas, a desnecessidade de análise dos demais requisitos. Sempre se dirá, porém, que da análise dos factos dados como provados não resulta qualquer facto que permita considerar que (…) estivesse de boa-fé.
É verdade que a recorrente vem alegar, em sede recursiva, que o veículo automóvel foi transmitido de forma onerosa. Porém, para além de o tribunal de recurso não apreciar factos novos,[5] sendo tal competência do tribunal a quo, verdade é que a recorrente nunca invocou quaisquer desses factos na instância própria, apesar de ter sido sempre notificada para o exercício do contraditório, remetendo-se, nessas alturas, ao silêncio.
Pelo exposto, apenas nos resta concluir pela improcedência do recurso.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil): (…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando-se a sentença proferida.
Custas a cargo da Apelante (artigo 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 8 de fevereiro de 2024
Emília Ramos Costa (relatora)
Rosa Barroso
Canelas Brás

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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Rosa Barroso; 2.º Adjunto: Canelas Brás.
[2] Em face da data de afixação do edital na morada da insolvente, junto aos autos em 23-09-2021.
[3] Que se reporta exclusivamente a situações em que na massa insolvente se encontre compreendida uma empresa.
[4] Cfr. acórdão proferido pelo TRG em 12-05-2016 no âmbito do processo n.º 7382/11.7TBBRG.G1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. acórdão do TRC proferido em 06-11-2021 no âmbito do processo n.º 169487/08.3YIPRT-A.C1, consultável em www.dgsi.pt.