Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
840/20.4TXLSB-H.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
PRESSUPOSTOS
EXIGÊNCIAS DE PREVENÇÃO GERAL
NECESSIDADES DE PREVENÇÃO ESPECIAL DE SOCIALIZAÇÃO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Constituem pressupostos formais da concessão da liberdade condicional facultativa o cumprimento pelo condenado de metade da pena de prisão e, no mínimo, seis meses e que à mesma preste ele a sua concordância.
Constituem seus pressupostos substanciais (ou materiais) que, de forma consolidada, seja de esperar que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes, tendo-se para tanto em atenção as circunstâncias do caso, a sua vida anterior, a respectiva personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão (que constituem índices de ressocialização a apurar no caso concreto) e bem assim a compatibilidade da libertação com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

II - O requisito da compatibilidade da libertação com a defesa da ordem jurídica e da paz social (exigível quando a apreciação ocorre em momento em que ainda se não encontram cumpridos dois terços da pena, que não é o caso) traduz a preocupação com as exigências de prevenção geral, enquanto o juízo de prognose sobre a adopção de um comportamento socialmente responsável, defeso da prática de crimes, se prende com as necessidades de prevenção especial de socialização.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. No Tribunal de Execução das Penas de … – Juízo de Execução das Penas de … – Juiz…, Processo com o nº 840/20.4TXLSB-B, foi proferida decisão aos 06/10/2023, que não concedeu ao condenado AA, recluso no Estabelecimento Prisional de …, a liberdade condicional, por se não encontrarem preenchidos os legais pressupostos.

2. Inconformado com o teor da referida decisão, dele interpôs recurso o condenado, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

a) Foi o recorrente condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de prisão efectiva de 3 anos, tendo cumprido já mais de metade da pena. O Tribunal "a quo" a indeferir a concessão da mesma, com base nos fundamentos que indica.

b) Aquilo que o Condenado referiu aquando da sua audição foi, aliás, além do mero arrependimento. O condenado afirmou sentir-se arrependido e, sobretudo, envergonhado. Declarando que, nos dias de hoje, não consegue entender sequer como foi capaz de ter tais comportamentos. O que é corolário de capacidade de arrependimento e de autojulgamento da sua conduta. O Condenado está arrependido e percebeu ter agido mal e, interiorizou tal a ponto de nem ele conseguir encontrar justificação para os seus comportamentos.

c) O Condenado declara que, à data dos factos, bebia bebidas alcoólicas e consumia produtos estupefacientes, o que fazia por estar inserido num grupo de amigos e relacionamentos que promoviam tais actividades. Tal afirmação, não é, nem pode ser vista, como uma desculpabilização do próprio comportamento, mas tão só a presença de sentido crítico que lhe permite identificar pontos de gatilho que o poderiam levar a reincidir na prática de comportamentos avessos ao Direito.

d) O Condenado, não só identifica o seu erro, como percebeu que tem de se afastar de grupos sociais e pessoas que o possam aproximar de comportamentos ilícitos.

e) É verdade que o Condenado, aqui Recorrente, não beneficiou de qualquer saída precária. Contudo, requereu, mas foi-lhe negada. O que já aconteceu, por duas vezes, sendo que tal recusa não depende da vontade do Recorrente,

f) Sucede que, o Recorrente esteve em preventiva, no âmbito dos presentes autos e antes de iniciar a reclusão, esteve em liberdade durante 1 ano. Durante esse período de tempo, o Recorrente teve uma vida exemplar, aproximou-se dos filhos, reatou a relação com a mãe da filha, trabalhou numa mercearia, baptizou a filha e iniciou preparativos para casar.

g) Ficou demonstrado que Recorrente colocado em liberdade consegue adaptar e adaptou o seu comportamento conforme ao Direito, não havendo notícia de que tenha praticado qualquer ilícito criminal, trabalhando para o seu sustento e da família e pagando impostos, com uma vida pessoal e social que não merece qualquer reparo.

h) Neste contexto, e sendo a liberdade condicional meio de verificar e promover a reinserção social do recluso, sempre sob a espada de poder voltar a ser detido, e tendo a experiência de liberdade sido boa, resulta que o Condenado poderá e deverá, diversamente ao decidido, beneficiar da liberdade condicional, para que, no final do cumprimentos da pena dúvidas não restem de que o Recorrente estará em condições de viver em liberdade e de acordo com as regras sociais e de Direito.

i) Logo, devem ser acolhidas as razões expostas, porque legais e justas, deve ser dada providência ao presente, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-se por outra que, acolhendo os fundamentos expostos, decida pela concessão da liberdade condicional ao Recluso, aqui Recorrente, com o que será feita a desejada JUSTIÇA!

Nestes Termos,

E nos melhores de Direito, dado que seja, por V.Exas., Venerandos Desembargadores, o V. douto suprimento, deve o presente ser recebido e, acolhidas que sejam as razões expostas, porque legais e justas, deve ser dada providência ao presente, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-se por outra que, acolhendo os fundamentos expostos, decida pela concessão da liberdade condicional ao Recluso, aqui Recorrente, como que será feita a desejada JUSTIÇA!

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

4. O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pela improcedência do recurso.

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da manutenção da decisão recorrida.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1.Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a da verificação dos pressupostos para a concessão da liberdade condicional ao condenado.

2. A Decisão Recorrida

Tem o seguinte teor a decisão objecto do recurso, na parte que releva (transcrição):

I. RELATÓRIO

Identificação do recluso: AA;

Objecto do processo: apreciação da liberdade condicional (artigos 155.º, n.º 1, e 173.º e ss., todos do Código da Execução das Penas e Medidas privativas da liberdade, de ora em diante designado CEPMPL) com referência aos pressupostos dos dois terços da pena.

Foi elaborado relatório pela equipa de tratamento prisional e reinserção social, versando os aspetos previstos no artigo 173.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL).

O conselho técnico emitiu, por unanimidade, parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional (artigo 175.º do CEPMPL).

Ouvido o recluso este, entre outros esclarecimentos, deu o seu consentimento à concessão da liberdade condicional (artigo 176.º do CEPMPL).

O Ministério Público emitiu parecer desfavorável (artigo 177.º n.º 1 do CEPMPL).

II. FUNDAMENTAÇÃO

A) De facto

i) Factos mais relevantes:

1. Circunstâncias do caso: o recluso cumpre a pena de 3 (três) anos de prisão, que lhe foi aplicada no âmbito dos autos de Processo n.º 415/20.8SFLSB, do Juízo Local Criminal de …, J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, pela prática de um crime de violência doméstica.

2. Marcos de cumprimento da pena: início em 18.08.2022, metade da pena em 20.01.2023, dois terços da pena em 21.07.2023 e termo em 20.07.2024.

3. Vida anterior do recluso: O recluso tem 40 anos. Em criança integrou o agregado familiar do pai e madrasta, tendo esta falecido quando o recluso tinha 4 anos. Durante a adolescência terá pertencido a grupo de extrema direita, o que estará ligado a alguns dos seus comportamentos delituosos. Tem o 9.º ano de escolaridade e o seu percurso laboral comporta experiência na área da restauração, segurança, ajudante de canalizador, distribuidor de publicidade, servente da construção civil e ajudante de cargas e conjugal em 2008, da qual resultaram dois filhos, tendo-se separado da mãe dos mesmos durante a gravidez do mais novo. Foi condenado quanto a esta companheira por um crime de violência doméstica, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova. O recluso não mantém contacto regular com estes dois filhos. Mantém desde 2011 nova relação marital, da qual tem uma filha de 9 anos, que sofre perturbação do espectro do autismo. O agregado familiar é constituído ainda pelo sogro, dependente de terceiros, por ter sofrido um AVC.

Regista antecedentes criminais pela prática de crimes para além do acima referido ofensa à integridade física qualificada, discriminação racial ou religiosa, detenção de arma proibida, desobediência, abuso sexual de crianças, condução sem habilitação legal, dano simples, profanação de cadáver ou lugar fúnebre, introdução em lugar vedado ao público e condução em estado de embriaguez.

Tem pendente o processo n.º 181/19.0… do J… do Juízo Local Criminal de … pela alegada prática de um crime de ofensa à integridade física simples.

4. Personalidade do recluso e evolução durante o cumprimento da pena: atitude face ao crime O recluso assumia uma postura de desculpabilização do seu comportamento, imputando a responsabilidade dos seus actos à vítima, demonstrando grande deficiência de autocrítica e desvalorizando a gravidade dos factos; ultimamente tem reflectido mais sobre os seus comportamentos, embora continue sem apresentar adequada consciência crítica, apresentando ainda um discurso autocentrado e não se debruçando sobre as consequências dos seus actos para a vítima nem referindo os concretos factos que praticou. O seu discurso é ensaiado e pouco natural numa tentativa de corresponder com a expectativa do interlocutor.

5. Saúde O recluso tem registado períodos do seu percurso de vida em que consumiu estupefacientes, nomeadamente cocaína e heroína, bem como consumos excessivos de bebidas alcoólicas, tendo tido recaída no âmbito do relacionamento que deu origem ao processo que levou à presente reclusão (e atribuindo os seus actos às dependências). Encontra-se abstinente, no Estabelecimento prisional, mas não fez qualquer tratamento às dependências.

6. Comportamento Teve um processo disciplinar que culminou com uma advertência, datada de 19.10.2022, assumindo também uma atitude de minimização dos factos praticados.

7. Actividade ocupacional/ensino/formação profissional O recluso concluiu o 9.º ano, no âmbito da última reclusão e frequenta o RVCC com vista à conclusão do 12.º ano de escolaridade. Trabalha na actividade de faxina desde Março de 2023 (actualmente encontra-se na brigada de obras do EP).

8. Programas específicos e/ou outras atividades socioculturais Tem frequentado actividades ocupacionais no Estabelecimento Prisional de …, tendo integrado as Unidades de Formação de Curta Duração (UFCD) de informática, animação sociocultural e desporto, participando ainda em atividades promovidas no estabelecimento prisional, nomeadamente no torneio nacional de remo indoor, em atividades de cariz sociocultural, encontrando-se a frequentar o processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), com vista a concluir o 12º ano de escolaridade, com assiduidade e pontualidade.

9. Medidas de flexibilização da pena não beneficiou, até à data, de qualquer medida de flexibilização da pena.

10. Rede exterior: enquadramento/apoio familiar/perspectiva futura Em meio livre pretende viver com a companheira, a filha e o sogro e trabalhar numa mercearia onde trabalhava antes da reclusão (mera perspectiva). Tem ainda apoio por parte do pai, tio e amigos.

ii) Motivação da matéria de facto:

A convicção do Tribunal no que respeita a matéria de facto resultou da certidão da decisão condenatória junta aos autos, bem como da liquidação de pena realizada e homologada, da ficha biográfica do recluso e do seu certificado de registo criminal, dos relatórios junto aos autos elaborados pelas equipas da reinserção social e de educação, dos esclarecimentos prestados pelo conselho técnico e das declarações prestadas pelo recluso.

B) De direito

“A liberdade condicional tem como escopo criar um periodo de transição entrereclusão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, de forma equilibrada, não brusca, recobrar o sentido de orientação social necessariamente enfraquecido por efeito do afastamento da vida em meio livre e, nesta medida, a sua finalidade primária é a reinserção social do cidadão recluso, sendo certo que, até serem atingidos os dois terços da pena, esta finalidade está limitada pela exigência geral preventiva de defesa da sociedade” (Anabela Rodrigues, in “A Fase de Execução das Penas e Medidas de Segurança no Direito Português. BMJ, 380, pág. 26).

Vale isto por dizer que, alcançados os dois terços da pena, com um mínimo absoluto de seis meses (cfr. art. 61.º n.º 3 do código penal, de ora em diante designado CP), e obtido o consentimento do recluso, como é o caso, o legislador abranda as exigências de defesa da ordem e paz social e prescinde do requisito de prevenção geral, considerando que o condenado já cumpriu uma parte significativa de prisão e que, por conseguinte, tais exigências já estarão minimamente garantidas.

Donde, aos dois terços da pena, é único requisito material a expectativa de que o condenado, em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente e sem cometer crimes, ou seja, importa que se atente na prevenção especial na perspectiva de ressocialização (positiva) e prevenção da reincidência (negativa). Pelo que, no que respeita aos fins das penas, subsiste apenas a finalidade de ajuda ao recluso na mudança e regeneração e na prevenção de cometimento de novos crimes.

Na avaliação da prevenção especial o julgador tem de elaborar um juízo de prognose sobre o que irá ser a conduta do recluso no que respeita a reiteração criminosa e ao seu comportamento futuro, a aferir pelas circunstâncias do caso, antecedentes, personalidade e evolução durante o cumprimento da pena.

Ora, na última apreciação dos pressupostos da liberdade condicional, considerámos que os mesmos não se verificavam.

Desde então, o recluso vem consolidando uma evolução no seu percurso prisional, sem que no entanto se possa concluir por um entendimento diferente daquele a que chegámos na última apreciação dos pressupostos da liberdade condicional.

Com efeito, em síntese, estamos perante um recluso que cumpre pena pela prática de um crime de violência doméstica.

Não se trata de uma fase na sua vida, ou de actos isolados, pois tem antecedentes criminais da mais variada natureza e que atentam contra vários bens jurídicos: ofensa à integridade física qualificada, discriminação racial ou religiosa, detenção de arma proibida, desobediência, abuso sexual de crianças, condução sem habilitação legal, dano simples, profanação de cadáver ou lugar fúnebre, introdução em lugar vedado ao público e condução em estado de embriaguez.

Todo este rol de crimes por si praticados denotam uma personalidade avessa às normas e ao direito e uma enorme propensão para a actividade criminosa.

Acresce que, tem historial de toxicodependência de ingestão de bebidas alcoólicas em excesso (em fase abstinente), o que eleva os riscos de reincidência.

É certo que apresenta alguma evolução (pouca) ao nível da consciência crítica relativamente ao crime praticado mas só em abstracto, pois não se debruça em concreto sobre as consequências da prática do crime para a vítima dos seus actos, o que também eleva os riscos de reincidência.

Por outro lado, continua sem beneficiar de licença de saída jurisdicional, pelo que não foi testada a sua reaproximação ao meio livre (designadamente a sua capacidade de resiliência quanto aos vícios e à sua capacidade de resistir a frustrações e tolerar o outro), o que seria importante (caso estivesse em condições de beneficiar desta medida de flexibilização da pena, o que não sucede).

É certo que tem comportamento tendencialmente adequado (regista uma infracção disciplinar praticada há um ano), trabalha e investe nas suas habilitações.

Todavia, não são tais factos minimamente suficientes para, considerando a gravidade do crime praticado, a ainda reduzida consciência crítica sobre as suas acções passadas (embora com evolução que já se assinalou), os graves antecedentes criminais que regista e o seu passado de toxicodependência, concluir pela verificação dos pressupostos necessários à libertação antecipada do recluso, uma vez que continua a haver o risco de que o recluso, em liberdade, volte a cometer crimes.

Os défices ainda evidenciados pelo recluso quer ao nível da interiorização crítica das suas condutas criminosas e suas consequências, quer ao nível do seu percurso de ressocialização/reaproximação ao meio livre (a evoluir de forma positiva mas a carecer de consolidação), o seu passado criminal, o historial aditivo e bem assim a falta de um projecto consistente de vida futura (tem meras perspectivas e nada assegurado), fazem concluir pela existência de um elevado risco de reincidência, situando-se as exigências de prevenção especial num patamar não compatível com a libertação antecipada daquele.

Por fim, tem pendente um processo judicial, sendo também relevante aguardar o seu desfecho.

Por tudo o que foi dito, concluo que razões de prevenção especial positiva e negativa impõem que se acompanhe o parecer do Ministério Público, no sentido de não ser concedida ao recluso a liberdade condicional, havendo que continuar a consolidar o seu percurso prisional e a debruçar-se sobre os seus comportamentos passados, a fim de evitar a reincidência aquando da sua libertação.

III. DECISÃO

Face ao exposto, não concedo a liberdade condicional a AA.

Emita mandado de libertação do recluso, a cumprir em 20.07.2024, data em que será atingido o termo da pena em execução.

Apreciemos.

O recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal recorrido que optou por não o colocar em liberdade condicional, entendendo estarem reunidos os pressupostos para que fosse proferida outra que a concedesse.

Como resulta do nº 1, do artigo 42º, do Código Penal, “a execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”, consagrando-se também no nº 1, do artigo 2º, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei nº 115/2009, de 12/10, que “a execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade visa a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a protecção de bens jurídicos e a defesa da sociedade”.

Estabelece-se no artigo 61º, do Código Penal, que:

“1. A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.

2. O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:

a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e

b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social (versão introduzida pela Lei nº 79/2021, de 24/11).

3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.

4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.

5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.”

Temos assim que, constituem pressupostos formais da concessão da liberdade condicional facultativa o cumprimento pelo condenado de metade da pena de prisão e, no mínimo, seis meses e que à mesma preste ele a sua concordância.

Constituem seus pressupostos substanciais (ou materiais) que, de forma consolidada, seja de esperar que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes, tendo-se para tanto em atenção as circunstâncias do caso, a sua vida anterior, a respectiva personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão (que constituem índices de ressocialização a apurar no caso concreto) e bem assim a compatibilidade da libertação com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

O requisito da compatibilidade da libertação com a defesa da ordem jurídica e da paz social (exigível quando a apreciação ocorre em momento em que ainda se não encontram cumpridos dois terços da pena, que não é o caso) traduz a preocupação com as exigências de prevenção geral, enquanto o juízo de prognose sobre a adopção de um comportamento socialmente responsável, defeso da prática de crimes, se prende com as necessidades de prevenção especial de socialização.

A liberdade condicional tem como escopo criar um período de transição entre a reclusão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, de forma equilibrada, não brusca, recobrar o sentido de orientação social necessariamente enfraquecido por efeito do afastamento da vida em meio livre e, nesta medida, a sua finalidade primária é a reinserção social do cidadão recluso, sendo certo que, até serem atingidos os dois terços da pena, esta finalidade está limitada pela exigência geral preventiva de defesa da sociedade – cfr. Anabela Rodrigues, A Fase de Execução das Penas e Medidas de Segurança no Direito Português, BMJ, 380, pág. 26.

Este instituto tem sido considerado (embora de forma não totalmente pacífica) como um incidente da execução da pena privativa de liberdade (ou modificação da sua execução), embora com a redacção dada ao artigo 61º, do Código Penal pela Lei nº 59/2007, de 04/09, esta concepção se apresente em crise, mormente com a consagração de que tendo a liberdade condicional uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, se considera extinto todo o período que ultrapasse aquele limite (no pressuposto de que não venha ela a ser revogada, obviamente), pois estamos aqui verdadeiramente perante uma modificação posterior e substancial da condenação penal, traduzida na sua redução.

Vejamos então se o recluso/recorrente reúne os requisitos para beneficiar da liberdade condicional.

O Conselho Técnico pronunciou-se unanimemente desfavorável à concessão da liberdade condicional e este é também o entendimento do Ministério Público junto da 1ª instância expresso no parecer que emitiu a propósito.

Tem vindo o recluso a cumprir a pena de 3 anos de prisão, pela prática de um crime de violência doméstica, averbando condenações anteriores pela prática de crimes de ofensa à integridade física qualificada; discriminação racial ou religiosa; detenção de arma proibida; desobediência; abuso sexual de crianças; condução de veículo sem habilitação legal; dano simples; profanação de cadáver ou lugar fúnebre; introdução em lugar vedado ao público e condução em estado de embriaguez.

Alcançou o cumprimento de metade da pena em 20/01/2023, os 2/3 foram atingidos em 21/07/2023, estando previsto o seu termo para 20/07/2024.

A nível comportamental, o percurso não pode deixar de ser considerado como irregular, pois registan infracção disciplinar aos 19/10/2022.

Não beneficiou ainda de licença jurisdicional de saída do estabelecimento prisional.

No seu percurso prisional, frequenta o Processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências com vista a concluir o 12º ano de escolaridade; exerce actividade na brigada de obras no EP; tem frequentado actividades ocupacionais, integrando Unidades de Formação de Curta duração.

No que tange à postura face ao crime que cometeu, resulta da decisão revidenda que:

(…) assumia uma postura de desculpabilização do seu comportamento, imputando a responsabilidade dos seus actos à vítima, demonstrando grande deficiência de autocrítica e desvalorizando a gravidade dos factos; ultimamente tem reflectido mais sobre os seus comportamentos, embora continue sem apresentar adequada consciência crítica, apresentando ainda um discurso autocentrado e não se debruçando sobre as consequências dos seus actos para a vítima nem referindo os concretos factos que praticou. O seu discurso é ensaiado e pouco natural numa tentativa de corresponder com a expectativa do interlocutor.

Ora, o recorrente discorda deste entendimento, aduzindo que quando da sua audição revelou arrependimento e sentir-se envergonhado, “declarando que, nos dias de hoje, não consegue entender sequer como foi capaz de ter tais comportamentos. O que é corolário de capacidade de arrependimento e de autojulgamento da sua conduta. O Condenado está arrependido e percebeu ter agido mal e, interiorizou tal a ponto de nem ele conseguir encontrar justificação para os seus comportamentos.”

Vejamos se tem a razão pelo seu lado.

Conforme se pode ler no “Auto de Audição de Recluso”, declarou o recorrente:

(…) não agrediu a BB devido às drogas e ao álcool. As drogas não o levam a este ponto. Mesmo quando alcoolizado estava sempre bem disposto. O que o levou a fazer isso foi a maneira que arranjou de sair por cima nas discussões. A liberdade condicional foi rejeitada e com razão. Têm razão quanto à sua pessoa e quanto ao crime. O tribunal tem razão. É correcto estar preso. Fez umas pinturas no cemitério. E a maior parte dos crimes que cometeu foram há mais de 20 anos. Deixou de se dar com aquelas pessoas. Deixou de ser militar e procurou sentir-se inserido com aquelas pessoas mas depois caiu em si, principalmente quando passou a ser pai e percebeu que ainda estava a ter atitudes de adolescente não obstante ter 27 anos de idade.

Até aos 40 anos de idade cometeu bastantes erros. Vê isto como uma vida perdida. Daqui a outros 40 talvez ainda esteja vivo e quer recuperar a sua vida.

Aceita a pena que lhe foi aplicada, aceita estar preso (tem olhos na cara), descobriu o que era a prisão. Mas aceita a liberdade condicional porque já abriu os olhos para o que é a vida e para o que pode ser a prisão. Sabe agora a sorte que teve em ser condenado anteriormente em penas de prisão suspensas, embora se tivesse sido logo preso tinha aprendido mais rápido.

A norma contida na alínea a), do nº 2, do artigo 61º, do Código Penal, manda atender à “personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão” e é precisamente a postura face ao crime ou crimes da condenação manifestada no decurso do cumprimento da pena que constitui um dos elementos fundamentais para aferir dessa evolução, o que, cumpre dizer, se não configura como um segundo julgamento sobre os mesmos factos e por isso não brita a norma vertida no nº 5, do artigo 29º, da Constituição da República Portuguesa.

Aliás, que assim se deve entender, resulta da obrigatoriedade legal – plasmada no artigo 173º, nº 1, alínea a), do CEPMPL – de que o relatório dos serviços prisionais que instrui o processo de liberdade condicional contenha a “avaliação da evolução da personalidade do recluso durante a execução da pena (…) e da sua relação com o crime cometido”, não podendo estes factores deixarem de se reportar à posição que o condenado expressa ao longo do cumprimento da pena face aos factos criminosos em razão dos quais esta lhe foi aplicada e não apenas ao que verbaliza perante os técnicos de tratamento penitenciário e de reinserção social ou quando da sua audição pelo Juiz do Tribunal de Execução das Penas, com vista à prolação, em momento subsequente, da decisão sobre a liberdade condicional.

Não estamos perante a exigência de um acto de contrição momentâneo divulgado in extremis quando se aproxima ou se conhece mesmo a data exacta da audição para efeitos da concessão da liberdade condicional, mas antes de um processo dinâmico que se vai desenvolvendo gradualmente e que conduz à conclusão pela verificação (ou não, bem entendido) dos mencionados reconhecimento e consciência crítica do mal do crime.

Daí que, partindo da problemática que o condenado apresentava à data da condenação e das suas condições psicológicas, o que agora importa é precisamente avaliar essa evolução, o que fez o tribunal a quo, sendo certo que da factualidade apurada, tal como consta da decisão recorrida e como nesta se mostra explicitado, resulta ainda a necessidade de consolidação da interiorização do desvalor da conduta delituosa.

Ora, podemos ler no Relatório da Equipa de Reinserção Social:

A relação de AA com a vítima no processo que determinou a condenação que cumpre (que conheceu através da internet e com quem partilhava os valores do movimento nacionalista de extrema direita “..” a que pertencia), foi iniciada em fevereiro de 2018, sendo no contexto da crise conjugal e da acumulação de problemas de diversa natureza que AA enquadra a relação extraconjugal que manteve com a vítima, figura que denigre e a quem atribui a responsabilidade pela sua recaída no consumo de estupefacientes, heroína e cocaína, substância que já tinha consumido no passado e no abuso no consumo de bebidas alcoólicas.

(…)

No que se refere à conduta criminal que esteve na génese da condenação que cumpre, AA revela esforçar-se por transmitir, ao nível do discurso atual, alguma evolução no que se refere à consciência crítica, no entanto, a reflexão que realiza a esse respeito denota uma tentativa de corresponder com a expetativa do interlocutor e continua a demonstrar alguns contornos de desculpabilização com o consumo de estupefacientes, colocando-se desse modo com algumas reservas quanto a uma real evolução ao nível da consciência crítica e da motivação/capacidade para a mudança.

E, do Relatório da Área do Tratamento Prisional consta:

AA revela um discurso de maior consciencialização sobre os crimes praticados, denotando que tem efetuado alguma reflexão sobre os mesmos. AA procurou um acompanhamento regular na valência de psicologia no estabelecimento prisional, denotando-se melhorias, sobretudo no autoconhecimento, nas consequências dos seus atos e na ilicitude dos crimes praticados, ainda que por vezes, autocentrado e desculpabilizante, tentando justificar algumas das atitudes através de factores externos, como o consumo de substâncias estupefacientes, dificuldades económicas, dificuldade em gerar pontes de entendimento, entre outros.

Faz ainda, transparecer no seu discurso, dando exemplos práticos, de maior capacidade de gestão emocional, de frustração e tolerância, tanto no que visa ao direito das mulheres como ao racial/étnico.

Porque assim é, ainda que revele o condenado evolução, consideremos correcta a avaliação do tribunal recorrido, não se mostrando suficientemente aprofundado e consolidado o seu percurso de modo a chegar à conclusão de prognose de que “conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”, o que coloca em crise uma perspectiva favorável quanto ao seu comportamento futuro em meio não institucionalizado.

E, o apoio familiar em meio livre de que dispõe (progenitor, tio e amigos), não se sobrepõe a este juízo, não constituindo, só por si, circunstância contentora da recidiva criminosa, visto que existia já à data dos factos delituosos e ao seu cometimento não obstou e vero é que comprovado não está que a sua actual companheira (precisamente com quem se verificou a mencionada crise conjugal) para tanto tenha capacidade.

Tudo visto, importa concluir que não é possível fazer um juízo de prognose favorável em relação ao recluso, no sentido de que, caso seja colocado em liberdade condicional, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.

Como tal, porque carece de razão o recorrente, ao recurso tem de ser negado provimento.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo condenado AA e confirmar a decisão recorrida.

Sem tributação.

Remeta de imediato cópia deste acórdão ao TEP e aos Serviços Prisionais.

Évora, 20 de Fevereiro de 2024

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(António Condesso)

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(Jorge Antunes)