Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5904/15.5TDLSB.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 07/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário:
I – Comete um crime de falsificação de documento simples o arguido que, enquanto examinador de pilotagem de determinados aviões, confirma em impresso fornecido pelo INAC, que as manobras e exercícios requeridos foram completados, de forma a atestar que as manobras descritas foram realizadas com sucesso pelo examinando, quando tal não foi feito em conformidade com as exigências do INAC, procedimento que lhe permitiu receber o pagamento de exames que, possivelmente, não seriam por si realizados, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa e ao Estado e obter para si benefício ilegítimo.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No Processo Comum nº 5904/15.5TDLSB, que correu termos no Juízo Local Criminal de Santarém do Tribunal da Comarca de Santarém, por sentença proferida em 20/12/2017, foi decidido:

Julgar procedente por provada a acusação deduzida pelo Ministério Público e, consequentemente:

a) Condenar o arguido LP como autor material de dois crimes de falsificação de documento p.p. art.º 256.º n.º 1 alínea d) e 3 do Código Penal, cada um na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros);

b) Condenar o arguido LP, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 450 (quatrocentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros).

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1. Em Dezembro de 2013, o arguido LP era titular da licença PT.FCL.A2264A e do certificado de Examinador PT.A2264A, emitidos pelo, então, Instituto Nacional da Aviação Civil;

2. Enquanto titular da licença PT.FCL.A2264A e do certificado de Examinador PT.A2264A, o arguido LP encontrava-se habilitado a realizar os exames de verificação de proficiência designados de “CLASSE/Type Rating SPA (Single Pilot Aeroplane) except HPCA – Prof. Check”, destinados a revalidar as qualificações da classe MEP (Land) e IR (ME) dos indivíduos por si examinados;

3. A qualificação classe MEP (multi-engine piston) refere-se à classe de aviões multimotor (dois ou mais motores) equipados com motores a pistão, também conhecidos por aeronaves ligeiras bimotores a hélice;

4. A qualificação IR (ME) refere-se à qualificação de voo por instrumentos para aeronaves multimotor, permite pilotar por instrumentos todas as aeronaves multimotor desde que o piloto detenha as respectivas qualificações classe ou tipo das mesmas e que poderão ir desde aviões multimotor (dois ou mais motores) equipados com motores a pistão até às aeronaves do tipo Airbus/Boeing;

5. Uma das manobras a realizar pelos examinandos durante esses exames é a aproximação por instrumentos, a qual corresponde a um método de aproximação à pista que é executado sem referências visuais e através da receção de sinais rádio, emitidos por estações no solo, pelos equipamentos da aeronave e que são convertidos em indicações nos instrumentos de bordo;

6. Essa manobra pode ser uma aproximação de precisão, quando seja realizada com guiamento nos planos horizontal e vertical, permitindo uma aproximação com alto grau de rigor, podendo ser realizada, em algumas aeronaves, sem a intervenção dos pilotos, ou de não precisão, no casos em que existe apenas guiamento no plano horizontal, sendo que no plano vertical o guiamento é feito por restrições de altitude em tempo ou distancia estabelecidas.

7. As manobras de precisão apenas podem ser realizadas em aeródromos dotados de equipamentos próprios para transmitirem sinais de rádio referentes aos planos horizontal e vertical, e com aeronaves dotadas de equipamentos adequados a receber e providenciar indicações nos instrumentos de bordo aos pilotos;

8. As aproximações de precisão mais comuns são o ILS (Instrument Landing System), as quais, em Portugal Continental, apenas podem ser realizadas nos aeroportos do Porto, de Lisboa e de Faro e nas bases militares de Beja, do Montijo, de Monte Real e de Ovar;

9. Numa aproximação de não-precisão, existe apenas guiamento no plano horizontal, sendo que, no plano vertical, o guiamento é feito por restrições de altitude em tempo ou distancia estabelecidas;

10. Este tipo de aproximação é baseado em estações rádio que normalmente também podem servir para navegação aérea (NDB ou VOR) e que, em Portugal Continental, apenas podem ser realizadas nos aeroportos do Porto, de Lisboa e de Faro, nas bases militares de Beja, do Montijo, de Monte Real e de Ovar e nos aeródromos de Évora, de Cascais e de Vila Real

11. No dia 14 de Dezembro de 2013, no aeródromo de Santarém, o arguido LP iniciou, com TP e a bordo da aeronave GA07, de matrícula G-OOGO, um voo destinado a permitir a esse indivíduo revalidar as qualificações da classe MEP (Land) e IR (ME), para a licença CPL (A) P-4259, de que este era titular;

12. Sob orientação e instruções do arguido, TP efectuou várias manobras de voo, de precisão e de não precisão, na zona da Serra d’Aire, com o auxílio do sistema de navegação, via rádio, de Fátima;

13. Concluídas essas manobras, regressaram ao aeródromo de Santarém, onde o arguido LP preencheu o formulário “CLASSE/Type Rating SPA (Single Pilot Aeroplane) except HPCA – Prof. Check”, emitido pelo, então, I.N.A.C., nele tendo assinalado o campo onde constava a menção “Confirmo que as manobras e exercícios requeridos foram completados” e colocado a sua rúbrica nos campos 3.B.4, intitulado “ILS to DH/ OF 200’ (60 M) or to procedure minima (autopilot may be used to glideslope intercept)” e 3.B.5, intitulado “Non-precision approach to MDH/A and MAP”, de forma a atestar que as manobras descritas foram realizadas com sucesso pelo examinando;

14. Uma vez preenchido esse formulário, o arguido LP entregou-o a TP, procedendo, ainda, à inscrição de endosso na licença MEP-IR de que este era titular, revalidando-a desse modo;

15. Pela realização de tal exame, TP entregou quantia entre os € 150,00 e os € 200,00, em numerário;

16. No dia 14 de Dezembro de 2013, no aeródromo de Santarém, o arguido LP iniciou, com MV e a bordo da aeronave GA07, de matrícula G-OOGO, um voo destinado a permitir a esse indivíduo revalidar as qualificações da classe MEP (Land) e IR (ME), para a licença CPL (A) P-4259, de que este era titular;

17. Sob orientação e instruções do arguido, MV efectuou várias manobras de voo, de precisão e de não precisão, nas zonas de Ponte de Sor, Fátima e Santarém, com o auxílio do sistema de navegação, via rádio, apenas na zona de Fátima;

18. Concluídas essas manobras, regressaram ao aeródromo de Santarém, onde o arguido LP preencheu o formulário “CLASSE/Type Rating SPA (Single Pilot Aeroplane) except HPCA – Prof. Check”, emitido pelo, então, I.N.A.C., nele tendo assinalado o campo onde constava a menção “Confirmo que as manobras e exercícios requeridos foram completados” e colocado a sua rúbrica nos campos 3.B.4, intitulado “ILS to DH/ OF 200’ (60 M) or to procedure minima (autopilot may be used to glideslope intercept)” e 3.B.5, intitulado “Non-precision approach to MDH/A and MAP”, de forma a atestar que foram realizados com sucesso pelo examinando;

19. Uma vez preenchido esse formulário, o arguido LP entregou-o a MV;

20. Pela realização de tal exame, MV entregou ao arguido quantia entre os € 600,00 e os € 900,00, em numerário, sendo que, parte desse valor, se destinava a custear o aluguer do avião e o combustível utilizado;

21. Munido do formulário preenchido pelo arguido, MV deslocou-se às instalações do, então, I.N.A.C., e requereu a emissão de nova licença MEP-IR, a qual veio ser emitida em 8 de Janeiro de 2014 (fls. 33);

22. O I.N.A.C. não tinha aprovado qualquer procedimento de aproximação por instrumentos de não precisão com base no VOR de Fátima;

23. O arguido LP agiu livre e conscientemente, com o propósito, concretizado, de fazer constar nos formulários “CLASSE/Type Rating SPA (Single Pilot Aeroplane) except HPCA – Prof. Check” referentes aos exames que efectuara a TP e a MV, que estes tinham realizado, com sucesso, as manobras de aproximação de precisão e de não precisão, apesar de bem saber que isso não correspondia à realidade;

24. Mais actuou o arguido LP, de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, concretizado, de apor endosso na licença MEP-IR de que TP era titular, assim a revalidando, apesar de bem saber que este não realizara as manobras necessárias a essa revalidação;

25. O arguido LP actuou da forma acima descrita de modo a poder facilitar a concretização dos exames de TP e de MV, evitando a realização de percursos maiores até aos aeroportos com os equipamentos necessários às manobras de aproximação, com inerentes custos superiores no que diz respeito a combustível e a tempo de aluguer de avião;

26. Logrou, assim, apresentar a tais candidatos a exame uma previsão de custo total muito inferior às de outros examinadores e, desse modo, assegurar que TP e de MV o escolhiam para realizar os exames de que necessitavam;

27. Procedimento que lhe permitiu receber o pagamento de exames que, possivelmente, não seriam por si realizados, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa e ao Estado e obter para si benefício ilegítimo;

28. Mais sabia o arguido LP que, com a sua conduta, punha em causa a autenticidade e confiança que merecem os documentos emitidos por examinadores certificados, nomeadamente, enquanto instrumentos de verificação das habilitações técnicas de pilotos de aeronaves;

29. Finalmente, o arguido LP sabia que praticava factos proibidos e punidos por lei penal;

Mais se provou que:

30. a) O que significam os dizeres referidos nos pontos "3.B.4" e "3.B.5", as siglas apostas nas colunas "FTD", "FFS", "A", "Chkd in FFS A" e as menções "P--»" "--»" e "M" do documento de fls. 4 a 6; A informação requerida está prevista no Regulamento (UE) n.º 1178/2011 da Comissão de 3 de novembro de 2011, que estabelece os requisitos técnicos e os procedimentos administrativos para as tripulações da aviação civil, em conformidade com o Regulamento (CE) n.º 216/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho; a) FTD ~ Flight Training Device ou Dispositivo de Treino de Voo, é uma réplica em tamanho real dos instrumentos, equipamentos, painéis e comandos de um tipo específico de aeronave numa cabina de pilotagem aberta ou numa cabina de pilotagem de aeronave fechada, compreendendo o conjunto de equipamentos e programas informáticos necessários para representar a aeronave no solo e em voo dentro dos limites dos sistemas instalados no aparelho.

b) FFS 7  Fui/Flight Simulator ou Simulador de Voo, é uma réplica em tamanho real de um tipo ou de uma marca, de um modelo e de uma série de cabina de pilotagem de uma aeronave específicos, incluindo a montagem de todos os equipamentos e programas informáticos necessários para representar a aeronave em operações no solo e em voo, um sistema visual que proporciona a visualização exterior à cabina de pilotagem, bem como um sistema de simulação de potência e de movimento.

c) A  7 Avião
d) Chkd in FFS/ A 7 Verificado em Fui/ Flight Simutator ou Avião

e) P--» 7 Treinado como PIC2 ou co-piloto e como PF e PNF3 para a emissão de uma qualificação de tipo, conforme aplicável.

f) --» 7 A formação prática será realizada pelo menos ao nível do equipamento de treino identificado como (P), ou poderá ser realizada até qualquer nível superior de equipamento identificado pela seta t=:»).

g) M  A letra «M» na coluna da prova de perícia ou da verificação de proficiência indica que se trata de um exercício obrigatório.

Das condições sociais, económicas e profissionais do arguido e antecedentes criminais:

31. O arguido LP encontra-se no estado civil de casado, a esposa não trabalha e o casal tem quatro filhos, com as idades de 25, 13, 9 e 7 anos, respectivamente, estando três a cargo do casal.

32. O arguido LP e o seu agregado familiar vive em casa própria, da qual paga prestação bancária por empréstimo à habitação, no valor mensal de € 600,00;

33. O arguido LP exerce a profissão de piloto aviador, por conta de outrem – Babcock, com sede em Inglaterra – da qual aufere a remuneração média mensal de € 2.000,00.

34. O arguido LP tem como habilitações escolares o 12.º ano de escolaridade e o curso de piloto aviador desde 1999;

35. O arguido LP não tem antecedentes criminais.

Da sentença proferida o arguido LP interpôs recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1. O arguido foi condenado pela prática de dois crimes de falsificação de documento p.p. art.º 256.º n.º 1 alínea d) e 3 do Código Penal.

2. O arguido não concorda com a mesma.

3. A condenação do arguido foi feita ao abrigo do disposto no artigo 256.º n.º 1 al. d) e n.º 3 do cp que, como resulta da lei, eleva a moldura penal. Contudo, se atentarmos no enquadramento jurídico, sempre será de considerar que não feito qualquer enquadramento referente ao preenchimento do previsto no n.º 3 do artigo 256.º do cp.

4. Cremos que a condenação do arguido nos termos do disposto n.º 3 acaba por carecer da necessária fundamentação.

5. Atento o disposto no artigo 374.º n.º 2 do Código de Processo Penal sempre será de considerar que a sentença deve oferecer a fundamentação “bem como (de) uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão”.

6. Se o Tribunal, condena ao abrigo do disposto no artigo 256.º n.º 1 al. d) e n.º 3 do cp, sem apresentar qualquer fundamentação para justificação do preenchimento ou aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 256.º, sempre será de considerar que estamos diante uma falta de fundamentação da douta sentença proferida.

7. Estamos diante uma nulidade da sentença proferida, prevista no artigo 379.º n.º 1 al. a) do cpp.

8. A sentença pune o arguido pelo que este fez constar no formulário descrito no ponto n.º 23 dos factos provados – fls. 4 e seguintes.

9. Se percorrermos o elenco da decisão da matéria de facto não encontramos qualquer trecho que integre esse documento no elenco previsto no n.º 3 do artigo 256.º do cp.

10. Estamos diante meros formulários que, salvo o devido respeito, não podem ser considerados como documentos autênticos e, também não preenchem os demais requisitos previstos no artigo 256.º n.º 3 do cp, ou seja, “documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267º”.

11. Os pressupostos do artigo 256.º n.º 3 do cp não estão verificados e não estão elencados na douta sentença, não podendo o arguido ser condenado pela prática de um crime previsto no artigo 256.º n.º 1 al. d) e n.º 3 do cp.

12. E ainda que assim não fosse, em face do silêncio da decisão da matéria de facto e respectiva fundamentação, tal decisão deveria ser revista sob pena de o Tribunal incorrer em manifesta nulidade decorrente da falta de fundamentação.

13. O Tribunal considerou que o arguido fez constar a realização dos exercícios, com sucesso, apesar de os pilotos não terem executado tais exercícios. E decidiu que o arguido agiu dessa forma, por forma a permitir a revalidação das licenças dos pilotos que se lhe apresentaram para fazer exame - factos provados descritos sob os n.º 13, 14, 18, 19, 23 e 24.

14. O que resulta dos factos provados, especialmente sob a alíneas 12 e 17, é que o arguido realizou os referidos exercícios de precisão e não precisão. Mais resulta, especificamente que esses exercícios foram efectuados nas zonas de Serra D’Aire e Fátima, no caso do facto provado n.º 12, referente ao TP. Resulta ainda que esses exercícios foram efectuados nas zonas de Ponto de Sor, Fátima e Santarém, no caso do facto provado prado n.º 17, referente ao MV.

15. Simplesmente, tal como figura nos factos provados n.º 22, o INAC não tinha aprovado qualquer procedimento para realização de exercícios em Fátima.

16. A testemunha TP afirmou que os exercícios foram executados.

17. Já quanto à testemunha MV, esta afirmou que os exercícios foram simulados, ou seja, sem pista à vista, quando deveriam ser feitos com pista à vista.

18. Podemos concluir que o que realmente, os exercícios foram executados, simplesmente não foram executados nas condições que o INAC aprovou para o efeito.

19. Se ambas as testemunhas confirmam a realização dos exercícios e evidenciam que tais exercícios não diferiram dos demais exames que efectuaram, temos de questionar o que é realmente determinante.

20. Não estão verificados os elementos do tipo legal. Com efeito, o arguido afirma que os exercícios foram realizados e, segundo as testemunhas, foram realizados.

21. Se foi feito em determinadas condições ou locais, isso é um problema diferente e que, com o devido respeito, está fora do tipo legal em causa.

22. Há fundamentos pertinentes para justificar esta postura do arguido. Esses fundamentos são as dificuldades em fazer as manobras nos aeroportos definidos, devido ao congestionamento aéreo.

23. Considerando que, durante o voo, o arguido não tem condições – porque não autorizam – para realizar os examos nos aeroportos definidos, apenas tem duas opções: ou o arguido rejeita a realização do exame fora daqueles locais e reprova o piloto, porque não pode aferir se está apto, ou o arguido replica o exame fora dos locais definidos e avalia em consciência se o piloto pode ou não ver a sua licença renovada.

24. Somente a segunda tem sentido para uma pessoa bem intencionada e zelosa.

25. Fundamentos pelos quais, deverá a condenação proferida ser revogada, com todas as legais consequências.

26. A prova documental constante dos autos, está redigida em língua inglesa. É entendimento do arguido que um documento em língua estrangeira, desprovido de tradução autenticada, não tem virtude probatória.

27. É entendimento do arguido que era necessária a tradução desse documento.

28. Nunca foi decidido no processo a necessidade ou desnecessidade de tradução.

29. Nulidade decorrente da falta de apreciação que expressamente se invoca.

30. O arguido é titular de uma licença de examinador da ANAC.

31. Existe ainda outra questão a apreciar, ou seja, a da repetição de julgados. O arguido já foi julgado por estes factos.

32. Essa sentença foi proferida pelo 1.º Juízo do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, no âmbito do processo nº. 311/16.3YUSTR.

33. É notório que estamos diante os mesmos factos.

34. Com efeito, é o mesmo período temporal (dezembro de 2013), são os mesmos envolvidos (o arguido e os pilotos Mário Quental e Tiago Pinto) e as circunstâncias são idênticas (declaração de que os pilotos executaram determinados exames que, por sinal, não fizeram).

35. Nos termos do disposto no artigo 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.”.

36. Assim, o princípio ne bis in idem impede que os mesmos factos sejam perseguidos, ainda que sob ângulos distintos ou diferentes enquadramentos.

37. Com efeito, se a declaração que os exames foram realizados, quando supostamente não o foram, integra uma forma de exercício fraudulento das competências próprias de uma autorização de examinador (numa perspectiva de contra-ordenação) e (ao mesmo tempo) um crime de falsas declarações (à luz do Código Penal), isso significa que o arguido não pode ser julgado duas vezes pelo mesmo leque de factos.

38. Sempre será de considerar que os presentes autos devem ser extintos, sob pena de violação do disposto no artigo 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Do pedido,

Requer a V. Exa. que, admitindo o presente requerimento de recurso, o julgue procedente e por via dele, (i) declare a nulidade da sentença proferida por vício de falta de fundamentação exigida pelo disposto no artigo 374.º n.º 2 do cpp. Subsidiariamente, (ii) revogue a decisão proferida na medida em que condenou o arguido ao abrigo do disposto no artigo 256.º n.º 3 do cp, quando tais pressupostos não estão verificados. Cumulativamente, (iii) requer a revogação da decisão proferida, atenta a falta de verificação dos pressupostos da falsidade intelectual. Cumulativamente (iv), requer declaração de nulidade decorrente da falta de tradução e falta de decisão sobre a necessidade de determinar a tradução (ou não) do documento. Cumulativamente, (v) requer a V. Exa. se digne julgar procedente a excepção ne bis in idem, determinando o arquivamento dos presentes autos.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

O MP respondeu à motivação do recorrente, pugnando pela manutenção do decidido, sem firmar conclusões.

A Digna Procuradora-Geral Adjunta junto desta Relação proferiu parecer sobre o recurso admitido, no sentido de dever ser julgado improcedente.

O parecer emitido foi notificado ao recorrente, a fim de se pronunciar, nada tendo respondido.

Entretanto, foi junta aos autos, remetida pela primeira instância um certidão do processo nº 311/16.3YUSTR, relativamente ao qual o recorrente veio invocar a excepção «ne bis in idem», cujo conteúdo foi notificado ao MP e ao arguido, com a menção de que dispunham de um prazo de 10 dias para sobre ele se pronunciarem, o que o segundo fez, reiterando a posição assumida na motivação.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da decisão impugnada expressa nas conclusões do recorrente é multiforme e desdobra-se nas seguintes questões:

a) Invocação da violação do princípio «ne bis in idem» do art. 29º nº 5 da CRP;

b) Arguição da nulidade da sentença, nos termos dos arts. 379º nº 1 al. a) e 374º nº 2 do CPP;

c) Arguição da nulidade decorrente da falta de decisão sobre a tradução da prova documental redigida em língua inglesa;

d) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

e) Impugnação do juízo de enquadramento jurídico-criminal dos factos, quer quanto ao tipo criminal básico da falsificação de documento, quer quanto à qualificativa.

Passaremos a conhecer das questões suscitadas pelo recorrente, pela ordem em que as enunciámos, que se nos afigura ser a da prioridade lógica da sua apreciação.

Sustenta o recorrente que a sentença em crise violou o princípio «ne bis in idem», alegando que já foi julgado, pelos mesmos factos, no âmbito do processo nº 311/16.3YUSTR.

O invocado princípio constitucional encontra-se consagrado no nº 5 do art. 29º do CRP, nos seguintes termos:

Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

A fls. 655 a 709 foi junta certidão extraída do processo nº 311/16.3YUSTR, em relação à qual foi conferido ensejo aos sujeitos processuais de exercerem o direito ao contraditório.

Conforme se deixou expresso no despacho que determinou a notificação dos sujeitos processuais, para o efeito referido, vigora nos recursos ordinários a princípio da identidade entre a decisão recorrida e aquela que conheça do recurso, que impõe que a segunda tenha de assentar nos mesmos factos e meios de prova que foram considerados na primeira.

Contudo, encontramo-nos perante um dos raros casos em que poderá ser admitida uma derrogação desse princípio, porquanto a última apreciação judicial da questão em referência, levada a efeito no processo, baseou-se num estado de coisas, na tramitação de outro processo, que era, por definição, provisório.

Neste contexto, será lícita a consideração por este Tribunal da identificada certidão e dos factos, que o mesmo documento passa comprovar, desde que seja proporcionada aos sujeitos processuais a oportunidade de sobre ela se pronunciarem, o que já foi feito.

A certidão extraída do processo nº 311/16.3YUSTR permite atestar, antes de mais, as seguintes realidades:

a) A decisão final do identificado processo transitou em julgado em 3/5/2018;

b) De acordo com a decisão transitada em julgado, foi o arguido LP, também arguido nos nossos autos, condenado em duas coimas no valor de € 3.750 cada, e na coima única de € 6.000, pela prática de duas contra-ordenações p. e p. pelo art. 28º nº 1 al. l) do DL nº 17-a/2004 de 16/1, na redacção introduzida pelo DL nº 208/2004 de18/8.

De seguida, reproduzimos os factos dados como provados no mencionado processo de contra-ordenação, nos quais se baseou a condenação do ora recorrente:

«1) No dia 10 de janeiro de 2014, a ANAC solicitou, através de email, ao examinador LP, detentor da licença PT.FCL.A2264A e Certificado de Examinador PTA2264A, informações suplementares sobre a condução de uma verificação de proficiência para revalidação de qualificações classe MEP e instrumentos, realizada em 14 de dezembro de 2013 (fls. 13).

2) A referida verificação de proficiência refere-se aos pilotos MV, titular da licença PT.FCL.C3869A e TP, titular da licença CPL (A) P-4259 (fls. 24 a 27).

3) A informação solicitada pretendia saber quais os aeródromos onde se realizaram as aproximações de precisão e não-precisão, obrigatórias na realização de verificação de proficiência para a qualificação de instrumentos (IR - ME), com a aeronave com as marcas de nacionalidade e de matrícula G-OOGO (fls. 13).

4) Em resposta enviada por email, datada de 15 de janeiro de 2014 - 13:29, o examinador LP informou o seguinte: "(..) As aproximações de precisão e não precisão foram efectuadas em LP PT e em LP EV (..)" (fls. 13).

5) Nesta sequência, esta Autoridade, em 31 de janeiro de 2014, solicitou informações à NAV Portugal EP.E sobre os dados de planos de voo e imagens radar, realizadas pela aeronave com as marcas de nacionalidade e de matrícula G-OOGO, no dia 14 de dezembro de 2013, no período das 09:00 às 15:00 UTC, no aeroporto de Lisboa (fls. 14 e 15).

6) ANAV Portugal EP.E informou, em ofícios datados de 6 de fevereiro de 2014 e 31 de março de 2014, que "(..) se confirma não existir nenhuma informação de FPL e mensagens associadas para essa aeronave nas datas referidas. "(fls. 16 e 17).

7) Em 5 de março de 2014, esta Autoridade solicitou ao Aeródromo Municipal de Évora, os movimentos detalhados, realizados pela aeronave com as marcas de nacionalidade e de matrícula G-OOGO, no período compreendido entre os dias 1 de novembro de 2013 e 28 de fevereiro de 2014 (fls. 18).

8) Através de email, datado de 18 de março de 2014 - 11:27, esta Autoridade solicitou informações complementares ao Aeródromo de Évora sobre os movimentos da aeronave G-OOGO no dia 14 de dezembro de 2013, nomeadamente registo de realização de aproximações ou qualquer outro tipo de comunicação estabelecida com o aeródromo de Évora (fls. 19).

10) (no original mostra-se omitido o n° 9) Em resposta datada de 18 de março de 2014, o Aeródromo Municipal de Évora prestou a seguinte informação: "(..) após consulta pela Chefe AFIS aos ficheiros das gravações áudio das comunicações da torre do LPEV no horário estabelecido para o seu funcionamento, no dia 14DEZ2013, somos a informar que, não foi registada nenhuma comunicação de aproximação NBD, nem estabelecido qualquer outro tipo de comunicação com a torre do serviço AFIS do Aeródromo de Évora, pela Aeronave G-OOGO para o dia em causa. " (fls. 22).

11) No entanto, apesar de não existirem registos dos movimentos realizados pela aeronave com as marcas de nacionalidade e de matrícula G-OOGO, nos referidos aeródromo e aeroporto, o examinador LP preencheu o documento Class/Type Rating SPA (Single Pilot Aeroplane) except HPCA - Prof Check, relativo quer ao candidato MV, quer ao candidato TP e em ambos assinalou a opção: "Confirmo que as manobras e exercícios requeridos foram completados" (fls. 7-8 e 11-12).

12) No documento relativo ao Sr. MV consta a assinatura do mesmo, na qualidade de candidato (fls. 7-8).

13) O mesmo se verifica relativamente à assinatura do Sr. TP, no documento que a este respeita (fls. 11-12).

14) O examinador LP confessou que, no dia 14 de dezembro de 2013, efetuou as duas revalidações aos pilotos MV e TP.

15) O arguido referiu que não se tratando de um exame inicial e tendo já voado anteriormente com os pilotos em causa, conhecia perfeitamente as suas capacidades, pelo que baseando-se na sua experiência como examinador, decidiu levar a cabo a verificação simulando as aproximações.

16) O arguido decidiu voar de Santarém (LPSR) para o VOR de Fátima (FTM) e aí levar cabo a simulação de procedimentos de aproximação de precisão e de não precisão.

17) O arguido decidiu substituir as verificações de proficiência obrigatórias por simulações, sabendo que tais simulações não correspondiam ao que estava previsto na lei e fazendo constar do documento Class/Type Rating SPA (Single Pilot Aeroplane) except HPCA - Prof, que os pilotos MV e TP, completaram as manobras e exercícios requeridos.

18) O arguido verbalizou estar arrependido durante a fase organicamente administrativa.

19) O arguido já tinha acompanhado os referidos pilotos em diversas manobras, conhecendo as suas capacidades e técnicas.

20) Relativamente às condições económicas, o arguido teve, em 2014, um rendimento anual ilíquido de é500, 00 (quinhentos euros) em Portugal e de €31.250,00 (trinta e um mil duzentos e cinquenta euros) em Espanha.

21) O arguido é casado, encontrando-se a esposa desempregada e tem quatro filhos, sendo três deles dependentes a seu cargo.

22) No ano de 2015, o arguido declarou rendimentos em Portugal no montante de 1.122,58».

E ainda que:
«O arguido representou a realização do tipo de ilícito imputado como consequência possível da sua conduta e atuou conformando-se com aquela realização».

Como pode verificar-se, os factos naturalísticos, pelos quais o recorrente respondeu, no âmbito do processo de que foi extraída a certidão em análise, a título de duas infracções contra-ordenacionais, coincidem, em parte substancial, com aqueles pelos quais ele foi, nos presentes autos, acusado e condenado em primeira instância, enquanto autor de dois crimes de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nºs 1 al. d) e 3 do CP

A este respeito, importa termos presente a disposição do art. 20º do RGCO (aprovado pelo DL nº 432/82 de 27/10 e sucessivamente alterado):

Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação.

Refere António Beça Pereira («Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas. Anotado», 8ª edição, pág. 75), em anotação ao preceito acabado transcrever:

«A contrariedade ao princípio «ne bis in idem» depende assim da identidade do bem jurídico tutelado pelas normas sancionatórias concorrentes ou do desvalor pressuposto por cada uma delas» (itálicos no original).

Semelhante entendimento foi já perfilhado por este Colectivo de Juízes, no Acórdão da Relação de Évora de 16/6/2015, proferido no processo nº 51/04.6TABJA.E2 (disponível em www.dgsi.pt), numa situação em que estava em causa a integração de dois tipos de crime distintos.

Temos também entendido que, em qualquer das modalidades de acção típica do crime de falsificação de documento previstas nas alíneas do nº 1 do art. 256º do CP, o bem jurídico protegido reside na «segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental», seguindo-se, nesta matéria, o ensinamento de Helena Moniz («Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial», Tomo II, pág. 680).

O nº 1 do art. 28º do DL nº 17-A/2004 de 16/1, na redacção introduzida pelo DL nº 208/2004 de 18/8, tipifica diversas condutas como contra-ordenações muito graves, para efeitos da aplicação do regime das contra-ordenações aeronáuticas civis, aprovado pelo DL nº 10/2004 de 9/1 sendo a sua al. l) do seguinte teor:

l) Exercer, de forma fraudulenta, as competências próprias de uma autorização de examinador.

Se bem compreendemos, a norma, que prevê e pune a contra-ordenação por cuja prática o recorrente foi acoimado no processo nº 311/16.3YUSTR, visa preservar a integridade no exercício das funções de examinador, no domínio específico da aeronáutica civil.

Nesta conformidade, teremos de concluir que são diferentes os bens jurídicos tutelados, por um lado, pela norma que tipifica os crimes por que o recorrente responde nos presentes autos e, por outro lado, aquela que prevê e pune as contra-ordenações por cuja prática foi condenado no outro processo em referência, pelo que, de acordo com o critério seguido, há lugar a concurso efectivo entre aqueles crimes e estas contra-ordenações, sem preterição do princípio «ne bis in idem»

Consequentemente, julgamos improcedente a invocação pelo recorrente da violação pela sentença recorrida de tal princípio constitucional.

Em matéria de nulidades de sentença, dispõem os nºs 1 e 2 do art. 379º do CPP:

1 - É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º -A e 391.º -F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2 — As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.

A propósito dos requisitos da sentença, o nº 2 do art. 374º do CPP estatui:

Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Sustenta o recorrente que a sentença em crise enferma da nulidade decorrente das disposições conjugadas dos arts. 379º nº 1 al. a) e 374º nº 2 do CPP, porquanto a sua fundamentação jurídica é omissa em relação aos pressupostos da qualificação dos crimes de falsificação de documento cometidos pelo arguido, prevista no nº 3 do art. 256º do CP, o qual é doo seguinte teor:

Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.

Segue reprodução do trecho da fundamentação da sentença impugnada, dedicado ao enquadramento jurídico-criminal dos factos (transcrição com diferente tipo de letra:

DO CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO – ART.º 256.º N.º 1 ALÍNEA D) E 3 DO CÓDIGO PENAL:

Segundo o disposto no artigo 256.º, n.º 1, do Código Penal (redacção dada pela pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, comete o crime de falsificação ou contrafacção de documento:

1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
(…) d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante; (…), é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.

O artigo 255.º alínea a) do Código Penal, define a) Documento - a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta; (…)

O crime de falsificação de documento encontra-se previsto no título relativo aos crimes contra a vida em sociedade, sendo considerado um tipo de crime a “meio caminho entre os crimes contra os bens colectivos e os crimes patrimoniais” cfr. Figueiredo Dias, Actas 1993, 297.

O bem jurídico protegido com a criminalização da falsificação de documento é a respectiva fé pública: pretende-se salvaguardar o sentimento geral de confiança que devem revestir os documentos.

Numa evolução mais recente, a doutrina tem vindo a entender que o bem jurídico do crime de falsificação de documento é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que se respeita à prova documental Helena Moniz, in O crime de falsificação de documentos, 1999, 41 e seguintes.

Tal como se encontra regulado no nosso sistema jurídico, o crime de falsificação de documento é um crime de perigo abstracto e um crime de mera actividade ou um crime formal.

Por um lado, é um crime de perigo abstracto na medida em que tal ilícito criminal se encontra consumado independentemente de se produzir ou não o resultado querido pelo agente. Basta que este com a sua conduta crie potencialmente o perigo da produção daquele resultado. Ou, numa outra óptica, a consumação do crime não exige que em concreto se verifique uma concreta violação da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental, bastando tão-só que ocorra uma falsificação do documento.

Por outro lado, o crime de falsificação de documento é um crime formal ou de mera actividade já que não exige a violação do bem jurídico que pretende salvaguardar.

No plano objectivo, o crime de falsificação comporta diversas modalidades de conduta: a) fabricar documento falso; b) falsificar ou alterar documento; c) abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; d) fazer constar falsamente facto juridicamente relevante; e, por fim, e) usar documento falso (nos termos anteriores) fabricado ou falsificado por outra pessoa – cfr. Helena Moniz, Comentário conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 682.

Conforme o entendimento apontado por Helena Moniz (in Código Penal Conimbricense, Parte especial, Tomo II, pág. 676 e ss.) dir-se-á que, constituindo a falsificação de documento uma falsificação de declarações incorporada no documento importa distinguir as formas que o acto de falsificação pode assumir: falsificação material e ideológica. Enquanto falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.

Para se preencher o tipo de falsificação na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente relevante entende-se que tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento (…), o que se verifica no caso concreto.

No plano subjectivo, o crime de falsificação de documento (art. 256º, nº 1 do Código Penal) exige a prova de um dolo específico, ou seja, de uma intenção de causação de prejuízo a outra pessoa ou ao Estado e/ou de uma intenção de obtenção de benefício ilegítimo.

Tratando-se de crime que exige ainda um dolo específico, para o tipo se considerar realizado nunca bastaria a prova do dolo genérico (o saber e querer todos os factos do tipo objectivo).

É certo que, em matéria de prova, os factos do tipo subjectivo resultam frequentemente dos factos externos. Na ausência de confissão, em que o agente reconhece ter sabido e querido os factos do tipo objectivo, a prova do dolo pode fazer-se por ilações retiradas do comportamento exterior e visível do agente. O julgador resolve então a questão de facto decidindo que (ou se) o agente agiu internamente da forma como o terá revelado externamente.

Os factos que integram o dolo, os actos interiores ou internos, por respeitarem à vida psíquica raramente se provam directamente, e constituem bom exemplo de demonstração por prova indirecta.

Mas se os factos integrantes do tipo subjectivo resultam frequentemente dos factos externos, tal não significa que assim seja necessariamente - (Paulo de Sousa Mendes, A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III).

O dolo não se presume, mesmo o genérico e em qualquer das modalidades (do art. 14º do Código Penal). Assim sucede, singularmente até, nos casos em que o tipo exige um dolo específico, como ocorre com o crime da acusação. Precisando, quando o tipo de ilícito exige determinados elementos para além do dolo (entendendo-se aqui este como dolo genérico), isto é, quando o tipo de ilícito exige um elemento subjectivo especial.

Se o dolo se refere ao tipo objectivo (como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo), nos crimes de resultado cortado, como o presente, acrescem elementos especiais do tipo subjectivo.

No que concerne aos factos atinentes à intenção e motivação do arguido, convém recordar a lição de Cavaleiro Ferreira Curso de Processo Penal, vol. 1, 1981, pág. 292., quando refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta (presunções naturais não jurídicas), a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados.

Aquando da prática do crime de falsificação o agente deverá ter conhecimento de que está a falsificar um documento ou que está a usar um documento falso, e apesar disto quer falsificá-lo ou utilizá-lo com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outrem benefício ilegítimo. Ou seja, para que, o agente actue dolosamente tem que ter conhecimento e vontade de realização do tipo, o que implica um conhecimento dos elementos normativos do tipo.

Na verdade, o crime de falsificação de documento previsto e punido pelo art. 256º do C. Penal, não se reporta a qualquer declaração, mas apenas à falsificação de declaração idónea a provar facto juridicamente relevante. Isto é, será documento para o direito penal, o que contendo uma declaração com relevância jurídica, pode ser meio de prova. O documento é, portanto, destinado a provar um facto juridicamente relevante, ou seja, “um facto que, isolado ou conjuntamente com outros factos, origina o nascimento, manutenção, transformação ou extinção de um qualquer direito ou relação jurídica de natureza pública ou privada.”

No caso concreto resulta provado que em Dezembro de 2013, o arguido LP era titular da licença PT.FCL.A2264A e do certificado de Examinador PT.A2264A, emitidos pelo, então, Instituto Nacional da Aviação Civil; Enquanto titular da licença PT.FCL.A2264A e do certificado de Examinador PT.A2264A, o arguido LP encontrava-se habilitado a realizar os exames de verificação de proficiência designados de “CLASSE/Type Rating SPA (Single Pilot Aeroplane) except HPCA – Prof. Check”, destinados a revalidar as qualificações da classe MEP (Land) e IR (ME) dos indivíduos por si examinados; A qualificação classe MEP (multi-engine piston) refere-se à classe de aviões multimotor (dois ou mais motores) equipados com motores a pistão, também conhecidos por aeronaves ligeiras bimotores a hélice; A qualificação IR (ME) refere-se à qualificação de voo por instrumentos para aeronaves multimotor, permite pilotar por instrumentos todas as aeronaves multimotor desde que o piloto detenha as respectivas qualificações classe ou tipo das mesmas e que poderão ir desde aviões multimotor (dois ou mais motores) equipados com motores a pistão até às aeronaves do tipo Airbus/Boeing; Uma das manobras a realizar pelos examinandos durante esses exames é a aproximação por instrumentos, a qual corresponde a um método de aproximação à pista que é executado sem referências visuais e através da receção de sinais rádio, emitidos por estações no solo, pelos equipamentos da aeronave e que são convertidos em indicações nos instrumentos de bordo; Essa manobra pode ser uma aproximação de precisão, quando seja realizada com guiamento nos planos horizontal e vertical, permitindo uma aproximação com alto grau de rigor, podendo ser realizada, em algumas aeronaves, sem a intervenção dos pilotos, ou de não precisão, no casos em que existe apenas guiamento no plano horizontal, sendo que no plano vertical o guiamento é feito por restrições de altitude em tempo ou distancia estabelecidas. As manobras de precisão apenas podem ser realizadas em aeródromos dotados de equipamentos próprios para transmitirem sinais de rádio referentes aos planos horizontal e vertical, e com aeronaves dotadas de equipamentos adequados a receber e providenciar indicações nos instrumentos de bordo aos pilotos; As aproximações de precisão mais comuns são o ILS (Instrument Landing System), as quais, em Portugal Continental, apenas podem ser realizadas nos aeroportos do Porto, de Lisboa e de Faro e nas bases militares de Beja, do Montijo, de Monte Real e de Ovar; Numa aproximação de não-precisão, existe apenas guiamento no plano horizontal, sendo que, no plano vertical, o guiamento é feito por restrições de altitude em tempo ou distancia estabelecidas; Este tipo de aproximação é baseado em estações rádio que normalmente também podem servir para navegação aérea (NDB ou VOR) e que, em Portugal Continental, apenas podem ser realizadas nos aeroportos do Porto, de Lisboa e de Faro, nas bases militares de Beja, do Montijo, de Monte Real e de Ovar e nos aeródromos de Évora, de Cascais e de Vila Real. No dia 14 de Dezembro de 2013, no aeródromo de Santarém, o arguido LP iniciou, com TP e a bordo da aeronave GA07, de matrícula G-OOGO, um voo destinado a permitir a esse indivíduo revalidar as qualificações da classe MEP (Land) e IR (ME), para a licença CPL (A) P-4259, de que este era titular; Sob orientação e instruções do arguido, TP efectuou várias manobras de voo, de precisão e de não precisão, na zona da Serra d’Aire, com o auxílio do sistema de navegação, via rádio, de Fátima; Concluídas essas manobras, regressaram ao aeródromo de Santarém, onde o arguido LP preencheu o formulário “CLASSE/Type Rating SPA (Single Pilot Aeroplane) except HPCA – Prof. Check”, emitido pelo, então, I.N.A.C., nele tendo assinalado o campo onde constava a menção “Confirmo que as manobras e exercícios requeridos foram completados” e colocado a sua rúbrica nos campos 3.B.4, intitulado “ILS to DH/ OF 200’ (60 M) or to procedure minima (autopilot may be used to glideslope intercept)” e 3.B.5, intitulado “Non-precision approach to MDH/A and MAP”, de forma a atestar que as manobras descritas foram realizadas com sucesso pelo examinando; Uma vez preenchido esse formulário, o arguido LP entregou-o a TP, procedendo, ainda, à inscrição de endosso na licença MEP-IR de que este era titular, revalidando-a desse modo; Pela realização de tal exame, TP entregou quantia entre os € 150,00 e os € 200,00, em numerário; No dia 14 de Dezembro de 2013, no aeródromo de Santarém, o arguido LP iniciou, com MV e a bordo da aeronave GA07, de matrícula G-OOGO, um voo destinado a permitir a esse indivíduo revalidar as qualificações da classe MEP (Land) e IR (ME), para a licença CPL (A) P-4259, de que este era titular; Sob orientação e instruções do arguido, MV efectuou várias manobras de voo, de precisão e de não precisão, nas zonas de Ponte de Sor, Fátima e Santarém, com o auxílio do sistema de navegação, via rádio, apenas na zona de Fátima; Concluídas essas manobras, regressaram ao aeródromo de Santarém, onde o arguido LP preencheu o formulário “CLASSE/Type Rating SPA (Single Pilot Aeroplane) except HPCA – Prof. Check”, emitido pelo, então, I.N.A.C., nele tendo assinalado o campo onde constava a menção “Confirmo que as manobras e exercícios requeridos foram completados” e colocado a sua rúbrica nos campos 3.B.4, intitulado “ILS to DH/ OF 200’ (60 M) or to procedure minima (autopilot may be used to glideslope intercept)” e 3.B.5, intitulado “Non-precision approach to MDH/A and MAP”, de forma a atestar que foram realizados com sucesso pelo examinando; Uma vez preenchido esse formulário, o arguido LP entregou-o a MV; Pela realização de tal exame, MV entregou ao arguido quantia entre os € 600,00 e os € 900,00, em numerário, sendo que, parte desse valor, se destinava a custear o aluguer do avião e o combustível utilizado; Munido do formulário preenchido pelo arguido, MV deslocou-se às instalações do, então, I.N.A.C., e requereu a emissão de nova licença MEP-IR, a qual veio ser emitida em 8 de Janeiro de 2014 (fls. 33); O I.N.A.C. não tinha aprovado qualquer procedimento de aproximação por instrumentos de não precisão com base no VOR de Fátima.

Mais se provou que o arguido LP agiu livre e conscientemente, com o propósito, concretizado, de fazer constar nos formulários “CLASSE/Type Rating SPA (Single Pilot Aeroplane) except HPCA – Prof. Check” referentes aos exames que efectuara a TP e a MV, que estes tinham realizado, com sucesso, as manobras de aproximação de precisão e de não precisão, apesar de bem saber que isso não correspondia à realidade; Mais actuou o arguido LP, de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, concretizado, de apor endosso na licença MEP-IR de que TP era titular, assim a revalidando, apesar de bem saber que este não realizara as manobras necessárias a essa revalidação; O arguido LP actuou da forma acima descrita de modo a poder facilitar a concretização dos exames de TP e de MV, evitando a realização de percursos maiores até aos aeroportos com os equipamentos necessários às manobras de aproximação, com inerentes custos superiores no que diz respeito a combustível e a tempo de aluguer de avião; Logrou, assim, apresentar a tais candidatos a exame uma previsão de custo total muito inferior às de outros examinadores e, desse modo, assegurar que TP e de MV o escolhiam para realizar os exames de que necessitavam; Procedimento que lhe permitiu receber o pagamento de exames que, possivelmente, não seriam por si realizados, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa e ao Estado e obter para si benefício ilegítimo; Mais sabia o arguido LP que, com a sua conduta, punha em causa a autenticidade e confiança que merecem os documentos emitidos por examinadores certificados, nomeadamente, enquanto instrumentos de verificação das habilitações técnicas de pilotos de aeronaves; Finalmente, o arguido LP sabia que praticava factos proibidos e punidos por lei penal.

Perante tal conjunto de circunstâncias, fácil é concluir que o tipo de crime imputado ao arguido LP, de falsificação de documento, p.p. pelo artº256º, 1, d), do Código Penal, na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente relevante, está consumado, quer na sua perspectiva típica subjectiva, quer objectiva.

Em face do segmento da fundamentação da sentença recorrida, acabado transcrever, importa reconhecer razão ao recorrente, no tocante aos fundamentos da arguição da nulidade da sentença.

Na verdade, o Tribunal «a quo» levou a efeito uma análise aprofundada e bem argumentada no sentido da reunião dos elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de falsificação de documento, na modalidade preenchida pelo arguido (al. d) do nº 1 do art. 256º), mas possa totalmente ao lado de efectuar idêntica operação em relação aos pressupostos da qualificação do mesmo tipo de crime prevista no nº 3 do art. 256º do CP.

No entanto, resulta indubitável do texto da sentença, na sua globalidade, que foi vontade do Tribunal de julgamento condenar o arguido pela prática de dois crimes de falsificação de documento, agravados nos termos do nº 3 do art. 256º do CP, não só porque assim se refere no segmento decisório, mas sobretudo porque a escolha e determinação da medida da pena é feita com base na moldura punitiva cominada ao crime agravado e não da correspondente ao crime simples do nº 1 do mesmo artigo.

A norma do nº3 do art. 256º do CP não é de aplicação e interpretação unívoca, na medida em que comporta diversas hipóteses típicas cuja verificação dá azo à agravação da moldura punitiva abstracta cominada ao crime de falsificação de documento.

Nesta conformidade, incumbia ao Tribunal «a quo», no cumprimento do dever de fundamentação, ter explicitado, pelo menos, qual das hipóteses típicas da norma qualificativa a incriminada conduta do arguido integrou e quais os factos da matéria provada que relevaram para tal efeito, o que não foi minimamente satisfeito.

Como tal, a deficiência detectada na fundamentação jurídica da sentença sob recurso reconduz-se à nulidade decorrente das disposições conjugadas dos arts. 379º nº 1 al. a) e 374º nº 2 do CPP.

No entanto, o nº 2 do art. 379º do CPP confere ao Tribunal o poder-dever de suprir as nulidades de sentença, o que incumbe tanto à primeira instância como ao Tribunal de recurso, embora em medida distinta.

Quando estiver em causa a apreciação da prova e a fixação da matéria de facto, os poderes de suprimento de nulidades do Tribunal superior ficarão restritos aos casos que não dependam da apreciação de prova pessoal sob pena de se subverter o regime assente nos princípios da oralidade e da imediação, que vigoram em pleno na audiência de julgamento.

Não é o que sucede no caso em apreço, pois a questão, sobre a qual a fundamentação da sentença sob recurso é omissa, tem natureza puramente jurídica.

Consequentemente, iremos suprir a nulidade detectada.

O objecto material da conduta incriminada consiste, em ambos os casos, num impresso do tipo referenciado nos pontos 13 e 18 da matéria assente, que o arguido preencheu com referência a TP e MV, respectivamente, introduzindo-lhe as menções em cada caso referidas, de modo a atestar que tais indivíduos tinham realizado, com sucesso, as manobras de aproximação de precisão e de não precisão, o que não correspondia à realidade (ponto 23).

A grande maioria das hipóteses típicas previstas no nº 3 do art. do CP (testamento cerrado, vale do correio, letra de câmbio, cheque, outro documento comercial transmissível por endosso, qualquer outro título de crédito) é insusceptível, por definição de abranger os documentos que o arguido elaborou e dos quais fez constar factos inverídicos.

Em aberto permanece apenas a eventualidade de tais documentos se reconduzirem a «documento autêntico» ou «com igual força».

O conceito legal de documento autêntico é estabelecido pelo art. 369º do CC, nos termos seguintes:
1. O documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver legalmente impedido de o lavrar.

2. Considera-se, porém, exarado por autoridade ou oficial público competente o documento lavrado por quem exerça publicamente as respectivas funções, a não ser que os intervenientes ou beneficiários conhecessem, no momento da sua feitura, a falsa qualidade da autoridade ou oficial público, a sua incompetência ou a irregularidade da sua investidura.

Sobre os requisitos de autenticidade dos documentos dispõe o nº 1 do art. 370º do CC:

Presume-se que o documento provém da autoridade ou oficial público a quem é atribuído, quando estiver subscrito pelo autor com assinatura reconhecida por notário ou com o selo do respectivo serviço.

O nº 1 do art. 371º do CC define o valor probatório dos documentos autênticos:
Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.

No entender do recorrente, os documentos, por cuja elaboração responde, nunca preencheria as condições indispensáveis para serem considerados autênticos, desde logo, em função da sua falta de solenidade, porquanto ter-se-á limitado a preencher uns impressos que foram fornecidos pelo então INAC

O argumento da falta de solenidade não se nos afigura decisivo, já que, actualmente, os documentos emitidos por autoridades ou outras entidades públicas, tendem para uma cada vez maior informalização, sendo de salvaguardar a sua autenticidade desde que o seu conteúdo permita identificar o seu autor e a qualidade em que outorga.

Mais relevantes nos parecem as objecções que se prendem com o «estatuto» do emissor dos documentos.

Conforme se julgou provado nos pontos 1 e 2, o arguido era detentor de uma licença e um certificado, ambos emitidos pelo então INAC, que o habilitavam ao exercício de funções de examinador, em matéria de pilotagem das categorias discriminadas no ponto 3.

Ora, afigura-se-nos intuitivo que a actividade de examinador exercida pelo arguido, em cujo âmbito emitiu os documentos pelos quais responde não envolvia o uso, por parte dele de quaisquer poderes de autoridade pública

Embora tivesse lugar ao abrigo de uma licença e um certificado emitidos pelo INAC, o qual é um organismo personalizado da administração pública central, o arguido desenvolvia a referida actividade de examinador a título particular e em seu próprio benefício e não como funcionário daquele Instituto

Neste contexto, não pode concluir-se que o arguido tenha elaborado os documentos em referência, investido em alguma qualidade de oficial público.

No que toca aos documentos «com igual força», situam-se nesta previsão aqueles documentos a que a lei atribua, pelo menos tendencialmente, eficácia probatória equivalente ao dos documentos autênticos, apenas nos ocorrendo, neste domínio, o universo de documentos a que se refere o art. 377º do CC, que atribui aos documentos particulares autenticados nos termos da lei notarial a força probatória dos documentais autênticos, a menos que a lei exija documento desta natureza para a validade do acto.

Em conclusão, os documentos, por cuja emissão o arguido responde, tão pouco se enquadram nesta última hipótese típica.

Tudo visto diremos que os documentos, a que nos vimos referindo, não se reconduzem a qualquer hipótese típica do nº 3 do art. 256º do CP.

Consequentemente, deverá ter-se- por suprida a nulidade detectada na sentença recorrida, mas com alteração do enquadramento jurídico-penal dos factos, no sentido do afastamento da agravação qualificativa dos crimes de falsificação de documento, cominada pelo identificado preceito legal, com as necessárias consequências, mormente, ao nível da determinação da sanção, procedendo o recurso nesta parte.

Veio o recorrente arguir ainda a nulidade decorrente de o Tribunal «a quo» não ter proferido decisão sobe a necessidade de tradução da prova documental em língua inglesa junta aos autos.

Em matéria de nulidades processuais, rege o chamado princípio da tipicidade, consagrado no art. 118º do CPP, segundo o qual a inobservância das normas da lei de processo só é geradora de nulidade nos casos espcialemnte previstos, sendo, nas demais situações, o acto ilegal irregular, e, de entre as nulidades só não passíveis de sanação as que sejam expressamente declaradas como tal, devendo as restantes ser invocadas pelo interessado dentro de determinado limite temporal.

Tanto nas conclusões, como na motivação propriamente dita, o recorrente reporta a arguição de nulidade agora em apreço à «prova documental» em língua inglesa, sem a concretizar minimamente.

Acerca de documentos redigidos em língua estrangeira rege o nº 1 do art. 166º do CPP:

Se o documento for escrito em língua estrangeira, é ordenada, sempre que necessário, a sua tradução, nos termos do n.º 6 do artigo 92º.

Do preceito transcrito e, em especial, da locução «sempre que necessário», que dele consta, retira-se a regra da não obrigatoriedade da tradução dos documentos em língua estrangeira, ainda que não possa, evidentemente, ser considerado um acto livre do Tribunal, pela relevância que pode assumir para a descoberta da verdade, a justa decisão da causa ou o exercício pelo arguido dos seus direitos de defesa.

Em todo o caso, a omissão da tradução de um documento que careça de ser traduzida não acarreta, por si só, a nulidade do processado, mas sim a impossibilidade de consideração desse meio prova pelo Tribunal para efeitos de convicção.

No limite, se o documento se revelar previsivelmente indispensável à descoberta e o Tribunal persistir em não ordenar a sua tradução, poderemos encontramo-nos perante a nulidade prevista no art. 120º nº 1 al. d) «in fine» do CPP, a qual é sanável e deve ser arguida, assim o temos entendido, em audiência, até ao encerramento da discussão da matéria de facto.

Contudo, dado que o recorrente não concretizou minimamente o documento ou documentos, que entende que deveriam ter sido traduzidos e não o foram, nem o facto ou os factos que através deles pretende provar, torna-se inviável qualquer ajuizamento a esse respeito

Nesta conformidade, terá de improceder a arguição de nulidade, que agora nos ocupa.

A propósito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, convirá recordar que tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre esta matéria não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente.

No caso em presença, aquilo que que o recorrente censura, ainda que de forma não muito clara, na sentença recorrida, ao nível factual, é ter dado como provado que a menção por ele inscrita em cada um dos documentos que elaborou, relativamente a cada um dos candidatos por si examinados, no sentido de terem efectuado com êxito as manobras de precisão e de não precisão, não corresponde à verdade (ponto 23 «in fine»).

O recorrente faz apoiar a sua pretensão em matéria de facto na alegação de que não só os examinandos confirmaram a realização dessas provas, nos respectivos depoimentos testemunhais, como também essa factualidade foi julgada demonstrada pelo Tribunal «a quo» nos pontos 12 e 17.

Assim, sustenta o recorrente que o que está em causa não é que ele tenha atestado falsamente a realização das manobras, mas antes que tenham sido observadas nessa operação a normas ditadas pelo INAC.

A este respeito, convirá recordar aquilo que se expende no acórdão recorrido, a propósito da fundamentação do juízo probatório (transcrição com diferente tipo de letra):

FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
O Tribunal fundamenta a formação da sua convicção, quer quanto à matéria de facto provada, nos seguintes meios de prova:
I. Declarações do arguido;
II. Prova testemunhal;
III. Prova documental.
I. Das declarações do arguido LP:

Declarou, em síntese, que George tinha contactos de aproximação em Lisboa. Era fim-de-semana e não podia executar manobras nas bases militares porque estavam fechadas. TP disse que não havia hipóteses de fazer as manobras. Decidiu assim fazer as manobras. Fez perguntas teóricas e praticas e fizeram manobras de aproximação ao aeródromo de Santarém. Preencheu os formulários como constam no processo. Fizeram as aproximações em Fátima e Ponte de Sor. Foram solicitadas informações por parte da ANAC sobre as manobras e o arguido informou que as aproximações foram efectuadas em aeroporto de Lisboa e aeródromo do Montijo. Confirma ter recebido este mail e combinaram fazer esta declaração. Esta combinação foi feita com o GF que conhece desde 2000 como colega de trabalho. Do teste que efectuou, os examinandos estavam aptos para revalidar a licença. Fizeram as manobras e todos os testes para a revalidação da licença. Não foram realizadas em Lisboa porque foi informado nesse dia o aeroporto que não estava disponível. Os custos não lhe trariam mais-valias mas sim para as bases aéreas e militares. Desde 2003 já fez mais de 1000 testes.

II. Da prova testemunhal:
A. Das testemunhas de acusação:
1. Depoimento de TP, casado, 37 anos, piloto comercial, residente em Torres Novas.

Declarou, em síntese, que conheceu o arguido quando lhe fez o exame e depois disso teve contactos com o mesmo apenas sobre pilotagem. Dezembro de 2012. Contactou GS que lhe indicou o nome do arguido. Foi em Dezembro de 2013. Conhecia a folha de exame e preparou-se segundo essa folha. Foi para a zona de Fátima. Foi informado por Lisboa que não era possível ir para Lisboa e decidiram ir para a zona de Fátima. Fls. 7 - as manobras estão assinaladas 8v.º 3b4 e 3b5. Era o sítio mais barato. Pagou € 700,00 por hora ao arguido e mais € 300,00. Pagou cerca de € 1500,00 / 1.600,00 com tudo incluído. Perante estes procedimentos ficou convencido que o exame estava bem feito. Pega no documento e vai entregar ao INAC. No ano seguinte fez o mesmo exame. No exame do ano seguinte fez dois exercícios diferentes do ano anterior. Estava previsto fazer o exame em Lisboa e foram avisados de não poder ser feito em Lisboa quando já estavam em voo. Os valores que pagou estavam situados nos valores normais. O aeródromo de Fátima não estava certificado. O que consta do documento foi o que realmente foi executado.

2. Depoimento de MV, solteiro, 27 anos, piloto de linha aérea, residente em Alcochete,

Declarou, em síntese, que em 14-12-2013 data do exame para revalidação da licença de multimotores. Sabia que tinha de fazer exame mas quanto às manobras não sabia. Por questões de congestionamento dos aeroportos de Lisboa e Faro não podiam receber o voo, foram ao aeródromo de Ponte de Sor e depois para o de Fátima. Fls. 4, confirma a sua assinatura. Custo foi de € 600,00. Em seguida entregou o documento na Inac. Ficou com a sensação de ter efectuado todos os procedimentos necessários para a revalidação da sua licença. Não sabia do facto 22. O arguido nunca lhe referiu tal facto. As aproximações são feitas em pistas. As manobras executadas deveriam ser feitas em pista e não simuladas, ou seja deveria ter sido feita em pista à vista e não sem pista.

3. Depoimento de GF, prestado em sede de inquérito, constantes de auto de inquirição de fls. 81-82, as quais aqui se dão por integralmente reproduzidas.

B. Testemunhas de defesa:
1. Depoimento de AMC, casado, 78 anos de idade, piloto aviador,
Declarou, em síntese, que exerce pilotagem de aviões desde 1963 e actualmente é director de escola de pilotagem, sendo também examinador sénior. A revalidação de licenças obedece a determinado protocolo de manobras que têm de ser executadas. Deve haver o cumprimento desse protocolo por motivos de uniformização. Reconhece o impresso de fls. 4 dos autos como sendo o próprio para conceder licença ou revalidação. O ponto 3b4 refere-se a aproximação de precisão, que tem de ser realizado em aeroporto, designadamente, em Lisboa, Porto ou Faro ou base militar como aeródromo de Montijo e Ovar. Esta manobra é para avaliar a capacidade para aproximação à pista por precisão. Existe outra aproximação com ajuda de instrumentos. O ponto 3b5 refere-se a aproximação de não precisão com ajuda de rádio, desde que existam tais aparelhos no solo. Existem muitas dificuldades em fazer manobras de aproximação com precisão devido à grande ocupação dos aeroportos indicados com tráfego aéreo. Contudo, toda a gente sabe desta dificuldade de execução destas manobras.

III. Da prova documental:
- Participação de fls. 2; - Documentos de fls. 4 a 16; - Informação de fls. 21; - Documentos de fls. 25 a 32; - Informação de fls. 65; - Informação de fls. 78; - Documento de fls. 79 e 80; - Pesquisa de fls. 88; - Certificado do registo criminal de fls. 336; - Traduções, informações e documentos da ANAC, de fls. 475 e ss.

EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
A prova da matéria de facto vertida na acusação, fundamenta-se nos meios de prova apresentados e analisados em audiência de julgamento, designadamente, declarações do arguido LP, prova testemunhal conjugada com a prova documental.

Quanto às declarações do arguido LP, mostraram-se descritivas, coerentes, de boa memória, revelando intenção de colaboração com o tribunal para a descoberta da verdade material, dado que as mesmas se traduzem em parcial confissão dos factos, revelando, no entanto, algumas reservas quanto à obrigatoriedade dos procedimentos, procurando, sem êxito, apresentar versão alternativa por via de interpretação dos regulamentos aplicáveis ao caso concreto, versão essa que contraria claramente as disposições regulamentares em vigor à data dos factos, bem como as boas práticas referentes ao tipo de avaliação para a qual se encontrava habilitado, as quais conhecia perfeitamente, optando por conduta que sabia não ser alternativa, apesar de alegar a sua habitualidade em situações similares por demais examinadores.

Quanto aos depoimentos das testemunhas TP e MV, mostraram-se descritivos, coerentes, de boa memória, revelando conhecimento directo dos factos, tal como os presenciaram. Cada um mostrou discurso de convicção, sem dúvidas nem hesitações, firme e abrangente. O mesmo se verificou quanto ao depoimento gravado da testemunha GF relativo às circunstâncias de modo, tempo e lugar em que ocorreram os factos, incidente sobre os aspectos de logística e organização dos actos necessários à execução do voo. Este depoimento foi revelador do conhecimento directo da testemunha dos factos sobre os quais depôs.

Quanto ao depoimento da testemunha AMC, arrolado pelo arguido, mostrou-se igualmente descritivo e coerente sobre matéria técnica relativa a voos de instrução e de revalidação de licenças e os seus necessários e legais procedimentos. Revelou amplos conhecimentos técnicos acumulados e actuais, dada a sua actividade como director e instrutor de escola de pilotos e abrangente experiência acumulada de muitos anos ligados à pilotagem de aeronaves.

Assim e quanto à matéria de facto vertida na acusação sob os números 1 a 4 resulta da conjugação das declarações do arguido LP com a prova documental junta aos autos relativa às suas qualificações como piloto de aeronaves examinador.

Quanto à matéria de facto vertida na acusação sob os números 5 a 10, o tribunal fundamenta a sua prova através da prova documental, designadamente das informações e esclarecimentos inicialmente prestados pela ANAC constantes de fls. 21 a 35, bem como em sede de julgamento e a pedido do Tribunal, de fls. 475 e ss. Complementam esta prova, os depoimentos das testemunhas GF e AMC, ambos pilotos com larga experiência e conhecimento sobre estas matérias. Também contribuiu para a prova desta matéria factual as declarações do arguido LP, também ele piloto de aeronaves e examinador, o qual confirmou o conteúdo e procedimentos sobre as manobras necessárias e exigíveis para o acto realizado, com as reservas antes referidas.

De referir que as informações e esclarecimentos prestados pela ANAC e vertidas a fls. 475 e seguintes se mostram elementos úteis, necessários, adequados e suficientes para complementar a formação da convicção deste Tribunal.

Relativo à matéria de facto constante dos números 11 a 22, a sua prova assenta essencialmente nos depoimentos das testemunhas TP e MV, examinandos presentes na respectiva prova de voo realizada sob o comando do arguido, bem como de parte das declarações do próprio arguido, conjugados com a prova documental, designadamente 4 a 9 dos autos, a qual foi confirmada pelo arguido em audiência e 10 a 16 dos autos que foi confirmada pelos depoimentos das testemunhas já referidas.

Por último e em relação aos factos expressos sob os números 23 a 28 da acusação, a sua prova resulta do conjunto de toda a anterior factualidade julgada provada, das declarações do arguido que revelou ter perfeito conhecimento do conteúdo dos regulamentos e, sobretudo, da obrigação de as suas declarações escritas no documento de fls. 4 a 6 e 7 a 9 deveriam estar em conformidade com os procedimentos executados, sabendo o valor e importância dos mesmos para o fim a que se destinavam. O arguido conhecia, sabia e representou correctamente e tenha consciência das circunstâncias do facto que praticou e que preenchia um tipo de ilícito criminal. O agente conhecia tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga á sua acção e o seu carácter ilícito. Por outro lado verificou-se no facto praticado pelo arguido, uma vontade dirigida à sua realização.

Pelo exposto, o Tribunal fundamenta a formação da sua convicção na conjugação de todos estes elementos de prova, concluindo que foram praticados dois crimes de falsificação de documento e que o arguido LP foi o seu autor, pelo que deve ser condenado.

Independentemente da audição do registo sonoro dos meios de prova pessoal produzidos em julgamento, entendemos que está votada ao fracasso, pelos seus próprios fundamentos, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a qual, de resto, não se baseou numa «leitura» da prova pessoal distinta da efectuada pelo Tribunal «a quo».

Como já se disse, o recorrente defende que os factos (manobras) por si atestados eram verdadeiros, sucedendo, apenas, que na execução das mesmas não foram observadas as normas emitidas ou seguidas pelo INAC.

Salvo o devido respeito, a questão suscitada afigura-se-nos ociosa.

Na verdade, os documentos pelos quais o arguido responde foram por ele elaborados, por meio do preenchimento de um formulário emitido pelo INAC e tinham como utilidade exclusiva habilitar este Instituto com os elementos indispensáveis para a emissão de uma nova licença, no caso do candidato MV, ou a revalidação de uma licença já existente, no tocante ao candidato TP.

Fora desse contexto, tais documentos não têm qualquer interesse útil.

Assim, uma vez assente os documentos em referência se destinam a funcionar apenas no contexto comunicacional entre o arguido, enquanto examinador de pilotagem de determinados aviões, e o INAC, como entidade competente para emitir e revalidar as respectivas licenças, o arguido atestar que o candidato efectuou estas ou aquelas manobras tem necessariamente implícito que o fez de acordo com as exigências do INAC, pois, na hipótese contrária, não teriam qualquer relevância.

Consequentemente, teremos de concluir pela improcedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto, sem necessidade de mais considerações.

O art. 256º do CP define assim o crime de falsificação de documento, na modalidade preenchida pelo arguido LP:

1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
(…)
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
(…)

A noção de documento para efeitos penais é-nos fornecida pela al. a) do art. 255º do CP:

a) Documento - a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.

Na modalidade de acção concretamente em causa, o crime de falsificação de documento pode ser desdobrado nos seguintes elementos constitutivos objectivos e subjectivos:

a) A emissão pelo agente de uma declaração corporizada em escrito ou em meio técnico;
b) A aptidão dessa declaração para atestar facto juridicamente relevante;
c) A inveracidade do facto atestado;
d) O dolo do agente;
e) O elemento intencional, consistente no propósito do agente de causar prejuízo ao Estado ou a outrem ou de obter para si ou para outrem um benefício ilegítimo.

Os factos dados como provados pela sentença recorrida e que não foram alterados pelo presente acórdão integram a tipicidade objectiva e subjectiva de dois crimes de falsificação de documento, por cuja prática o arguido foi condenado em primeira instância.

Pelo contrário, conforme já se ajuizou, em sede suprimento da nulidade de sentença, não haverá lugar à agravação qualificativa desses crimes nos termos do nº 3 do art. 256º do CP, determinada na decisão sob recurso.

Como tal, haverá que proceder ao redimensionamento da sanção, com base na moldura punitiva abstracta cominada ao crime simples de falsificação de documento, pelo nº 1 do art. 256º do CP, ou seja, pena de prisão até 3 anos ou multa, aplicando-se, quanto a esta última, a moldura supletiva do nº 1 do art. 47º do CP, que vai de 10 a 360 dias.

Os critérios de determinação da medida concreta da pena são definidos pelo art. 71º do CP, cujo teor é o seguinte:

1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

O nº 1 do art. 40º do CP estabelece como finalidade da aplicação de penas a protecção de bens jurídicos, que se reconduz, no fim de contas, à prevenção geral e especial da prática de crimes, e a reintegração do agente na sociedade e o nº 2 estatui que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.

A matéria da punição do concurso de crimes é regulada pelo art. 77º do CP, nos seguintes termos:

1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Não tendo sido interposto recurso em detrimento do arguido e em obediência à proibição da «reformatio in pejus», prescrita pelo art. 409º do CPP, está fora do poder deste Tribunal aplicar ao arguido, como pena principal, pena de prisão, e mesmo agravar a taxa diária da multa (€ 6), pois não há notícia de melhoria da sua situação económica e financeira.

O grau de ilicitude dos factos é relativamente significativo, pois o arguido com a sua conduta colocou em cheque a qualidade dos exames a que devem sujeitar-se os indivíduos que pretendam exercer a pilotagem de aviões, com o consequente perigo para a segurança do tráfego aéreo, o que agrava também as exigências de prevenção geral.

De todo o modo, não se conhecem consequências concretas da conduta incriminada.

Milita contra o arguido a intensidade do dolo, que foi directo.

Os restantes parâmetros a considerar são de molde a pesar em benefício do arguido, incluindo as suas declarações em julgamento, porquanto assumiu o essencial da conduta por que respondeu, tanto na vertente objectiva como subjectiva e só não foram totalmente confessórias, porque não reconheceu, ainda assim, a sua censurabilidade criminal.

Os imperativos de prevenção especial são reduzidos em função da falta de antecedentes criminais do arguido e do nível de integração social de que beneficia.

Nesta conformidade, afigura-se-nos justo e equilibrado fixar em 120 dias a medida temporal da pena de multa parcelar aplicar ao arguido por cada um dos dois crimes que cometeu.

Uma vez alterada a medida das penas singulares, impõe-se refazer o respectivo cúmulo jurídico.

A determinação da medida da pena emergente do cúmulo jurídico não é uma operação aritmética, mas antes pressupõe a emissão pelo Tribunal de um juízo de valor, assente na reconsideração conjunta dos factos e da personalidade do arguido.

Em consequência da redução, operada no presente acórdão, dos quantitativos das penas singulares em que o arguido foi condenado, a pena única terá de observar, nos termos do disposto no nº 2 do art. 77º do CP, o limite mínimo e o limite máximo de 120 dias de multa e de 240 dias de multa, respectivamente.

Na quantificação da pena única, deve o Tribunal procurar ajuizar se a pluralidade de crimes praticada pelo arguido reconduz-se a uma mera pluriocasionalidade ou, pelo contrário, é reveladora de uma tendência para delinquir.

No caso em apreço, o arguido responde por dois crimes da mesma natureza, praticados em alturas próximas e num mesmo contexto relacional.

Não tem antecedentes criminais.

Em face do agora exposto, teremos de concluir que a pluralidade de crimes em presença releva da mera pluriocasionalidade, o que milita em benefício do arguido.

Como tal, entendemos por justo e adequado fixar em 160 dias de multa o quantitativo da pena única, o que corresponde ao primeiro terço da moldura abstractamente aplicável.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Conceder provimento parcial ao recurso e revogar a sentença recorrida nos termos das alíneas seguintes;

b) Julgar procedente a arguição de nulidade da sentença, nos termos dos arts. 379º nº 1 al. a) e 374º nº 2 do CPP, mas declarar a mesma suprida;

c) Absolver o arguido de dois crimes agravados de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nºs 1 al. d) e 3 do CP, por que vinha acusado;

d) Condenar o arguido pela prática de dois crimes simples de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nº 1 al. d) do CP, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6 por cada crime;

e) Proceder ao cúmulo jurídico das penas agora aplicadas e condenar o arguido na pena única de 160 dias de multa, à taxa diária de € 6;

f) Negar provimento ao recurso, quanto ao mais, e manter a decisão recorrida.

Sem custas.
Notifique.

Évora, 2/7/19 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Póvoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)