Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
91/20.8PAABT.E2
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: PROVA LIVRE
PROVA TARIFADA
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: De acordo com o estabelecido no artigo 125º, do CPP, no âmbito do processo penal “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”, ou seja, consagra-se o sistema da prova livre (por contraposição a um sistema de prova tarifada), não existindo um regime de tipicidade de meios de prova nem de obtenção de prova.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o nº 91/20.8PAABT, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, tendo o Ministério Público se prevalecido do estabelecido no artigo 16º, nº 3, do CPP, foi o arguido AA condenado, por sentença de 06/11/2023, nos seguintes termos:

Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1, do Código Penal, na pena de 150 dias de multa, à razão diária de 5,00 euros, o que perfaz o montante global de 750,00 euros.

Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3º, nº 1, da Lei nº 109/2009, de 15/09, na pena de 7 meses de prisão, substituída por 210 dias de multa, à razão diária de 5,00 euros, o que perfaz a quantia global de 1.050,00 euros.

Penas materialmente cumuladas entre si.

Decretou também a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial no valor de 363,96 euros, nos termos do artigo 110º, nº 1, alínea b), do Código Penal.

2. O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

A) Foram incorretamente julgados os pontos 1 a 3, 6, 8 a 11 e 14 a 20, da matéria de facto assente.

B) Impõe decisão diversa da recorrida o depoimento da testemunha inquirida em sede de audiência de discussão e julgamento, BB (depoimento registado no sistema de gravação digital, em 02/06/2023, das 10:27 às 10:57 horas), conforme ata com a referência ….

C) Relativamente à autoria dos factos a testemunha, quando questionada sobre se podia afirmar que o autor dos factos era o arguido que estava a ser julgado, respondeu que não, apenas sabendo que “a voz era masculina”.

D) Impõe decisão diversa da recorrida a informação das diligências realizadas pela Polícia de Segurança Pública e remetida, via email à Polícia Judiciária em 03/01/2023, capeada pelo email da Polícia Judiciária inserido no histórico CITIUS, em 27/01/2023, com a referência ….

E) Dessas diligências resultou que, tendo os factos ocorrido em Fevereiro de 2020, o Arguido deixou de residir na …, n.º…, …, em Fevereiro de 2019, ou seja, um ano antes da data dos mesmos.

F) Impõe decisão diversa da recorrida o relatório do exame pericial inserido no histórico CITIUS em 12/05/2023, sob a referência ….

G) A conclusão do exame pericial foi “Pode ser”, o que significa que os peritos não lograram alcançar um parecer que, com suficiente certeza técnico-científica, confirmasse ou infirmasse a aposição, pelo arguido, da assinatura no talão de receção da encomenda.

H) Não foi produzida qualquer outra prova que, conjugada com o resultado do exame pericial, permita considerar provado que foi o Arguido quem assinou o talão de receção da encomenda.

I) Não foi produzida prova suficiente de que foi o Recorrente quem praticou os factos, subsistindo, assim, uma dúvida razoável e inultrapassável sobre se o Recorrente teve algum tipo de participação na ocorrência dos mesmos, dúvida essa que, em obediência ao princípio in dúbio pro reo, tem de ser resolvida em seu benefício.

J) Os pontos 16 a 20, da matéria de facto assente têm, necessariamente, de ser dados como não provados.

K) Quanto aos pontos 1 a 3, 6, 8 a 11 e 13 a 15, da matéria de facto assente, devem passar a ter nova redação, que determine a substituição da palavra arguido, pela expressão “indivíduo” não identificado e a indicação no ponto de que não foi possível apurar quem indicou a morada em causa, como sendo do Recorrente.

L) Perante a alteração da matéria de facto que se impõem, deixam de estar verificados os elementos típicos subjetivos dos crimes pelos quais o Recorrente foi condenado, devendo, assim, ser absolvido da prática dos mesmos.

M) Ao entender de forma diversa, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação, o princípio in dúbio pro reo e o disposto nos artigos 221.º, n.º 1, do C.P. e 3.º, n.º 1, da Lei 109/2009, de 15.09.

Sem prescindir,

N) No que respeita ao crime de burla informática, após a devida fundamentação e consideração, optou o Tribunal a quo pela pena de multa quanto ao crime de burla informática.

O) Apesar do crime de falsidade informática também permitir a escolha entre a pena prisão e a pena de multa, o Tribunal a quo prosseguiu para determinação da medida da pena, sem nada dizer ou fundamentar sobre a escolha, pela pena de prisão, relativamente a este crime que, por sua vez, acaba por substituir por multa.

P) Face à disparidade manifestada na escolha do tipo de pena a aplicar, quando ambos os crimes pelos quais o Recorrente foi condenado admitem, alternativamente, a aplicação de pena de multa ou de prisão, torna-se impossível, quer para o Recorrente, quer para o homem médio, descortinar o processo lógico-racional que conduziu a aplicação de diferentes tipos de pena.

Q) A impossibilidade de compreensão na dualidade de critérios, é ainda maior, porquanto, relativamente à escolha do tipo de pena a aplicar, quanto ao crime de falsidade informática, nada é dito.

R) A opção, pelo Tribunal a quo, por uma pena de prisão, no caso do crime de falsidade informática é incompreensível, por total ausência de fundamentação relativamente a esta opção e porque está em manifesta contradição com o processo lógico-racional utilizado para a escolha do tipo de pena no que tange ao crime de burla informática.

S) Mostra-se, assim, violado o disposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP.

T) A violação do art.º 374.º, n.º 2, do CPP, determina a nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, nulidade essa que ora se invoca e para todos os legais efeitos.

Novamente sem prescindir, conclui-se ainda,

U) Em concreto, deve optar-se por uma pena de multa, para cada um dos crimes em causa.

V) Tendo em conta os factos dados como provados relativos às condições pessoais do Recorrente e constantes dos pontos 21 a 27 da matéria de facto assente, é possível concluir que o Recorrente, que se encontra ainda em situação de prisão preventiva, beneficia de enquadramento familiar, social e laboral, logo que seja restituído à liberdade.

W) O Recorrente não tem antecedentes criminais, pois, a condenação entretanto sofrida foi proferida e transitou em data posterior à data dos factos dos autos.

X) Em obediência ao disposto no art.º 71.º, nos. 1 e 2, do CP, impõem-se uma redução da pena de multa aplicada, pelo crime de burla informática, para um quantum abaixo do seu primeiro terço.

Y) Também a pena de multa a aplicar, pela prática do crime de falsidade informática, deve ser fixada num quantum abaixo do seu primeiro terço.

Z) As penas a aplicar exceder os seguintes limites:

a) Pela prática de um crime de burla informática, nos termos conjugados dos artigos 47.º, n.º 1 e 221.º, nº 1, ambos do CP, 5º dias de multa à taxa diária de € 5,00, num total de € 250,00;

b) Pela prática de um crime de falsidade informática, nos termos do artº 3, nº 1 da lei 109/2009, de 15/09, 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, num total de € 900,00.

c) Em cúmulo jurídico, nos termos do artº 77, nº 1 e 2 do CP uma pena única de multa, de 150 dias de multa, á taxa diária de € 5,00 num total de € 7500,00.

AA) O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 71.º e 77.º, do CP.

NESTES TERMOS e nos mais e melhores de direito, que V. Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente, com todas as legais consequências. Assim se fazendo a habitual JUSTIÇA!

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pela manutenção da decisão revidenda, admitindo, porém, que em lugar da pena principal de prisão aplicada pelo crime de falsidade informática seja o arguido condenado em pena principal de multa, efectuando-se o cúmulo jurídico das penas de multa.

5. Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pelo arguido em que, no essencial, reafirma o constante da motivação de recurso.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/violação do princípio in dubio pro reo.

Enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente.

Nulidade por falta de fundamentação da opção pela pena de prisão quanto ao crime de falsidade informática/adequação da pena de multa.

Dosimetria da pena de multa aplicada quanto ao crime de burla informática.

Dosimetria da pena de multa de substituição aplicada quanto ao crime de falsidade informática.

2. A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 29 de Fevereiro de 2020, o arguido AA, à data com residência oficial na … nº …, …, por meio não apurado tomou conhecimento do nome do ofendido, BB, do seu número de telemóvel (…) e que o mesmo era titular de conta bancária do Banco ….

2. O arguido decidiu então contactar o ofendido para, fazendo-se passar por funcionário do Banco … e com o falso pretexto de que desconhecidos tinham tentado aceder à sua conta bancária, obter junto do mesmo os seus dados bancários e código de segurança do cartão de débito associado à conta bancária do ofendido e, com estes, efectuar, sem o conhecimento e o consentimento do ofendido, compras de bens em estabelecimentos comerciais online.

3. Na execução do desígnio formulado, no dia 29 de Fevereiro de 2020, cerca das 08h30m, o arguido efectuou telefonema para o indicado n.º de telemóvel do ofendido.

4. O ofendido era, à data, titular do cartão de débito n.º …, associado à conta bancária n.º …, do Banco …, agência de …, por si titulada.

5. O ofendido residia, à data, na Rua …, ….

6. No decurso do referido telefonema, o arguido, tratando o ofendido pelo nome e identificando-se falsamente como funcionário do Banco …, disse-lhe que, nesse mesmo dia, cerca das 07h00m, desconhecidos haviam feito cinco tentativas de movimentos com o cartão multibanco do ofendido, associado a conta bancária por este titulada, do Banco …, perguntando-lhe se queria cancelar o cartão multibanco para evitar problemas e requerer um novo.

7. O ofendido, acreditando na seriedade do que lhe era proposto, respondeu afirmativamente.

8. Nessa sequência, o arguido perguntou-lhe se queria que o novo cartão ficasse com o mesmo código ou se pretendia que fosse atribuído novo código, tendo o ofendido informado que pretendia que o código fosse o mesmo.

9. O arguido solicitou então ao ofendido que lhe fornecesse os dados do seu cartão de débito (número e CVV), bem como os números do seu Cartão de Cidadão, o seu NIF e indicasse a sua morada, o que o ofendido fez.

10. Sempre na execução do desígnio gizado, volvidos escassos minutos, o arguido, fazendo uso dos dados bancários e códigos de segurança do dito cartão de débito do ofendido, acedeu à indicada conta bancária do ofendido e, sem o conhecimento ou consentimento do mesmo, efectuou as seguintes compras online, que pagou via MbWay, através do site na internet do estabelecimento comercial CC, Lda:

- uma torradeira …, pelo preço de €46,90 e uma lâmpada …, pelo preço de €19,90, acrescido da quantia €4,90 para envio/entrega, tudo pelo preço global de €71,70;

- um Frigorífico Combinado …, pelo preço de €249,90, acrescido da quantia €19,90 para envio/entrega, tudo pelo preço global de €269,80, cujo pagamento efectuou às 08:42:07;

- uma lâmpada …, pelo preço de €9,90 e uma placa de Indução e Vidrocerâmica …, pelo preço de €299,90, tudo pelo preço global de €309,80, cujo pagamento efectuou às 08:52:06.

11. O arguido, através de cartão virtual MBnet por si gerado via MbWay com recurso aos dados bancários e códigos de segurança do cartão de débito do ofendido, efectuou ainda online, e nesse mesmo dia, a compra de jogo digital no comerciante DD (França), pelas 08:56:02, no valor de €22,46.

12. Os artigos adquiridos ascenderam ao valor global de €673,76 (seiscentos e setenta e três euros e setenta e seis cêntimos).

13. Foi recuperado o valor de €309,80 supra indicado, referente à lâmpada … e à Placa de Indução e Vidrocerâmica …, artigos estes que não chegaram a ser entregues na morada indicada pelo arguido, ante denúncia dos factos pelo ofendido.

14. Alguns dos artigos adquiridos e indicados supra foram entregues, por indicação do arguido, na …, Lote …, …, sendo expedida esta mercadoria na data de 02.03.2020, e outros desses artigos foram entregues na …, n.º …, …, constando esta última morada como a morada de facturação e de entrega na encomenda realizada a 29.02.2020.

15. O arguido obteve desse modo proventos económicos que não lhe eram devidos, no valor global de €363,96 (€673,76 - €309,80 = €363,96) e em prejuízo do ofendido.

16. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de obter benefícios económicos que não lhe eram devidos, correspondentes à aquisição de artigos que encomendou online e sempre em prejuízo do ofendido.

17. O arguido agiu com o propósito concretizado de aceder informaticamente à conta bancária do ofendido, tomando conhecimento da totalidade dos dados da mesma, bem sabendo que não o podia fazer, por a tanto não estar autorizado.

18. O arguido tinha perfeito conhecimento de que ao introduzir como meio de pagamento nos sites dos referidos estabelecimentos comerciais os dados bancários e código de segurança do cartão de débito do ofendido, que por este lhe foram facultados ante convicção de que o arguido era funcionário bancário e lhos pedia legitimamente, introduzia nesse sistema dados que lhe permitiam desencadear o acesso à conta bancária a que aquele cartão estava adstrito, assim debitando na mesma os valores monetários correspondentes aos artigos adquiridos.

19. O arguido sabia ainda que ao introduzir os dados bancários e código de segurança do cartão de débito do ofendido, criava dados informáticos de carácter não genuíno, através da utilização dos dados do referido cartão que, simulando ser o próprio ofendido, introduziu nos sistemas informáticos para gerar, via internet, operações bancárias que não correspondiam à realidade, com a intenção de serem considerados genuínos e, através de tais operações, fingir ser o titular daquele cartão, visando que fossem tomadas por verdadeiras e reais aquelas operações bancárias, assim induzindo em erro a entidade bancária e causando prejuízo ao ofendido, o que quis e conseguiu.

20. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

DAS CONDIÇÕES PESSOAIS, FAMILIARES, ECONÓMICAS E SOCIAIS DO ARGUIDO

21. O arguido tem 8º ano de escolaridade.

22. O arguido, antes de ser preso, auferiu o Rendimento Social de Inserção no montante mensal de €180,00.

23. O arguido, antes de ser preso, encontrava-se inactivo, não se tendo envolvido em qualquer atividade laboral ou outra, para além da dedicação às apostas online e à navegação na internet, circunstâncias que o levaram a praticar outros crimes, utilizando meios informáticos.

24. O arguido revela uma adição ao jogo online.

25. Em termos pessoais, o arguido revela algumas fragilidades ao nível afetivo, aparentemente decorrentes do alegado abandono por parte da mãe biológica, e da não aceitação/não reconhecimento da figura paterna, colocando-se numa postura de vitimização e sentindo-se como vítima de uma dinâmica relacional disfuncional e pouco securizante.

26. O relacionamento do Arguido com os seus amigos/pares era pautado por alguma necessidade de reconhecimento e que o próprio caracterizou da necessidade própria de retribuição por tudo o que fizeram por ele, oferecendo-lhes presentes, por vezes de elevado custo económico.

27. A presente privação de liberdade em que o arguido se encontra está a traduzir-se numa abordagem de pequenos projectos delineados na eventual situação de liberdade, os quais passam pela promoção da sua inserção laboral como passo primordial para um modo de vida socialmente ajustado, ciente da ausência de apoio familiar consistente e dos antecedentes criminais que regista, nomeadamente a pena de prisão efectiva que está a cumprir.

DOS ANTECEDENTES CRIMINAIS

28. O arguido foi julgado e condenado por Acórdão prolatado a 08.02.2022 pelo Juízo Central Criminal de …, Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de … no âmbito do Processo n.º 317/20.8 …, transitado em julgado a 02.11.2022, pela prática de 1 (um) crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artº 3º, n º 1 da Lei nº 109/2009 de 15/09; 16 (dezasseis) crimes de acesso ilegítimo, previstos e punidos pelo artº 6º, nºs 1 e 2, 3 da Lei 109/2009 de 15/09; 2 (dois) crimes de burla informática e nas comunicações, previstos e punidos pelo artº 221º, nº 1 do C.Penal e 33 (trinta e três) crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelos artºs 217º e 218º, nº 2 al. b) todos do C.Penal, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva e ainda condenado a pagar indemnizações aos Demandantes cíveis.

29. Por decisão proferida a 20.09.2023 no Processo nº 317/20.8… do Juízo Central Criminal de …, Juiz …, foi aplicada a lei do perdão de penas, sendo perdoado um ano de prisão à pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão em que foi condenado AA, sob condição resolutiva deste não praticar infração dolosa até 01.09.2024 e ainda sob a condição resolutiva de o arguido pagar as indemnizações cíveis em que foi condenado, no prazo de 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito, decisão esta não transitada em julgado.

Quanto aos factos não provados, inexistem.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento globalmente considerada, atendendo aos dados objetivos fornecidos pela mesma.

Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos meios de prova, destacando-se:

I) A prova documental, cujo teor não foi impugnado, nomeadamente:

i) Auto de denúncia de fls. 3 a 3 verso, o qual permitiu dar como provado o dia e hora dos acontecimentos, cujo teor e assinatura foram corroborados pelo ofendido.

ii) Extrato bancário da conta nº …, datado de 29.02.2020, conjugado com a informação bancária de fls. 20 a 23, permitiu dar como provado os valores que foram debitados na conta do ofendido através de utilização do cartão bancário titulado pelo ofendido, cujo método de pagamento foi MBway. Estes documentos permitiram concluir que foi usada informação pessoal e bancária do ofendido, para adquirir eletrodomésticos, lâmpadas e jogos, cujo preço foi debitado na conta do ofendido. A referida informação bancária permitiu igualmente apurar a hora a que as transações ocorreram. Esta informação conjugada com as declarações prestadas pelo ofendido, o qual negou que tenha sido o autor de tais transações, permitiram dar como provado os factos 2 a 11.

iii) Confirmação de encomenda de fls. 52 a 58 e faturas de 60 a 62, as quais permitiram dar como provado quais os bens adquiridos “on line” (quantidade, características e preço), bem como o nome da pessoa que os adquiriu, morada onde deveriam ser entregues, o que permitiu dar como provado que o arguido foi o autor da compra através dos dados bancários que lhe foram fornecidos pelo ofendido. Estes documentos permitiram dar como provados os factos 10 a 13, 14 e 15.

iv) Informação respeitante ao Cartão de cidadão de fls. 74 e 110 bem como informação extraída da base de dados da Segurança Social de fls. 109, as quais permitiram dar como provado que o arguido na data de 28.01.2020 declarou que a sua morada oficial era na …, nº…, …

Dispõe o art 2º da Lei 7/2007, de 05 de fevereiro que: “O cartão de cidadão é um documento autêntico que contém os dados de cada cidadão relevantes para a sua identificação e inclui o número de identificação civil, o número de identificação fiscal, o número de utente dos serviços de saúde e o número de identificação da segurança social.” Por sua vez, estatui o 13º, nº 1 da mesma lei que: “A morada é o endereço postal físico, livremente indicado pelo cidadão, correspondente ao local de residência habitual (…)” e o nº 3 diz que: “O titular do cartão de cidadão deve promover a atualização da morada no cartão de cidadão (…)”.

v) Relatório da Perícia elaborada à letra e assinatura do documento comprovativo de entrega de mercadoria, expedida no dia 02.03.2020, o qual foi junto aos autos assinado pelo arguido, constante de fls. 295;

Sendo certo que os bens não foram apreendidos no local e na posse do arguido, a verdade é que, quando a polícia judiciária apurou a identidade do arguido, já este estava em reclusão, pelo que tal prova mostrava-se inócua. Contudo, ainda assim, uma vez que o arguido não quis prestar declarações, apenas temos a informação que o arguido, à data dos factos, tinha como morada oficial a … na …, sendo que alguns produtos foram entregues nesta …, na …, e outros foram entregues na …, Lote …, … (adquiridos online e pagos por MBWAY) foram entregues. Ora, constando nos organismos oficiais que a sua residência era a mesma onde foi indicado pelo adquirente o local para entrega dos produtos adquiridos pelo método MBWAY, através da utilização de dados bancários do ofendido e o beneficiário de tal aquisição, conclui-se, sem qualquer dúvida, que foi o arguido o autor das compras, sendo confirmado pela perícia à assinatura constante do documento comprovativo de entrega da mercadoria expedida a 02.03.2020, conforme resulta da perícia feita ao comprovativo de entrega de mercadoria de fls 295 e do respectivo relatório pericial junto aos autos a fls 310 a 323 que concluiu que pode ser a assinatura do Arguido.

Mas mesmo que dúvidas subsistissem (o que não sucede), note-se que os dados de faturação e local de entrega estão em nome do arguido e a residência oficial do arguido, sita na … na … é próxima da …, Lote …, da …, conforme se pode confirmar na pesquisa realizada no site do Google.pt/maps/dir/. Portanto, conclui-se que não foram terceiros a praticar os factos tal constantes no libelo acusatório, mas sim o arguido. Pelo exposto, deram-se como provados os factos 1 e 14.

Da conjugação destes elementos documentais supra aludidos, resultou provado que foi o arguido quem beneficiou dos produtos adquiridos, através da utilização de um cartão de débito que pertencia ao ofendido, aproveitando-se de tais bens.

vi)Relatório social de fls. 300 a 305, o qual permitiu apurar as circunstâncias de vida do arguido e sua personalidade, porquanto elaborado de forma objetiva, fundamentada, conseguido através de entrevista com o arguido, consulta do dossier do arguido existente na DGRSP, permitindo dar como provados os factos 21 a 27.

vii) Registo Criminal de fls. 675 a 676, o qual permitiu dar como provado os antecedentes criminais, constante dos factos provados 28 e 29 e o aludido Acórdão prolatado pelo Juízo Central Criminal de …, Juiz …, junto aos autos.

O arguido, no exercício de um direito que processualmente lhe assiste, não prestou declarações quanto aos factos constantes no libelo acusatório. Não obstante, quis prestar declarações quanto às suas condições económicas, familiares e sociais, as quais foram valoradas pelo Tribunal como verdadeiras, por verosímeis, sendo certo que foram igualmente confirmadas pelo relatório social de fls. 300 a 305, o que permitiu dar como provado os factos provados 21 a 27.

No que tange à prova testemunhal, o Tribunal valorou:

As declarações do ofendido, sendo o seu depoimento simples, objetivo e imparcial, revelando evidente esforço para, de forma pormenorizada, relatar o sucedido, uma vez que os factos ocorreram em 2020, e de forma humilde relatou a sequência factual, tal como plasmado no libelo acusatório. Mais referiu de forma honesta que não sabe se a pessoa que lhe fez o telefonema se tratava ou não do arguido, por não o conhecer, mas era uma voz masculina e que suspeitou que tinha sido enganado, uma vez que após ter transmitido os dados do seu cartão de débito, recebeu no seu telemóvel uma mensagem da … para confirmar o pagamento de uma compra naquela loja. De imediato, ligou para o banco … e pediu a anulação do cartão, sublinhando que o funcionário do banco lhe colocou as mesmas questões que a pessoa que lhe fez o primeiro telefonema.

O Tribunal formou a sua convicção positiva quanto à efetiva ocorrência da facticidade dada como provada constante de 1 a 13 tendo por base a lógica e coerência da referência factual relatada pelo ofendido, sendo certo que não resulta dos autos qualquer elemento, ainda que indiciário, que afaste a credibilidade do seu depoimento, não se vislumbrando, por isso, qualquer razão para que o ofendido faltasse com a verdade ou apresentasse um depoimento parcial e interessado. A credibilidade das suas declarações assentaram na circunstância de, perante o recebimento da mensagem da …, encetou diligências no sentido de apurar o que se estava a passar junto do banco e quando consultou o seu extracto bancário é que se apercebeu o que se estava a passar, sendo igualmente certo que, tal como já se referiu, não se apurou que tivessem sido terceiros (pessoas diferentes do arguido) a aceder aos dados bancários daquele, concluindo-se que foi o arguido o agente praticante dos factos, atenta a prova documental supra aludida nos factos 1 a 14.

O Ministério Público prescindiu da testemunha EE, inspetor da Polícia Judiciária, pelo que o Tribunal não valorou o relatório por si elaborado e junto aos autos.

O Tribunal estribou-se também nas regras da experiência comum, quanto aos elementos subjetivos (factos 16 a 20) as quais permitem inferir, com base nos factos objetivos dados como provados, a intenção subjetiva do arguido, na medida em que se trata de uma presunção natural quem se faz passar por funcionário bancário e consegue obter dados de um cartão de débito e os utiliza para aceder a um site para adquirir bens, de modo a receber tais bens que sabe que não lhe pertencem, porque foram adquiridos através de dinheiro de terceiro e depositado numa conta bancária, causando prejuízo, tudo contra a vontade do seu proprietário, sem autorização, consentimento e conhecimento do mesmo, sabe que está a cometer crimes e quer fazê-lo.

Concatenada toda a prova documental e a prova testemunhal, dúvidas não temos que foi o arguido o agente praticante dos factos, tal como constantes no libelo acusatório, sendo crucial realçar que o confronto da assinatura do arguido constante do documento de fls 295 a comprovar o recebimento da mercadoria pelo arguido é a “olho nu” exactamente igual à assinatura do arguido nos documentos oficiais constantes dos autos e livremente assinados pelo arguido, sendo que se dúvidas houvesse tal foi dissipado pela perícia realizada à assinatura do arguido que confirmou que a assinatura pode ser do arguido, dando-se assim como provado que foi arguido que praticou todos os factos dados como provados.

Desta feita, o Tribunal atendeu às declarações coerentes e credíveis do ofendido, sendo certo que quanto ao nexo de causalidade referente à autoria da prática dos factos há que atender que apenas as faturas estão em nome do arguido e que o local de entrega dos bens comprados eram as moradas indicadas pelo arguido na …, constando a … na … como sendo a sua morada oficial e a outra morada onde também foi entregue mercadoria sita na …, Lote …, … ser próxima uma da outra, tudo corroborado pela perícia à assinatura do arguido aposta no documento de entrega de mercadoria.

Concatenados estes elementos com as normais regras da experiência, conclui-se que o arguido a efetuar o telefonema ao ofendido, passando por funcionário do banco onde o ofendido tinha conta titulada, angariando a sua confiança (quando referiu existir tentativas de acesso ilegítimo), de modo a levá-lo a fornecer-lhe os dados bancários do seu cartão de débito e necessários para conseguir fazer compras online e com método de pagamento por MB WAY. E munido de tal informação conseguiu adquirir produtos e não se apreendem quaisquer factos que apontem que tal aquisição fosse efetuada por terceiros em nome do arguido, pelo que, face à inexistência de outros elementos orientadores, é possível também, face às regras da experiência comum, concluir que foi o arguido o autor dos factos que lhe são imputados em sede de acusação.

Nas regras da experiência comum, relativamente ao factos 16 a 20, atinentes aos elementos subjetivos e à ilicitude, face à materialidade objetiva assente, considerou-se a concreta forma de atuação do arguido nos termos apurados e as circunstâncias que as envolveram, à luz das regras de normalidade e experiência, e de presunção judicial daí resultante, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova consagrado no Artº 127.º do Código de Processo Penal, juntamente com o facto de ter resultado dos supra referidos elementos de prova respeitantes a tal atuação nada tendo resultado dos autos que afaste a evidência de uma atuação voluntária do arguido e do conhecimento da ilicitude da sua conduta.

Acresce ainda que, o facto de o arguido se ter remetido ao silêncio, apenas tendo referido, em declarações, as suas condições económicas. Com efeito, o arguido esteve presente na audiência de discussão e julgamento e viu produzir, perante si, toda a prova cuja consideração se impôs ao Tribunal e que se revelou concludente no que tange à sua autoria quanto aos factos, tal como os mesmos foram julgados provados.

Importante é também referir que perante as imputações que, de modo contundente, lhe foram feitas, o arguido optou por nada dizer, sendo certo que teve a oportunidade de fazer valer os seus argumentos e de dar a sua visão pessoal, negando o seu envolvimento na obtenção dos dados bancários relativos ao cartão de débito, ou esclarecendo, de modo diverso, as circunstâncias em que as mesmas ocorreram. É entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que a génese do direito ao silêncio não assenta num intuito de beneficiar o arguido, antes decorrendo do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que lhe são imputados, facultando ao arguido um comportamento que, em última análise, poderá obstar a que se auto incrimine. Porém, se o uso do direito ao silêncio não poderá em caso algum prejudicar o arguido, também o não deverá beneficiar. Se o arguido prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal sobre os factos e, eventualmente, esclarecer factos de que tem conhecimento pessoal, não pode, pois, pretender ter sido prejudicado com o seu silêncio, v.g., quando a prova reunida é de tal forma contundente que, daquele silêncio apenas se pode inferir que a não pode negar.

Pelo que, face à prova produzida, conclui-se que a facticidade constante dos pontos 1 a 20 terá de ser dada como provada, na medida em que o Arguido bem sabia que com a sua conduta praticava os crimes de que vem acusado.

Apreciemos.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/violação do princípio in dubio pro reo

O recorrente discorda da matéria de facto dada como provada nos pontos 1 a 3, 6, 8 a 11, 13 a 15 e 16 a 20, dos fundamentos de facto da decisão revidenda, fazendo apelo, entre o mais, ao depoimento da testemunha/ofendido BB, prestado em audiência de julgamento.

Ora, quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto na modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do CPP, têm de discriminar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

Segundo o nº 4 da mesma disposição legal, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º (cumprindo, actualmente, face à revogação deste nº 3 pela Lei nº 94/2021, de 21/12, que entrou em vigor em 22/03/2022, considerar a remissão como feita para o seu nº 1), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa - nº 6.

Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência – o que se verifica no caso em apreço - o que não obsta a que, nesta eventualidade, o recorrente, querendo, também proceda à transcrição dessas passagens).

Analisando as conclusões e a motivação (corpo) de recurso, constata-se que se mostram cumpridas (ainda que imperfeitamente, cumpre se diga, pois naquele corpo se refere unicamente uma passagem do depoimento da testemunha, que se mostra gravado e apenas com indicação do início e termo da sua globalidade, o que, porém, não impede em definitivo a apreciação da impugnação da matéria de facto na modalidade ampla, porquanto a menção efectuada é tão só de que o ofendido refere que “a voz era masculina” e resulta claro da sentença que este desconhece a identidade do homem que o contactou por via telefónica) as exigências legais.

Assim se entendendo, importa analisar então a prova produzida com o objectivo de determinarmos se consente a convicção formada pelo tribunal recorrido, norteados pela ideia – força de que o tribunal de recurso não procura uma nova convicção, mas apurar se a convicção expressa pela 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e demais elementos probatórios podem exibir perante si (partindo das provas indicadas pelo recorrente que, na sua tese, impõem decisão diversa, mas não estando por estas limitado) sendo certo que apenas poderá censurar a decisão revidenda, alicerçada na livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se for manifesto que a solução por que optou, de entre as várias possíveis e plausíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum - artigo 127º, do CPP.

E, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção”, pois “doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.

Cumpre ter em atenção também que os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se confortam e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram.

Analisemos então a concreta factualidade que o arguido critica, considerando a óptica da censura que lhe faz e se tem ou não suporte na prova produzida.

Sustenta o recorrente que a prova produzida em audiência de julgamento (incluindo a testemunhal, documental e pericial) não permite, sem violação do princípio in dubio pro reo, concluir pela comprovação da sua intervenção nos factos em causa nos autos como provados foram dados pelo tribunal a quo.

Ora, aduz o tribunal recorrido que para a formação da sua convicção quanto a ter sido o recorrente a efectuar as compras através dos dados bancários fornecidos pelo ofendido, alicerçou-se na confirmação de encomenda de fls. 52 a 58 e faturas de 60 a 62, as quais permitiram dar como provado quais os bens adquiridos “on line” (quantidade, características e preço), bem como o nome da pessoa que os adquiriu, morada onde deveriam ser entregues.

Mas, o que se extrai cabalmente desse documentos, entre o mais mencionado é que os bens foram facturados em nome de “AA” e quais as moradas em que deveriam ser entregues (…, nº …, …, uns e …Lote …, …, outro – o “frigorífico combinado …”), não necessariamente (só por si) que foram pelo arguido adquiridos, podendo configurar-se ter sido a sua identidade utilizada por outrem.

É certo que, da informação respeitante ao cartão de cidadão do arguido, emitido em 28/01/2020, resulta que foi indicada pelo mesmo como residência a …, nº …, … e é também essa morada que consta da base de dados da Segurança Social, mas menos vero não é que aos 24/01/2023, o tribunal recorrido, ao abrigo do estabelecido no artigo 340º, nº 1, do CPP, determinou ao órgão de polícia criminal que averiguasse se o arguido residia na referida morada da … no dia 29 de Fevereiro de 2020 e nos dias seguintes ao dia 31 de Março de 2020, tendo sido prestada informação aos 27/01/2023, nos seguintes termos:

- No imóvel reside, desde há vários anos, FF e duas filhas de maior idade e desde Setembro de 2019 também ali tem residência o companheiro da primeira.

- Por a mãe do AA ter falecido e de o pai estar internado devido a incapacidade, FF cedeu-lhe alojamento no período compreendido entre o final de 2018 e Fevereiro de 2019. Neste mês AA abandonou a residência, sem prestar qualquer informação sobre para onde iria.

Ou seja, de acordo com esta informação, no dia 29 de Fevereiro de 2020 e nos dias seguintes ao dia 31 de Março de 2020, o arguido não residia naquela morada da … e não é, certamente, por um cidadão não promover a actualização da morada no respectivo cartão que podemos dar como assente que reside na que deste consta.

Porém, o tribunal a quo desconsiderou a informação com fundamento em que o Ministério Público prescindiu da testemunha EE, inspetor da Polícia Judiciária, pelo que o Tribunal não valorou o relatório por si elaborado e junto aos autos.

Ora, antes de mais, as informações foram recolhidas e prestadas pela PSP e não pelo referido Inspector da PJ, sendo, isso sim, o Inspector-chefe /DIC de … que as remeteu ao tribunal.

Daí que se não alcance razão fundada para afastar o conteúdo dessa informação para a formação da convicção do julgador, cuja ponderação, aliás, se revela fundamental para apurar da intervenção (ou não) do recorrente nos factos vertidos na acusação e dados como assentes, não se podendo olvidar que de acordo com o estabelecido no artigo 125º, do CPP, no âmbito do processo penal “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”, ou seja, consagra-se o sistema da prova livre (por contraposição a um sistema de prova tarifada), não existindo um regime de tipicidade de meios de prova nem de obtenção de prova, de onde resulta que aqueles factos se podem provar por qualquer meio idóneo, não se vendo que a dita recolha de informação e sua junção aos autos seja legalmente proibida.

E a informação prestada não pode deixar de ser considerada um documento intra-processual, com valor probatório, a apreciar segundo as regras da experiência e a livre convicção, conforme rege o artigo 127º, do CPP.

Continuando a revelar a formação da convicção do julgador, diz-se na sentença que é crucial realçar que o confronto da assinatura do arguido constante do documento de fls. 295 a comprovar o recebimento da mercadoria pelo arguido é a “olho nu” exactamente igual à assinatura do arguido nos documentos oficiais constantes dos autos e livremente assinados pelo arguido, sendo que se dúvidas houvesse tal foi dissipado pela perícia realizada à assinatura do arguido que confirmou que a assinatura pode ser do arguido.

Pois bem.

O que dos autos consta a fls. 295 não é sequer o original do documento de recepção de mercadoria, mas uma cópia e o que observamos no mesmo no campo reservado ao destinatário/recebedor é uma assinatura absolutamente ilegível.

Para além disso, o que se conclui no relatório do exame pericial realizado à suposta assinatura do arguido (com inserção no “CITIUS” em 12/05/2023) é que:

Na ausência do respetivo original, a hipótese de montagem de DC1 (a assinatura contestada, entenda-se) não pode ser confirmada nem refutada.

Relativamente às hipóteses iniciais, conclui-se que a escrita da assinatura contestada, que consta em DC1, pode ter sido produzida por AA.

Na escala de probabilidades, que no mesmo relatório se apresenta, a probabilidade pode ser está ligeiramente acima do nível médio, elencando-se ainda em sentido ascendente: provável ser, muito provável ser e probabilidade próxima da certeza científica ser.

E, porque assim é, as ditas conclusões do relatório, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, não dissipam as dúvidas, antes as agravam.

Destarte, não têm suporte suficiente na prova produzida os factos dados como provados que impugnados se encontram e integram a intervenção do arguido/recorrente, instalando-se a dúvida positiva, razoável e insanável, quanto a eles, que afasta a valoração efectuada pelo tribunal recorrido (lançando-se mão do princípio in dubio pro reo), pelo que terão de ser dados como não provados, alterando-se a matéria de facto em conformidade.

Impetra também o recorrente a absolvição da prática dos crimes por que foi condenado, alicerçando-a na alteração da matéria de facto dada como provada.

Este seu objectivo, como dito, foi alcançado.

Tendo em consideração os factos assentes e os como dito alterados, não se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos mencionados crimes.

Impõe-se, pois, efectivamente, a absolvição do arguido.

Cumpre, destarte, conceder provimento ao recurso, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nas respectivas conclusões.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência:

A) Passam a integrar a factualidade não provada, os factos que constavam na decisão revidenda como provados nos pontos 16 a 20 e bem assim os demais na parte em que se faz menção ao arguido, passando a ler-se nestes a referência como feita a indivíduo de identidade desconhecida;

B) Revogam a decisão recorrida e absolvem o arguido da prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1, do Código Penal e de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3º, nº 1, da Lei nº 109/2009, de 15/09, de que vinha acusado e por que foi condenado em 1ª instância.

Sem tributação.

Évora, 20 de Fevereiro de 2024

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(António Condesso)