Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
943/19.8T8BJA.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
DIREITO DE RETENÇÃO
SENHORIO
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. O credor apenas exerce o direito de retenção em relação aos bens do devedor que estão legitimamente na sua posse e que tem a obrigação de entregar, e não sobre todo o património do devedor, muito menos sobre bens deste de que se apoderou ilegitimamente.
2. O senhorio, detentor do crédito de rendas pela locação de um imóvel, não pode assim invocar o direito de retenção sobre o recheio do imóvel, se este pertencer exclusivamente aos seus arrendatários.
3. Sempre tal direito de retenção estaria excluído se foi apurado que o senhorio se apoderou desse recheio após ter mudado a fechadura do imóvel, sem autorização dos seus arrendatários, e posteriormente lhes recusou o acesso para retirada daquilo que lhes pertencia.
4. Neste caso, responde pelo risco de deterioração de tal recheio, como possuidor de má fé.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
(…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Local Cível de Beja, em acção declarativa com processo comum proposta por (…) e (…) contra (…), após julgamento foi proferida sentença contendo o seguinte dispositivo:
«(…) julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:
A. Condena-se o Réu (…) a pagar aos Autores (…) e (…), a quantia de € 7.998,21 (sete mil, novecentos e noventa e oito euros e vinte e um cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de juros civis que em cada momento vigorar e contados desde a citação até integral e efectivo pagamento.
B. Absolve-se o Réu da instância quanto ao pedido de condenação em indemnização, pelo facto de ter obrigado os Autores a saírem da casa arrendada por este ao Primeiro Autor, calculada nos termos da lei, como se tivesse sido cumprido o procedimento de denúncia do contrato por iniciativa deste, por necessidade do locado para habitação própria, a ser apurada em execução de sentença.
C. Absolve-se o Réu do demais peticionado pelos Autores.
D. Absolve-se os Autores do pedido reconvencional.
E. Condenam-se os Autores e o Réu nas custas devidas em juízo, na proporção do seu decaimento, que se fixa respectivamente em 50% e 50%.»

Recorre o R. e conclui:
a. Mal andou o douto tribunal a quo ao decidir como decidiu, que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados pelos Autores Apelados, porquanto, considerou a acção parcialmente procedente.

b. Salvo o devido respeito, o Apelante não se pode conformar com esta douta Sentença, pois considera que a mesma não fez uma correcta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, conforme a seguir se demonstrará.

c. Não se aceitam como provados os factos – 35 - Por força da recusa do Réu a entregar os materiais deixados na garagem do imóvel arrendado por aquele, a Autora teve que adquirir alguns equipamentos, tendo com isso despendido a quantia de € 2.998,00, por inexistência de exame critico, suficientemente claro e fundamentada desta prova.

d. Não se aceitam como provados os factos – 36. Os Autores adquiriram parte do material que ficou na casa arrendada ao Réu, em 2.ª mão, na OLX, no que despenderam cerca € 2.500,00; porque não consta no processo, qualquer documento, factura ou equivalente, que leve a concluir que os autores adquiriram material que se tenha danificado que estivesse na casa arrendada, faltando aqui precisão na apreciação e fundamentação da prova.

e. Não se aceitam como provados os factos 41 - Quando os Autores, o Réu, os respectivos mandatários e mais três pessoas que auxiliaram a retirada dos objectos da garagem, aí se deslocaram para removê-los, conforme acordado em audiência prévia, apresentavam-se estragados e ou danificados os seguintes objectos, de valor não apurado…, não deveria ser considerado provado. O Réu impugnou a listagem apresentada e ninguém descortinou no momento da entrega dos materiais os danos referidos posteriormente, inexistindo na decisão de prova, uma fundamentação clara e adequada.

f. O tribunal ad quem deverá censurar o erro na apreciação dos fatos 35, 36 e 41, e alterar a decisão proferida, na medida em que a decisão da matéria de facto não se encontra adequadamente fundamentada, ou seja, a especificação dos fundamentos que foram decisivos para o julgamento destes factos como provados falta em absoluto ou é insuficiente e contraditória, pelo que o Tribunal da Relação deverá alterar a decisão proferida (artigos 607.º, n.º 4 e 662.º, n.º 2, alínea d), do CPC).

g. Não se aceita que o tribunal a quo tenha concluído “inexiste qualquer relação entre o objecto do contrato de arrendamento e o recheio do imóvel”. Ora, existe claramente uma conexão material entre o crédito do detentor e a coisa retida, porque verifica-se que o crédito das rendas, resulta do uso do prédio para guarda dos materiais retidos. É evidente que o crédito das rendas resultou de despesas com uso, ou com o gozo do imóvel, cedido como contrapartida do pagamento da renda, e por isso resulta em despesas por causa dessa utilização do imóvel, estando claramente em estreita relação de conexão material.

h. O tribunal a quo aferiu de forma errada a relação de conexão material entre o crédito do detentor e a coisa retida.

i. Estão reunidos todos os requisitos do direito de retenção previsto no artigo 754.º do CC: (i) a detenção lícita de uma coisa, por alguém a quem ela não pertence; (ii) que esse detentor é credor da pessoa a quem a coisa deve ser entregue; (iii) que a detenção da coisa lhe tenha originado despesas.

j. O direito de retenção é extensível a todos os casos nos quais se preencha um dos requisitos legalmente previstos de conexão directa e material entre o crédito do detentor e a coisa.

k. Pelo que, o aqui Apelante tem de direito de ser excepcionado o seu exercício do direito de retenção por falta de pagamento das rendas.

l. O Tribunal a quo não fundamentou a sua decisão, limitando-se a dizer que o crédito do Réu – direito ao pagamento das rendas – não resulta de despesas feitas por conta do recheio do imóvel, nem de danos causados pelo mesmo, mas antes do gozo do mesmo, cedido como contrapartida do pagamento da renda, o que contraria, os factos tidos como assentes e a prova produzida, e portanto, o Tribunal da Relação deverá alterar a decisão proferida, considerando o Direito de Retenção ao Apelante (artigos 607.º, n.º 4 e 662.º, n.º 1, do CPC).

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Dispensados vistos, cumpre-nos decidir.

Do vício de insuficiência da decisão de facto
Invoca o Recorrente o vício de insuficiência da decisão de facto quanto aos pontos 35, 36 e 41, alegando a ausência de exame crítico da prova que permitisse estabelecer a realidade fáctica ali contida.
Preliminarmente, observar-se-á que o vício de insuficiência da decisão de facto, enquadrado no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), parte final, do Código de Processo Civil, é de conhecimento oficioso e, se não constarem do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão sobre a matéria de facto, poderá determinar a anulação da decisão recorrida. Consequentemente, tal vício não está sujeito aos requisitos de impugnação fáctica prescritos no artigo 640.º, n.º 1, do mesmo Código.[1]
Vejamos, pois, se a decisão sobre a matéria de facto é deficiente, obscura ou contraditória, e se não constam dos autos todos os elementos que permitam formular um juízo diverso, para os fins do artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Nos pontos 35 e 36, a decisão recorrida declarou provado o seguinte:
«35 – Por força da recusa do Réu a entregar os materiais deixados na garagem do imóvel arrendado por aquele, a Autora teve que adquirir alguns equipamentos, tendo com isso despendido a quantia de € 2.998,21 (dois mil e novecentos e noventa e oito euros e vinte e um cêntimos).
36 – Os Autores adquiriram parte do material que ficou na casa arrendada ao Réu, em 2.ª mão, na OLX, no que despenderam cerca € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).»
A decisão recorrida afirma que “os factos dados como provados em 34 a 36 resultaram das declarações de parte dos Autores, conjugadas com as facturas juntas com a petição inicial como documentos 8 a 33 e 33 A.”
A convicção funda-se, pois, quanto a esta matéria, nas declarações de parte dos AA. e nas facturas anexas à petição inicial sob os n.ºs 8 a 33 e 33-A.
Pois bem, adiantamos que tais elementos de prova não permitiam a formulação de tal juízo.
Com efeito, as declarações de parte não podem valer como prova de factos favoráveis se não tiverem o mínimo de corroboração por um qualquer outro elemento de prova isento e imparcial.
Lebre de Freitas[2] escreve que “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime se ambas as partes tiverem sido efectivamente ouvidas.”
Trata-se de um meio de prova cuja apreciação se faz segundo as regras normais de formação da convicção do juiz, o que implica que, em relação a factos favoráveis à parte interessada na procedência da causa, o juiz não deve ficar convencido apenas com o seu depoimento, carecendo de um mínimo de corroboração por outras provas isentas e independentes da parte.[3]
As declarações de parte constituem, pois, mero princípio de prova, não se mostrando bastantes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de certeza final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova.[4]
Teixeira de Sousa[5] esclarece que “o princípio (ou começo) da prova é o menor grau de prova: ele vale apenas como factor corroborante da prova de um facto. Isto é, o princípio da prova não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer prova, mas pode coadjuvar, em conjugação com outros elementos, a prova de um facto.”
Poderá admitir-se a validade da prova por declarações de parte quando a mesma se reportar essencialmente a “acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes”[6], ou, em formulação equivalente, a “factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percepcionados por terceiros de forma directa”[7].
Porém, não nos encontramos em tal campo, pois os factos resultam da interacção directa dos AA. com terceiros, que os poderiam testemunhar, pelo que as suas declarações de parte, sem outra corroboração, não serão bastantes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de certeza final.
Se a intenção era considerar os documentos anexos à petição inicial uma forma de suporte das declarações prestadas pelos AA., diremos desde já que tais documentos não permitem estabelecer um válido princípio de prova, suficientemente seguro e imparcial.
Para começar, no que concerne à despesa de € 2.500,00 na aquisição na OLX de parte do material que ficou no imóvel – ponto 36 – nenhum documento corrobora tal despesa, ou parte dela, muito menos os numerados de 8 a 33-A.
E quanto à despesa de € 2.998,21 na aquisição de “alguns equipamentos” por força da recusa do Réu a entregar os materiais deixados na garagem do imóvel – ponto 35 – para além do risco de duplicação em relação às despesas mencionadas no ponto 36, também diremos que tais documentos não permitem concluir que tais aquisições ocorreram pelo motivo invocado.
Para começar, para além da inclusão entre tais documentos de uma despesa de restaurante de 18.07.2017 – ignora-se a que título – e de outros documentos anteriores aos factos, outros revelam a aquisição de materiais não coincidentes com o rol de materiais deixados no imóvel elaborado pelos próprios AA. (descritos no ponto 40 do elenco fáctico), enquanto outros apenas revelam a aquisição de produtos consumíveis utilizados na actividade dos AA..
Por exemplo, nos vários documentos emitidos por uma loja que se dedica à venda de material para paintball sita em (…), Espanha, o que conseguimos observar é a aquisição de consumíveis associados a essa actividade, como caixas de 2000 unidades de bolas de tinta calibre 0,68, carregadores, camuflados, e diversos outros acessórios.
Certo é que tais documentos, para além de impugnados, não revelam, por si só, que tais aquisições ocorreram por força da recusa de entrega dos bens retidos no imóvel. Aliás, a inclusão de vários documentos de aquisição de materiais não coincidentes com a listagem constante do ponto 40, coloca em dúvida a efectiva existência do motivo relevante, e por isso não são aptos a corroborarem as declarações prestadas pelos AA..
Quanto ao ponto 41 – “Quando os Autores, o Réu, os respectivos mandatários e mais três pessoas que auxiliaram a retirada dos objectos da garagem, aí se deslocaram para removê-los, conforme acordado em audiência prévia, apresentavam-se estragados e ou danificados os seguintes objectos, de valor não apurado:”, seguindo-se uma listagem de 20 conjuntos de objectos – a decisão recorrida funda a sua convicção não apenas na admissão parcial por parte do R., como igualmente no depoimento das testemunhas (…), (…) e (…).
Mas aqui, estando em causa prova gravada, o Recorrente deveria ter cumprido os requisitos estabelecidos no artigo 640.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que omitiu completamente.
Quanto ao ponto 41, apenas diremos que não vislumbramos a deficiência apontada, pelo que nesta parte a impugnação será desatendida.
Assim, por se considerar que os fundamentos de convicção invocados na decisão recorrida não permitiam considerar demonstrados os pontos 35 e 36 do elenco fáctico, utilizando os ponderes consignados no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, determina-se a sua eliminação.

O relevo factual fica assim estabelecido:
1. A 9 de Junho de 2016 o 1.º Autor e o Réu celebraram contrato de arrendamento da casa sita na (…), na Rua (…), n.º 10, pelo prazo de cinco anos, com início a 1 de Julho de 2016, pela renda mensal de € 300,00.
2. A 2.ª Autora vivia e vive, em união de facto, na mesma casa, com o primeiro.
3. nA 2.ª Autora, a título de empresária em nome individual, exerce a actividade de organização e realização de desportos radicais e o 1.º auxilia-a na execução dos trabalhos, em regime de colaboração.
4. Os Autores procuraram uma casa para arrendar, com condições para poderem guardar o material de trabalho da 2.º Autora, nomeadamente com um bom espaço de arrecadação e espaço exterior que lhes permitisse guardar e acondicionar o equipamento que usam para as várias actividades e desportos radicais que organizam.
5. A casa que arrendaram ao Réu, tinha as características que precisavam e aquele estava disponível para fazer um contrato de arrendamento pelo prazo de cinco anos, o que dava uma margem de garantia de que não teriam que sair da mesma, pelo menos antes de 30 de Junho de 2021.
6. Em meados do Verão de 2017, o Réu começou a dizer aos Autores que queria que eles saíssem da referida casa pois queria ir para lá morar e nessa mesma altura começou a alegar que os Autores lhe deviam cerca de € 1.200,00 a título de rendas (mil e duzentos euros).
7. Os Autores ficaram alarmados com esta situação e começaram a procurar outra casa para se poderem mudar, comunicando ao Réu que nesse mês de Setembro não iriam pagar a renda, já que tinham uma renda adiantada desde o início do contrato e iam sair da casa.
8. Os Autores não conseguiram encontrar outra casa até final de Setembro de 2017 e tiveram que permanecer na casa que estava arrendada ao Réu.
9. Como o Réu exigisse o pagamento de rendas em falta no montante de € 1.200,00 (mil e duzentos euros), os Autores decidiram não pagar as rendas de Novembro e de Dezembro.
10. Os Autores decidiram que só pagariam a renda ao Réu quando saíssem definitivamente da casa arrendada àquele, tendo encontrado uma outra casa que, apesar de não ter espaço para acomodar o material da actividade da 2.ª Autora (garagem), arrendaram no início de Dezembro de 2017.
11. Enquanto estavam a proceder à mudança das suas coisas da casa arrendada ao Réu, em 5 de Dezembro de 2017, deixaram de ter electricidade, o que dificultou bastante as mudanças.
12. O Réu, em meados de Dezembro de 2017, deixou de trabalhar em Santiago do Cacém onde vivia numa residência na qual era arrendatário.
13. Nessa sequência, diligenciou junto de agente da EDP de Santiago do Cacém pela cessação do contrato de energia eléctrica dessa residência.
14. Como lhe disseram que iria ainda receber uma factura para pagar, o Réu, que já tinha entregue a casa de Santiago de Cacém ao senhorio, pediu para receber essa factura na morada da casa dos seus pais em (…), Rua (…), n.º 29, onde passaria a morar.
15. Mais tarde soube que o agente da EDP ao alterar a morada do Réu no sistema informático passou todos os contratos de electricidade em nome do Réu, para a mesma morada.
16. Quando se apercebeu que a morada do contrato da Rua (…) tinha sido mudada, o Réu dirigiu-se aos serviços da EDP, e reclamou para regularizar a situação.
17. Durante todo o tempo em que os Autores moraram na casa que o Réu lhes arrendou, este nunca quis que aqueles procedessem à alteração da titularidade dos contratos de fornecimento da água e da electricidade, tendo-se mantido em nome do Réu.
18. No início do contrato de arrendamento o 1.º Autor pagava o valor das despesas à parte, depositando e/ou transferindo para a conta bancária do Réu, tal como fazia com a renda.
19. Tal situação não era muito prática e os Autores passaram a receber as facturas em casa para pagamento, apesar de continuarem em nome do Réu, e começaram a pagá-las directamente, tendo dado conhecimento disso ao proprietário.
20. Em Outubro ou Novembro de 2017, o Réu, sem qualquer aviso prévio, mudou a morada de envio das facturas das despesas da casa arrendada para o domicílio do seu pai, impossibilitando os Autores de procederem ao seu pagamento.
21. O Réu não participou o contrato de arrendamento ao Serviço de Finanças, não declarando os rendimentos prediais que estava a auferir da renda da casa em questão, o que veio a fazer no final do contrato.
22. No dia 13 de Janeiro de 2018, encontrando-se o Autor já na casa que, entretanto, arrendara e para onde estava a fazer as mudanças, recebeu um telefonema do Posto da GNR da (…), por volta das 9.30h da manhã, de pessoa que se identificou como o Comandante de Posto, que lhe estava a ligar, para que este tirasse tudo da casa do Réu já que nunca havia pago a renda, estando a usar uma casa que não era dele.
23. Nesse telefonema, o Comandante do Posto da GNR da (…), alegou que estaria o pai do proprietário na sua presença a queixar-se desse facto, alegando ser amigo deste.
24. No dia 13 de Janeiro de 2018, o Réu solicitou a colaboração da GNR da (…) no sentido de falar com o Autor (…) para ir recolher os materiais de sua pertença que tinham ficado na casa.
25. Foi um guarda do posto da GNR da (…), que contactou o Autor, para este levantar os materiais, ao que este disse que iria nesse fim de semana: 13 e 14 de Janeiro de 2018.
26. Apesar da comunicação da GNR, o Autor não recolheu os bens que tinham ficado no imóvel arrendado.
27. Nesse dia o Autor, quando pretendia recolher os objectos ainda existentes no imóvel arrendado pelo Réu, verificou que a fechadura da casa arrendada ao Réu tinha sido mudada.
28. O Autor apresentou queixa-crime quanto à mudança da fechadura, junto da PSP em Beja, por não lhe ter sido permitido fazer a mesma queixa no posto territorial da GNR de (…).
29. Desde o dia 13 de Janeiro de 2018, os Autores ficaram sem ter qualquer acesso à casa arrendada ao Réu, sendo que, no seu interior, ainda se encontravam alguns móveis e o material usado nas actividades que a 2.ª Autora organiza.
30. Entretanto, o Réu aguardou que os Autores lhe liquidassem as rendas em atraso e manteve acondicionados no mesmo local os materiais que os Autores deixaram na casa, com excepção de um sofá que guardou na garagem e um esquentador que o seu pai retirou da casa de banho do quintal e levou consigo.
31. No dia 22 de Março de 2018, a 2.ª Autora deslocou-se à casa que anteriormente o Réu havia arrendado ao 1.º Autor e onde actualmente vivia aquele e solicitou-lhe que este a deixasse entrar para ir buscar o material ou, em alternativa, que o entregasse, ainda que parcialmente.
32. O Réu recusou a entrega de qualquer coisa que lá estivesse, pertencente dos Autores, alegando possuir direito de retenção das mesmas, até que lhe pagassem o que lhe deviam e o custo do depósito dos materiais no armazém.
33. Face à recusa da entrega do equipamento pelo Réu, a 29 de Março de 2018, a Autora apresentou queixa-crime contra este, por estar a reter ilicitamente os seus bens, sem que para efeito tivesse qualquer direito, a qual veio a ser arquivada, por falta de constituição de assistente no processo no prazo legal.
34. No segundo trimestre de cada ano, começam as actividades programadas pela empresa da 2.ª Autora, pelo que esta viu-se forçada a adquirir algum equipamento, de que não careceria se o que já tinha não estivesse retido pelo Réu.
35. (Eliminado).
36. (Eliminado).
37. Em algumas das actividades já programadas, como foi o caso da Feira anual da Ovibeja, de 2018 e 2019, a participação da empresa da Autora resumiu-se a marcar presença, evitando comprar material que já tinha mas ao qual não tinha acesso.
38. Numa actividade, previamente organizada, de descida do rio em Kayak, foram empresas do mesmo ramo de actividade que emprestaram à Autora os equipamentos necessários para o efeito.
39. Os Autores pagaram a renda correspondente aos meses de Outubro a Dezembro de 2017 e 13 (treze) dias do mês de Janeiro de 2018 após a transacção celebrada entre as partes em sede de audiência prévia, realizada em 17.01.2020, onde foi acordada a entrega dos bens pelo Réu aos Autores em data a combinar entre as partes e o pagamento de € 730,00, a título daquelas rendas.
40. Ficaram na casa arrendada ao Réu e respectiva garagem os seguintes materiais, de valor concretamente não apurado:
A) Material na habitação:
1. Sofá cama novo (sala);
2. Esquentador (no wc do quintal);
B) Material na garagem:
1. Soprador de encher a aquaball;
2. Aquaball;
3. 4 Capacetes (rafting);
4. 12 Pagaias de Rafting;
5. 46 Pagaias de kayaks;
6. 12 Potes Estanque;
7. 49 Coletes/Caixas com coletes;
8. 22 bancos;
9. 6 Saiotes (kayaks);
10. Bolsa insuflável de telemóvel;
11. 2 Lanternas de Cabeça;
12. 3 Pranchas de Stand Up Paddle + Acessórios e Mochilas;
13. Bomba para encher as Pranchas de Paddle;
14. 3 Pagaias de Paddle;
15. 2 Manequins;
16. Suporte e barra para televisão;
17. Suporte e Barra para Kayak;
18. 2 Bancos altos;
19. 4 Cadeiras de madeira;
20. 4 Cadeiras de madeira que fecham;
21. Estantes de plástico;
22. 4 Marcadores de Paintball;
23. Botijas de Paintball;
24. Grelha de tejadilho do jipe que tem 4 faróis frontais e um traseiro;
25. Capa branca para pneu de trás do jipe;
26. Caixa com vários tipos de ferramentas;
27. Roupas e materiais acessórios das actividades, luvas, calças, etc.;
28. Cavalete para mota;
29. Caixas de esferovite geleiras;
30. Prancha/rampa motas;
31. Câmara de vigilância;
32. Paletes;
33. Roçadeira a Gasolina;
34. Rebarbadora;
35. 2 Berbequins;
36. Pistola de ar quente;
37. Ferro de soldar;
38. Lona/tenda;
39. Barras de reparação de kayaks;
40. Tampas dos obstáculos insufláveis, válvulas Sup’airball;
41. Pote para bolas.
42. Espelho wc;
43. Espelho grande;
44. Ténis Reebok rosa e preto n.º 37,5;
45. Secretária;
46. Cadeira branca;
47. 2 Bicicletas de rua (no quintal)
48. Base de tv;
49. 2 Bicicletas fixas;
50. 1 Passadeira (para correr/ andar);
51. Bancada de madeira;
52. Estante alta;
53. Beliche branco;
54. Beliche preto;
55. 2 Mesas redondas de madeira;
56. Mesa baixa de madeira;
57. Caixas de plástico;
58. Cómoda;
59. Caixas com papéis, documentos nossos;
60. Step e outra máquina de treino;
61. Impressora;
62. Ferro de soldar;
63. Caixa com enfeites de Natal;
64. Home Cinema;
65. Aparelhagem;
66. Gaiola dobrável (do cão).
41. Quando os Autores, o Réu, os respectivos mandatários e mais três pessoas que auxiliaram a retirada dos objectos da garagem, aí se deslocaram para removê-los, conforme acordado em audiência prévia, apresentavam-se estragados e ou danificados os seguintes objectos, de valor não apurado:
1. Soprador de encher a Aquaball;
2. A Aquaball;
3. Quarenta e nove Coletes/Caixas com coletes (A esponja interior deformada);
4. Vinte e dois bancos;
5. Bolsa insuflável de telemóvel;
6. Três pranchas de stand Up Paddle + acessórios e mochilas (deformadas de estarem na mesma posição, a descolar e arranhadas);
7. Uma Cadeira branca;
8. Sofá cama;
9. Duas Bicicletas de rua;
10. Duas Bicicletas fixas, estragada a base da eléctrica, sem suporte, no valor unitário;
11. Quatro Marcadores de paintball;
12. Seis Botijas de Paintball;
13. Os quatro Faróis riscados da Grelha de tejadilho do jipe que tem 4 faróis frontais e um traseiro;
14. Duas Caixas de esferovite geleiras;
15. Câmara de vigilância de habitação;
16. Um Step com punhos de borracha estragados;
17. Outra máquina de treino individual;
18. Uma Roçadeira a gasolina;
19. Roupas e materiais acessórios das actividades, luvas, calças etc., danificados e com pêlos de animais;
20. Caixas com papéis de contabilidade e documentos pessoais.
42. Os Autores não recuperaram o esquentador que estava no WC da casa de banho do quintal, de valor não concretamente apurado.

Aplicando o Direito.
Do exercício do direito de retenção pelo senhorio sobre os bens do arrendatário, para garantia do pagamento de rendas
Argumenta o Recorrente que existe uma conexão material entre o crédito do detentor e a coisa retida, porque o crédito das rendas resulta do uso do prédio para guarda dos materiais retidos.
Porém, a questão é que o eventual crédito de que o Recorrente era titular resultava de rendas devidas pela locação do imóvel, e não por qualquer depósito, comodato, ou outra forma de entrega legítima, dos bens móveis pertencentes exclusivamente aos arrendatários.
Antunes Varela[8] define o direito de retenção como “o direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores.”
O artigo 754.º do Código Civil exige a conexão entre o direito de retenção e a coisa a que se está obrigado a entregar. O credor apenas exerce o direito de retenção em relação aos bens do devedor que estão legitimamente na sua posse e que tem a obrigação de entregar, e não sobre todo o património do devedor, muito menos sobre bens deste de que se apoderou ilegitimamente – artigo 756.º, alínea a), do Código Civil, afirmando não existir direito de retenção a favor dos que tenham obtido por meios ilícitos a coisa que devem entregar, desde que, no momento da aquisição, conhecessem a ilicitude desta.
No caso dos autos, os AA. jamais entregaram os seus bens móveis ao Recorrente, este é que deles se apoderou ilegitimamente, através da mudança não autorizada da fechadura do imóvel e posterior recusa de acesso dos arrendatários para retirada daquilo que lhes pertencia.
Inexistia, pois, qualquer conexão relevante entre o direito de crédito do Recorrente, resultante das rendas devidas pela locação do imóvel, e o recheio que ali se encontrava, pois este pertencia exclusivamente aos arrendatários – o recheio estava no imóvel, mas esse recheio não era objecto do contrato de arrendamento, pois pertencia exclusivamente aos arrendatários e estava na sua legítima posse e dela foram ilegitimamente esbulhados.
Não podia, pois, o Recorrente invocar qualquer direito de retenção sobre tal recheio, pelo que sofrerá as consequências advindas do risco de deterioração de tal recheio, como possuidor de má fé – artigo 1269.º, a contrario, do Código Civil.[9]
Apenas procederá o recurso na parte que condenou no pagamento das importâncias que estavam mencionados nos pontos 35 e 36 do elenco fáctico, cuja prova não foi estabelecida, nos termos que acima se exararam.

Decisão.
Destarte, concedendo parcial provimento ao recurso, reduz-se a condenação do Réu ao pagamento, apenas, da quantia de € 2.500,00, acrescida dos juros pelo modo estabelecido na sentença.
Custas na proporção do decaimento.
Évora, 16 de Dezembro de 2021
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.03.2018 (Processo n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt.
[2] In A Acção Declarativa Comum, 3.ª ed., página 278.
[3] Neste sentido, cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 20.11.2014 (Processo n.º 1878/11.8TBPFR.P2), em www.dgsi.pt.
[4] Vide o Acórdão desta Relação de Évora de 06.10.2016 (Proc. 1457/15.0T8STB.E1), no mesmo local.
[5] In As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex – Edições Jurídicas, 1995, página 203.
[6] Remédio Marques, in A Aquisição e a Valoração Probatória dos Factos (Des)Favoráveis ao Depoente ou à Parte, Revista Julgar, 2012, n.º 16, página 168.
[7] Elisabeth Fernandez, in Nemo Debet Esse Testis In Propria Causa – Sobre a (in)coerência do sistema processual a este propósito, Revista Julgar Especial, A prova difícil, Abril de 2014, página 37.
[8] In Das Obrigações em Geral, vol. II, 4.ª ed., Almedina, página 562.
[9] Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 3.º volume, 2.ª ed., página 36.