Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
62/20.4GEABT.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
SINAL STOP
SINAL DE PARAGEM OBRIGATÓRIA
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - No caso de não existência do sinal vertical B2 (de paragem obrigatória no cruzamento ou entroncamento - cfr. artigo 21º do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 01/10 - Regulamento de Sinalização do Trânsito -), a linha transversal com a inscrição STOP, marcada no pavimento da faixa de rodagem, na zona de interceção de vias, cruzamento ou entroncamento, não impõe a paragem obrigatória, pois que, como decorre do artigo 61º do Regulamento da Sinalização do Trânsito, a paragem tem de ser imposta por sinalização vertical.
II - Perante a linha/marca transversal com a inscrição STOP existente na faixa de rodagem, tratando-se de entroncamento, pretendendo o arguido efetuar a mudança de direção para a esquerda, teria de respeitar a regra geral de cedência de passagem aos veículos que se lhe apresentassem pela direita (cfr. artigo 30º, nº 1, do Código da Estrada), e aquela linha/marca dava-lhe a indicação do local onde devia parar, para ceder essa passagem.
III - Considerando as concretas circunstâncias em que o arguido efetuou a manobra de mudança de direção para a esquerda, tendo a sua acuidade visual dificultada pela posição do sol, o que constatou antes de realizar aquela manobra e entrar na faixa de rodagem destinada ao trânsito de sentido contrário àquele em que seguia, apercebendo-se da possibilidade de ficar encadeado, avistando um veículo pesado que por aí circulava, a uma distância de cerca de 200 metros do local onde se encontrava, impunha-se ao arguido que parasse e não avançasse, entrando na faixa de rodagem contrária, sem que previamente se certificasse de que, antecedendo o aludido veículo pesado, o qual se apresentava à sua direita, não circulava qualquer outro veículo, de modo a que pudesse concluir a manobra de mudança de direção, sem pôr em perigo o trânsito e prevenindo a ocorrência de embate noutro veículo que aí circulasse.
IV - O arguido não procedeu dessa forma, entrando na faixa de rodagem destinada ao trânsito do sentido contrário, efetuando uma trajetória num ângulo de 90º e não de 45º (como devia - atentas as caraterísticas da via -), vindo a embater com a frente do seu veículo na bicicleta da vítima, que ali circulava, apresentando-se à direita do veículo do arguido.
V - Assim sendo, o arguido incorreu na prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, n.º 62/20.4GEABT, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local Criminal de Abrantes, foi submetido a julgamento o arguido (A), melhor identificado nos autos, estando acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal, por referência aos artigos 30º, n.º 1, 35º, n.º 1, 44º, n.ºs 1, 2 e 3, 145º, n.º 1, alínea f), 146º n.º 1 alínea n) e 103º n.º 3, todos do Código da Estrada.
1.2. Não foi deduzido pedido de indemnização civil.
1.3. No decurso da audiência de julgamento, finda a produção da prova, na sessão realizada em 29/06/2023, foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358º, n.º 1, do CPP, nada tendo o arguido requerido.
1.4. Na mesma data (29/06/2023) foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«(...) decido julgar parcialmente procedente a acusação e consequentemente:
a) Condenar o arguido (A), pela prática, como autor material, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos arts. 137.º, nº 1 e 15.º, al. a), ambos do Código Penal, por violação do disposto nos artigos 30º, n.º 1, 35º, n.º 1, 44.º n.ºs 1 e 2, todos do Código da Estrada e do art 21º do Regulamento de Sinalização de Trânsito, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
b) Suspender a pena de prisão aplicada ao arguido (A), mencionada em a), pelo período UM ANO, sujeita a regime de prova - cfr. artº 50º, nº 1 do Código Penal e sujeito:
A) o cumprimento, nos termos do artigo 51º, nº 1, al. c) do seguinte dever:
i. entregar a quantia de 750,00 euros ao CENTRO de ALCOITÃO, vocacionada para o auxílio de vítimas de acidente de viação, sendo:
a) 375,00 euros a entregar no prazo de 6 meses a contar do trânsito em julgado;
b) 375,00 euros a entregar no prazo máximo do termo da pena.
B) o cumprimento, nos termos do artigo 52º do CP, da seguinte regra de conduta:
ii. frequentar um programa de condução segura, a realizar no prazo máximo de 6 meses, com uma duração que a entidade responsável pela sua execução entenda por conveniente, comprovando a mesma nos autos.
c) Condenar o arguido (A) na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de 8 (oito) MESES, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, sob pena de incorrer na responsabilidade criminal se violar tal proibição.
d) Ordenar ao arguido, a entrega da carta e/ou licença de condução pelo arguido ou qualquer outro documento que o habilite a conduzir, no prazo de 10 dias, na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial, nos termos do artigo 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e sob cominação de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
e) Condenar o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2UC e, bem assim, nos demais encargos nos termos dos art 513.º e 514.º todos do Código de Processo Penal e no artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Judiciais.
(...)».

1.5. Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs recurso para este Tribunal da Relação, apresentando a respetiva motivação da qual extraiu as seguintes conclusões:
«I - A douta sentença que condenou o arguido, e ora sob recurso, carece de fundamento de facto e de direito, pelo que se afigura passível de reparo.
II - Mostra-se incorrectamente julgada a matéria de facto dada como provada em 5., 7., 13, 16. e 40 de FACTOS PROVADOS, os quais deveriam ter sido dados como não provados caso o douto Tribunal a quo tivesse efectuado uma criteriosa e cuidada apreciação da prova, designadamente das declarações do arguido e do Relatório Pericial da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
III - O douto Tribunal a quo violou, assim, as normas contidas nos art.º 127º e 163º, nº 1, do Código de Processo Penal.
IV - A pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
V - Ao ter entendido de outra forma, a decisão recorrida violou o artigo 70º do Código Penal.
VI - A substituição de uma pena de prisão de 6 (seis) meses por pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
VII - Assim não procedendo, o douto Tribunal a quo violou a norma contida no art.º 45º, nº 1, do Código Penal.
VIII - Termos em que, concedendo provimento ao presente recurso, deve proceder-se à alteração da matéria de facto provada, nos termos constantes da Conclusão II, revogando-se a douta sentença e, consequentemente, absolvendo o arguido do crime por que vinha acusado, ou, caso assim não se entenda, aplicar ao arguido uma pena de multa, ou, assim não se entendendo, aplicando ao arguido uma pena de prisão em medida inferior a um ano, substituindo-a por uma pena de multa,
Assim se fazendo, JUSTIÇA!»

1.6. O recurso foi regularmente admitido.
1.7. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pronunciando-se no sentido de dever ser julgado improcedente e mantida a sentença recorrida.
«Da análise dos elementos constantes dos autos, mormente da perícia realizada, bem como dos esclarecimentos prestados pelo perito e dos depoimentos das testemunhas resulta inequivocamente que os factos constantes dos pontos 5., 7., 13., 16. e 40. dos FACTOS PROVADOS, deveriam efectivamente ter sido dado como provados, como o foram, pelo Tribunal a quo.
1. Ao dar tais factos como provados, o Tribunal a quo fez correcta interpretação e aplicação dos art.ºs 127.º e 163.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.
2. No caso, revelam-se muito elevadas as necessidades de prevenção geral (associada à frequente criminalidade rodoviária verificada no nosso país), bem como as necessidades de prevenção especial (sentidas e particular face à postura adoptada pelo arguido em julgamento, reveladora de falta de interiorização do desvalor e gravidade da sua conduta negligente).
3. Motivo pelo qual se acompanha a douta sentença recorrida na conclusão de que a pena de multa não se mostra suficiente para dar resposta a essas necessidades, impondo-se uma pena de prisão.
4. Face, em especial à postura do arguido em julgamento, afigura-se-nos que a pena de prisão não deveria ser substituída por multa.
5. Pelo exposto, ao aplicar uma pena de prisão, próxima do mínimo legal e suspensa na sua execução e sujeita a regras de conduta, fez o Tribunal a quo correcta aplicação e interpretação do direito (designadamente dos art.ºs 40.º, 70.º e 71.º, do Código Penal).
6. Mostrando-se a pena aplicada adequada e proporcionada em relação à situação concreta.
7. Pelo que não assiste razão ao recorrente, devendo o respectivo recurso improceder, confirmando-se a douta sentença proferida.
Nestes termos, deve o recurso interposto improceder, confirmando-se antes a douta sentença proferida nos autos, pois que assim se fará, com o douto suprimento de Vossas Excelências, JUSTIÇA!»

1.8. Subidos aos autos a este Tribunal da Relação, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, aderindo aos fundamentos aduzidos pelo Ministério Público, na 1.ª instância, na resposta ao recurso.
1.9. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.
1.10. Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência. Cumpre agora apreciar e decidir:


2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cf. artigo 428º do CPP.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cf. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do CPP.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do n.º 2 do artigo 410º do CPP, mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cf. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso apresentada, são as seguintes as questões suscitadas:
- Impugnação da matéria de facto dada como provada sob os pontos 5., 7., 13., 16. e 40., por erro de julgamento;
- Violação do disposto nos artigos 127º e 163º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal;
- Escolha da pena: Aplicação de pena de multa ao invés de pena de prisão.

2.2. Para que possamos apreciar as questões suscitadas, importa ter presente o teor da sentença recorrida, que se transcreve:
«(...)
II - Fundamentação de Facto
A) Factos Provados:
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1. No dia 15 de Outubro de 2020, pelas 18h35, o arguido (A) conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de marca Mercedes, modelo 200D, matrícula (…..), na Estrada Nacional 118, ao km126, no sentido Tramagal-Constância, pela hemifaixa direita de rodagem, atento aquele sentido de trânsito.
2. Na mesma altura, a vítima (B) conduzia um velocípede, pela mesma na Estrada Nacional 118, ao km126,250, no sentido Constância-Tramagal, pela hemifaixa direita, atento o seu sentido de marcha.
3. O arguido ao aproximar-se do cruzamento que permite seguir na direção de Crucifixo aproximou o seu veículo para a esquerda no sentido de mudar de direção para a localidade de Crucifixo.
4. No cruzamento referido em 3, existe sinalética rodoviária horizontal com a palavra de "STOP".
5. Ao chegar junto do cruzamento, atento o seu sentido de marcha Tramagal Constância e para mudar de direção no sentido da localidade de Crucifixo, o arguido, sem parar, iniciou a manobra de mudança de direção para a esquerda, atravessando a hemifaixa esquerda da via, sem se aperceber da presença da vítima a circular em sentido contrário ao seu.
6. Nesse momento, o veículo conduzido pelo arguido ocupou a hemifaixa esquerda da via, ao mudar de direção no sentido da localidade de Crucifixo e embateu, com a parte frontal do seu veículo, na frente da bicicleta conduzida pela vítima.
7. O arguido executou a mudança de direção para a esquerda numa trajetória perpendicular de 90º.
8. O arguido não logrou evitar o embate com a vítima que circulava no velocípede em sentido contrário ao do arguido.
9. Por força da indicada colisão, o corpo da vítima, foi projetado contra o asfalto daquela estrada, ficando imobilizado no cruzamento.
10. Em consequência do embate, resultaram na pessoa do ofendido lesões traumáticas torácicas e raquimeningomedulares que foram causa direta e necessária da morte de (B).
11. A via é constituída por duas faixas de rodagem de 3,40 metros de largura, cada uma, com duplo sentido de trânsito, sem bermas, em betuminoso, em bom estado de conservação.
12. A faixa de rodagem encontra-se bem sinalizada com marcas no pavimento, designadamente, linhas de separação dos sentidos de trânsito e sinalização horizontal de paragem desenhada no asfalto.
13. No local do embate, a via encontra-se sinalizada com sinais verticais e horizontais de paragem, nos dois sentidos de marcha.
14. O traçado consiste numa reta em patamar com intersecção à esquerda, tomando o sentido de marcha do arguido e com boa visibilidade.
15. À hora do acidente estava bom tempo, a luz do sol era baixa e o pavimento da estrada encontrava-se seco e limpo.
16. Ao conduzir da forma atrás descrita, o arguido agiu com falta de atenção e prudência a que estava obrigado e que podia e devia ter atentado.
17. O arguido previu e quis circular com o seu veículo do modo atrás descrito, bem sabendo que é dever de um condutor conduzir com a atenção devida e, designadamente, que só pode efetuar manobra de mudança de direção se daí não resultar perigo para o trânsito e que deve nos cruzamentos ceder a passagem aos veículos que se lhe apresentem na sua faixa de rodagem, sendo certo que o arguido omitiu tais cautelas, que podia e devia ter observado.
18. O arguido atuou de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que com a sua conduta infringia norma de condução estradal, não se coibindo mesmo assim de agir da forma supra descrita, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.
Mais se provou que:
19. O arguido apercebeu-se da circulação de um veículo pesado no sentido de trânsito Constância-Tramagal a cerca de 200 metros do local onde se encontrava.
20. O arguido achou que podia fazer a manobra de mudança de direção para a esquerda durante o lapso de tempo que o veículo pesado levaria até chegar ao cruzamento e iniciou a travessia da EN 118.
21. No dia 15 de outubro de 2020, pelas 18h35m na Estrada Nacional nº 118 ao quilómetro 126,250 (cruzamento do Crucifixo - Tramagal), localidade de Tramagal, a posição do sol era a seguinte:
- O ocaso do sol ocorreu às 18 h53m31S, logo o sol estava visível.
- Tinha azimute de 76,21º contado de Sul para Oeste, o mesmo que 256,2 0 a partir do Norte Este.
- Tinha altura de 2,92º acima do horizonte geométrico, entrando com a refração atmosférica.
- Neste local a estrada segue em média na direção com Azimute de 76,9º (contado de Sul Oeste).
- O condutor estava num troço da estrada com uma inclinação de 3,6% a subir, ou seja, um ângulo de +2,06º ao plano do horizonte.
22. O ângulo do disco solar (o centro) à direção de visada do condutor (em que se dirige) é de apenas = 1,1º.
23. O ângulo é diminuto e equivalente a apenas dois diâmetros solares se o condutor olha em frente na direção média da estrada.
24. O condutor tinha 66 anos de idade, o que dificulta o problema do encandeamento (ofuscação por falta de contraste na zona imediata à volta da fonte luminosa, o sol), pelo que o parâmetro de encandeamento é de 30x superior ao produzido pelo sol situado a 5º da linha de visada.
25. O sol desviado a 5º o brilho solar já produz encandeamento.
26. Os metros finais antes do sinal STOP, o sol está praticamente de frente.
27. O arguido achou que podia fazer a manobra de mudança de direção para a esquerda durante o lapso de tempo que o veículo pesado levaria até chegar ao cruzamento, iniciou a travessia da EN 118.
28. O problema da posição do disco solar por detrás do ciclista também impede que a roupa do ciclista esteja iluminada diretamente pela luz solar.
29. A roupa do ciclista virada ao condutor só é iluminada pela luz difusa ambiente (luz azul do céu), que é de muito menor intensidade do que a luz solar direta que ofusca o condutor.
30. Falta contraste ao condutor para percecionar bem o ciclista.
31. O ciclista não está totalmente oculto, vendo-se uma silhueta.
32. À medida que o ciclista se vai aproximando do arguido, aquele torna-se mais visível.
33. Havia forte possibilidade das copas das arvores situadas no local efetivamente bloquearem a luz solar direta sobre o condutor e diminuírem o efeito de encandeamento deste.
34. O arguido não viu o velocípede a aproximar-se do cruzamento.
35. Atentas as caraterísticas da via, o arguido para mudar de direção teria de efetuar um ângulo de 45º.
36. Desde que iniciara a mudança de direção e invadir a faixa de rodagem contrária em que se deu o embate, já o arguido se apercebera da presença do sol na posição em que este se encontrava e da possibilidade de ficar encadeado pela luz solar.
37. E, não obstante isso, o arguido não acionou os sinais sonoros, nem avançou em velocidade muito reduzida de modo a parar em fração de segundos ou não aguardou que o camião efetuasse a passagem por si de modo a garantir que não circulavam velocípedes ou outros veículos que poderiam estar menos visíveis pelo encadeamento do sol, como devia e podia ter feito, de modo a que, em caso de encadeamento, pudesse deter a marcha do seu veículo a tempo de evitar o embate com quem se encontrava na faixa contrária.
38. O arguido sabia que devia acionar os sinais sonoros e reduzir a velocidade, naquelas condições meteorológicas, de modo a poder fazer parar o veículo no espaço livre à sua frente, porém, o arguido conduziu o veículo sem adotar esse cuidado que, como condutor, se lhe impunha e de que era capaz.
39. O arguido sabia também que não devia iniciar a mudança de direção e que não podia ocupar a faixa contrária e que deveria aguardar pela passagem do camião, que era o único veículo que tinha avistado, em face do encandeamento, que permitisse evitar o embate com que aí se encontrasse, porém, o arguido conduziu o veículo sem adotar esse cuidado que, como condutor, se lhe impunha e de que era capaz.
40. O arguido não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance.
Das condições pessoais, familiares, sociais e económicas
41. (A) integra um agregado constituído pela mulher, de 65 anos e pela sogra, de 94 anos, reformada.
42. (A), apesar de reformado, trabalha numa empresa sita na zona industrial de Alferrarede como torneiro mecânico.
43. A sogra do arguido partiu uma perna, tendo a mulher do arguido pedido uma licença sem vencimento para apoio à família há cerca de meio ano.
44. O arguido aufere uma reforma de 760,00 e ainda um salário de 750,00 euros mensais
45. O arguido suporta a prestação mensal para amortização do empréstimo contraído para a habitação no valor de € 400,00
46. Suporta ainda duas prestações mensais para amortização de dois créditos pessoais no valor de € 100,00 e 200,00 euros, respetivamente.
47. Aos 12 anos, começou a guardar ovelhas e a desenvolver atividades agrícolas, tendo aos 16 anos ingressado na metalúrgica “Duarte Ferreira” onde aprendeu o ofício de torneiro mecânico
48. Os tempos livres eram passados na caça, tendo o arguido sido durante alguns anos presidente do Clube de Caçadores do Tramagal, atividade que referiu ter deixado desde o ocorrido nos autos.
49. Não desenvolve qualquer atividade de lazer organizada, dedicando os tempos livres ao convívio familiar.
50. Tem 4º ano de escolaridade.
Dos antecedentes criminais
51. O arguido não tem antecedentes criminais averbados.

B) Factos NÃO Provados
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos relevantes para a boa decisão da causa
DA CONTESTAÇÃO
a) Na situação referida em 20., o arguido engrenou a mudança primeira e iniciou a travessia da EN 118.
b) Na situação referida em 21., dada a posição e intensidade do Sol no local onde àquela hora se encontrava.
c) A falta de visibilidade sobre a totalidade do horizonte visual do arguido determinou que, ao efetuar a manobra de mudança de direção, fosse embater no velocípede.

C) Motivação da decisão de facto
O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento globalmente considerada, atendendo aos dados objetivos fornecidos pelos documentos juntos aos autos e fazendo uma análise das declarações prestadas pelo arguido, perito e testemunhas.
Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos meios de prova, destacando-se:
A prova pericial:
Relatório de autópsia de fls. 196 a 204, sendo que “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” (artigo 163.º/1 do Código de Processo Penal) e do qual resultou provado as lesões constantes do ponto 10 dos factos provados e que foram a causa da morte de (B).
Não se considerou os resultados constantes no relatório final do serviço de química e toxicologia forenses de fls. 206, uma vez que o relatório de autópsia refere que a presença das substâncias medicamentosas ansiolíticas e antidepressivas eram em concentrações consideradas terapêuticas, pelo que tal circunstância não permitiu concluir que a vítima contribuiu para a ocorrência do acidente (fls. 204).
Relatório da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, do Departamento de física e elaborado pelo Prof. Dr. Rui Jorge Agostinho, Astrónomo e Astrofísico, constante de fls. 393 a 395, sendo que “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” (artigo 163.º/1 do Código de Processo Penal), conjugado com os esclarecimentos prestados pelo Prof Dr. Rui Agostinho em sede de audiência.
A prova pericial representa em processo penal um desvio ao princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127º do C.P.P. tem lugar quando a perceção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos - art. 151º do C.P.P.
Ora não tendo, a aqui signatária, conhecimentos técnicos iguais aos do perito em Astrofísica (no caso vertente), não poderá, sem mais, desconsiderar o resultado obtido pela perícia; isto é, tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca pela análise da prova documental, ou pelas declarações do arguido.
Portanto, a aqui signatária não valorou (em termos de livre apreciação) estes relatórios periciais em conformidade com o disposto na norma aplicável do artigo 163º, no seu nº. 2, do C.P.P., por não ter conhecimentos técnicos de astrofísica e se o fizesse violaria, assim, o princípio da prova vinculada.
Em face do exposto, conjugado com os croquits de fls. 340 a 343, fotografia nº 26 do relatório fotográfico de fls. 173 a 179 verso, fotografia 15 do relatório fotográfico de 344 a 361 e vídeo de simulação de acidente em suporte de CD de fls. 362 (o qual se encontra reproduzido em foto imagem no relatório técnico de fls. 365 a 377), o Tribunal concluiu que, nos metros finais que antecedem o sinal de STOP, arguido está encadeado pelo sol e apercebe-se deste facto. Não obstante, apercebe-se, também, acerca de 200 metros antes do entroncamento, da existência de um camião na faixa em sentido contrário (o qual não está tapado pela posição do sol, por se encontrar no lado direito do seu campo de visão). Como bem referiu o Sr. Perito, o sol, naquele dia, hora e local, está posicionado no lado esquerdo do seu campo de visão frontal. E o arguido foca a sua atenção no camião, que está no lado direito do campo visual frontal, descurando na verificação de objetos mais próximos (no caso, o ciclista); em face do encandeamento provocado metros antes do sinal de stop, a sua visão demora a recuperar. Acresce que o ciclista já está a circular com o sol atrás de si e iluminado apenas pela luz ambiente, o que impede que o vestuário refletor sobressaia, o que obsta o arguido de o percecionar com nitidez. Sucede que o arguido ainda assim poderia ter-se apercebido de um vulto naquele local. Mas tal não sucedeu.
Em face da prova pericial, dos referidos documentos e do vídeo, o qual simula o acidente, bem como das declarações do arguido, conclui o Tribunal que o arguido focou a sua atenção no camião e, em face das condições atmosféricas, visão perturbada pelo encadeamento, conjugado com a circunstância de o ciclista circular em zona com luminosidade de intensidade muito menor, o arguido acreditou que não circulava ali a vítima, sem ter o cuidado de assim verificar. E nessa medida, inicia a manobra de mudança de direção para o entroncamento, sem ter parado ao sinal stop.
E como é que conclui o Tribunal que o arguido não parou ao sinal STOP?
Pelas seguintes razões:
1. Tendo o arguido focado a sua atenção no camião, que circulava a 200 metros de distância e não se tendo apercebido que o ciclista ali circulava, avançou rapidamente para o cruzamento, efetuando um ângulo de 90º graus.
2. Se o arguido tivesse parado na linha limite do STOP, para entrar na sua via, teria de andar em frente até junto à raia e aí mudar a direção, efetuando um angulo de 45º graus, não ficando encadeado pelo sol, uma vez que as copas das árvores tapavam o sol e, desta forma, teria necessariamente, observado o vulto do ciclista.
3. Acresce que, se o arguido tivesse parado ao sinal de STOP, entre o momento da efetiva imobilização e arranque da marcha, decorria o tempo suficiente para o arguido recuperar a nitidez da sua visão (a qual foi perturbada, momentos antes, pelo encadeamento do sol). E isto permitiria o arguido aperceber-se do vulto do ciclista.
4. Igualmente se conclui que o arguido não parou ao sinal de STOP em face da posição em que ficou imobilizado o seu veículo após o embate. Note-se que o veículo ficou imobilizado em cima da linha longitudinal que separa as duas faixas de rodagem da estrada que vai para a localidade do Crucifixo. E, mais uma vez se reitera, caso tivesse parado junto à linha de STOP e fizesse a manobra de mudança de direção efetuando um ângulo de 45º, mesmo que embatesse no ciclista, o veículo ficaria imobilizado na faixa de rodagem da direita da estrada que segue para a localidade do Crucifixo.
Assim, em face da inexistência de prova pericial que contrarie as conclusões insertas no aludido relatório elaborado pelo Prof Dr. Rui Agostinho conjugado com os seus esclarecimentos prestados em sede de audiência, conclui-se igualmente que o arguido no dia, hora e local do acidente, tinha a sua visão reduzida provocada pelo encandeamento ocorrido nos metros finais; o arguido não cuidou em focar a sua atenção na faixa de rodagem na zona onde seguia o ciclista (junto ao entroncamento), mantendo a sua atenção focada no camião, que circulava a 200 metros de distância, pelo que não parou ao sinal de STOP, pois acreditou que mantendo a velocidade (mesmo que reduzida) conseguia mudar de direção para a sua esquerda e seguir o caminho da localidade do Crucifixo, antes do camião chegar ao cruzamento.
Sucede que o arguido esqueceu-se de verificar se circulavam veículos ou velocípedes mais perto do cruzamento, os quais não eram tão viseis, por apenas beneficiarem da luz ambiente (luz do azul do céu). Pelo exposto, conclui o tribunal conduzia de forma distraída e desatenta, não parando ao sinal STOP e imprimindo uma velocidade desadequada ao local, nomeadamente, parando o seu veículo ao sinal STOP para verificar, com o cuidado que se impõe, se existiriam outros veículos ou velocípedes a circular mais perto do cruzamento.
Pelo exposto, deu-se como provado os factos 3, 5 a 9, 15 a 18 e 21 a 36. E como não provado os factos a) a c).
A prova documental, cujo teor não foi impugnado, nomeadamente:
- A participação de acidente de fls. 142 a 145, a qual permitiu dar como provado o dia, hora e local (localidade) dos acontecimentos (facto 1);
- Ficha CODU 219939 de fls. 147, o qual permitiu dar como provado que (B) faleceu no local do acidente.
- Relatório fotográfico de fls. 173 a 179 verso conjugado com o relatório fotográfico de fls. 344 a 361, os quais concretizam visualmente as características da via (nomeadamente, que o local onde ocorreu o acidente, o estado do piso, o tipo de sinalização existente no local, o tipo, matrícula e a posição em que veículo, conduzido pelo arguido, ficou imobilizado, a posição do velocípede, vestígios hemáticos (os quais permitiram apurar o local onde a vítima ficou imobilizada) após o embate e respetivos danos materiais sofridos (factos 1, 11 a 15).
- As fotografias de fls. 239 a 240, juntas pelo arguido, vêm confirmar as conclusões do Sr. Perito, que metros finais antes da linha do stop há encandeamento, podendo-se constatar que as copas das arvores tapavam parcialmente o reflexo da luz solar. Esta fotografia permite concluir que, caso o arguido fosse até a linha de STOP e ali imobilizasse o veículo, teria tido tempo para se aperceber que a vítima ali circulava de bicicleta na zona menos iluminada (factos, 26 e 33).
- Relatório Final de fls. 256 a 261 verso, o qual apenas permitiu dar como provado o local do acidente, características da via.
Já não se considerou as conclusões ali formuladas por as mesmas terem sido descredibilizadas pelo Sr. Perito e por se ter concluído que efetivamente o arguido fez a mudança de direção perpendicularmente em ângulo de 90º.
Também não se considerou a conclusão, segundo a qual, terá sido facto do arguido não entrar no entroncamento perpendicularmente (em angulo de 90º) que embateu no ciclista, dado que não foi possível calcular o ponto de embate.
Na verdade, em face da perícia e dos documentos supra aludidos, o Tribunal concluiu que o embate se produziu porque o arguido não focou a atenção na faixa de rodagem contrária junto ao entroncamento, apenas focando a sua atenção no camião que circulava a cerca de 200 metros de distância, descurando nos objetos/pessoas que poderiam estar na faixa de rodagem contrária junto ao entroncamento e menos visíveis por estarem apenas iluminados pela luz ambiente, a qual é substancialmente de menor intensidade que a luminosidade causada pela luz solar. E o arguido, tendo a sua atenção focada no camião, sem cuidar de olhar para o que poderia circular na faixa de rodagem contrária e mais próximo do entroncamento, assumiu que nada ali circulava e, sem parar ao sinal STOP fez a manobra em ângulo reto para poder atravessar a faixa contraria mais rapidamente. E estas duas circunstâncias (não prestar atenção ao que estava na via contrária junto ao entroncamento e não parar ao STOP) provocou o embate na vítima, causando-lhe a morte.
Pelo exposto, conclui-se, sem margem para dúvidas, que o arguido estava a conduzir sem estar a olhar para o que circulava na faixa de rodagem contrária junto ao entroncamento, de modo a se aperceber que o ciclista circulava naquele local junto ao entroncamento, nomeadamente, na intersecção que dá acesso à estrada que vai no sentido da localidade do crucifixo.
Acresce que não merece qualquer reparo a conduta do ciclista, pois não é expectável que a vítima assuma que o arguido conduza o seu veículo de forma desatenta de modo a não o visualizar, não se apercebendo que o ciclista se encontrava junto ao entroncamento e a circular na sua faixa de rodagem.
O relatório final apenas permitiu dar como provado os factos (1, 2, 11 a 15).
- Croquits de fls. 340 a 342. Estes croquits permitiram dar como provado o local onde a viatura ficou imobilizada, o trajeto do arguido e da vítima e conjugado com o vídeo de simulação do acidente e a prova pericial, nos moldes já expostos permitiu dar como provado os factos 3, 5 a 9, 15 a 18 e 21 a 36. E como não provado os factos a) a c).
- Vídeo Técnico de fls. 388 conjugado com o relatório de técnico de acidente de viação de fls. 364 a 377. Este vídeo permite concluir que o arguido nos metros finais que antecedem o sinal de stop, fica encandeado pelo sol, mas à medida que se aproxima do entroncamento, as copas das árvores tapam o sol, eliminando o encandeamento e esta circunstância permitia o arguido aperceber-se que o ciclista, ou pelo menos um vulto, ali circulava naquele momento. Ora, se o arguido estivesse a prestar atenção à faixa de rodagem que ladeia o entroncamento, ao invés de focar a sua atenção no camião que estava a 200 metros de distância, o arguido teria, necessariamente, apercebido que a vítima ali circulava e não teria avançado para aceder ao entroncamento que dá acesso à via que vai no sentido da localidade do Crucifixo.
Este vídeo e relatório técnico de suporte e a prova pericial, nos moldes já expostos permitiu dar como provado os factos 3, 5 a 9, 15 a 18 e 21 a 36. E como não provado os factos a) a c).
- Relatório Técnico de análise do GPS (que a vítima tinha colocado na sua bicicleta) de fls. 648 a 658) do qual se conclui que não é possível apurar com exatidão o ponto de embate. Não obstante da defesa pretender que se concluísse que a vítima circulava fora de mão tal como indicado na linha vermelha das imagens de fls. 653, contribuindo para a produção do acidente, a verdade é que este relatório refere que o GPS tem uma margem de erro de 3,6576 metros. E do croquit de fls. 542, na imagem ilustrativa ampliada refere que a via tem 3,40m.
Ora, em face da margem de erro indicada, das duas uma:
1. A vítima circularia em contramão (na via contrária no sentido de Tramagal Constância) e neste caso, uma vez que o arguido pretendia voltar para o Crucifixo, o embate nunca se produziria;
2. a vítima efetivamente circulava o mais à direita possível no sentido Constância-Tramagal.
E em face do acidente ocorrido, necessariamente se conclui que a vítima seguia na sua faixa de rodagem, o mais à direita possível, cumprindo as regras estradais.
Ou seja, a análise ao GPS de que era portador o ciclista/vítima permitiu concluir que este circulava na Estrada Nacional 118, ao km 126,250, no sentido Constância Tramagal, pela hemifaixa direita (facto 2).
Sucede que este relatório não permitiu apurar o local exato do embate. Mas esta circunstância em face do que acima se expôs não se mostrou relevante para apurar se houve ou não encandeamento e se a vítima era visível ao arguido quando este inicia a manobra de mudança de direção para a localidade do Crucifixo.
- CRC de fls. 670, o qual permitiu apurar que o arguido não possui antecedentes criminais (facto nº 50);
- Relatório social de fls. 328 a 332, o qual permitiu apurar as circunstâncias de vida do arguido e sua personalidade, porquanto elaborado de forma objetiva, fundamentada, conseguido através de entrevista com o arguido, contactos com familiares e pessoas com quem trabalha, permitindo dar como provado os factos nº 41 a 49.
Em suma, em face da prova pericial produzida pela Universidade Nova de Lisboa e da prova documental aludida permitiu ao Tribunal concluir que pese embora resultado provado que o arguido foi, de facto encandeado, pela luz solar nos metros finais que antecede a linha do sinal STOP, como resulta das regras da experiência de qualquer condutor, no momento em que se é encandeado pelo sol perde-se por completo, numa fração de segundos, a visibilidade, pela surpresa e pela exposição a uma fonte de luz bastante forte; porém, a tendência nestas situações, é abrandar a marcha e fixar a visão ao nível da altura inferior do para brisas de forma a conseguir percecionar, a visionar os demais utentes da via. É certo que uma luz solar descendente, encandeia qualquer condutor; porém, tal encandeamento não teve a virtualidade de impedir que o arguido pelo menos tivesse avistado um vulto junto ao entroncamento caso focasse a sua atenção na faixa de rodagem contrária junto à interseção das estradas, em vez de estar a olhar para o camião que circulava a 200 metros de distância.
- As declarações do arguido, o qual assumiu toda a descrição factual do acidente constante da matéria dada como provada, à exceção que não parou ao STOP, reportando que parou uns metros antes da linha do sinal de STOP. Mais referiu que viu um camião a 200 meros de distância a circular em sentido contrário ao seu, mas que não avistou o ciclista. Quando iniciou a mudança de direção sentiu algo a bater no vidro, só se apercebendo que tinha batido numa pessoa quando abriu a porta do carro. Mais referiu que achou que tinha efetuado a manobra de mudança de direção corretamente, apesar de estar encandeado pelo sol, mas admitindo como possível que tenha efetuado a manobra tal como indicada no croquit de fls. 341.
Como se referiu supra, as suas declarações não mereceram credibilidade em face do resultado da prova pericial conjugada com a demais prova documental e cujas considerações supra dilucidadas aqui se consideram reproduzidas.
Quanto à concreta dinâmica do acidente, flui da prova documental e pericial globalmente produzida, integrada pelas regras da experiência comum, da lógica e da normalidade da vida, que aquele embate se deveu ao facto do arguido não ter avistado que o ciclista circulava na faixa contrária junto ao entroncamento por ter o seu campo de visão focado no camião e por não ter parado na linha de stop.
Na verdade, se tivesse focado a sua visão na faixa de rodagem contrária junto ao entroncamento, apesar de ter sido encandeado momentos antes, teria avistado um vulto naquele local, teria parado ao STOP, recuperaria a visão na sua totalidade e só avançaria para a mudança de direção após constatar com segurança que mais ninguém ali passava, incluindo o camião.
Não patenteia a prova produzida que a culpa foi do ciclista, antes pelo contrário.
Flui da prova documental e pericial produzida que o arguido não já não estaria encadeado quando inicia a manobra de mudança de direção, porque s copas das arvores tapavam o sol daí se ter dado como não provado os factos constantes nas alíneas a) a c) e como provados os factos 1 a 40.
A prova testemunhal, em nada contribui para a descoberta da verdade. De facto, a testemunha (C) limitou-se a ouvir as testemunhas e o arguido durante a fase de inquérito, não tendo estado no local do acidente, no dia em que tudo sucedeu, admitindo como bom o croquit efetuado pelo militar (D) e as fotografias por ele captadas. Após insistência do Tribunal sobre a razão de concluir que o acidente se tinha dado por o arguido não ter efetuado a mudança de direção sem ser de forma perpendicular, quando os croquits evidenciavam o contrário, afirmou que não escreveu corretamente o seu pensamento. Ora, o Tribunal não acreditou nesta sua justificação, concluindo que elaborou o relatório de forma leve sem cuidar de analisar os documentos juntos aos autos. Acresce quando instado quando chegou à conclusão que o ponto de embate era o indicado nos croquits, o mesmo referiu que tal conclusão não foi sua, mas do colega (D), que no dia do acidente se deslocou ao local, não sabendo responder ao questionado.
Portanto, esta testemunha por não ter analisado o local do acidente, os factos que reportou no relatório não resultam de perceção direta sua, mas de terceiro. Portanto, esta testemunha nada sabia.
A testemunha (E), militar da GNR, não viu o acidente e apenas esteve no local após a sua ocorrência, apenas recolhendo a identificação do arguido, não tendo efetuado qualquer ato de investigação, pelo que nada sabia.
Por sua vez a testemunha (D), quando inquirido, reportou que o ponto indicado como o local de embate é apenas provável. Tratou-se de um depoimento pouco convicto e que oscilações de conclusões, sem, contudo, justificar de forma plausível como chegou ao ponto provável de embate.
Quando confrontado com o resultado do relatório de análise ao GPS (não era possível indicar com exatidão o ponto de embate), nomeadamente com as imagens ali ínsitas, ficou surpreendido e acabou por concluir que as duas conclusões apresentadas (por ele e pelo colega E) eram plausíveis. E em face disto, concluiu o Tribunal que o ponto provável do embate poderia muito bem não ser o ponto de embate indicado por esta testemunha. Pelo exposto, o seu depoimento não foi valorado
Mas tal como se referiu supra, o local de embate não se revelou essencial para apurar a razão da produção do acidente.
Das regras da experiência comum, quanto aos factos 16 a 18, 36 a 40, quando aliadas à forma como os ocorreram os factos objetivos dados como provados, o que permite inferir que o arguido agiu com a falta de cuidado que lhe era exigível e que poderia ter evitado a produção do acidente e as lesões que do mesmo resultaram para a vítima mortal, caso tivesse adotado uma conduta cuidadosa, nomeadamente, olhando para a faixa de rodagem contrária, junto ao entroncamento, de modo a aperceber-se que o ciclista estava a circular na faixa contrária junto ao entroncamento e parando ao STOP.
Na verdade, o que se pede e espera nestes casos (de mudança de direção) é que os condutores mantenham a sua visão focada na faixa de rodagem junto ao entroncamento, de modo a aperceber-se se alguém ali circula. Como também o que se espera de um condutor cumpridor é que pare ao sinal stop. Na verdade, o efeito que era previsível seria que focasse a sua atenção à faixa de rodagem junto ao entroncamento e que parasse ao sinal stop. E se tivesse cumprido estas duas regras, necessariamente, teria avistado o ciclista que ali circulava e não teria iniciado a manobra de mudança de direção, sem se assegurar que o ciclista já tinha passado a intersecção do entroncamento, evitando o embate.
Ao conduzir da forma como o fez, atuou de forma descuidada e expectável ao que se pede naquele caso concreto.
Efetivamente, atenta a configuração do local onde ocorreu o acidente, o estado do tempo e da via, bem como a visibilidade da via, cujo encandeamento já tinha cessado com a aproximação das copas das árvores quando iniciou a manobra de mudança de direção, não teve o Tribunal qualquer dúvida que o mesmo seguia desatento, não se tendo certificado de que o ciclista ali circulava, de modo a não embater no mesmo. De facto, atento o que se expõe, conclui o Tribunal que o arguido tinha perfeito conhecimento da perigosidade da forma como estava a conduzir naquele momento e mesmo assim optou por fazê-la.
- No que concerne à factualidade julgada como não provada, consignada sob os pontos a) a c), resultou a mesma da demonstração de coisa diversa - sendo patente, atenta a prova produzida, conforme supra se disse, não podendo afirmar-se com recurso às regras da experiência comum e da normalidade da vida, as quais inculcam, precisamente, o inverso.

IV ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punível pelas disposições conjugadas do art. 137.º, 1 do Código Penal, por referência aos artigos 30º, n.º 1, 35º, n.º 1, 44.º n.ºs 1, 2 e 3, 145.º n.º 1 alínea f), 146.º n.º 1 alínea n) e 103º n.º 3, todos do Código da Estrada, incorrendo também na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, prevista e punida pelo artigo 69º, n.º 1 alínea a) do Código Penal.
Nos termos do disposto no artigo 137.º do Código Penal, nº 1 consta “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Como se depreende da sua inserção sistemática, esta infração pretende proteger o valor absoluto vida humana, arvorado, no nosso ordenamento jurídico, à categoria de primeiro direito fundamental (art. 24.º da CRP), decorrente da ideia de dignidade da pessoa humana (art. 1.º da Lei Fundamental).
O bem jurídico protegido por tal tipo legal é, pois, a vida, caracterizando-se por admitir uma só agressão, e desaparecendo em sua consequência.
A justificação da punição da negligência no crime de homicídio reside do ponto de vista da dignidade penal na circunstância de estar em causa a tutela da vida humana, bem jurídico de natureza pessoalíssima e, atrevemo-nos, o de maior importância do catálogo de bens jurídicos fundamentais. Do ponto de vista da carência da sanção punitiva, aquela justificação funda-se na massificação daquele fenómeno, concomitantemente à criação de novas fontes de perigo para a vida, considerando a sociedade de globalização atual.
Autor do crime de homicídio pode ser qualquer pessoa (“Quem matar”), tratando-se, assim, de um crime comum. Por outro lado, trata-se de um crime de execução livre, na medida em que o iter criminis não vem descrito na norma incriminadora, sendo irrelevante o modo de execução. Ainda, trata-se de um crime de dano, porquanto a realização do tipo incriminador tem como consequência a efetiva lesão do bem jurídico.
O tipo objetivo de ilícito consiste em matar outra pessoa – (1) Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 5 –. Assim, a consumação do crime de homicídio dá-se com a morte de uma pessoa, devendo esta ser definida com recurso ao critério da morte cerebral, ou seja, quando ocorre a cessação das funções do tronco cerebral, o que, pela sua natureza, implica a destruição anatómica estrutural do cérebro na sua totalidade, importando lograr a comprovação da morte cerebral em termos objetivos.
Os meios utilizados para provocar a morte são absolutamente irrelevantes, (...) indiretamente, por conduta ativa ou omissiva, sejam utilizados meios físicos ou psíquicos, resulte aquela do encurtamento do período de vida de uma pessoa sã ou do apressamento da morte de um moribundo, ocorra ela imediatamente ou após um período longo relativamente á ação ou omissão (…) – (2) Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 16. –, bastando apenas que se comprove o nexo de imputação objetiva do resultado à conduta.
A construção dogmática do facto negligente, enquanto essência do ilícito em análise nos autos, deverá, então, ser desenvolvida à luz do regime geral postulado no artigo 15.º Código Penal. Assim,
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
No primeiro caso, o agente age a título de negligência consciente, sendo que no segundo, o agente age a título de negligência inconsciente.
Essencial é que o agente atue com violação de um qualquer dever de cuidado que segundo as circunstâncias do caso concreto esteja obrigado e lhe seja exigível segundo as suas condições pessoais aptas a permitir-lhe cumpri-lo.
Trata-se, pois, de um comportamento diferente daquele que seria devido numa situação de perigo para o bem jurídico e apto a evitar uma violação juridicamente proibida, tornando-se indispensável que tenha ocorrido uma violação de um dever de cuidado por parte do agente que a ele se encontrava obrigado e que conduziu ao resultado típico no caso, a morte desde que este resultado seja previsível e evitável, de acordo como critério do homem médio. – (3) Vide, neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, pág. 864. -
A violação de um dever de cuidado constitui o (...) momento do próprio conteúdo de toda a norma de comportamento – (4) De acordo com a forma adoptada por Engisch, apud Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 869. – e não antes um puro critério de imputação objetiva específico dos factos negligentes, concretizado, então, na (…) violação de exigências de comportamento em geral obrigatórias cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respetiva, para evitar realizações não dolosas de um tipo objetivo de ilícito – (5) Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 870. –
No que concerne à concretização dos critérios do cuidado devido, a determinação deste deverá ser alcançado com recurso a um critério objetivo e generalizador, com a exceção, contudo, à verificação de capacidade pessoais do agente acima daquelas que um homem médio possuiria, havendo estas que ser consideradas para fundamentar o preenchimento do tipo de ilícito da negligência, sendo que, no caso de se verificarem capacidades pessoais do agente e inferiores às de um homem médio, tal circunstancialismo deverá relevar apenas ao nível da culpa negligência e não ao nível da tipicidade.
Assim, e em súmula, conforme o entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra – (6)De 10/10/2010, processo n.º 195/07.2GTCTB.C1, disponível em www.dgsi.pt. Enquanto crime material ou de resultado, o tipo-de-ilícito do crime de homicídio negligente consiste em causar a morte a outra pessoa, sendo nesta medida necessário que ao desvalor da violação do dever objetivo de cuidado criador ou potenciador de um risco proibido – ato agressor – corresponda de forma direta e necessária o desvalor de resultado – a morte de outra pessoa.
Refere Maria Margarida Silva Pereira – (7) Esquematização seguida de Direito Penal II – Os Homicídios, AAFDL, 2008, pág. 185. –, de molde a determinar o preenchimento do tipo de crime em análise, que assumem relevância os seguintes elementos:
- A possibilidade de reconhecer o perigo de verificação do tipo;
- Uma atuação idónea a produzir o resultado típico que não observa o cuidado objetivamente requerido;
- A produção do resultado típico ser imputável ao comportamento descuidado.
Característico da conduta negligente será a não observância de certas regras ou ditames de cautela. Isto é, quando estes preceitos de cautela se omitem “e o efeito proibido por lei vem, por via disso, a ter lugar, este facto pode imputar-se ao agente, porque omitiu aquele dever de diligência ligado à realização da sua conduta perigosa e, com ele, omitiu o dever de representação, ou de justa representação, daquele efeito” - cfr. Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, Vol. I, Coimbra, 1971, p. 424.
Ora, de qualquer atividade será exigível, em princípio, e no que toca à sua execução, um cuidado, uma destreza e atenção próprios, que permitam evitar a produção de certos eventos proibidos.
Relativamente a certas e específicas áreas do comportamento humano e social, há, no entanto, a necessidade de plasmar, normativamente, regras e preceitos reguladores, mais ou menos minuciosos, tendo em atenção a perigosidade inata a tais atividades; uma dessas áreas de atuação é, obviamente, a do tráfego automobilístico e a condução, em geral, de veículos automóveis, atividade perigosa, já que se lida com objetos em si mesmos potencialmente perigosos.
No domínio da circulação rodoviária, a negligência consiste na falta de cuidado em não se preverem as incidências do tráfego que se podiam prever e deviam ter sido previstas, não se tomando com o veículo as precauções aconselháveis para evitar o resultado (danoso).
Sendo a condução automóvel uma atividade particularmente perigosa, ela implica, além das regras gerais de cuidado, o cumprimento de regras especiais de cuidado, que se traduzem na observância ou proibição de violação das normas do Código da Estrada. Claro que, para além do respeito pelas normas do direito estradal, não pode deixar de exigir-se, a quem conduz, uma permanente e incessante atitude de tensão intelectual e mecânica em relação à atividade que se desenvolve, em específicas e concretas circunstâncias, quantas vezes irrepetíveis.
E, se isto é assim, a negligência suporá sempre, e antes de mais, a atitude do agente que não usou da diligência exigível, segundo as circunstâncias concretas, para evitar o evento.
Claro que, para a verificação da negligência, não basta a mera omissão de um dever jurídico de cuidado; é ainda necessário que a produção do resultado seja previsível e só a omissão de tal dever impeça a sua previsão.
Recorrendo, ainda, à lição do Prof. Eduardo Correia, dir-se-á que “deve haver um dever de prever e, portanto, a objetiva possibilidade de negligência, sempre que uma conduta em si, sem as necessárias cautelas e cuidados, seja adequada a produzir um evento” (Ob Cit., p. 426).
Tudo isto nos transporta para as circunstâncias concretas de cada caso e, em face das mesmas, surgirá a seguinte pergunta: que cautelas (especiais ou não) seria de exigir neste caso? E, por outro lado, a atitude do agente configura uma omissão dessas cautelas, sendo, pois, normal e previsível que de tal omissão pudesse resultar o evento danoso?
É que o direito penal não pode obrigar a nada mais para além da observância do cuidado que objetivamente era exigível, em cada caso concreto, àquele que se encontrava nessa situação (cfr. Prof. Muñoz Conde, in “Derecho Penal – Parte General”, Ed. “Tirant lo blanch”, Valencia, 1993, p. 263).
Por isso mesmo, a censura a título de negligência (e, portanto, o juízo ético de reprovação em que a culpa se traduz) assenta no pressuposto de que o agente possa, ou seja capaz, nas circunstâncias do caso e segundo as suas capacidades pessoais, de prever corretamente a realização do tipo legal de crime - isto mesmo decorre, aliás, da própria formulação legal do art. 15.º do Código Penal.
Em face das considerações que se deixaram expendidas, atentemos, antes de mais, nas normas do direito estradal que, face à factualidade apurada, se afiguram relevantes.
Desde logo, flui do disposto no art. 30º, nº 1 do Código de Estrada que “Nos cruzamentos e entroncamentos o condutor deve ceder a passagem aos veículos que se lhe apresentem pela direita”.
O art 35º, nº 1 do mesmo diploma legal estatui: “O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.”
Por último o artº 44º preceitua que:
“1 - O condutor que pretenda mudar de direção para a esquerda deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afeta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efetuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação.
2 - Se tanto na via que vai abandonar como naquela em que vai entrar o trânsito se processa nos dois sentidos, o condutor deve efetuar a manobra de modo a dar a esquerda ao centro de intersecção das duas vias.”
Dispõe o art 21º do Regulamento de sinalização de transito: “Os sinais de cedência de passagem, representados no quadro XXIII, em anexo, são os seguintes: (…) B2 (vulgo, sinal STOP) — paragem obrigatória no cruzamento ou entroncamento: indicação de que o condutor é obrigado a parar antes de entrar no cruzamento ou entroncamento junto do qual o sinal se encontra colocado e ceder a passagem a todos os veículos que transitem na via em que vai entrar;(…)”
Ora, em face da factualidade que resultou provada e revertendo aos dispositivos legais que agora se deixaram citados, impõe-se, pois, desde logo, concluir que o arguido infringiu a disciplina legal emergente dos arts. 30º, nº 1, 35º, nº 1, 44º, nº 1 e 2, do Código da Estrada, e ainda violou o dever de paragem obrigatória no entroncamento, tal como previsto no art 21º do Regulamento de sinalização de transito indiciando-se a negligência.
Com efeito, está provado nos autos que, no dia 15 de Outubro de 2020, pelas 18h35, o arguido (A) conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de marca Mercedes, modelo 200D, Inquérito matrícula (…..), na Estrada Nacional 118, ao km126, no sentido Tramagal-constância, pela hemifaixa direita de rodagem, atento aquele sentido de trânsito.
Na mesma altura, a vítima (B) conduzia um velocípede, pela mesma na Estrada Nacional 118, ao km126,250, no sentido Constância-Tramagal, pela hemifaixa direita, atento o seu sentido de marcha.
O arguido ao aproximar-se do cruzamento que permite seguir na direção de Crucifixo aproximou o seu veículo para a esquerda no sentido de mudar de direção para a localidade de Crucifixo.
No cruzamento referido existe sinalética rodoviária horizontal com a palavra de "STOP".
Ao chegar junto do cruzamento, atento o seu sentido de marcha Tramagal-Constância e para mudar de direção no sentido da localidade de Crucifixo, o arguido, sem parar, iniciou a manobra de mudança de direção para a esquerda, atravessando a hemifaixa esquerda da via, sem se aperceber da presença da vítima a circular em sentido contrário ao seu.
Nesse momento, o veículo conduzido pelo arguido ocupou a hemifaixa esquerda da via, ao mudar de direção no sentido da localidade de Crucifixo e embateu, com a parte frontal do seu veículo, na frente da bicicleta conduzida pela vítima.
O arguido executou a mudança de direção para a esquerda numa trajetória perpendicular de 90º.
O arguido percebeu a circulação de um veículo pesado no sentido de trânsito Constância-Tramagal a cerca de 200 metros do local onde se encontrava.
O arguido achou que podia fazer a manobra de mudança de direção para a esquerda durante o lapso de tempo que o veículo pesado levaria até chegar ao cruzamento, iniciou a travessia da EN 118.
O arguido não viu o velocípede a aproximar-se do cruzamento.
Desde que iniciara a mudança de direção e invadir a faixa de rodagem contrária em que se deu o embate, já o arguido se apercebera da presença do sol na posição em que este se encontrava e da possibilidade de ficar encadeado pela luz solar.
Por força da indicada colisão, o corpo da vítima, foi projetado contra o asfalto daquela estrada, ficando imobilizado no cruzamento.
É certo, como atrás se disse, a medida do cuidado exigível pode não corresponder em todas as situações aquela que é imposta pelas normas de trânsito. Só que o cumprimento ou não das regras estradais – que mais não se destinam do que a manter a circulação dentro de limites de segurança preventivos quanto à materialização dos perigos existentes – não pode deixar de ser visto como um indício deveras significativo para aferir se existe ou não a adoção de uma conduta de acordo com os deveres de cuidado que são de exigir aos condutores de veículos automóveis.
Indício este que, no caso sub judice, é plenamente confirmado pela aferição de que a conduta do arguido foi, efetivamente, descuidada.
Na verdade, é meu entendimento que, ao conduzir o seu veículo na forma como o fez, o arguido valorou deficientemente a realidade objetiva, assumindo uma condução desajustada.
Tal traduz um comportamento negligente, porque desconforme com o dever de cuidado que, no caso, se impunha, de adequar a sua atenção e visão ao ciclista que circula na faixa de rodagem contrária junto ao entroncamento, a fim de garantir que antes de iniciar a manobra de mudança de direção o poderia fazer após ceder a passagem ao ciclista e sem resultar perigo para este último, o qual circulava na faixa de rodagem contrária à do arguido, tal como impõem os artº 30º e 35º do Código de Estrada.
O dever de cuidado pressupõe a obrigação do agente assumir um comportamento correto tal que evite a produção do resultado típico, ponderando-se, ao nível da respetiva exigibilidade, a possibilidade de representar ou prever o perigo para o bem jurídico protegido pela norma jurídica e/ou valorar este perigo.
Impõe-se reconhecer que o arguido, na posição concreta em que se encontrava, podia, segundo a experiência geral e até da sua experiência pessoal, ter valorado as circunstâncias que se patenteavam de forma distinta, designadamente, atentando aos veículos ou velocípedes que circulavam na faixa contrária e junto ao cruzamento, de modo a ceder a sua passagem (que é prioritária, por se apresentar à sua - do arguido - direita), às características e da via, por forma a parar o veículo por si conduzido ao sinal STOP, de modo a não embater no veículos ou velocípedes que ali passassem na faixa contrária.
A demonstração de que o arguido é experiente, em face de possuir carta de condução, podia ter valorado as circunstâncias de modo distinto, prevendo que podiam circular veículos ou velocípedes na faixa contrária junto ao cruzamento. Mas mais, o facto de ali existir um sinal STOP impõe ao condutor a obrigação de parar antes de entrar no entroncamento junto do qual o sinal se encontra colocado e ceder a passagem a todos os veículos que transitem na via em que vai entrar.
É sabido que o exercício da condução é uma atividade voluntária que envolve um determinado risco. Como tal, é exigível de todos os condutores que observem, na respetiva condução, deveres gerais de cuidado de modo a não pôr em perigo os demais utentes da via. Tal não aconteceu, manifestamente, no que ao arguido diz respeito, não tendo o mesmo sido capaz de desenvolver uma condução que, não colocando em causa a segurança de terceiros, respeitasse as normas societárias e estradais.
Ademais, o arguido tinha a obrigação de cumprir uma conduta mais cuidada, pois era-lhe exigível que, nas específicas circunstâncias em que circulava, desenvolvesse um tipo de condução diferente, adotando outros cuidados ao circular na via em que transitava, atentas as características do seu veículo, da própria via e, principalmente, focando a sua atenção nos obstáculos mais próximos ao invés de focar a sua atenção num camião que circulava a 200 metros de distância,
Temos, pois, como indiscutível que se patenteia uma conduta negligente do arguido.
Exigindo-se, porém, para o preenchimento integral do tipo de ilícito a produção de um resultado, importa verificar, não apenas se esse resultado se produziu, como, também, se ele pode ser atribuído à conduta do arguido, assim aquilatando da verificação do nexo causal entre a ação negligente do arguido e o resultado morte que se veio a verificar.
Ora, ante a factualidade cuja demonstração se logrou e tendo em vista as considerações que supra se expenderam, nesta sede, é meu entendimento que a condução desenvolvida pelo arguido supra descrita (quando iniciou a manobra de mudança de direção no entroncamento em causa) - e tendo, nessa sequência, embatido no ciclista que circulava na faixa contrária e projetou no solo foi causal da verificação das lesões de que foi consequência direta e necessária da sua morte.
A morte de (B) não se apresenta, pois, uma consequência imprevisível, anómala ou de verificação rara, face à conduta imprevidente adotada pelo arguido.
E é por esta razão que, em meu entendimento, não pode sustentar-se ter havido, in casu, qualquer interrupção do nexo causal, sustentada pelo arguido, segundo pensamos ter entendido, em sede de julgamento, quando afirmou que foi encandeado.
É vero que ficou demonstrado o seu encadeamento, mas este ocorreu nos metros finais que antecede o sinal STOP, sendo que tal encadeamento não se verifica à medida que se aproxima do sinal stop.
Com efeito, é certo que resultou demonstrado, nos autos, que, arguido focou a sua atenção no camião e, em face das condições atmosféricas, visão perturbada pelo encadeamento, conjugado com a circunstância de o ciclista circular em zona com luminosidade de intensidade muito menor, o arguido acreditou que não circulava ali a vítima, sem ter o cuidado de assim verificar. E nessa medida, inicia a manobra de mudança de direção para o entroncamento, sem ter parado ao sinal stop.
Antes de mais, impõe-se referir que, in casu, o ciclista já está a circular com o sol atrás de si e iluminado apenas pela luz ambiente, o que impede que o vestuário refletor sobressaia, o que obsta o arguido de o percecionar com nitidez. Não obstante, não vemos, pois, em que medida teriam os factos ocorrido diversamente do que ocorreram, caso fosse possível o arguido, em fração de segundos e perante a aproximação do ciclista evitar o embate.
Feita esta consideração, é mister aquilatar se a factualidade acabada de mencionar é suscetível de configurar a interrupção do nexo causal entre a conduta do arguido, referida, e o resultado morte de (B).
Entendemos que assim não é.
Com efeito, a conduta assumida pelo arguido, como se disse, é objetiva e abstratamente idónea a produzir aquele resultado.
Não se pode esperar que um ciclista que circula na sua faixa e junto ao entroncamento, o qual tem prioridade de passagem, assuma que o arguido não lhe conceda a passagem imposta por lei.
A verdade é que, seguramente, se o arguido não houvesse desviado a sua visão da faixa contrária junto ao entroncamento, focando-a no camião que circulava a 200 metros de distância, de modo a aperceber-se que o ciclista ali circulava, teria parado ao STOP, cederia a passagem ao ciclista, evitando o embate.
A morte de (B) não se produziu, em vista da conduta assumida pelo arguido, de modo anómalo ou improvável e imprevisível, repete-se, pelo que se não pode sustentar a interrupção do nexo causal.
Analisada a factualidade cuja demonstração se logrou à luz das doutrinas atuais da conexão de risco, concluir-se-á no mesmo sentido, no da imputação do resultado à conduta do arguido. Com efeito, tal conduta criou, manifestamente, um risco proibido (juridicamente relevante, portanto) para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito (a vida) e esse risco materializou-se no resultado típico (a
Com efeito, é certo que resultou demonstrado, nos autos, que, arguido focou a sua atenção no camião e, em face das condições atmosféricas, visão perturbada pelo encadeamento, conjugado com a circunstância de o ciclista circular em zona com luminosidade de intensidade muito menor, o arguido acreditou que não circulava ali a vítima, sem ter o cuidado de assim verificar. E nessa medida, inicia a manobra de mudança de direção para o entroncamento, sem ter parado ao sinal stop.
Antes de mais, impõe-se referir que, in casu, o ciclista já está a circular com o sol atrás de si e iluminado apenas pela luz ambiente, o que impede que o vestuário refletor sobressaia, o que obsta o arguido de o percecionar com nitidez. Não obstante, não vemos, pois, em que medida teriam os factos ocorrido diversamente do que ocorreram, caso fosse possível o arguido, em fração de segundos e perante a aproximação do ciclista evitar o embate.
Feita esta consideração, é mister aquilatar se a factualidade acabada de mencionar é suscetível de configurar a interrupção do nexo causal entre a conduta do arguido, referida, e o resultado morte de João Barreto.
Entendemos que assim não é.
Com efeito, a conduta assumida pelo arguido, como se disse, é objetiva e abstratamente idónea a produzir aquele resultado.
Não se pode esperar que um ciclista que circula na sua faixa e junto ao entroncamento, o qual tem prioridade de passagem, assuma que o arguido não lhe conceda a passagem imposta por lei.
A verdade é que, seguramente, se o arguido não houvesse desviado a sua visão da faixa contrária junto ao entroncamento, focando-a no camião que circulava a 200 metros de distância, de modo a aperceber-se que o ciclista ali circulava, teria parado ao STOP, cederia a passagem ao ciclista, evitando o embate.
A morte de (B) não se produziu, em vista da conduta assumida pelo arguido, de modo anómalo ou improvável e imprevisível, repete-se, pelo que se não pode sustentar a interrupção do nexo causal.
Analisada a factualidade cuja demonstração se logrou à luz das doutrinas atuais da conexão de risco, concluir-se-á no mesmo sentido, no da imputação do resultado à conduta do arguido. Com efeito, tal conduta criou, manifestamente, um risco proibido (juridicamente relevante, portanto) para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito (a vida) e esse risco materializou-se no resultado típico (supressão da vida). A perigosidade criada pela condução do arguido adotada naquelas circunstâncias está, também, incluída no âmbito de proteção das normas estradais violadas, acima citadas.
Em suma, conjugando todos os elementos até aqui referidos, parece-me indubitável que o despiste, o embate e consequentes lesões causais da morte de (B) devem ser imputadas ao facto de o arguido não ter desenvolvido uma condução que não colocasse em causa a segurança das pessoas que seguiam nos veículos e velocípedes que circulavam na faixa contrária de rodagem, parando ao sinal STOP e que se patenteavam na ocasião, o que materializou uma conduta negligente que, não só violou os ditames estradais, como, em termos mais amplos, contendeu com os deveres a que os cidadãos estão adstritos na vida societária, exprimindo uma atitude interna que autoriza a formulação do juízo de culpa necessário para que o agente incorra em responsabilidade penal: o arguido, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas, podia e devia agir de outro modo, assim evitando a morte de (B).
As consequências do embate, seguido de uma projeção do ciclista para o solo, onde se imobilizou, se traduziram-se nas lesões na integridade física do mesmo (lesões traumáticas torácicas e raquimeningomedulares), as quais foram causa direta e necessária da sua morte.
Aqui chegados, a dúvida que se coloca é se a conduta negligente do arguido deve ser qualificada como grosseira, intensificando a negligência e agravando o limite máximo da pena.
Em caso de acidente de viação, a negligência grosseira só se verifica “quando o condutor se demite dos mais elementares cuidados na condução, por temeridade, leviandade, ou total ausência de cuidados, em termos de, através dela, criar alto perigo de acidente” (neste sentido, vide Ac. da Relação de Évora de 6/5/1993 in CJ, XVI, tomo 5, 260).
Sucede que, dos elementos acabados de analisar, pode retirar-se que o arguido, atentos os factos na sua globalidade, não demonstrou uma tal leviandade e descuido que permitam dizer que atuou com o grau intensificado e aumentado de negligência a negligência grosseira.
A atuação do arguido deve enquadrar-se, assim, na negligência simples.
Desta forma, inexistindo qualquer causa justificante ou desculpante, deve o arguido ser condenado pela prática do crime de homicídio negligente, p. e p. no artº 137º, nº 1 do CP, pelo qual vinha acusado.

DA ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
O crime praticado pelo arguido é abstratamente punível com pena de prisão de 1 (um) mês a 3 (três) anos ou com pena de multa de 10 (dez) a 360 (trezentos e sessenta) dias.
Sendo tal crime punível, em alternativa, com pena de prisão ou com pena de multa, há que, antes de mais, proceder à escolha da pena.
Nos termos do art. 40.º do Código Penal, a aplicação de penas e medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (n.º 1), sendo que, em caso algum, a pena poderá ultrapassar a medida da culpa (n.º 2).
De harmonia com o disposto no art. 70.º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, deve dar-se preferência à segunda, sempre que esta realizar, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
São, pois, finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e geral – não finalidades de compensação da culpa – que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa e a sua respetiva aplicação – vide Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa, 1993, p. 331.
Neste contexto – da escolha da pena pelo Tribunal –, deve ser dada prevalência às considerações de prevenção especial de socialização, por serem, sobretudo, elas que justificam o movimento de luta contra a pena de prisão. Assim, o Tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa à prisão quando a execução da pena de prisão se revele necessária, do ponto de vista da prevenção especial, ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela pena, o que raramente acontecerá, se não se perder de vista o carácter criminógeno da prisão, em especial, da de curta duração.
A prevenção geral deve, assim, surgir, aqui, sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico. Deste modo, a pena alternativa só não será aplicada se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam irremediavelmente postas em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias – neste sentido, vide Figueiredo Dias, Ob. Cit., p. 333.
Haverá, assim, que ponderar, antes de mais, se a pena não privativa da liberdade realiza, no vertente caso, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, no que respeita às exigências de prevenção geral e prevenção especial, atendendo a que, se assim se concluir, o tribunal terá de lhe dar preferência.
Ora, tendo presentes as considerações que se expenderam, designadamente no que concerne às necessidades de prevenção geral, entendo que a pena de multa se revela, in casu, insuficiente para cumprir as finalidades da punição.
Com efeito, ante a factualidade cuja demonstração se logrou, poder-se-á afirmar que as necessidades de prevenção especial não se mostram elevadas. O arguido está social, profissional e familiarmente inserido.
A conduta que assumiu em sede de audiência de discussão e julgamento, de negação da sua responsabilidade faz antever, porém, que não interiorizou, efetivamente, a gravidade da sua atuação negligente.
Não obstante, o arguido não possui antecedentes criminais.
Há que, contudo, sopesar devidamente as necessidades de prevenção geral.
São por demais conhecidas as necessidades de reprovação deste tipo de condutas. Com efeito, ninguém pode abstrair-se da frequência com que, em Portugal, sucedem acidentes de viação, bem como das funestas consequências que os mesmos, geralmente, determinam.
É do conhecimento geral que, no nosso país, se registam elevadíssimos níveis de sinistralidade rodoviária, decorrendo, daí, perdas irreparáveis de vidas humanas, com os inerentes custos sociais, que importa travar e diminuir.
Uma destas vítimas mortais deveu-se à conduta do arguido que aqui está a ser jurídico-penalmente ponderada.
Assim, as exigências de prevenção geral que se fazem sentir na sociedade, são acentuadas, já que o nosso país revela índices muito elevados de sinistralidade e falta de segurança rodoviárias, em consequência da atitude temerária com que a maioria dos cidadãos enfrenta a estrada. As consequências tornam-se, inevitavelmente, desastrosas em termos de perigosidade para todos os utentes das vias, traduzindo não raras vezes em perda de vidas humanas e sequelas incapacitantes, tornando-se causa de grande preocupação para a comunidade, pelos efeitos sociais e económicos daí resultantes.
Apesar do persistente combate das autoridades, continua a morrer cada vez mais pessoas nas estradas portuguesas, derivadas em grande parte de uma condução negligente.
Na situação em análise, há que considerar, por um lado, a natureza do crime em causa (o bem jurídico aqui protegido – a vida humana – é dos mais importantes e significativos).
Como pode ler-se no Ac. do STJ, de 06/03/91 (in BMJ, n.º 405, p. 170), “há que lutar, sem contemplações, contra o alarmante número de mortes e mutilações que, diariamente, ocorrem nas nossas estradas e que constituem um grave problema social”, pelo que “cumpre aos Tribunais desempenhar uma função de prevenção através de medidas dissuasoras da condução arriscada que se faz na estrada”.
Na proteção dos bens jurídicos, cumpre, assim, destacar que a reação penal a aplicar deve, tanto quanto possível, neutralizar o efeito do delito, passando este a surgir, sem sombra de dúvidas, como um exemplo negativo para a comunidade e contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a consciência jurídica da mesma. Pretende-se, assim, dar satisfação ao sentimento de justiça do mundo circundante que rodeia o arguido, através do mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica (Ac. do STJ, de 26/09/2007, Recurso n.º 2579/07, disponível em www.colectaneadejurisprudência.com).
Daí que, muitas vezes, seja necessária a aplicação de uma pena de prisão para defesa do ordenamento jurídico, designadamente, quando o comportamento desviante for revelador de uma atitude generalizada e consequente de não se tomar a sério o desvalor de certas condutas relevantemente ofensivas da vida comunitária, de acordo com os princípios constitucionais relevantes de um Estado de Direito Democrático - é o caso, bastando, para assim concluir, analisar as estatísticas citadas.
Relativamente ao ilícito em referência nos autos, tem sido corrente jurisprudencial uniforme a aplicação da pena de prisão como cominação do crime de homicídio por negligência na sequência de acidente de viação com culpa e exclusiva por parte do arguido, atentas as evidentes e prementes necessidades de prevenção geral.
No caso concreto, não podemos deixar de ponderar que foi a grave inconsideração do arguido, estribada na violação das regras30º, n.º 1, 35º, n.º 1, 44.º n.ºs 1 e 2 e ainda o art 21º do Regulamento de Sinalização de Trânsito, que determinou que o mesmo embatesse, sem travar, no ciclista.
O limite mínimo da prevenção geral é, no caso, superior ao que se patentearia se o crime de homicídio negligente houvesse sido cometido por violação de um dever objetivo de cuidado, que não o de respeito pelas normas estradais.
Aliás, a aplicação de uma pena de multa mereceria o repúdio da sociedade, em face da perda de vida de uma pessoa.
Por tudo quanto fica dito, e não obstante o mandamento político-criminal de primazia de aplicação de medidas não privativas de liberdade em detrimento da aplicação de medidas privativas da mesma, entendemos que as exigências de prevenção geral positiva ou de integração impõem, in casu, a aplicação de uma pena de prisão ao arguido.

*
Uma vez feita a opção pela pena detentiva, cumpre determinar a medida da pena a aplicar, em concreto, ao arguido.
A determinação da pena far-se-á, em obediência ao estatuído no art. 71.º, 1, do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes.
A pena deverá, ainda, tomar como critério a necessidade de reintegração do agente na sociedade (prevenção especial de ressocialização), sempre sem ultrapassar a (medida da) culpa deste.
Importa trazer, igualmente, à colação o disposto no art. 71.º, 2, do mencionado código, que estabelece que, “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente e contra ele (...)”, elencando seguidamente, a ítulo meramente exemplificativo, alguns desses fatores.
Há, pois, que ponderar:
O grau de ilicitude do facto, o qual se afere pela amplitude das consequências do evento danoso, que apresentam significado de peso, atento o resultado típico das lesões detetadas em consequência do embate para (B) que lhe determinaram a morte no próprio local onde ocorreu o acidente.
Por outro lado, a negligência de que se revestiu a conduta do arguido, já definida, mostra-se acentuada, atentas as circunstâncias do caso, sendo de considerar que o arguido postergou, de forma não despicienda, os deveres que lhe incumbiam enquanto condutor e enquanto cidadão, ademais, não parando ao STOP e não focando a sua atenção e visão nos veículos que circulavam perto do cruzamento e na faixa contrária que necessita de transpor para aceder à via que leva à localidade do crucifixo.
Não pode olvidar-se a atitude assumida pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento, a qual nos suscita algumas dúvidas de que tenha interiorizado, de forma correta, a falha por si, efetivamente, cometida.
Não obstante, a forma como prestou declarações, revelou algum arrependimento, ficando o tribunal convicto que a submissão a este julgamento o fará, doravante, a adotar uma condução cuidada e em obediência às regras estradais.
Militam a favor do arguido os factos de se encontrar familiar, profissional e socialmente inserido, bem como a ausência de antecedentes criminais, sendo que esta circunstância é de escassa relevância, pois o que se pede e espera de um bom cidadão é que não viole as regras estradais, cuja atividade de condução já é de risco e muito menos que cometa crimes.
Por fim, não poderão perder-se de vista as concretas exigências de prevenção geral na prática de futuros crimes, as quais, conforme acima se disse, se revelam muito elevadas.
Nesta conformidade, sopesando este conjunto de fatores, julgo adequado aplicar ao arguido a pena de 6 (seis) meses de prisão.

DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 2 do Código Penal, o Tribunal, se julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
Não se opta pela substituição em ena de multa, pelos motivos supra expostos.
Igualmente não se opta pela substituição por trabalho a favor da comunidade, dado que este tipo de pena mereceria o repúdio por parte da sociedade, dado que a conduta do arguido ceifou uma vida humana.
Assim, nos termos do artigo 51.º do Código Penal “1 – A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.
2 - Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.
3 - Os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento.
4 - O tribunal pode determinar que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos”.
Por sua vez, nos termos do artigo 52.º do referido diploma legal 1 – O tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, suscetíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade, nomeadamente:
a) Residir em determinado lugar;
b) Frequentar certos programas ou atividades;
c) Cumprir determinadas obrigações.
2 - O tribunal pode, complementarmente, impor ao condenado o cumprimento de outras regras de conduta, designadamente:
a) Não exercer determinadas profissões;
b) Não frequentar certos meios ou lugares;
c) Não residir em certos lugares ou regiões;
d) Não acompanhar, alojar ou receber determinadas pessoas;
e) Não frequentar certas associações ou não participar em determinadas reuniões;
f) Não ter em seu poder objetos capazes de facilitar a prática de crimes.
3 - O tribunal pode ainda, obtido o consentimento prévio do condenado, determinar a sua sujeição a tratamento médico ou a cura em instituição adequada.
4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.º 2, 3 e 4 do artigo anterior.”
Ora, o crime em causa nos autos assume elevada gravidade, na medida em que do mesmo resultou a morte de uma pessoa, pelo que o Tribunal entende adequada a imposição ao arguido de regras de conduta como condição para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
Assim, decide o Tribunal suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, pelo período de um ano, sujeito a regime de prova e mediante:
A) o cumprimento, nos termos do artigo 51º, nº 1, al. c) do seguinte dever:
1. entregar a quantia de 700,00 euros ao CENTRO DE ALCOITÃO, vocacionada para o auxílio de vítimas de acidente de viação, sendo:
a) 375,00 euros a entregar no prazo de 6 meses a contar do trânsito em julgado;
b) 375,00 euros a entregar no prazo máximo do termo da pena;
Quantia que se fixou tendo em consideração que o arguido é o único elemento do agregado familiar que providencia o seu sustento (factos 44 a 46)
B) O cumprimento, nos termos do artigo 52º do CP, da seguinte regra de conduta:
2. frequentar um programa de condução segura, a realizar no prazo máximo de 6 meses, com uma duração que a entidade responsável pela sua execução entenda por conveniente;
Espera o Tribunal que o cumprimento deste dever e conduta permitam ao arguido interiorizar a censurabilidade da sua conduta, nomeadamente permitindo-lhe tomar consciência da gravidade das consequências que podem advir da prática descuidada e pouco cuidadosa da atividade de condução.

Da Pena de Proibição de conduzir veículos com motor artº 69º, nº 1, al. a) do CP
O Ministério Público requereu ainda a aplicação de uma pena acessória pela prática do crime de homicídio por negligência.
Na alteração legislativa, operada pela Lei 19/2013, de 21/02, deu nova redação à alínea a) do n.º 1 do art.º 69º do CP e, na sequência, manda se condene na proibição de conduzir quem for punido “Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário”.
Ou seja, segundo a lei hoje em vigor, a condução de um veículo em violação de regras estradais, que sejam causais da prática dos crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física, importa a condenação em pena acessória.
Estipula o art. 69.º, 1, a), do Código Penal, que, é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre 3 (três) meses e 3 (três) anos quem for punido, por crime previsto no art. 291.º ou no art. 292.º do Código Penal.
Com a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pretendeu dotar-se o sistema sancionatório português de uma verdadeira pena acessória, capaz de dar satisfação a razões ” – cfr. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, II, p. 165.
A proibição de conduzir assume-se como uma verdadeira pena, de estrita aplicação judicial, indissoluvelmente ligada ao facto praticado e à culpa do agente, dotado de uma moldura penal própria, permitindo – e impondo – a tarefa judicial de determinação da sua medida concreta em cada caso, sendo certo que, não constituindo um efeito automático da pena, ela é, no entanto, ao que parece, um efeito automático da prática de certos crimes, conforme salientou o mesmo Insigne Professor (Ata n.º 41 da reunião da Comissão Revisora do Código Penal de 1982).
A determinação da medida da pena acessória (período de tempo da proibição de conduzir) opera-se mediante recurso aos critérios gerais constantes do art. 71.º do Código Penal, com a ressalva de que, a finalidade a atingir é mais restrita, na medida em que a sanção em causa tem em vista, tão só, prevenir a perigosidade do agente - muito embora se lhe assinale também um efeito de prevenção geral.
Segundo a Jurisprudência dominante, tal medida de proibição de conduzir veículos motorizados é de aplicação obrigatória – cfr. o Ac. do TRC, de 07.11.86, in CJ, Tomo V, p. 47, o Ac. do TRC, de 21.12.95, in CJ, Tomo V, p. 79, o Ac. do STJ, de 26.02.97, in CJ, Tomo I, p. 235, e o Ac. do TRE, de 16.04.1996, in CJ, Tomo II, p. 292 –, não podendo ser dispensada, atenuada especialmente, substituída por caução de boa conduta nem suspensa na sua execução – vide, neste sentido, entre muitos outros, o Ac. do TRL, de 20/02/2008, disponível em www.dgsi.pt, Processo nº 183/2008-3.
Tais condicionantes de ordem jurídica encontram o seu fundamento na cada vez maior necessidade de sensibilização dos condutores para uma circulação rodoviária segura para os próprios e para os demais utentes da via, garantindo, assim, uma maior eficácia preventiva.
O crime cometido pelo arguido, revela uma conduta com graves consequências para a vida, a qual vitimou uma pessoa ainda nova (que não deixa de ser considerado um utilizador vulnerável, em termos de código estrada – cfr art 1º, al q) deste diploma).
Com efeito, como se referiu já, a sinistralidade estradal, que entre nós assume proporções drásticas, a significar que são prementes as necessidades de pôr cobro a comportamentos do tipo do assumido pelo arguido (prevenção geral), comportamento esse que é merecedor de um juízo de censura acentuado, na medida em que o arguido não parou ao sinal STOP, não focou a sua atenção no ciclista que seguia na fixa contrária e que circulava junto ao cruzamento, tendo este último prioridade de passagem , iniciando a manobra de mudança de direção, de forma completamente desatente e embateu no ciclista provocando a sua morte.
O arguido não assumiu a sua conduta descuidada, trazendo aos autos uma versão com a qual pretendia eximir-se da sua responsabilidade, a qual foi deitada por terra pela prova pericial.
Não obstante, a forma como prestou as suas declarações, revelou algum arrependimento.
Milita a seu favor, ausência de antecedentes criminais estradais.
Destarte, ponderando tudo quanto supra se expôs não podendo deixar-se de considerar a conduta do arguido como gravemente violadora das regras, tenho por certo que a finalidade da punição se alcança pela aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 8 (oito) meses, a qual se fixa.
(...).»


2.3. Apreciação do mérito do recurso
2.3.1 Da impugnação da matéria de facto dada como provada
Sustenta o arguido/recorrente ter o tribunal a quo incorrido em erro na apreciação/valoração da prova, ao dar como provados os factos constantes dos pontos 5., 7., 13., 16. e 40.
Os factos objeto de impugnação são os seguintes:
5. Ao chegar junto do cruzamento, atento o seu sentido de marcha Tramagal Constância e para mudar de direção no sentido da localidade de Crucifixo, o arguido, sem parar, iniciou a manobra de mudança de direção para a esquerda, atravessando a hemifaixa esquerda da via, sem se aperceber da presença da vítima a circular em sentido contrário ao seu.
7. O arguido executou a mudança de direção para a esquerda numa trajetória perpendicular de 90º.
13. No local do embate, a via encontra-se sinalizada com sinais verticais e horizontais de paragem, nos dois sentidos de marcha.
16. Ao conduzir da forma atrás descrita, o arguido agiu com falta de atenção e prudência a que estava obrigado e que podia e devia ter atentado.
40. O arguido não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance.
Manifesta o recorrente ter o Tribunal a quo desconsiderado, totalmente, as suas declarações, quando afirmou ter parado na marca rodoviária STOP, não tendo sido produzida qualquer outra prova sobre esse facto, além de que não existe naquele local sinal vertical B2.
Defende o recorrente que o Tribunal a quo não efetuou «uma criteriosa e cuidada apreciação da prova», designadamente, das declarações por si prestadas – tendo sempre afirmado que parou na marca rodoviária STOP, viu o veículo pesado a cerca de 200 metros, iniciou a travessia da via e foi encadeado pela luz solar, não se apercebendo da circulação do ciclista, ocorrendo o embate com o mesmo – e do Relatório Pericial, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, junto a fls. 393 a 395 dos autos – do qual resulta que “(...) esta foi uma situação com grande potencial de encadeamento, que só pode ser minimizado pela existência de objectos próximos do horizonte que tapem o disco solar, que eliminariam a luz directa para o observador (...)” e que “(...) como são alturas plausíveis de ser atingidas por árvores já desenvolvidas, há forte possibilidade das suas copas efectivamente bloquearem a luz solar directa sobre o condutor e diminuírem o efeito do encadeamento deste, ou mesmo anulá-lo dependendo da opacidade da folhagem. (...) Nesta eventual situação, surgirá outro problema que é a falta de luz a iluminar os ciclistas que, em contraste com o brilho do céu por detrás, poderá dificultar a percepção da sua presença, ou a estimativa rápida da sua velocidade por parte do condutor.” –.
Enfatiza o recorrente que o acidente ocorreu numa fração de segundos, em que foi sujeito a encandeamento solar e passou a ter campo de visão ocular em zona de luz difusa, não conseguindo percecionar a realidade existente com a nitidez necessária a conseguir evitar o embate.
Entende, por isso, o recorrente deverem os factos impugnados ser dados como não provados, com a sua consequente absolvição da prática do crime de homicídio por negligência.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que o Tribunal a quo procedeu a uma correta apreciação/valoração da prova, formando a sua convicção em conformidade com a prova produzida em julgamento e fundamentando a sua decisão de acordo com as regras da experiência comum, nos termos previstos no artigo 127º do CPP e, como tal, devendo manter-se a decisão recorrida.
Vejamos:
Embora não o refira expressamente, ao convocar a prova produzida, na audiência de julgamento, concretamente, as declarações por si prestadas e a prova pericial junta aos autos, infere-se pretender o recorrente impugnar amplamente a decisão de facto, nos pontos que indica.
A impugnação ampla da matéria de facto a que alude o artigo 412º, n.º 3, do CPP, visa a correção do erro de julgamento, que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Diversamente do que sucede quando são invocados os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP – (a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) O erro notório na apreciação da prova) –, na impugnação ampla da matéria de facto, a reapreciação, pelo tribunal de recurso, da decisão sobre a matéria de facto, não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada/gravada) produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP, sem prejuízo de poder ouvir outras passagens que não as indicadas no recurso (n.º 6 do artigo 412º do CPP).
Neste âmbito, o tribunal de recurso limita-se a aferir do processo de motivação e de conformidade com as regras legais de apreciação de prova e só pode determinar a alteração da matéria de facto fixada se concluir que os elementos de prova indicados pelo recorrente impõem uma decisão diversa (cf. al. b) do n.º 3 do artigo 412º do CPP) e não se apenas permitem uma outra decisão.
Esta imposição é decorrência do princípio da livre apreciação da prova do julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal e dos princípios da imediação e a oralidade.
Relativamente à livre apreciação da prova, conforme bem refere o Prof. Germano Marques da Silva[1], deve ser entendida como «valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão.»
Existirá violação do princípio da livre apreciação da prova se, na apreciação da prova e nas ilações extraídas, o julgador não respeitar os princípios em que se consubstancia o direito probatório e as regras da experiência comum, da lógica e de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório[2].
Como se faz notar no Acórdão do STJ de 17/03/2004[3] «Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.».
Por tudo o que fica dito, é evidente que a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Não pode admitir-se que haja uma inversão de papéis do juiz e do recorrente, em termos de a convicção pessoal deste último se poder afirmar ou sobrepor à convicção formada pelo julgador, logo que esta se mostre alicerçada nas provas produzidas, respeitando os princípios e as normas legais do direito probatório e que seja devidamente fundamentada.
Tendo presentes as considerações que se deixam expendidas e baixando ao caso dos autos:
Tal como referimos supra, pretende o recorrente impugnar amplamente a matéria de facto dada como provada, nos concretos pontos indicados, visando a correção do erro de julgamento. Como provas que impõem decisão diversa da recorrida, determinando que os factos impugnados devessem ser dados como não provados, o recorrente indica o relatório pericial, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, junto a fls. 393 a 395 dos autos e as declarações por si prestadas.
Relativamente às declarações que o arguido prestou, na audiência de julgamento, o recorrente não cumpriu o ónus de especificação previsto na al. b), do n.º 3, do CPP, nos termos legalmente exigidos.
Com efeito:
De harmonia com o disposto no n.º 4 artigo 412º do CPP, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas na al. b) do n.º 3 do mesmo artigo, fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do n.º 2 do artigo 364º do CPP, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Neste domínio, ainda que a jurisprudência se tenha orientado no sentido de uma menor exigência para que se considere cumprido o ónus de especificação previsto na al. b), do n.º 3 do artigo 412º do CPP, tendo o STJ, no Acórdão n.º 3/12, de 08/03/2012[4], fixado jurisprudência no sentido de que: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com a reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412º n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações», ainda assim, continua a impor ao recorrente que indique «concretamente as passagens das declarações, em que se funda a impugnação, nomeadamente, com a referenciação dos concretos pontos da gravação onde se funda para sustentar posição diversa da do tribunal.[5]»
Donde, não tendo o arguido/recorrente cumprido o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado, na vertente prevista na al. b) do n.º 3 e no n.º 4, do artigo 412º do CPP, no concernente às declarações por si prestadas, na audiência de julgamento, sendo certo que, tal omissão, por que se verifica também no corpo da motivação de recurso, não poderia ser suprida, por via do convite ao aperfeiçoamento previsto no artigo 417º, n.º 3, do CPP, estando-se perante uma insuficiência do próprio recurso, circunstância que impede este Tribunal ad quem, de conhecer da impugnação ampla da matéria de facto, tendo-se em consideração as declarações prestadas pelo arguido.
Ainda assim, sempre se dirá o seguinte:
As declarações do arguido, ora recorrente, ao afirmar ter parado no STOP, antes de iniciar a manobra de mudança de direção para a esquerda, que estava a efetuar, quando ocorreu o embate, não mereceram credibilidade ao Tribunal a quo, pelas razões que devidamente explicitou na motivação da decisão de facto, designadamente, tendo em conta a trajetória seguida pelo veículo conduzido pelo arguido, ao efetuar a manobra de mudança de direção para a esquerda, considerando o local da faixa de rodagem onde ocorreu o embate na vítima/ciclista, a localização da linha/marca transversal com a inscrição STOP e o local onde o veículo do arguido ficou imobilizado, após aquele embate.
Constitui jurisprudência consolidada dos nossos Tribunais Superiores, que a atribuição de credibilidade, ou não, a prova por declarações ou testemunhal, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção, que o tribunal de recurso só poderá censurar, se for contrária às regras da experiência comum e lógica[6].
E nada impede que o julgador possa atribuir credibilidade a parte de um depoimento ou declarações e não a atribuir noutra parte[7].
Por conseguinte, no caso vertente, tendo o Tribunal a quo explicitado as razões pelas quais não atribuiu credibilidade às declarações do arguido, na parte em que afirmou ter parado no STOP, fazendo-o em consentaneidade com a lógica racional (tendo em conta a apurada trajetória seguida pelo veículo conduzido pelo arguido, ao efetuar a manobra de mudança de direção para a esquerda, trajetória essa perpendicular e realizada num ângulo de 90º - cf. ponto 7. dos factos provados -, quando atentas as caraterísticas da via, designadamente, a linha transversal com a inscrição STOP mencionada em 3., teria de a efetuar num ângulo de 45º - cf. ponto 35 dos factos provados) e as regras da experiência comum, não pode Tribunal ad quem censurar essa decisão.
No concernente ao relatório pericial da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Departamento de Física, elaborado pelo Prof. Dr. Rui Jorge Agostinho, Astrónomo e Astrofísico, constante de fls. 393 a 395 dos autos, convocado pelo recorrente, para sustentar que, em virtude do encadeamento solar, não avistou, nem podia ter avistado a vitima/ciclista a circular na via, em momento anterior àquele em que ocorreu o embate e, como tal, não poderia ter evitado essa ocorrência, salvo o devido respeito, o teor do mesmo relatório e as conclusões extraídas pelo Sr. Perito que o elaborou, não são de molde a que se possa concluir ou sequer a sustentar a existência de dúvida fundada de que, se o arguido/recorrente tivesse parado na linha transversal com a inscrição STOP marcada na via e olhasse no sentido de trânsito em que circulava a vítima/ciclista, não o visualizaria ou, melhor dizendo, não seria possível visualizá-lo, devido ao encadeamento solar e sombra das árvores.
Neste conspecto, consignou o Tribunal a quo, na motivação da decisão de facto: «(...) conjugado com os croquits de fls. 340 a 343, fotografia nº 26 do relatório fotográfico de fls. 173 a 179 verso, fotografia 15 do relatório fotográfico de 344 a 361 e vídeo de simulação de acidente em suporte de CD de fls. 362 (o qual se encontra reproduzido em foto imagem no relatório técnico de fls. 365 a 377), o Tribunal concluiu que, nos metros finais que antecedem o sinal de STOP, arguido está encadeado pelo sol e apercebe-se deste facto. Não obstante, apercebe-se, também, acerca de 200 metros antes do entroncamento, da existência de um camião na faixa em sentido contrário (o qual não está tapado pela posição do sol, por se encontrar no lado direito do seu campo de visão). Como bem referiu o Sr. Perito, o sol, naquele dia, hora e local, está posicionado no lado esquerdo do seu campo de visão frontal. E o arguido foca a sua atenção no camião, que está no lado direito do campo visual frontal, descurando na verificação de objetos mais próximos (no caso, o ciclista); em face do encandeamento provocado metros antes do sinal de stop, a sua visão demora a recuperar. Acresce que o ciclista já está a circular com o sol atrás de si e iluminado apenas pela luz ambiente, o que impede que o vestuário refletor sobressaia, o que obsta o arguido de o percecionar com nitidez. Sucede que o arguido ainda assim poderia ter-se apercebido de um vulto naquele local. Mas tal não sucedeu.
Em face da prova pericial, dos referidos documentos e do vídeo, o qual simula o acidente, bem como das declarações do arguido, conclui o Tribunal que o arguido focou a sua atenção no camião e, em face das condições atmosféricas, visão perturbada pelo encadeamento, conjugado com a circunstância de o ciclista circular em zona com luminosidade de intensidade muito menor, o arguido acreditou que não circulava ali a vítima, sem ter o cuidado de assim verificar. E nessa medida, inicia a manobra de mudança de direção para o entroncamento, sem ter parado ao sinal stop.»
Como é referido na sentença recorrida e resulta do disposto no artigo 163º do CPP, o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador e, no caso, de o julgador divergir do juízo contido nas conclusões dos peritos tem de fundamentar a divergência, fazendo apelo ao critério científico, «aos conhecimentos materiais supostos na perícia»[8].
Ora, no caso dos autos, não se descortina que tivesse existido violação das regras da apreciação da prova pericial, pelo Tribunal a quo, antes, pelo contrário, resulta claro terem essas regras sido respeitadas.
A convicção formada pelo Tribunal a quo mostra-se devidamente fundamentada, com rigor, sendo indicados os meios probatórios que foram atendidos relativamente a cada facto, evidenciando, a motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida, em termos de exame crítico das provas, o processo lógico e racional seguido que conduziu à formação dessa convicção, designadamente, quanto aos factos dados como provados que são objeto de impugnação no recurso.
Assim, não se detetando quaisquer incoerências ou desconformidade com as regras da experiência comum e/ou da lógica racional, na fundamentação explicitada pelo Tribunal a quo, para sustentar a convicção sedimentada, antes pelo contrário, entendendo-se, como se entende, que a apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo se mostra totalmente consentânea com aquelas regras, em observância dos critérios ínsitos no princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do CPP.
Destarte e, contrariamente ao que defende a recorrente, forçoso é concluir que o Tribunal a quo não violou o princípio da livre apreciação da prova, nem as regras da apreciação da prova pericial, concretamente, o artigo 163º, n.º 1, do CPP.
Posto isto e analisada a sentença recorrida, não se vislumbrando que a mesma enferme de qualquer dos vícios decisórios previstos no n.º 2 do artigo 410º, n.º 2, do CPP – quais sejam: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) O erro notório na apreciação da prova –, nem que ocorra qualquer nulidade de que este Tribunal ad quem devesse conhecer oficiosamente, considera-se a matéria de facto definitivamente fixada.

2.3.2. Não tendo havido lugar à modificação da decisão de facto proferida na 1.ª instância, perante a factualidade provada, mostra-se correta qualificação jurídica efetuada pelo Tribunal a quo, em termos de a descrita conduta do arguido, ora recorrente, integrar a prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal.
Importa, no entanto, referir o seguinte:
Quanto à alegação do recorrente de não existir sinal vertical B2 no local onde estava marcada a linha/marca transversal com a inscrição STOP, há que atentar nos factos dados como provados, nos pontos 4., 12. e 13., deles constando:
«4. No cruzamento referido em 3. existe sinalética rodoviária horizontal com a palavra STOP;
12. A faixa de rodagem encontra-se bem sinalizada com marcas no pavimento, designadamente, linhas de separação dos sentidos de trânsito e sinalização horizontal de paragem desenhada no asfalto.
13. No local do embate, a via encontra-se sinalizada com sinais verticais e horizontais de paragem, nos dois sentidos de marcha.»
Não resulta claro dos enunciados pontos da matéria factual provada a existência, ou não, no local onde se encontra a linha/marca transversal com a inscrição STOP, de um sinal vertical, de STOP, denominado B2, de paragem obrigatória no cruzamento ou entroncamento (cf. artigo 21º do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de outubro – Regulamento de Sinalização do Trânsito).
No caso de não existência do referenciado sinal vertical B2, a linha transversal com a inscrição STOP, marcada no pavimento da faixa de rodagem, na zona de interceção de vias, cruzamento ou entroncamento, não impõe a paragem obrigatória, pois que, como decorre do artigo 61º do Regulamento da Sinalização do Trânsito[9], a paragem tem de ser imposta por sinalização vertical.
Na hipótese de não estar ali colocado o sinal B2, perante a linha/marca transversal com a inscrição STOP existente na faixa de rodagem, tratando-se de entroncamento (cf. ponto 14. dos factos provados), pretendendo o arguido efetuar a mudança de direção para a esquerda, teria de respeitar a regra geral de cedência de passagem aos veículos que se lhe apresentassem pela direita (cf. artigo 30º, n.º 1, do Código da Estrada) e aquela linha/marca dava-lhe a indicação do local onde devia parar, para ceder essa passagem.
Seja como for, considerando as concretas circunstâncias em que o arguido/recorrente efetuou a manobra de mudança de direção para a esquerda, tendo a sua acuidade visual dificultada pela posição do sol, o que constatou antes de realizar aquela manobra e entrar na faixa de rodagem destinada ao trânsito de sentido contrário àquele em que seguia, apercebendo-se da possibilidade de ficar encadeado, avistando um veículo pesado que por aí circulava, a uma distância de cerca de 200 metros do local onde se encontrava (cf. pontos 19, 26 e 36 da matéria factual provada), impunha-se ao arguido que parasse e não avançasse, entrando na faixa de rodagem contrária, sem que previamente se certificasse de que antecedendo o aludido veículo pesado, o qual se apresentava à sua direita, não circulava qualquer outro veículo, de modo a que pudesse concluir a manobra de mudança de direção, sem pôr em perigo o trânsito e prevenindo a ocorrência de embate noutro veículo que aí circulasse.
Perante a situação de encadeamento solar, que lhe dificultava a acuidade visual, do que o arguido se apercebeu antes de efetuar a manobra de mudança de direção para a esquerda, era exigível ao arguido que adotasse cuidados redobrados e, concretamente, os descritos no ponto 37. da matéria factual provada, mormente, aguardar que o referenciado veículo pesado, passasse por si, de modo a garantir que nessa faixa de rodagem não circulavam velocípedes ou outros veículos que pudessem estar menos visíveis, por força do encadeamento solar e só depois prosseguir a marcha, com cautela, acionando os sinais sonoros do veículo.
Sucede que o arguido não procedeu dessa forma, tendo resultado provado que não parou antes de iniciar a mudança de direção para a esquerda e achando que podia efetuá-la durante o lapso de tempo que o veículo pesado (o qual se encontrava a uma distância de cerca de 200 metros) levaria até chegar à zona de interceção das vias, entrou na faixa de rodagem destinada ao trânsito do sentido contrário, efetuando uma trajetória num ângulo de 90º e não de 45º como devia, atentas as caraterísticas da via (cf. pontos 7 e 35 da factualidade provada), vindo a embater com a frente do seu veículo, na bicicleta da vítima, que ali circulava, apresentando-se à direita do veículo do arguido.
E resultando da matéria factual dada como provada nos pontos 28. a 33. que, na situação de encadeamento solar verificada, não sendo bem percetível o ciclista, via-se uma silhueta, tornando-se o ciclista mais visível à medida que se aproximava do arguido, forçoso é concluir, que o arguido podia ter percecionado, ainda que sem grande nitidez, o ciclista a aproximar-se da zona de interceção das vias, caso tivesse parado na linha/marca transversal com a indicação STOP, como devia ter feito.
Neste contexto e por todo o exposto, mesmo a considerar-se a hipótese, alegada pelo recorrente, de naquele local, não estar colocado, um sinal vertical de trânsito B2, essa circunstância não levaria a alterar a decisão proferida, quanto à subsunção jurídica dos factos provados ao crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1, do Código Penal.
Assim sendo, deve manter-se a condenação do arguido, pela prática desse crime, conforme decidido na sentença recorrida.


2.3.4. Da escolha da pena
Pugna o recorrente pela aplicação de pena de multa, em vez da pena de prisão em que foi cominado, como pena principal (artigo 70º do CP) ou, se assim não for decidido, como pena de substituição (artigo 45º, n.º 1, do CP).
Defende o recorrente que, atendendo às concretas circunstâncias em que ocorreu o acidente, a que é primário, tendo 66 anos de idade e às suas condições pessoais, familiares e sociais, que se mostram provadas nos pontos 41. a 50., a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de dever manter-se a aplicação de pena de prisão, nos termos decididos pelo Tribunal a quo, não se revelando a pena de multa adequada e suficiente para assegurar as necessidades de prevenção, mormente as de prevenção geral, que o caso reclama.
Apreciando:
O crime de homicídio por negligência cometido pelo arguido é abstratamente punível com pena de prisão até de 1 mês a 3 anos ou com pena de multa de 10 dias a 360 dias (cf. artigos 137º, n.º 1, 41º, n.º 1 e 47º, n.º 1, todos do Código Penal).
Na escolha da pena, de harmonia com o disposto no artigo 70º do Código Penal, o tribunal deverá dar preferência à pena não privativa da liberdade "sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição" (exigências de prevenção e reintegração do agente na sociedade – cf. art.º 40º, n.º 1, do CP).
Na opção entre a aplicação de pena de multa e de pena de prisão, enquanto penas principais e em alternativa, o julgador deve optar pela pena de multa, sempre que a julgue adequada a assegurar as exigências de prevenção geral e especial e de ressocialização do agente.
Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias[10], o critério geral de escolha e de substituição da pena, é o seguinte: «o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale logo por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação.»
E sobre a forma como se comportam mutuamente, neste âmbito, as exigências de prevenção geral e de prevenção especial, escreve o Prof. Figueiredo Dias[11], «É inteiramente distinta a função que umas e outras exercem neste contexto. Prevalência decidida não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão. E prevalência, anote-se, a dois níveis diferentes:
Em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá, se não se perder de vista o (...) caráter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração.
Em segundo lugar sempre que, uma vez recusada pelo tribunal a aplicação efectiva da prisão, reste ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição (v.g. multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da prisão), são ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser eleita. (…).
A prevenção geral «deve surgir aqui unicamente sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico (…), como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expetativas comunitárias.»
Significa isso que, uma pena alternativa ou de substituição, ainda que, no caso, possa satisfazer plenamente as necessidades de prevenção especial de ressocialização, não poderá ser aplicada se com ela sofrer inapelavelmente, “o sentimento de reprovação social do crime”[12], ou a confiança da comunidade na validade da norma jurídica violada.
Como se refere no Acórdão da RC de 13/12/2017[13] «Prevendo os crimes a aplicação em alternativa de uma pena de prisão ou de multa importa atender ao disposto no art.70.º do CP que estatui o critério de orientação geral para a escolha da pena.
O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.
Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).
A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.»
Na sentença recorrida, o tribunal a quo optou pela aplicação de pena de prisão, o que fundamentou nos seguintes termos:
«(...)
Haverá, assim, que ponderar, antes de mais, se a pena não privativa da liberdade realiza, no vertente caso, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, no que respeita às exigências de prevenção geral e prevenção especial, atendendo a que, se assim se concluir, o tribunal terá de lhe dar preferência.
Ora, tendo presentes as considerações que se expenderam, designadamente no que concerne às necessidades de prevenção geral, entendo que a pena de multa se revela, in casu, insuficiente para cumprir as finalidades da punição.
Com efeito, ante a factualidade cuja demonstração se logrou, poder-se-á afirmar que as necessidades de prevenção especial não se mostram elevadas. O arguido está social, profissional e familiarmente inserido.
A conduta que assumiu em sede de audiência de discussão e julgamento, de negação da sua responsabilidade faz antever, porém, que não interiorizou, efetivamente, a gravidade da sua atuação negligente.
Não obstante, o arguido não possui antecedentes criminais.
Há que, contudo, sopesar devidamente as necessidades de prevenção geral.
São por demais conhecidas as necessidades de reprovação deste tipo de condutas. Com efeito, ninguém pode abstrair-se da frequência com que, em Portugal, sucedem acidentes de viação, bem como das funestas consequências que os mesmos, geralmente, determinam.
É do conhecimento geral que, no nosso país, se registam elevadíssimos níveis de sinistralidade rodoviária, decorrendo, daí, perdas irreparáveis de vidas humanas, com os inerentes custos sociais, que importa travar e diminuir.
Uma destas vítimas mortais deveu-se à conduta do arguido que aqui está a ser jurídico-penalmente ponderada.
Assim, as exigências de prevenção geral que se fazem sentir na sociedade, são acentuadas, já que o nosso país revela índices muito elevados de sinistralidade e falta de segurança rodoviárias, em consequência da atitude temerária com que a maioria dos cidadãos enfrenta a estrada. As consequências tornam-se, inevitavelmente, desastrosas em termos de perigosidade para todos os utentes das vias, traduzindo não raras vezes em perda de vidas humanas e sequelas incapacitantes, tornando-se causa de grande preocupação para a comunidade, pelos efeitos sociais e económicos daí resultantes.
Apesar do persistente combate das autoridades, continua a morrer cada vez mais pessoas nas estradas portuguesas, derivadas em grande parte de uma condução negligente.
Na situação em análise, há que considerar, por um lado, a natureza do crime em causa (o bem jurídico aqui protegido – a vida humana – é dos mais importantes e significativos).
Como pode ler-se no Ac. do STJ, de 06/03/91 (in BMJ, n.º 405, p. 170), “há que lutar, sem contemplações, contra o alarmante número de mortes e mutilações que, diariamente, ocorrem nas nossas estradas e que constituem um grave problema social”, pelo que “cumpre aos Tribunais desempenhar uma função de prevenção através de medidas dissuasoras da condução arriscada que se faz na estrada”.
Na proteção dos bens jurídicos, cumpre, assim, destacar que a reação penal a aplicar deve, tanto quanto possível, neutralizar o efeito do delito, passando este a surgir, sem sombra de dúvidas, como um exemplo negativo para a comunidade e contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a consciência jurídica da mesma. Pretende-se, assim, dar satisfação ao sentimento de justiça do mundo circundante que rodeia o arguido, através do mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica (Ac. do STJ, de 26/09/2007, Recurso n.º 2579/07, disponível em www.colectaneadejurisprudência.com).
Daí que, muitas vezes, seja necessária a aplicação de uma pena de prisão para defesa do ordenamento jurídico, designadamente, quando o comportamento desviante for revelador de uma atitude generalizada e consequente de não se tomar a sério o desvalor de certas condutas relevantemente ofensivas da vida comunitária, de acordo com os princípios constitucionais relevantes de um Estado de Direito Democrático - é o caso, bastando, para assim concluir, analisar as estatísticas citadas.
Relativamente ao ilícito em referência nos autos, tem sido corrente jurisprudencial uniforme a aplicação da pena de prisão como cominação do crime de homicídio por negligência na sequência de acidente de viação com culpa e exclusiva por parte do arguido, atentas as evidentes e prementes necessidades de prevenção geral.
No caso concreto, não podemos deixar de ponderar que foi a grave inconsideração do arguido, estribada na violação das regras30º, n.º 1, 35º, n.º 1, 44.º n.ºs 1 e 2 e ainda o art 21º do Regulamento de Sinalização de Trânsito, que determinou que o mesmo embatesse, sem travar, no ciclista.
O limite mínimo da prevenção geral é, no caso, superior ao que se patentearia se o crime de homicídio negligente houvesse sido cometido por violação de um dever objetivo de cuidado, que não o de respeito pelas normas estradais.
Aliás, a aplicação de uma pena de multa mereceria o repúdio da sociedade, em face da perda de vida de uma pessoa.
Por tudo quanto fica dito, e não obstante o mandamento político-criminal de primazia de aplicação de medidas não privativas de liberdade em detrimento da aplicação de medidas privativas da mesma, entendemos que as exigências de prevenção geral positiva ou de integração impõem, in casu, a aplicação de uma pena de prisão ao arguido
Não merece censura a decisão do Tribunal a quo, na opção pela pena de prisão em detrimento da pena de multa.
Com efeito, pese embora o arguido não registe antecedentes criminais e se encontre familiar, profissional e socialmente inserido, a conduta pelo mesmo assumida, não tendo parado na linha/marca transversal com a inscrição STOP, entrando na faixa de rodagem destinada ao trânsito de sentido contrário, numa situação em que as condições de visibilidade estavam dificultadas, pela posição do sol, circunstância esta de que o arguido se apercebeu, o que lhe impunha a adoção de cuidado e atenção redobrados, não se apercebendo, como podia e devia, da presença da vítima/ciclista a circular na via, vindo a embater com a parte frontal do seu veículo na vítima, é reveladora de acentuada imprudência e até mesmo de alguma temeridade.
Neste quadro e considerando a idade do arguido – 66 anos –, não registando antecedentes criminais e mostrando-se profissional, familiar e socialmente inserido, entendemos que se bem que as exigências de prevenção especial não sejam elevadas, também não são diminutas, situando-se um pouco abaixo da média.
Já as exigências de prevenção geral mostram-se prementes, pelas razões explicitadas pelo Tribunal a quo, dada a elevada taxa de sinistralidade rodoviária que se regista em Portugal, com as consequências terríveis daí decorrentes, em termos de perda de vidas humanas e de sequelas com que ficam muitos dos sinistrados sobreviventes, com os elevados custos sociais e económicos que acarretam, o que impõe a necessidade de restabelecer e reforçar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas violadas.
Neste contexto, somos levados a considerar que a pena de multa não se revela adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição, mormente, assegurar as exigências de prevenção geral, e, nessa medida, bem andou o Tribunal a quo ao optar pela aplicação de pena de prisão.
Relativamente à pretendida aplicação da pena de multa em substituição da pena principal de prisão.
Dispõe o artigo 45º, n.º 1, do Código Penal: «A pena de multa aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da pena de prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. (…)».
A propósito do critério da necessidade de execução da pena de prisão, estabelecido na citada norma legal – correspondendo anteriormente ao artigo 43º, n.º 1, do CP –, o que está em causa, como ensina o Prof. Figueiredo Dias[14], «é exclusivamente, a profilaxia criminal, na dupla vertente da influência concreta sobre o agente (prevenção especial de socialização) e da influência sobre a comunidade (prevenção geral de tutela do ordenamento jurídico). Só quando, pelo menos, uma destas finalidades da pena o exigir, pode o tribunal ordenar a execução de uma pena de prisão superior a 6 meses», na atual versão do artigo 45º, n.º 1, do CP, superior a um ano.
Independentemente da orientação que se preconize, sobre se existe ou não uma hierarquia legal – não formal, mas material – das penas de substituição, tratando-se esta de uma questão controvertida[15], é consensual que de entre as penas de substituição passíveis de aplicação, na concreta situação, o tribunal deve optar por aquela que se revele mais adequada à realização das exigências de prevenção que no caso se façam sentir[16], dando preferência às penas de substituição em sentido próprio, não privativas da liberdade, sobre a de substituição em sentido impróprio, atualmente apenas a OPHVE.
No presente caso, o Tribunal a quo arredou a aplicação da pena de multa, por entender que as finalidades da punição, particularmente, as exigências de prevenção geral, que, no caso de fazem sentir, não seriam satisfeitas com a substituição da prisão, por multa.
Nenhuma censura nos merece esta decisão, entendendo-se que, no caso vertente, atentas as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir, o respetivo conteúdo mínimo, indispensável à defesa do ordenamento jurídico, não ficaria assegurado com a aplicação de pena de multa, em substituição da pena de prisão.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se decide dever manter-se a condenação do arguido, em pena de prisão, suspensa na sua execução, nos termos decididos na sentença recorrida.
O recurso é, pois, improcedente.


3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido (A), e, em consequência, confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (cf. artigo 513º, nº. 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).

Notifique.


Évora, 05 de março de 2024
Fátima Bernardes
Gomes de Sousa
Carlos de Campos Lobo

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[1] In Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, pág. 111.
[2] Cf. Ac. da RC de 01/10/2008, proc. n.º 3/07.4GAVGS.C2, in www.dgsi.pt
[3] Proferido no proc. 03P2612, in www.dgsi.pt.
[4] Publicado no DR, 1ª Série, de 18/04/2012.
[5] Cf. Cons. António Pereira Madeira, in Código de Processo Penal, Comentado, Almedina, 2016, 2ª edição, anotação 6 ao artigo 412º.
[6] Cf., entre outros, Acórdãos da RC de 18/01/2017 e de 17/05/2017, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 e 430/15.3PAPNI.C1 e Ac. da RL de 18/01/2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3, in www.dgsi.pt.
[7] Cf., entre outros, Ac. da RG de 14/12/2005, proc. 1559/05-1, in www.dgsi.pt.
[8] Cf. Acórdão deste TRE de 02/05/2017, proc. 208/14.1ECLSB.E1, acessível no endereço www.dgsi.pt.
[9] Que, estatui, referindo-se às marcas transversais «M8 e M8a - linha de paragem e linha de paragem «STOP»-: consiste numa linha transversal contínua e indica o local de paragem obrigatória, imposta por outro meio de sinalização; esta linha pode ser reforçada pela inscrição «STOP» no pavimento quando a paragem seja imposta por sinalização vertical».
[10] In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 1993, pág. 331.
[11] In ob. cit., págs. 332 e 333.
[12] Cf. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 334.
[13] Proferido no proc. n.º 357/14.6 TAMGR.C1, in www.dgsi.pt.
[14] In ob. cit., pág. 364.
[15] Sobre esta matéria, vide, entre outros, André Lamas Leite, “As penas de Substituição e Figuras Afins: Traços distintivos”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal – Ano 30.º – N.º 2 (maio-agosto de 2020), pág. 344 a 347.
[16] Cf., Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 365 e Ac. da RC de 07/04/2016, proc. 205/15.0PTCBR.C1, in www.dgsi.pt.