Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1025/22.0T8FAR.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: NEGÓCIO SIMULADO
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
VONTADE DOS CONTRAENTES
NULIDADE
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Nos termos do disposto no artigo 240.º do Código Civil, são necessários três requisitos para que se verifique a existência de um negócio simulado:
a) A divergência entre a vontade real e a vontade declarada;
b) O intuito de enganar terceiros (basta a intenção de enganar, não sendo necessário que esse engano vise o prejuízo efetivo dos terceiros);
c) O acordo simulatório (entre declarante e declaratário).
- Por outro lado, a simulação pode ser absoluta, quando a vontade real das partes é a de não concluir qualquer negócio, ou relativa, quanto a vontade real das partes é a de celebrar efectivamente um negócio mas diferente daquele que aparentemente concluíram.
- No caso em apreço, resulta claro, através da análise da factualidade apurada nos autos, que está demonstrada a divergência entre a vontade declarada de celebrar o contrato de arrendamento e a vontade real das partes na sua celebração – cfr. pontos 4 a 9 dos factos provados – sendo certo que a prova de tais factos incumbia à A., nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, o que esta, inexoravelmente, logrou fazer.
- Além disso, as consequências de tal divergência estão previstas no n.º 2 do artigo 240.º do Código Civil, no qual se afirma que o negócio simulado é nulo.
- Por isso, estando demonstrada a divergência, entre a vontade declarada de celebrar o contrato de arrendamento e a vontade real, impõe-se concluir pela nulidade de tal contrato, por simulação absoluta, nos termos do disposto nos artigos 240.º, n.º 2 e 286.º, ambos do Código Civil, o que aqui se determina para os devidos e legais efeitos.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 1025/22.0T8FAR.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

AA intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB, peticionando a declaração de nulidade do contrato de arrendamento celebrado em 1 de dezembro de 2016, entre CC e BB, aqui R., relativo ao primeiro andar do prédio denominado “...”, sito em ..., no concelho ..., por simulação absoluta e, ainda, a respetiva comunicação à Autoridade Tributária, com vista ao cancelamento desse contrato.
Para tanto, alegou, em síntese, que CC, falecida em ../../2018, deixou duas únicas herdeiras, as suas filhas, aqui A. e R., as quais são herdeiras legitimárias e testamentárias, constando do respetivo acervo hereditário, o prédio denominado “...”. Alega, igualmente, a A. que, em 1 de dezembro de 2016, CC celebrou com a R. um contrato de arrendamento, que tem por objeto o primeiro andar daquele prédio. Todavia, segundo a A., o mencionado prédio não é habitado desde há aproximadamente quarenta anos, que se encontra degradado, abandonado, em ruínas e sem condições de habitabilidade. Acrescenta, ainda, a A. que a R. não apresenta qualquer prova do pagamento da renda mensal, no valor de € 250,00, apesar de a inscrever na conta corrente das receitas da herança. Neste contexto, considera a A. que a celebração do aludido contrato de arrendamento teve, unicamente, o intuito de condicionar a partilha quanto ao prédio denominado “...” e, ainda, de enganar a Autoridade Tributária, através da apresentação de uma despesa – no montante de € 19.929,69, para a colocação de janelas em alumínio, que alega que não foi executada o imóvel – com o propósito de aumentar as despesas da herança, em virtude dos rendimentos obtidos no ano de 2016.
Regularmente citada, a R. contestou por impugnação, pugnando pela improcedência da ação e, consequentemente, pela sua absolvição. Neste âmbito, alegou que o contrato de arrendamento que celebrou com a sua mãe, CC, teve o duplo objetivo de a R. poder habitar no local arrendado e de neste poder fazer obras de conservação e melhoramentos, sendo os respetivos gastos lançados como despesas na contabilidade da herança. Ademais, alega a R. que o prédio denominado “...” se encontra em condições de habitar, embora não tenha as comodidades atuais, pois é uma casa senhorial agrícola, já com cerca de 200 anos de construída. Alega a R., ainda, que paga as rendas, os respetivos impostos e que se desloca ao local arrendado muitas vezes, não tendo realizado quaisquer obras de reparação, nem retirado à herança o valor de € 19.929,26. Desta forma, entende a Ré que o contrato de arrendamento em causa é real e não simulado.
Por requerimento, datado de 17.06.2022, veio a A. deduzir o incidente de litigância de má fé contra a R., exercer o contraditório quanto ao documento junto com a contestação e, ainda, proceder à retificação de lapso de escrita cometido na petição inicial, o que foi admitido pelo despacho de 03.10.2022.
Findos os articulados, veio a ser realizada a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, no qual se fixou o valor da causa, procedeu-se à identificação do objeto do litígio, à enunciação dos temas da prova e admitiram-se os requerimentos probatórios das partes.
De seguida, realizou-se a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença pela M.ma Juiz a quo, a qual julgou a presente acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, declarou a nulidade do contrato de arrendamento, celebrado em 1 de dezembro de 2016, entre a falecida, CC, e a R., por simulação absoluta, relativo ao primeiro andar do prédio misto, denominado “...”, sito em ..., inscrito na matriz predial sob o artigo n.º ...48, da união de freguesias ... (... e ...), concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...10, mais se absolvendo a R. do demais peticionado pela A.

Inconformada com tal decisão dela apelou a R. tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1-Foram temas da prova nestes autos:
A - Se o contrato de arrendamento foi celebrado para condicionar os termos da partilha quanto ao prédio objecto do contrato;
B- Das circunstâncias que rodearam a outorga do contrato;
C- Do estado em que se encontra o prédio;
D- Se o contrato foi celebrado com o intuito de enganar a Autoridade Tributária;
E- Do pagamento de renda à herança.
2- O Tribunal a quo veio a considerar provada a seguinte factualidade:
1- CC faleceu em ../../2018, no estado de viúva de DD, o qual faleceu em ../../2007;
2- Por escritura pú8blica de habilitação, datada de 31 de Julho de 2018, foram habilitadas como herdeiras de CC, as filhas, AA e BB;
3- Do acervo hereditário de CC consta, entre o mais, o prédio misto, denominado “...”, sito em ..., inscrito na matriz predial sob o artigo nº ...48 (actual artigo nº ...09), da união de freguesias ... (... e ...), concelho ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o nº ...10, composto por horta e casas de moradia de dois pavimentos, logradouro, e seis divisões no primeiro andar e quatro no rés de chão;
4- Por escrito, datado de 1 de dezembro de 2016, denominado “contrato de Arrendamento para fins habitacionais com prazo certo”, no qual figura como primeira outorgante ou senhoria, CC, e como segunda outorgante ou arrendatária, BB, a primeira outorgante declarou dar de arrendamento à segunda outorgante, que aceitou tomar de arrendamento, o primeiro andar do prédio misto, denominado “...”, identificado em 3., pelo prazo de 1(um) ano, automaticamente renovável por iguais períodos, com início em 1 de dezembro de 2016, pela quantia mensal de € 250,00 (duzentos cinquenta euros);
5- No escrito referido em 4. consta, entre o mais, que “a segunda outorgante declara reconhecer, por prévia vistoria feita ao local, que o locado, objecto do presente contrato de arrendamento, se encontra em condições de habitabilidade”.
6- No dia 29 de dezembro de 2016, a pedido da Ré, a empresa “A..., Lda.”, emitiu a fatura nº ...75, no montante de € 19.929,69 (dezanove mil, novecentos e vinte e nove euros e sessenta e nove cêntimos), para a realização de obras de reparação e remodelação no primeiro andar do imóvel referido em 3 (designadamente, para a colocação de janelas de alumínio), as quais não foram executadas até à presente data;
7- Parte do montante referido em 6, no valor de € 13.285,13 (treze mil, duzentos e oitenta e cinco euros e treze cêntimos) foi declarado no IRS relativo ao ano de 2016 como “despesas de manutenção e conservação” do primeiro andar do imóvel referido em 3;
8- Desde dezembro de 2016, a Ré inscreve na conta corrente da herança a receita mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), denominada de “art 8509 1º”, sem demonstrar o pagamento desse montante;
9- O primeiro andar do imóvel referido em 3 não é habitado desde há cerca de quarenta anos e encontra-se abandonado e degradado (em particular, a escada de pedra de acesso, a porta de entrada em madeira e as janelas em madeira, todos referentes ao primeiro andar, necessitam de manutenção e limpeza).
3- E considerando não provado que, “O escrito referido em 4, denominado “Contrato de Arrendamento para fins habitacionais com prazo certo”, tivesse o objectivo de condicionar os termos da partilha relativamente ao imóvel, denominado “...”, sobre o qual o mesmo incidiu.”
4- A presente acção foi intentada pela A./Recorrida invocando esta a simulação absoluta do contrato de arrendamento celebrado em 01/12/2016 (vide o respectivo contrato de arrendamento que se encontra nos autos na certidão judicial doc. 12 anexo à p.i.) e pedindo a A./recorrida a declaração de nulidade desse contrato.
5- Atento o artigo 240.º do C.C., para que se esteja perante um negócio simulado é necessário que, simultaneamente, se verifiquem os três requisitos seguintes:
- a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;
- o acordo simulatório (pactum simulationis);
- e o intuito de enganar terceiros.
6- O ónus da prova desses três requisitos cabe a quem invocar a simulação e por os ditos requisitos serem constitutivos do respectivo direito invocado.
7- Quanto ao 1º requisito – a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração – não existe no contrato de arrendamento a que estes autos se reportam uma divergência entre a vontade das partes e a declaração consubstanciada nesse contrato de arrendamento, tendo sido vontade da já falecida CC, e na sua qualidade de Cabeça de Casal por óbito de seu marido DD, dar de arrendamento á ora Ré Recorrente (sua filha) o 1º andar do prédio misto denominado “...” e foi vontade da ora Ré/Recorrente tomar de arrendamento esse 1º andar.
8- Da factualidade provada nos autos não há quaisquer indícios que levassem a inferir a divergência, entre, as vontades de senhoria e inquilina, e o contrato de arrendamento entre elas celebrado.
9- O Tribunal a quo não pode só por si, e sem factos que o fundamentem, inferir a divergência de vontades entre a CC como senhoria e a ora Ré como inquilina, e o contrato por elas celebrado.
10- Quanto ao 2º requisito – acordo simulatório – o acordado entre a falecida CC e a ora Ré/Recorrente foi o contrato de arrendamento celebrado em 01/12/2016, e não outro negócio qualquer, não existindo qualquer disfarce no dito contrato de arrendamento, e nem podendo o Tribunal a quo retirar da matéria fáctica provada qualquer acordo simulatório entre as contraentes.
11- O terceiro requisito – o intuito de enganar terceiros – não se verificou e nem resultou da matéria fáctica provada pelo Tribunal a quo.
12- E foi o próprio Tribunal a quo que, e expressamente, nos “Factos Não provados” da sentença recorrida proferiu o seguinte trecho:
“Nomeadamente não resultou provado que:
- O escrito referido em 4, denominado “Contrato de Arrendamento para fins habitacionais com prazo certo”, tivesse o objecto de condicionar os termos da partilha relativamente ao imóvel, denominado “...”, sobre o qual o mesmo incidiu.”
13- Perante este trecho do Tribunal a quo é de inferir do mesmo que o contrato de arrendamento celebrado entre a falecida CC e a ora Ré BB não teve o intuito de enganar a A..
14- Não teve esse contrato de arrendamento o intuito de enganar nada nem ninguém e muito menos de enganar a Autoridade Tributária,
15- O Tribunal a quo incorreu em erro, quando, e atento o facto provado em 7 da Factualidade Provada da Sentença recorrida, interpretou o mesmo como sendo o revelador do intuito de enganar terceiros, nomeadamente enganar a Autoridade Tributária,
16- Olvidando-se o Tribunal a quo que o montante de € 13.285,13 declarado no IRS e relativo ao ano de 2016 corresponde (com um erro contabilístico de € 1,33) a 2/3 da quantia de € 19.929,69 referida em 6 dos Factos Provados.
17- E que correspondem esses 2/3 (= 4/6) à meação da CC (3/6) e ao quinhão hereditário da CC (1/6) no património do seu casal dissolvido por óbito de seu marido, e daí a apresentação desse valor no IRS.
18- E correspondendo o restante 1/3 dos referidos € 19.929,69, no montante de € 6.643,23, a despesas correspondentes ás restantes herdeiras desse dissolvido património conjugal e que são as A. e Ré, e correspondendo a cada uma delas € 3.321,615 dessas despesas.
19- Ignorou o Tribunal a quo, e que é relevante para este recurso, que foi o próprio Tribunal “a quo” na fundamentação da resposta ao facto 6 dos Factos Provados da Sentença que lavrou o seguinte trecho: “…esclareceu, perentoriamente, a testemunha EE, que emitiu a fatura nº ...75, no montante de € 19.929,69, a qual foi paga na íntegra pela Ré, aguardando a aludida testemunha “que a Ré me peça para avançar com a obra”, uma vez que, tal como (de forma honesta e segura) esclareceu aquela testemunha, a Ré pagou tudo, mas não me deu ordem para executar a obra”, pelo que “não iniciei a obra ainda”.
20- E tendo sido paga a dita quantia de € 19.929,69 não se pode entender e retirar do provado em 7 da sentença recorrida que a Autoridade Tributária foi enganada, e o Estado prejudicado.
21- Conforme se constata pelo contrato de arrendamento em causa, e bem assim em 4 dos Factos Provados, o arrendamento foi celebrado com prazo certo, pelo prazo de 1 ano, e renovável por iguais períodos, e pelo que a parte senhoria pode, nos termos do artigo 1097.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil, impedir a renovação do dito contrato de arrendamento, mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência mínima de 120 dias.
22- E consequentemente o contrato celebrado em 01/12/2016 e a que estes autos se reportam nunca poderá condicionar qualquer partilha que venha a ser efectuada entre A. e Ré.
23- Por força do artigo 1051.º, alínea c), do Código Civil, o contrato de locação caduca quando findem os poderes legais de administração com base nos quais foi celebrado, e no contrato de arrendamento referido celebrado em 01/12/2016 e em que a senhoria agiu na qualidade de Cabeça de Casal, pelo que de imediato findaram os respectivos poderes legais de administração com a morte da mesma (já ocorrida).
24- Cabia à A. nesta acção o ónus da prova dos factos que levassem à simulação absoluta por ela invocada, nomeadamente provar o não pagamento das rendas referentes ao contrato de arrendamento em causa nestes autos.
25- Pois estamos perante uma acção em que a A. invoca a simulação absoluta do contrato e pede a nulidade do mesmo, e não perante uma acção de despejo por falta de pagamento de rendas e onde o ónus de provar o pagamento das rendas recai sobre o inquilino.
26- E não podemos nesta acção inverter as regras dos ónus probatórios.
27- A Ré não juntou os recibos de renda por si pagos por entender que nesta acção em concreto não tinha que fazê-lo,
28- Sendo a ora Ré também Ré na acção de prestação de contas referida já nestes autos, e sendo ela a prestadora das contas, e tendo ela Ré inscrito na respectiva conta corrente da herança as receitas correspondentes às rendas por si devidas, está claro e líquido que as receitas dessas rendas estão assentes e tomadas em conta na respectiva administração da herança que vem sendo feita pela ora Ré.
29- E nada escondendo nem nada sonegando dessas receitas – e sendo a ora Ré/Recorrente a prestadora dessas aludidas contas da herança.
30- O item 1 dos temas da prova resultou não provado.
31- Sobre os itens 2 e 5 dos temas da prova não incidiram quaisquer meios de prova por parte da A./recorrida e a quem cabia o respectivo ónus,
32- Relativamente ao item 4 dos temas da prova tendo a testemunha EE esclarecido que a importância de € 19.929,69 lhe foi paga na integra, e dando o tribunal a quo credibilidade a essa testemunha, conforme se verifica na “Motivação da decisão sobre a matéria de facto” na sentença recorrida, nunca poderá dos factos provados 6 e 7 da sentença recorrida vir inferir-se que o item 4 dos temas da prova foi satisfeito pela A.
33- Relativamente ao item 3 dos temas da prova – do estado em que se encontra o prédio – e apesar do provado em 9 dos Factos Provados da sentença recorrida, é do senso comum que existem espaços habitáveis, melhores e piores, não sendo invulgar arrendamentos sobre espaços habitáveis a necessitaram de conservação e limpeza e de reparações, ou substituições, em janelas e portas, grave é, não os problemas com janelas e portas, mas os problemas com a construção em si, com telhados, com paredes, e com necessidades de obras de alvenaria o que não é o caso do 1º andar do prédio misto da ....
34- Não logrou a ora A./Recorrida provar nesta acção nenhum dos três requisitos supra referidos, que, e em simultâneo, levassem à procedência da presente acção e à consequente declaração de nulidade do contrato de arrendamento celebrado em 01/12/2016 por simulação absoluta.
35- Tem especial relevância para a presente acção a jurisprudência plasmada no Acórdão do S.T.J. de 20/03/2014, proc. 4867/06, Sumários, 2014, pág. 194 e no Acórdão do STJ. de 01/04/2014, proc. 8717/06, Sumários 2014, pág. 219.
36- Termos em que, deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e proferindo-se acórdão que julgue a presente acção totalmente improcedente e dela se absolvendo a Ré/Recorrida e com toda as consequências legais. Assim se fazendo Justiça.
Pela A. foram apresentadas contra alegações de recurso, nas quais pugna pela manutenção da sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos junto das Ex.mas Juízes Adjuntas – cfr. artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela R., aqui apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se não estão verificados os requisitos da simulação a que alude o artigo 240.º do Código Civil e, por via disso, não deve ser declarada a nulidade do contrato de arrendamento celebrado em 1 de dezembro de 2016, entre a falecida, CC, e a R. (sua filha), relativamente ao imóvel identificado nos autos.

Antes de nos pronunciarmos sobre a questão supra referida importa ter presente a factualidade que foi dada como provada no tribunal a quo, a qual não foi expressamente impugnada pela R., nos termos previstos no artigo 640.º do C.P.C., pelo que, mantendo-se tal factualidade inalterada, passamos, de imediato, a transcrevê-la:
1 – CC faleceu em ../../2018, no estado de viúva de DD, o qual faleceu em ../../2007;
2 – Por escritura pública de habilitação, datada de 31 de julho de 2018, foram habilitadas como herdeiras de CC, as filhas, AA e BB;
3 – Do acervo hereditário de CC consta, entre o mais, o prédio misto, denominado “...”, sito em ..., inscrito na matriz predial sob o artigo n.º ...48 (atual artigo n.º ...09), da união de freguesias ... (... e ...), concelho ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...10, composto por horta e casas de moradia de dois pavimentos, logradouro, e seis divisões no primeiro andar e quatro no rés-do-chão;
4 – Por escrito, datado de 1 de dezembro de 2016, denominado “Contrato de Arrendamento para fins habitacionais com prazo certo”, no qual figura como primeira outorgante ou senhoria, CC, e como segunda outorgante ou arrendatária, BB, a primeira outorgante declarou dar de arrendamento à segunda outorgante, que aceitou tomar de arrendamento, o primeiro andar do prédio misto, denominado “...”, identificado em 3., pelo prazo de 1 (um) ano, automaticamente renovável por iguais períodos, com início em 1 de dezembro de 2016, pela quantia mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros);
5 – No escrito referido em 4 consta, entre o mais, que “a segunda outorgante declara reconhecer, por prévia vistoria feita ao local, que o locado, objeto do presente contrato de arrendamento, se encontra em condições de habitabilidade.”
6 – No dia 29 de dezembro de 2016, a pedido da Ré, a empresa “A..., Lda.” emitiu a fatura n.º ...75, no montante de € 19.929,69 (dezanove mil, novecentos e vinte e nove euros e sessenta e nove cêntimos), para a realização de obras de reparação e remodelação no primeiro andar do imóvel referido em 3 (designadamente, para a colocação de janelas de alumínio), as quais não foram executadas até à presente data;
7 – Parte do montante referido em 6, no valor de € 13.285,13 (treze mil, duzentos e oitenta e cinco euros e treze cêntimos) foi declarado no IRS relativo ao ano de 2016 como “despesas de manutenção e conservação” do primeiro andar do imóvel referido em 3;
8 – Desde dezembro de 2016, a Ré inscreve na conta corrente da herança a receita mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), denominada de “art 8509 1º”, sem demonstrar o pagamento desse montante;
9 – O primeiro andar do imóvel referido em 3 não é habitado desde há cerca de quarenta anos e encontra-se abandonado e degradado (em particular, a escada de pedra de acesso, a porta de entrada em madeira e as janelas em madeira, todos referentes ao primeiro andar, necessitam de manutenção e limpeza).

Apreciando, de imediato, a questão recursiva suscitada pela R., ora apelante – saber se não estão verificados os requisitos da simulação a que alude o artigo 240.º do Código Civil e, por via disso, não deve ser declarada a nulidade do contrato de arrendamento celebrado em 1 de dezembro de 2016, entre a falecida, CC, e a R. (sua filha), relativamente ao imóvel identificado nos autos – importa referir a tal propósito que sustenta a A. nesta acção que o contrato de arrendamento a que se alude no ponto 4 dos factos provados não corresponde à vontade real das pessoas neles intervenientes, sendo, por isso, simulado.
A este respeito o artigo 240.º, n.º 1, do Código Civil estipula que, se por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. Ou seja, dito por outra palavras, o declarante, com o conhecimento e acordo do declaratário, emite uma declaração negocial que não coincide com a sua vontade real – faz a declaração, mas não quer o declarado – com o objetivo de enganar (ou mesmo prejudicar) uma terceira pessoa.
Deste modo, são necessários três requisitos para que se verifique a existência de um negócio simulado:
a) A divergência entre a vontade real e a vontade declarada;
b) O intuito de enganar terceiros (basta a intenção de enganar, não sendo necessário que esse engano vise o prejuízo efetivo dos terceiros);
c) O acordo simulatório (entre declarante e declaratário).
Por outro lado, a simulação pode ser absoluta, quando a vontade real das partes é a de não concluir qualquer negócio, ou relativa, quanto a vontade real das partes é a de celebrar, efectivamente, um negócio, mas diferente daquele que aparentemente concluíram.
Assim sendo, “a simulação absoluta verifica-se quando os simuladores fingem concluir um determinado negócio jurídico, e na realidade nenhum negócio querem celebrar. Na simulação relativa eles pretendem realmente realizar certo negócio jurídico, que, todavia, dissimulam sob a aparência de um acto de conteúdo ou de objecto diverso (simulação objetiva), ou concluído entre pessoas que não aquelas que efetivamente nele intervieram (simulação subjetiva, mediante a interposição fictícia de pessoas)” – cfr. Rui de Alarcão “A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 536.
Acresce que, da parte final do disposto no n.º 1 do artigo 242.º do Código Civil resulta uma outra distinção, entre simulação fraudulenta e simulação inocente, existindo a primeira quando a intenção é de enganar e com isso prejudicar o terceiro, e a segunda quando a intenção é apenas de enganar (pode dizer-se que nesta existe um mero intuito de enganar terceiros, sem os prejudicar, enquanto naquela o intuito é de prejudicar ilicitamente terceiros ou de contornar qualquer norma da lei), sendo que a lei não faz qualquer distinção entre as duas, ou seja, os efeitos jurídicos são os mesmos, quer a simulação seja inocente, quer seja fraudulenta (embora seja manifesto que é esta a situação mais comum).
Para os casos de simulação relativa, rege o artigo 241.º do Código Civil, no qual se estipula o seguinte:
1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.
2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.”
De tal preceito decorre, pois, que o negócio simulado é sempre nulo, mas já a invalidade ou validade do negócio dissimulado é decidida autonomamente, completamente à parte do negócio simulado, dependendo dos requisitos legais que para o negócio dissimulado estejam estabelecidos.
Ora, no caso em apreço, resulta claro, através da análise da factualidade apurada nos autos, que está demonstrada a divergência entre a vontade declarada de celebrar o contrato de arrendamento e a vontade real das partes na sua celebração – cfr. pontos 4 a 9 dos factos provados – sendo certo que a prova de tais factos incumbia à A., nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, o que esta, inexoravelmente, logrou fazer.
Além disso, as consequências de tal divergência estão previstas no n.º 2 do artigo 240.º do Código Civil, no qual se afirma que o negócio simulado é nulo.
Por outro lado, a legitimidade da A. para a arguição de tal nulidade na presente acção advém da leitura conjugada da primeira parte do n.º 1 do artigo 242.º, n.º 1 e do artigo 286.º, ambos do Código Civil.
Por isso, estando demonstrada, in casu, a divergência, entre a vontade declarada de celebrar o contrato de arrendamento e a vontade real, impõe-se concluir pela nulidade de tal contrato, por simulação absoluta, nos termos do disposto nos citados artigos 240.º, n.º 2 e 286.º, ambos do Código Civil, o que aqui, desde já, se reitera para os devidos e legais efeitos.
E, a este propósito, não podemos deixar de sufragar, por inteiro, aquilo que, a dado passo, foi afirmado pela Julgadora a quo na sentença recorrida e que, de imediato, passamos a transcrever:
- (…) Não restam dúvidas de que a Autora, enquanto herdeira legitimária de CC, alegada simuladora, reveste a qualidade de terceira, porquanto visa satisfazer interesses específicos da sua posição de herdeira que, alegadamente, seriam afetados pela subsistência do negócio jurídico que considera ser simulado, razão pela qual se encontra arredada das limitações de prova a que ficam sujeitos os simuladores – cfr. neste âmbito o disposto no artigo 394.º, n.º 3, do Código Civil.
Mesmo que assim se não entendesse, sempre haveria de se considerar que foi junta aos autos prova documental passível de constituir um princípio de prova do facto do acordo simulatório e do negócio dissimulado alegados, de forma a tornar verosímil a sua existência, ou, dito modo, os documentos juntos aos presentes autos permitem, como um dos sentidos possíveis do seu conteúdo, a comprovação dos factos em que se traduz a simulação, o que, sem mais, tornaria legítimo o recurso à prova testemunhal (enquanto princípio de prova).
Posto isto, revertendo ao caso em apreço nestes autos, importa agora, em virtude da factualidade que resultou provada e não provada, apreciar e decidir da (in)existência de um negócio jurídico simulado, bem como, de todas as consequências daí advenientes.
Da análise dos pressupostos da simulação, acima elencados, por reporte à factualidade demonstrada nestes autos, resulta que a falecida CC e a Ré não pretenderam, na realidade, celebrar o contrato de arrendamento, apesar de o terem feito.
Na verdade, da análise da factualidade dada como provada, resulta manifesto que o contrato de arrendamento celebrado entre CC e a Ré, relativo ao primeiro andar do imóvel, denominado “...” teve, unicamente, como objetivo enganar a Autoridade Tributária (prejudicando, consequentemente, o Estado) no que respeita ao montante declarado no IRS do ano de 2016 relativo às “despesas de manutenção e conservação”, de forma a diminuir os impostos incidentes sobre a herança nesse ano.
Veja-se, neste âmbito, que apenas vinte e nove dias depois da celebração daquele contrato de arrendamento (no qual a Ré declarou reconhecer, por prévia vistoria feita ao local, que o locado, objeto do contrato de arrendamento, se encontrava em condições de habitabilidade), a Ré realizou uma despesa de € 19.929,29, a título de obras de reparação e remodelação no local arrendado (designadamente, para a colocação de janelas de alumínio), as quais nunca foram executadas, até à presente data.
Destaca-se, ainda, que tal despesa foi realizada precisamente no final do ano de 2016 (concretamente, no dia 29 de dezembro), tendo sido paga na íntegra e, ainda, que no IRS relativo ao ano de 2016, parte daquele montante (no valor de € 13.285,13) foi declarado como “despesas de manutenção e conservação” do local arrendado.
Acresce, ainda, por um lado, que a Ré não logrou demonstrar o pagamento mensal do valor de € 250,00, a título de renda, decorrente do contrato de arrendamento em apreço e, por outro lado, que o local arrendado não é habitado desde há cerca de quarenta anos, encontrando-se abandonado e degradado.
Desta forma, resulta manifesto que, nem a falecida CC, nem a Ré, pretenderam celebrar qualquer contrato de arrendamento relativo ao primeiro andar do imóvel, denominado “...”, com os efeitos daí advenientes, apenas tiveram o intuito, através da celebração desse contrato, de enganar terceiros (em particular, a Autoridade Tributária) e, consequentemente, de prejudicar o Estado.
A simulação em apreço situa-se no âmbito da simulação absoluta ou seja, as partes declararam a vontade de celebrar um negócio jurídico (em particular, um contrato de arrendamento) quando, na realidade, não pretendiam celebrar nem esse, nem qualquer outro, negócio jurídico.
Encontram-se preenchidos todos os pressupostos da simulação absoluta por reporte à factualidade dada como provada: a divergência entre a vontade real e a vontade declarada extrai-se da análise conjugada dos pontos n.ºs 4 a 7 e 9; o acordo entre a declarante e a declaratária resulta do ponto n.º 4; e o intuito de iludir terceiros, o «animus decipiendi vel nocendi», encontra-se patente nos pontos n.ºs 7 e 8.
Tem, pois, que declarar-se a nulidade do contrato de arrendamento, datado de 1 de dezembro de 2016, celebrado entre a falecida CC e a Ré, por simulação absoluta, procedendo, nesta parte, a presente ação.
Nestes termos, dado que o presente recurso interposto pela R. não versa outras questões, entendemos que a sentença recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter integralmente.
Em consequência, improcedem, in totum, as conclusões do recurso formuladas pela R., ora apelante, não tendo sido violados os preceitos legais por ela indicados.
***

Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário: (…)

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela R. e, em consequência, confirma-se integralmente a sentença proferida pela Julgadora a quo.
Custas pela R., ora apelante.
Évora, 07 de Março de 2024
Rui Machado e Moura
Maria Rosa Barroso
Anabela Luna de Carvalho
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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, pág. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, pág. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, pág. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, pág. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3º, pág. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, págs. 286 e 299).