Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1859/20.0T8STR-H.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRAZO PEREMPTÓRIO
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- O prazo legalmente previsto para os credores e demais partes no processo deduzirem incidente relativo à qualificação da insolvência, a que alude o artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, é perentório e não ordenador.
II.- Relativamente ao Administrador da Insolvência tal prazo é meramente ordenador, uma vez que o AI é um colaborador do tribunal e não uma parte no processo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1859/20.0T8STR-H.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: Massa Insolvente de (…) – Produtos Agrícolas, Ld.ª.
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No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Comércio de Santarém – Juiz 3, no âmbito do processo de insolvência de (…) – Produtos Agrícolas, Ld.ª, foi proferido o seguinte despacho:
Nos presentes autos foi proferida sentença de declaração de insolvência de (…) – Produtos Agrícolas, Ld.ª, em 25/11/2020, transitada em julgado, não tendo sido designada data para a realização de assembleia de credores de apreciação do relatório e não tendo, também, sido declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência, nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Não sendo o incidente de qualificação da insolvência declarado aberto na sentença de declaração da insolvência, estatui o artigo 188.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que «(a)té 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes».
Ora, não tendo nos presentes autos sido convocada assembleia para apreciação do relatório, o prazo para requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência é de 15 dias após a apresentação do relatório a que se refere o artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O incidente de qualificação da insolvência passou, desde a entrada em vigor da Lei n.º 16/2012, de 20/04, a ter carácter facultativo, apenas sendo aberto ou quando o juiz assim o decida (nomeadamente em sede de sentença de declaração de insolvência) ou quando, no prazo previsto para o efeito, interessados ou o administrador da insolvência vêm apresentar alegações no sentido da qualificação da insolvência como culposa.
Daqui decorre que, e quanto ao administrador da insolvência e aos interessados, o decurso do prazo extingue o direito de praticar o ato, ou seja, de apresentar alegações e despoletar a apreciação do juiz nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – cfr. artigo 139.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
No caso concreto, o relatório a que alude o artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas foi junto aos autos em 23/12/2020 (cfr. ref.ª 7364181), pelo que o prazo previsto no artigo 188.º, n.º 1, do mesmo Código, à data da apresentação do requerimento pela sra. administradora da insolvência (24/02/2021) mostrava-se há muito esgotado.
Será admissível, ainda assim, após esse prazo, por ocorrer violação dos deveres a que estão adstritos o devedor e seus administradores e/ou membros dos seus órgãos de fiscalização, por força da declaração de insolvência, ou por, no decorrer do processo, surgirem factos que indiciem fortemente a existência de uma situação de insolvência culposa, admitir a abertura ulterior do incidente de qualificação da insolvência?
Afigura-se-nos defensável admitir a possibilidade de apresentação ulterior de requerimento e até ao encerramento do processo, quando e se o administrador da insolvência ou os interessados lograssem provar que os factos que justificariam a abertura do incidente de qualificação da insolvência ocorreram após o decurso do prazo previsto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, ou que, só após esse prazo, deles obtiveram conhecimento.
Contudo, face ao regime em vigor e à cessação do carácter obrigatório do incidente, apesar de defensável, não nos parece que seja legalmente admissível a abertura ulterior do incidente de qualificação da insolvência, quer oficiosamente, quer a requerimento do administrador da insolvência ou de interessado (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/03/2015, processo n.º 631/13.9TBGRD-L.C1, rel. Catarina Gonçalves, e acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 20/04/2017, processo n.º 510/16.8T8VRL- D.G1, rel. Elisabete Valente, e de 25/02/2016, processo n.º 1857/14.3TBGMR-DG1, rel. Cristina Cerdeira).
Destarte, uma vez que o requerimento da sra. administradora da insolvência no sentido da qualificação da insolvência como culposa foi apresentado após o decurso do prazo previsto no artigo 188.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, as observações em causa não darão lugar à apreciação dos factos alegados para efeitos de decisão de abertura do respetivo incidente, na medida em que tal prazo tem natureza perentória.
Face ao exposto, atenta a intempestividade do requerimento apresentado, não declaro aberto o incidente de qualificação da insolvência como culposa de (…) – Produtos Agrícolas, Ld.ª.
Sem custas.
Notifique.
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Atendendo a que a Sr.ª administradora da insolvência invoca a existência de indícios de atuação culposa por parte da insolvente, extraia certidão da sentença de declaração da insolvência, do relatório do artigo 155.º do CIRE e do presente requerimento de qualificação de insolvência como culposa apresentado pela Sr.ª administradora da insolvência, e do presente despacho e remeta aos serviços do Ministério Público junto deste tribunal para efeitos de eventual procedimento criminal.
Santarém, 05.03.2021

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Não se conformando com o decidido, a Massa Insolvente de (…) – Produtos Agrícolas, Ld.ª, recorreu da decisão, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2, do CPC:

A) A emissão do parecer a que alude o artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, não é um direito dentro da disponibilidade do Administrador Judicial e sujeito a prazos de caducidade, mas um dever funcional submetido ao controlo jurisdicional;

B) Sendo entendimento da Apelante que, Relativamente ao Administrador da Insolvência, o mesmo é meramente ordenador, pois nas suas funções assume-se como um colaborador do tribunal e não uma parte no processo;

C) Mesmo que assim não se entenda, o parecer de qualificação foi apresentado fora do prazo por motivos que que não podem ser imputados ao mesmo e justificam a sua tardia apresentação;

D) Pelo contrário, mal estaria o Administrador Judicial que, tendo conhecimento de factos graves e suscetíveis de considerar a insolvência culposa, não diligenciasse no sentido da sua punibilidade e concretização da justiça;

E) Assim, se é verdade que o prazo de 15 dias para apresentar o parecer de qualificação de culpa no âmbito do artigo 188.º/1, do CIRE, terminava em 07/01/2021;

F) Só foi apresentado após esta data porque apenas em 28.01.2021, a Administradora Judicial teve acesso à contabilidade da insolvente – já fora do prazo dos 15 dias previsto na lei;

G) Tendo, após muita insistência, conseguido apreender 155 pastas A4, referentes aos anos de 2008 a 2020 com milhares de documentos;

H) O próprio relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, junto aos autos na data de 23.12.2020 no seu ponto 3.1 informa que: “…não foi entregue qualquer documentação, nem estabelecido qualquer contacto por parte dos mesmos…” e no ponto 4, sob a epígrafe “Análise da Contabilidade, Prestação de Contas e Informação financeira” que…Atendendo à total falta de colaboração dos gerentes da empresa e da Autoridade Tributária, não existem elementos que permitam fazer qualquer análise…”;

I) O atraso de 48 dias, não se deveu assim a inércia ou falta de diligência que lhe possa ser imputada e a gravidade dos factos legitimam a sua ação fora do prazo previsto;

J) Nem decorreu um prazo dilatado que mereça censura em moldes a prevalecer a segurança jurídica em prol do interesse público;

K) Ademais, na data de 13.01.2021, já após a sentença e decorrido o prazo para apresentar o parecer de qualificação, teve a Administradora Judicial conhecimento que o Gerente da insolvente efetuou pagamentos em nome da insolvente – quando não o podia fazer por lei, pois o dinheiro integrava a massa insolvente;

L) Facto superveniente e posterior aos 15 dias que fundamentam a culpa sendo alegados no parecer;

M) Motivos que levaram a Administradora Judicial a requerer a abertura do incidente na data de 24.02.2021, já fora do prazo de 15 dias após a apresentação do relatório não se devendo o atraso de 48 dias, a inércia ou falta de diligência, nem era possível de concretizar em data anterior (dentro dos 15 dias previsto na lei);

N) Aliás, trabalhou de forma diligente ao analisar milhares de dossiers e documentos, cruzando operações contabilísticas complexas;

O) Vedar a possibilidade de apresentar o parecer após a junção do relatório, quando os factos são que permitem qualificar a culpa são de conhecimento posterior, seria denegar a aplicação da justiça;

P) Atente-se à gravidade dos factos elencados no parecer de qualificação e à forma como se concretizou a dissipação da totalidade do património da insolvente;

Q) A interpretação legal constante do despacho em crise levará à total descredibilização do instituto da insolvência culposa previsto no artigo 186.º e seguintes do CIRE, reduzindo-o, cada vez mais, àquela que é visão vigente na sociedade de total impunidade no processo de insolvência;

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, requer-se que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que conheça a tempestividade de apresentação do parecer de qualificação e ordene a abertura do incidente de qualificação, fazendo-se assim a tão acostumada Justiça.


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Foram dispensados os vistos.

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A questão que importa decidir é a de saber se é perentório o prazo a que alude o artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, ou se este prazo é meramente ordenador.
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A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório inicial.
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Conhecendo.
No Processo n.º 538/16.8OLH-E.E1 desta Relação de Évora, de que formos relator e que incidia sobre questão semelhante à dos autos foi decidido da seguinte forma:
Dispõe o artigo 188.º/1, do CIRE:
1.- Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
O incidente de qualificação da insolvência será declarado aberto na sentença se o juiz dispuser de elementos que apontem no sentido da insolvência culposa. Se não o for, deverá ser declarado aberto em momento posterior, a requerimento do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, da mesma forma, se o processo dispuser de elementos que o justifiquem.
Depois da sentença, o prazo para suscitar o incidente é de 15 dias.
Contudo, há que fazer uma distinção entre os prazos concedidos pela lei ao Administrador da Insolvência – porque, tal como o Tribunal, prossegue fins públicos, não sendo, por isso, parte –, e o prazo concedido às partes (insolvente, credores e Ministério Público quando represente credores cujos interesses lhe estejam legalmente confiados).
Quanto ao administrador, concorda-se com o que se decidiu no Ac. TRP de 24-10-2019, Carlos Portela, Processo 393/19.6T8AMT-B.P1: I - O administrador da insolvência é um colaborador do tribunal, não é uma parte no processo e como tal, a emissão do parecer não é um direito dele, mas um dever funcional.
E Ac. TRG de 14-04-2011, Manso Rainho, Processo 881/07.7TBVCT-S.G1: O facto do administrador da insolvência não ter apresentado o seu parecer quanto à qualificação da insolvência no prazo legalmente previsto, não faz precludir a possibilidade de o fazer mais tarde e de a tal parecer se atender.
Por este motivo, o prazo concedido ao AI é meramente ordenador, mas o seu incumprimento é assistido de sanção, uma vez que poderá ter consequências negativas para o exercício das suas funções como a destituição e a responsabilização pelos danos causados (artigos 56.º e 59.º do CIRE).
O que também ocorre, maxime, com o Tribunal sempre que um prazo não é cumprido, podendo surgir responsabilidades disciplinares e pecuniárias (artigo 156.º/5, do CPC).
O que equivale a dizer que os prazos meramente ordenadores passaram a ser uma ficção, pela simples razão de que o incumprimento de qualquer prazo é sempre sancionado, havendo divergência apenas no tipo de sanção.
Por isso, no que concerne às partes, sempre que um prazo judicial não é cumprido, a sanção é, ao invés do Tribunal, a caducidade do direito de praticar o ato (139.º/3, CPC), salvo casos de justo impedimento ou prática até ao 3º dia útil seguinte.
Por esse motivo, quando é o credor a suscitar o incidente de qualificação da insolvência, o prazo de 15 dias não pode ser considerado meramente ordenador, uma vez que estamos em presença de um ato equiparado à apresentação de articulado de uma das partes no processo e, por isso, o regime quanto a prazos é o que se aplica às partes na apresentação dos seus articulados (artigos 137.º a 142.º do CPC).
O prazo é perentório pela simples razão de que o sistema de justiça tem de garantir, às partes, a mesma equidistância e uma igualdade de armas que revele e assegure a imparcialidade do sistema.
É por isso que para o tribunal os prazos são disciplinadores ou ordenadores e para as partes são perentórios – extinguindo-se o direito de praticar o ato se o for para além do prazo legal.
Como é bom de ver, o “direito” de praticar o ato nunca pode extinguir-se para o sistema de justiça porque este não se pode nunca eximir à sua prática (proibição de non liquet artigos 8.º/1, C. Civil e 20.º CRP); tudo porque estão em causa os interesses dos cidadãos ou empresas que solicitam a intervenção do sistema de justiça e não os interesses do sistema em si.
É pelos motivos descritos que a jurisprudência tem entendido que o prazo é perentório quando está em causa a dedução do incidente pelos credores e, meramente ordenador, quando o incidente é suscitado pelo Administrador de Insolvência.
A título de exemplo, o prazo é ordenador: Ac. TRP de 07-05-2019, Rodrigues Pires, Processo 521/18.9T8AMT-C.P1, Ac. TRP de 29-10-2009, Proc. 10/07.7TYVNG-B.P1, Ac. TRP de 14-03-2017, Proc. 2037/14.3T8VNG-E.P1, Ac. TRP de 07-05-2019, Proc. 521/18.9T8AMT-C.P1.
O prazo é perentório: Ac. TRC de 10-03-2015, Proc. 631/13.9-L.C1, Ac. TRG de 25-02-2016, Proc. 1857/14.3TBGMR-DG1 e Ac. TRG de 20-04-2017, Proc. 510/16.8T8VRL-D.G1.
Feito o excurso sobre esta questão da diferente obrigatoriedade de cumprimento dos prazos, que tem suscitado acesos protestos de alguns agentes da justiça, ficamos em condições de decidir a questão que nos foi colocada.
No seguimento da linha de raciocínio que vimos expendendo, o nosso entendimento é o de que o prazo, quando aplicado aos credores é perentório e quando aplicado ao Tribunal ou ao Administrador da Insolvência é ordenador, pelas razões acima expostas.
A jurisprudência tem-se pronunciado no mesmo sentido.
Ac. TRG de 20-04-2017, Elisabete Valente, Proc. 510/16.8T8VRL-D.G1: I - O prazo legalmente previsto para os credores deduzirem incidente relativo à qualificação da insolvência, a que alude o artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, não é meramente regulador ou ordenador, mas sim peremptório.
Ac. TRG de 30-05-2018, Eugénia Cunha, Procº 616/16.3T8VNF-E.G1:
1. Preenchidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz, pode determinar ex officio, mesmo em fase posterior à prolação da sentença de declaração de insolvência, a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa;
2. Face a isso, os prazos, previstos no n.º 1 e 3, do artigo 188.º do CIRE (na redação emergente da Lei n.º 16/2001, de 20.04), para o administrador de insolvência requerer, fundamentadamente, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa e para apresentar parecer são meramente ordenadores ou reguladores (não podendo ser considerados prazos perentórios).
Estas considerações são inteiramente aplicáveis ao caso em apreço, não havendo motivo para inverter a jurisprudência deste tribunal superior.
No caso dos autos, o tribunal a quo indeferiu o requerimento da sra. AI com o fundamento de que o prazo de 15 dias previsto no artigo 188.º/1, do CIRE, tem natureza perentória, não declarando, em consequência, aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Contudo, como acima se deixou bem explícito, tal prazo é meramente ordenador, pelo que a decisão deve ser revogada e o recurso merecer provimento.
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Sumário:

(…)


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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação procedente e revoga a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que declare aberto o incidente de qualificação da insolvência.

Custas pelo recorrente – artigo 527.º CPC.
Notifique.

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Évora, 09-09-2021

José Manuel Barata (relator)

Conceição Ferreira

Emília Ramos Costa