Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
449/22.8GESTB.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IRREGULARIDADE
NULIDADES DO INQUÉRITO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Não sendo o despacho recorrido uma sentença, não são aplicáveis as normas do artigo 379º, nº 1, do CPP e concretamente a vertida na sua alínea c) respeitante à omissão de pronúncia, que só abrange sentenças e acórdãos.

E, quanto a configurar uma nulidade, o regime destas enfermidades apresenta-se sujeito aos princípios da legalidade e tipicidade, como resulta do artigo 118º, nº 1, do CPP, constituindo apenas nulidades insanáveis as que no artigo 119º, do mesmo diploma legal, se mostram elencadas ou as que como tal, são cominadas em outras disposições legais.

Ora, sendo impossível integrar a omissão de pronúncia nos despachos, quer nas nulidades previstas no artigo 119º, quer nas nulidades dependentes de arguição – do artigo 120º - e não existindo norma que a configure como tal, só poderá considerar-se essa eventual omissão como uma irregularidade, com o regime de arguição previsto no artigo 123º, nº 1, do CPP, estando vedado ao Tribunal da Relação o recurso ao consagrado no seu nº 2.

Não tendo a omissão de pronúncia da decisão recorrida sido suscitada pela recorrente, atempadamente (no prazo de três dias após a sua notificação para qualquer termo do processo) e perante o tribunal a quo (autoridade judiciária que praticou o ato em causa e a competente para reparar o vício), mostra-se sanada.

II - Decidida a rejeição da abertura da instrução, fica prejudicado o conhecimento de nulidades do inquérito invocadas, por estas apenas poderem ser conhecidas pelo Juiz de instrução caso haja lugar à mesma.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos autos com o nº 449/22.8GESTB, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Instrução Criminal de … – Juiz …, foi proferido, aos 30/06/2023, despacho que rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente AA.

2. A assistente não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, impetrando a sua revogação e substituição por outro que determine a abertura da instrução.

2.1 Extraiu a recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1 – Salvo o devido respeito, o despacho recorrido é ilegal por erro de interpretação e aplicação do Direito;

2 - Bem analisados os autos o que temos é que o Mº Pº precipitou-se decidindo lavrar despacho rápido, sem fazer qualquer investigação.

3 - A assistente denunciou a prática do crime de burla e de dano, estando escrito no antepenúltimo parágrafo da folha segunda do auto de notícia:

“(…) onde se verificou que houve o já referido crime de dano e o arrombamento das fechaduras, onde está discriminado no contrato assinado por ambas as partes que expressamente proibido efectuar qualquer mudança de chaves ou fechadura naquela habitação.”

4 - Depois, a Fls. 17 e seguintes dos autos a assistente completou a queixa, juntou documentos, indicou outros inquéritos e testemunhas.

5 - Mas o Mº Pº deveria ter feito investigação na medida em que é manifesto que estamos perante a prática do crime de dano e de burla, e não de simples matéria cível.

6 - A assistente pagou no dia 13/09/2022 (Cfr. Fls. 38 dos autos), a taxa de justiça para requerer a constituição de assistente, que requereu, mas o Mº Pº precipitou-se, correu a arquivar os autos, sem fazer investigação e deveria tê-la feita, de harmonia com o CPP e o principio do acusatório.

7 - A omissão de investigação tem como feita a verificação das nulidades indicadas nos artºs 119º al. c) do CPP, ou se assim se não entender a nulidade prevista no artº 120º nº 2 al. d) do CPP e ofensa da norma do artº 6º nº 1 e 3 da CEDH, pelos motivos enunciados na Motivação do recurso, sendo que em relação às normas da CEDH verifica-se violação do “due process of law”, como o TEDH tem julgado, mesmo em arestos contra Portugal;

8 - A assistente e ora recorrente indicou os factos que considera criminosos em dois momentos, o Mº Pº deveria tê-los investigado, na sua globalidade sem decidir arquivar os autos de imediato, numa interpretação precipitada, sem investigação, e sem investigação mesmo do crime de dano.

9 - E tem direito a esperar que Mº Pº os investigasse.

10 - A recorrente em tempo fez a respectiva denuncia dos factos em forma de síntese, mas antes de ter recebido do despacho de arquivamento procurou esclarecer estes, a fls. 17 e seguintes;

11 - Em tempo, no requerimento de abertura da instrução, esclareceu ainda mais o ocorrido, sendo que a denuncia do desaparecimento de parte do recheio da habitação, mas é um facto natural no âmbito de uma investigação, que tem de ser dinâmica.

12 – Verificamos que no decurso do inquérito o Mº Pº não ouviu as testemunhas, que presenciaram os factos relativos ao auto de denuncia, o que lhe permitia concluir que a conduta do denunciado ultrapassa em muito um mero ilícito civil, e estamos perante conduta tipicamente penal.

13 - O denunciado identificou-se na resposta ao anúncio quer nos encontros com o procurador da assistente, como funcionário público, dizendo que pertencia à direcção do Museu da …, em …, que exercia funções de direcção e tinha vencimento de 2500,00 €, com isenção de horário.

14 - Factos que foram determinantes para que o procurador da queixosa o tivesse convidado a almoçar com trabalhadores no espaço lhe viesse a entregar as chaves, mais tarde constatou-se ser já muito difícil concretizar o contrato de arrendamento, mesmo sem a constituição de fiador, ao contrário do que prometeu.

15 - O denunciado não só não pagou as prometidas rendas, mas furtou bens da habitação, decidiu enganar pessoas intitulando-se proprietário, fez contratos de subarrendamento, tendo sido apresentadas queixas crime que correm termos nos Proc. 473/22.0… (Cfr. artº 6º a Fls. 18 dos autos); Proc. 461/22.7… (Cfr. artº 9º a Fls, 18 dos autos).

16 - A assistente e recorrente foi astuciosamente enganada, na pessoa do seu procurador, o Dr. BB, fazendo crer o que efectivamente não era nem é.

17 - Pelos documentos dos autos verificamos que o denunciado cumpriu pena de prisão (Cfr, Fls. 76 dos autos).

18 - O plano do denunciado foi elaborado para furtar, para burlar, para causar dano, indo ao ponto de fazer contratos de subarrendamento – para o que não tinha autorização – burlando também outras pessoas, não pagando o que devia à assistente e enganando pessoas com alegados contratos de subarrendamento.

19 - A assistente foi sendo consecutivamente enganada pelo denunciado, que astuciosamente criou os factos para furtar, para burlar, para danificar bens, e ao mesmo tempo não pagar o arrendamento, fazer contratos de subarrendamento, enganar também outras pessoas,

19 – (numeração como no original) Sempre com devido respeito, é claro que o Mº Pº omitiu diligências essenciais para a descoberta da verdade, para a boa investigação dos factos.

20 - Na verdade, o despacho de arquivamento além de não considerar os factos denunciados nos requerimentos, como esclarecedores do auto de denuncia, não promoveu as diligências necessárias e essenciais para que se pudesse concluir pelo artificio usado pelo denunciado, errando ao qualificá-las como ilícito meramente civil.

21 - Os factos posteriormente indicados, a Fls. 17 e seguintes, não são factos novos, mas factos que são o desenvolvimento dos indicados na denuncia inicial, até porque a recorrente só os foi sabendo à medida em que foram sendo revelados após acesso à habitação e denuncia de outras pessoas, naquele período curtíssimo.

22 - Assim sendo, o requerimento de abertura da instrução é legal e por isso não deveria ter sido rejeitado;

23 – E por isso deve ser revogado o despacho recorrido, julgando-se verificadas as nulidades alegadas e por via disso serem os autos devolvidos a Mº Pº para completar a investigação.

24 – Este recurso foi interposto no primeiro dia útil após o prazo normal de 30 dias, atendendo a que a que a decisão recorrida foi recebida no dia 13/07/2023 e está paga a multa do primeiro dia útil posterior.

25 – O tribunal a quo ofendeu as normas dos artº 119º al. c) do CPP, ou se assim se não entender a norma do art6º 120º nº 2 al. d) do CPP e artº 6º nº 1 e 3 da CEDH, o que expressamente se invoca para todos os efeitos legais;

26 – O despacho recorrido interpretou as normas dos artºs indicadas na conclusão procedente e a norma do artº no 287º nº 1 al. b), in fine do CPP no sentido de dever rejeitar requerimento de abertura da instrução e deveria tê-las interpretado n sentido de dever aceitar o requerimento e julgar verificadas as nulidades arguidas,

NESTES TERMOS, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogado o despacho recorrido.

3. O recurso foi admitido por despacho de 18/10/2023.

4. Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo à motivação de recurso, nos seguintes termos (transcrição):

1. Interpôs a assistente AA recurso do douto despacho proferido a fls. 120-122 dos autos supra epigrafados que, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, rejeitou, com fundamento em "inadmissibilidade legal", o requerimento de abertura de instrução de fls. 55-63 dos mesmos autos (apresentado por aquele sujeito processual), onde se peticionava a pronúncia do denunciado CC pela prática dos crimes de furto e burla que lhe foram aí imputados, designadamente, por se extrair do conteúdo desse requerimento a violação do preceituado no art.0 287.0, n.º 1, al. b), do citado diploma legal, e que, como tal, não tendo lugar a fase de instrução, não conheceu da nulidade arguida pela mencionada assistente no sentido de que «o despacho de arquivamento sofre do vicio de nulidade, a prevista no artº 119º al. c) do CPP, ou se assim não se entender a nulidade prevista no artº 120º nº 2 al. d), também do CPP, e ofende a norma do artº 6º nº 1 e 3 da CEDH, "due process of law "»; pugna a ora recorrente, a final, no sentido de dever aquele despacho ser revogado e, consequentemente, substituído por outro que decida "aceitar o requerimento e julgar verificadas as nulidades arguidas";

2. Ora em apreço no presente recurso estará a questão de saber se a factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução da assistente "é a que" foi anteriormente objecto do despacho de arquivamento do Ministério Público e se, como tal, podia in casu ter lugar, relativamente à dita factualidade, a fase de instrução, bem assim aqueloutra questão, referente à supra aludida arguição de nulidade, de saber se o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal tinha de conhecer dessa nulidade, mais concretamente, saber se, sendo proferida decisão de rejeição (com fundamento em "inadmissibilidade legal") do mencionado requerimento - não havendo, pois, instrução -, teria o mesmo Juiz a quo, ainda assim, de conhecer de semelhante nulidade;

3. Teve o processo início com o Auto de Notícia de fls. 3-4 v.0 dando conta, no essencial, de que a ora assistente AA relatou que o aqui arguido, invocando ter condições de vida "que inspiraram confiança de suporte financeiro" àquela, logrou adquirir a qualidade de arrendatário de uma residência da mesma assistente, com a renda mensal de € 850,00, sendo que apenas veio a efectuar pagamentos nos valores de € 360,00 e € 400,00, aludindo-se também a "crime de dano" e "arrombamento das fechaduras" ("proibido efetuar qualquer mudança de chaves ou fechadura"), sucedendo ainda que, não tendo sido manifestado qualquer desejo de procedimento criminal, consta a final que "[d]á direito ao proprietário da casa, em virtude de falta de pagamento, efetuar a resolução do contrato e efetuar a posse daquela habitação";

4. Após tal, foi proferido o despacho de arquivamento do inquérito de fls. 11-15, dado se ter então concluído que "os elementos essenciais do crime de burla (...) não estão preenchidos em relação ao denunciado", sendo que "[a] situação descrita nos autos claramente mais não é do que um incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso do contrato cuja resolução cumpre ao direito civil e não ao direito penal, de última ratio, sob pena de cairmos numa excessiva criminalização de condutas", sucedendo que veio a ser, nessa sequência, apresentado pela ora assistente AA o requerimento de abertura de instrução de fls. 55-63 (entretanto rejeitado), aí tendo sido aduzida a supra referenciada questão da nulidade e peticionada, a final, a pronúncia do denunciado CC pela prática de um crime de furto e um crime de burla, previstos e punidos, respectivamente, pelos art.ºs 203.º, n.º 1, e 217.º, n.º 1, do Código Penal;

5. Ora, dispondo o art.º 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal que "[a] abertura da instrução pode ser requerida (...) [p]elo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação'', temos desde logo como absolutamente evidente assistir razão ao Senhor Juiz quando refere que "o despacho de arquivamento ref. … versou sobre a factualidade descrita na denuncia ref. … e essa factualidade não é a que, agora, vem descrita no requerimento de abertura de instrução da assistente", ainda que só se possa dizer ser "o seu objecto estranho a estes autos tal como configurados pelo titular da acção penal", a justificar a correspondente rejeição do mesmo requerimento instrutório, no que tange à "nova" factualidade entretanto trazida a juízo atinente ao aí imputado crime de furto;

6. Mas já no tocante ao crime de burla, matéria essa que foi objecto de conhecimento e subsequente arquivamento na fase de inquérito, nada obsta a que o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal aprecie e decida relativamente à correspondente factualidade, na exacta medida em que não exceda os factos sobre os quais recaiu o anterior despacho de arquivamento do inquérito, sendo que inexistiu nessa parte, de facto, decisão judicial no que tange à admissibilidade do requerimento de abertura de instrução limitado a essa matéria; deverá, assim, nessa conformidade, ser proferido douto despacho consubstanciador de efectiva apreciação e decisão no que tange à admissibilidade do requerimento de abertura de instrução enquanto limitado à factualidade alusiva ao crime de burla e anteriormente já alvo de crivo por parte do Ministério Público em sede de prolação de despacho de encerramento do inquérito, in casu, de arquivamento;

7. Como decorre do acima exposto e sendo consabido que o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal proferiu douta decisão de rejeição (com fundamento em "inadmissibilidade legal") do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, não tendo, assim, lugar a fase de instrução, aqueloutra questão que neste momento aqui se coloca é a de aquilatar se tinha esse Senhor Juiz, ainda assim, de conhecer da nulidade arguida pela dita assistente, e ora recorrente , AA; entendemos que não, sendo certo que apenas havendo lugar à instrução recairia sobre o mesmo Juiz a quo o dever legal de conhecer de semelhante nulidade;

8. Sobre tal questão e no sentido ora explicitado, veja-se, a título meramente exemplificativo (para além do douto aresto já citado na douta decisão aqui recorrida, "o ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/5/2011, proc. 1566/08.2TACSC.Ll -5, relator Jorge Gonçalves"), o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.02.2020, Processo n.0 1710/18.1T9FAR.El , Relator: Alberto Borges, acessível in www .dgsi .pt, onde se refere, de modo lapidar: «(...) o conhecimento de eventuais nulidades do inquérito em sede de instrução pressupõe a abertura da mesma, pois que a competência do Juiz de instrução na fase de inquérito/durante o inquérito está circunscrita às situações previstas nos art.º 268 e 269 do CPP, onde não se inclui o conhecimento de eventuais nulidades do inquérito, este da competência do Ministério Público, enquanto titular do mesmo. De facto, por um lado, o inquérito é da exclusiva titularidade do MP e só permite a intervenção pontual do juiz nos casos expressamente tipificados na lei, por outro, encerrado o inquérito e aberta a instrução, abre-se uma fase autónoma do processado, cuja direção radica doravante no juiz de instrução, que, com total autonomia ordena as diligências que tenha por necessárias ao fim dessa fase eventual: proferir decisão instrutória (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.2006, in www.dgsi.pt). Ora, não havendo lugar a instrução/não tendo esta sido admitida - pressuposto da competência do Juiz de instrução para conhecer de eventuais nulidades do inquérito - prejudicado estava o conhecimento das invocadas nulidades do inquérito pelo Juiz de instrução, já que a sua competência para tal pressupõe a abertura da instrução, esta, sim, da sua competência. Corrobora este entendimento o disposto no art.0 120 n.º 3 ai.a c) do CPP, quando aí se estabelece que as nulidades respeitantes ao inquérito, não tendo havido instrução, devem ser arguidas "até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito". Neste sentido (e a este propósito) pode ver-se ainda Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, 308: "... a nulidade deve ser arguida até ao encerramento do debate instrutório, salvo se não houver instrução, caso em que a nulidade ocorrida na fase de inquérito deve ser arguida até cinco dias após a notificação do despacho que encerrou o inquérito ...". Decidindo a rejeição da abertura da instrução - bem ou mal é questão que abaixo se decidirá - e não havendo lugar à mesma, com aquela decisão prejudicado ficou o conhecimento das invocadas nulidades do inquérito, por aquelas apenas poderem ser conhecidas pelo Juiz de instrução caso haja lugar à mesma».

Face a todo o exposto, e assistindo, pois, parcialmente, razão à assistente AA, entendemos que deverá, nessa conformidade, ser dado provimento ao recurso ora interposto pela mesma assistente.

5. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado parcialmente provido, nos termos aduzidos na resposta do Ministério Público à motivação de recurso junto da 1ª instância.

6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pela assistente em que conclui por dever o recurso ser julgado totalmente procedente.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série –A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Inexistência de fundamento legal para a rejeição do requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente.

Verificação da nulidade prevista no artigo 119º, alínea c) ou no artigo 120º, nº 2, alínea d), do CPP/violação da norma do artigo 6º, nºs 1 e 3, da CEDH.

2. Elementos relevantes para a decisão

2.1 Por decisão de 26 de Setembro de 2022, encerrado o inquérito, que teve origem na “denúncia”/queixa apresentada por AA contra CC, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos, por inexistência de indícios da prática do crime de burla, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal, aduzindo ainda que “a situação descrita nos autos claramente mais não é do que um incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso do contrato cuja resolução cumpre ao direito civil e não ao direito penal, de última ratio, sob pena de cairmos numa excessiva criminalização de condutas”

2.2 Em data não apurada, mas entre 14/09/2022 e 28/09/2022, foi entregue no Posto da GNR de … um requerimento subscrito pelo Ilustre Advogado DD – mandatário constituído da queixosa - dirigido ao presente processo e Exmº Procurador da República, em nome da mesma, em que relatava, em síntese, que o denunciado, para além dos factos mencionados na queixa, “elaborou um plano para arrendar ou ceder onerosamente a vivenda e o anexo. Factos que sabia estarem proibidos pelo contrato de arrendamento (…) a queixosa requereu e foi ordenada a notificação judicial avulsa do denunciado, para o informar que foi resolvido o contrato de arrendamento e para entregar o locado (…) Entretanto foram chegando à propriedade da queixosa várias pessoas que tinham respondido a anúncios colocados pelo denunciado, para arrendamento da vivenda, depois de terem pago ao denunciado, e que foram apresentando queixa crime, que estarão a ser investigadas no DIAP de …, e que parece que devem ser apensados a este inquérito por se verificarem os requisitos da conexão (…) E para arrendamento do “Anexo” existente no logradouro da Vivenda. Essas pessoas são as seguintes (…) O denunciado recebeu destas pessoas a importância de 1.400,00 € (…) As pessoas indicadas no artº 6º entregaram o “Anexo” ao procurador da queixosa, na sequência de notificação (…) O denunciado também, ilicitamente, cedeu a vivenda às seguintes pessoas que apresentaram queixa que deu lugar ao NUIPC 461/22.7…. Que também apresentara queixa-crime contra o denunciado, e cujo inquérito deve ser apensado a este inquérito, por se verificarem os requisitos de conexão”.

Com este requerimento foram juntos documentos e impetrada inquirição de testemunhas que foram indicadas, bem como “a anexação a este processo dos inquéritos NUIPC 00473/22.0… e NUIPC 461/22.7…”.

2.3 O requerimento deu entrada nos serviços do Ministério Público de … em 03/10/2022 e em 13/10/2022, tendo em atenção o aludido requerimento, despachou o Magistrado do Ministério Público titular do inquérito: “visto. Não altera os fundamentos do despacho de arquivamento, estando os factos ora descritos em investigação no âmbito de outros inquéritos”.

2.4 Em 17 de Novembro de 2022, a assistente AA requereu a abertura da instrução, fundando-se em que o despacho de arquivamento do Ministério Público padece da nulidade prevista no artigo 119º, alínea c), do CPP ou se assim não se entender a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d), do CPP, ofendendo também a norma do artigo 6º, nºs 1 e 3, da CEDH e imputando ao denunciado a prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal e um crime de “furto por subtração dos bens em falta na vivenda e Anexo que faziam parte do recheio da vivenda”, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal.

Requereu também se oficiasse ao DIAP de … para o envio de certidões de NUIPC(s) que identifica, a inquirição de seis testemunhas e a tomada de declarações à própria assistente.

2.5 A decisão recorrida, lavrada aos 30/06/2023, tem o seguinte teor, na parte que releva (transcrição):

Nos presentes autos, a assistente AA vem requerer abertura de instrução para pronuncia do arguido CC (cuja identificação completa não fornece) por factos que (de forma pouco clara) descreve no seu requerimento de abertura de instrução ref. …, e que no seu entender, fazem incorrer o denunciado na prática do crime de burla, previsto e punível pelo artigo 203º do Código Penal.

Invoca também que o despacho de arquivamento é nulo nos termos do disposto no “artº 119º al. c) do CPP, ou se assim não se entender a nulidade prevista no artº 120º nº 2 al. d), também do CPP, e ofende a norma do artº 6º nº 1 e 3 da CEDH, “due process of law”.

Mas não explica porquê.

De todo o modo, as nulidades do inquérito devem ser arguidas perante o Ministério Público (veja-se a exemplo, o ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/5/2011, proc. 1566/08.2TACSC.L1-5, relator Jorge Gonçalves: “a arguição de nulidades do inquérito deve ser suscitada perante o Ministério Público, entidade que preside a essa fase processual, com eventual reclamação para o superior hierárquico. Do despacho do Ministério Público (seja do inicial, seja do despacho do superior hierárquico) não cabe reclamação para o juiz, nem recurso para o tribunal superior. As nulidades do inquérito só podem ser conhecida pelo juiz de instrução se requerida a abertura da fase processual da instrução ou, na ausência de instrução, pelo juiz da causa no momento de recebimento dos autos (artigo 311.º, n.º 1 do C.P.P.), pois, nessa fase, compete-lhe fazer o saneamento do processo e como tal conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito (e de que possa, então, conhecer, entenda-se).”

É certo que as nulidades do inquérito podem ser conhecidas na fase de instrução.

Porém, para tal é preciso que tal fase seja admissível, o que não acontece no presente caso.

É que, o despacho de arquivamento ref. … versou sobre a factualidade descrita na denuncia ref. … e essa factualidade não é a que, agora, vem descrita no requerimento de abertura de instrução da assistente.

Com efeito, a mesma, agora, acrescenta factos novos, relativamente aos quais o Ministério Público não se pronunciou, nem tinha que se pronunciar.

E, a instrução apenas pode ser requerida pelo assistente relativamente a factos que tenham sido objecto de arquivamento – artigo 287º, número 1, al. b, in fine, do Código de Pois que se assim não fosse, estaria a transferir-se a função investigatória penal do Ministério Público para o juiz de instrução, com grave violação do princípio do acusatório.

Com efeito, a instrução conforme está configurada no nosso actual sistema jurídico, é uma fase confirmatória e não investigatória.

Como se referiu no ac. do Tribunal da Relação de Évora de 20-12-2012, proc. número 642/12.1TASTB.E1, relatado por António Latas, in www.dgsi.pt, “Não é admissível a pronúncia dos denunciados por factos que não tenham sido objeto de inquérito, mesmo que se encontrassem exemplarmente descritos no RAI, pois nestes casos visa-se sujeitar o arguido a julgamento por factos relativamente aos quais o MP se decidira pelo arquivamento após inquérito efetivamente realizado e não a substituição de inquérito materialmente inexistente pela integral investigação e pronúncia judicial.”

Nos termos do disposto no número 3 do supra referido artigo 287º, número 2, do Código de Processo Penal: “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”.

Face a tudo o que ficou exposto, dúvidas não restam de que a presente instrução, é inadmissível, uma vez que não versa sobre a factualidade que foi objecto de arquivamento, acrescentando-lhe elementos, e assim, não se obedece à estrutura acusatória do processo, estando em clara violação do disposto no artigo 287º, número 1, al. b), do mesmo diploma, sendo o seu objecto estranho a estes autos tal como configurados pelo titular da acção penal.

Pelo exposto, outra solução não existe que, ao abrigo do disposto no artigo 287º, número 3, do Código de Processo Penal, rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por, atento o conteúdo do mesmo (e dele se extrair a violação do comando do artigo 287º, número 1, al. b), do mesmo diploma), se verificar uma inadmissibilidade legal da instrução, nesta parte.

Apreciemos.

Inexistência de fundamento legal para a rejeição do requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente

Inconformada se mostra a assistente com o despacho recorrido que rejeitou, por inadmissibilidade legal, o Requerimento para a Abertura da Instrução (RAI) que apresentou aos 17/11/2022.

Ora, sobre o RAI incidiu rejeição por não versar sobre a factualidade que foi objecto de arquivamento, acrescentando-lhe elementos, e assim, não se obedece à estrutura acusatória do processo, estando em clara violação do disposto no artigo 287º, número 1, al. b), do mesmo diploma, sendo o seu objecto estranho a estes autos tal como configurados pelo titular da acção penal.

E, realmente, o despacho de arquivamento do Ministério Público, datado de 26/09/2022, apreciou os factos denunciados/queixa por AA em 03/09/2022 no Posto Territorial de … da GNR e, que, em síntese, foram os seguintes.

A denunciante colocou um anúncio para o “aluguer” de um imóvel e o denunciado respondeu, tendo referido este, quando se encontraram, ser funcionário público, pertencer à direcção de um museu, ter vencimento superior a 2.500 euros e possuir dois automóveis, entre eles um da marca “…”.

Concordaram a data para assinatura do contrato de arrendamento, que o denunciado tentou adiar por várias vezes e no acto da assinatura não apresentou este fiador, nem fez o primeiro depósito da renda ou caução.

Tendo sido acordada a renda mensal de 850,00 euros, o denunciado tão só pagou 360,00 euros num mês e em outro 400,00 euros, o que ocorre desde o dia 1 do mês de Maio de 2022.

Mais consta do “auto de denúncia” que, após deslocação ao interior do imóvel, “se verificou que houve o já referido crime de dano e o arrombamento das fechaduras, onde está discriminado no contrato assinado por ambas as partes que expressamente proibido efectuar qualquer mudança de chaves ou fechadura naquela habitação. Dá direito ao proprietário da casa, em virtude da falta de pagamento, efetuar a resolução do contrato e efetuar a posse daquela habitação”.

O Ministério Público, titular do inquérito, lavrou, em 26/09/2022, despacho de arquivamento, considerando que os factos denunciados seriam susceptíveis, em abstracto, de qualificação como crime de burla, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal, mas que, no caso concreto, “não se consegue encontrar o engano e a intenção de levar a denunciante a contratar, sem que existisse uma real vontade do denunciado de respeitar um sinalagma ou reciprocidade nas prestações, na medida em que o imóvel existia, com as condições e as características anunciadas e que foram insertas no contrato de arrendamento, sendo que a denunciante não exigiu o seu correcto cumprimento antes de proceder à entrega da respectiva chave. Quando assim é, este tipo de situações entra no domínio do incumprimento contratual cível e não no campo da burla criminal, o que significa que a factualidade narrada pela denunciante não se enquadra nos parâmetros definidos para o crime de burla”, sendo que “a situação descrita nos autos claramente mais não é do que um incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso do contrato cuja resolução cumpre ao direito civil e não ao direito penal, de última ratio, sob pena de cairmos numa excessiva criminalização de condutas”.

Pois bem.

No caso em apreço, os factos tidos em causa pelo Ministério Público foram os constantes do “auto de denúncia”/queixa e não os que a assistente refere na motivação de recurso terem sido relatados a fls. 17 no aditamento à queixa, pela singela razão de que este só deu entrada nos serviços do Ministério Público em 03/10/2022 e o despacho de arquivamento foi proferido em 26/09/2022.

Não obstante, mesmo quanto aos do aditamento, (que se reportam tão só à prática do crime de burla, não se fazendo menção alguma aos crimes de dano e furto) o magistrado titular se pronunciou, considerando que não tinham o mérito de alterar o referido despacho.

É com o RAI que a assistente, para além de invocar as nulidades do despacho de arquivamento e da violação da norma do artigo 6º, nºs 1 e 3, da CEDH (due process of law), pela primeira vez nos autos vem referir que o denunciado subtraiu bens (que discrimina) que faziam parte do recheio do imóvel arrendado, o que integraria, no seu entender, a prática do crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal.

Só que, conforme resulta do estabelecido no artigo 287º, nº 1, alínea b), do CPP, o assistente tem a possibilidade legal de requerer a instrução em crimes de natureza pública ou semi-pública, relativamente a factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação.

Ora, os factos pelos quais o Ministério Público não deduziu acusação só poderiam ser os integradores do crime de burla e não os do eventual crime de furto, até à data desconhecidos no processo.

E, mesmo no que tange ao crime de dano que a assistente chama a terreiro na motivação de recurso, é vero que na queixa se refere “se verificou que houve o já referido crime de dano e o arrombamento das fechaduras, onde está discriminado no contrato assinado por ambas as partes que expressamente proibido efectuar qualquer mudança de chaves ou fechadura naquela habitação”, mas dela não consta qualquer facto relativo a esse crime (ao mencionado “já referido”, não se vê qualquer referência), para além do “arrombamento das fechaduras”, que, como decorre de segmento transcrito a própria denunciante arrima à proibição contratual da mudança de fechaduras (e, no RAI, também nada de concreto - factos ou indicação da norma legal que o prevê - quanto a esse crime se relata).

De onde, quantos aos factos que concernem a um crime de furto, defeso estava à assistente requerer a instrução.

Já não assim quanto aos factos relativos ao eventual crime de burla, sobre os quais incidiu o despacho de arquivamento e certo é que, quanto a eles, como bem assinala o Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância na sua resposta à motivação de recurso, o tribunal a quo não se pronunciou, como se impunha.

Porém, o despacho recorrido não é uma sentença, mas um despacho, pelo que lhe não são aplicáveis as normas do artigo 379º, nº 1, do CPP e concretamente a vertida na sua alínea c) respeitante à omissão de pronúncia, que só abrange sentenças e acórdãos – no sentido da não aplicação do artigo 379º, nº 1, do CPP, a despachos, vd. por todos, Ac. do STJ de 27/02/2013, Proc. nº 117/04.2PATNV.C1.S1; Ac. da Relação do Porto de 06/07/2011, Proc. nº 356/08.7PIPRT-A.P1; Ac. da Relação de Évora de 18/02/2020, Proc. nº 1710/18.1T9FAR.E1; Ac. da Relação do Porto de 28/10/2020, Proc. nº 5460/18.0T9PRT.P1; Ac. da Relação de Guimarães de 27/04/2020, Proc. nº 2920/17.4T9VCT-A.G1 e Ac. da Relação de Lisboa de 09/03/2021, Proc. nº 336/15.6T9AGH-C.L1-5, disponíveis em www.dgsi.pt.

E, quanto a configurar uma nulidade, o regime destas enfermidades apresenta-se sujeito aos princípios da legalidade e tipicidade, como resulta do artigo 118º, nº 1, do CPP, constituindo apenas nulidades insanáveis as que no artigo 119º, do mesmo diploma legal, se mostram elencadas ou as que como tal, são cominadas em outras disposições legais.

Ora, sendo impossível integrar a omissão de pronúncia nos despachos, quer nas nulidades previstas no artigo 119º, quer nas nulidades dependentes de arguição – do artigo 120º - e não existindo norma que a configure como tal, só poderíamos considerar essa eventual omissão como uma irregularidade, com o regime de arguição previsto no artigo 123º, nº 1, do CPP, estando vedado a este Tribunal da Relação o recurso ao consagrado no seu nº 2 pois, como refere Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, vol. II, 3ª edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 89, “ainda antes da arguição e mesmo que a irregularidade não seja arguida, pode oficiosamente ser reparada ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para aquele acto enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo” e, aliás, “mal se perceberia que, sendo a irregularidade o menos relevante dos vícios processuais, tivesse um regime mais devastador do que as nulidades relativas (estas, se não forem arguidas no prazo de 10 dias, ficam sempre definitivamente sanadas – arts. 120º e 105 nº 1 do CPP)” – cfr. Ac. da Relação de Guimarães de 21/11/2005, Proc. nº 1877/05-1, que pode ser lido em www.dgsi.pt.

É o que precisamente nos revela o Ac. da Relação do Porto de 28/10/2020, Proc. nº 5460/18.0T9PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, relativamente a situação coincidente, quando afirma: “nos casos em que a lei não cominar expressamente a nulidade o acto ilegal é irregular, tal como sucede com a eventual omissão de pronúncia do despacho que indeferiu liminarmente o requerimento para abertura de instrução, o que implica a sua sanação caso uma tal irregularidade não seja tempestivamente arguida”.

No caso em apreço, a omissão de pronúncia da decisão recorrida não foi suscitada pela recorrente, atempadamente (no prazo de três dias após a sua notificação para qualquer termo do processo) e perante o tribunal a quo (autoridade judiciária que praticou o acto em causa e a competente para reparar o vício), pelo que se mostra sanada.

Quanto à rejeição do RAI, por inadmissibilidade legal, na parte relativa ao alegado crime de furto, resulta límpido do nº 3, do artigo 287º, do CPP, que se verifica essa inadmissibilidade quando a instrução é requerida pelo assistente fora dos casos previstos nas alíneas a) e b), do nº 1, do mesmo artigo, como no caso sub judice aconteceu.

Assim, improcede o recurso neste segmento.

Verificação da nulidade prevista no artigo 119º, alínea c) ou no artigo 120º, nº 2, alínea d), do CPP/violação da norma do artigo 6º, nºs 1 e 3, da CEDH

No RAI, a assistente articulou que a decisão de arquivamento do titular do inquérito enferma da nulidade prevista no artigo 119º, alínea c) ou da nulidade a que se reporta o artigo 120º, nº 2, alínea d), ambos do CPP, bem como oblitera a norma ínsita no artigo 6º, nºs 1 e 3, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (due process of law).

O tribunal a quo referiu a propósito:

É certo que as nulidades do inquérito podem ser conhecidas na fase de instrução.

Porém, para tal é preciso que tal fase seja admissível, o que não acontece no presente caso.

Ora, este entendimento é também o que perfilhamos.

Na verdade, como se pode ler no referido Ac. da Relação de Évora de 18/02/2020, Proc. nº 1710/18.1T9FAR.E1, “decidindo a rejeição da abertura da instrução (…) e não havendo lugar à mesma, com aquela decisão prejudicado ficou o conhecimento das invocadas nulidades do inquérito, por aquelas apenas poderem ser conhecidas pelo Juiz de instrução caso haja lugar à mesma”.

Neste sentido, também se decidiu, entre outros, no Ac. da Relação de Guimarães de 27/04/2020, Proc. nº 2920/17.4T9VCT-A.G1, já retro mencionado, que cabalmente alumia seus fundamentos:

“Em primeiro lugar, o inquérito é uma fase processual da exclusiva titularidade do Ministério Público, na qual apenas se admite a intervenção pontual do juiz de instrução nos casos tipificados na lei. Só com o seu encerramento e com a abertura da instrução é que se inicia uma fase autónoma do processo, cuja direção pertence ao juiz de instrução, cabendo-lhe ordenar todas as diligências que considera necessárias em ordem a proferir a decisão instrutória.

Assim, a competência do juiz de instrução durante a fase de inquérito circunscreve-se aos atos previstos nos arts. 268º e 269º, onde não se inclui o conhecimento de eventuais nulidades do inquérito, que é da competência do Ministério Público, enquanto titular do mesmo.

Donde decorre que constitui pressuposto para o juiz de instrução conhecer de eventuais nulidades relativas ao inquérito que haja lugar a instrução e que esta tenha sido admitida.

Não se verificando essa condição, fica prejudicado o conhecimento de tais nulidades, na medida em que a competência do juiz de instrução para tal pressupõe a abertura da instrução.

Não havendo lugar a instrução, não se impõe a apreciação das nulidades invocadas (…) Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-06-2012, versando sobre um caso em que, à semelhança do que sucedeu nos presentes autos, também se havia rejeitado a abertura de instrução nos termos do art. 287º, n.º 3, por inadmissibilidade legal da mesma, atenta a falta de imputação de factos concretos, “[e]stá ao alcance do JIC sindicar, nos termos do art.º 308.º n.º 3, do CPP, as nulidades cometidas a montante no inquérito, em ordem a alcançar a finalidade de tal fase processual, judicial, situada a meio caminho entre o inquérito e o julgamento. Mas esse conhecimento tem que ser útil, o que não sucede quando a instrução não é admitida e o arquivamento do inquérito adquiriu, em princípio, por isso mesmo, foros de definitividade. (…) a inadmissibilidade legal de instrução impedindo a prossecução dos autos para a fase processual, judicial, seguinte, que não atinge, impede, naturalmente, o conhecimento dos vícios do inquérito e despacho de arquivamento, a montante, (…)”” – fim de citação.

Face ao que, cumpre negar provimento ao recurso.

III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pela assistente AA e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

Évora, 20 de Fevereiro de 2024

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Laura Goulart Maurício)

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(António Condesso)