Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
230/21.1GBLLE.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: LEGÍTIMA DEFESA
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.

II. O fundamento desta causa de justificação ancora-se na ideia hegeliana de que o direito não tem que ceder perante o ilícito. Sendo dela pressuposto que a atuação defensiva ocorra em necessidade, em face de uma agressão atual ou iminente e com animus defendendi.

III. Não havendo legítima defesa quando, em sequência de desentendimentos anteriores, os contendores manifestam uma inequívoca e recíproca intenção de se provocarem mutuamente agressões físicas.

Decisão Texto Integral:
I – Relatório

a. No 1.º Juízo (1) Local Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum, da competência do tribunal singular, de AA, nascido a …1954, com os demais sinais dos autos; e de BB, nascido a …1967, acusados que estavam, cada um deles, da autoria (recíproca) de um crime de ofensa à integridade física, previstos no artigo 143.º do Código Penal (CP).

AA deduziu contra BB pedido de indemnização civil, nele reclamando a condenação deste no pagamento da quantia de 1 000€, a título de danos não patrimoniais e juros de mora vencidos e vincendos.

Também o Centro Hospitalar … EPE deduziu pedido de indemnização civil contra BB, reclamando o pagamento de 54€, acrescidos de juros moratórios, a título de tratamentos prestados a AA.

A final o Tribunal proferiu sentença, na qual condenou ambos os arguidos, pela respetiva autoria de um crime de ofensa à integridade física na pessoa do outro, sendo AA condenado na pena de 150 dias de multa à razão diária de 6€; e BB na pena de 135 dias de multa, à razão diária de 6,50€.

Na parcial procedência do pedido civil formulado por AA, o demandado BB foi condenado a pagar ao demandante uma indemnização de 700€, acrescido de juros moratórios.

E na procedência total do pedido de indemnização apresentado pelo Centro Hospitalar … EPE, condenou-se o demandado BB a pagar ao demandante, a titulo indemnizatório, a quantia de 54€, acrescida de juros moratórios.

b. Inconformado com a decisão proferida o arguido AA apresentou recurso, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:

«1- Deverão ser julgados não provados por esta Relação os factos 4), 8), 10), (no que respeita ao arguido e ora recorrente AA), e 11) (no que respeita também ao arguido AA, todos atinentes à acusação pública e julgados provados na sentença recorrida proferida em 1ª instância.

2- O Tribunal “a quo” fez uma errada apreciação da prova no que respeita ao facto 4) dos “Factos Provados” da sentença recorrida,

3- Conforme se verifica pela visualização atenta do vídeo, o ora arguido e recorrente AA após ter descarregado do seu camião o “taipal” do andaime, e colocado o dito taipal no interior do seu quintal, voltou de novo ao seu camião e aí agarrou no andaime, com ambas as mãos, levantou-o, e carregou-o sobre o seu ombro esquerdo, numa posição oblíqua ao solo,

4- E dirigiu-se para o interior do seu portão (vide imagem nº 5, do auto de visionamento, a fls. 44 verso dos autos, e vide o período temporal das 20h04m e 40s às 20h04m e 59 segundos do vídeo CD que se encontra a fls. 47 dos autos vídeo este que suporta o recuso sobre a Matéria de Facto).

5- Passando o arguido pelo portão e seguindo para o interior do seu quintal carregando o andaime apoiado no seu ombro esquerdo obliquo ao solo, e segurando no mesmo com ambas as mãos,

6- Caminhando o arguido, após transpor o portão e para o lado de dentro deste, de costas voltadas para o dito portão.

7- Tendo chegado no interior do quintal ao local onde pretendia descarregar o andaime parou,

8- E simultaneamente, rodou sobre o seu corpo para a sua esquerda e descarregou o andaime do seu ombro esquerdo para o solo,

9- Tendo nesse movimento mudado o andaime da posição oblíqua em que o mesmo seguia para a posição direita e de pé, a fim de colocá-lo empinado a direito no solo, e seguidamente encostá-lo à parede do quintal,

10-Quando o arguido e ora recorrente penetrou no seu quintal carregando ao ombro o andaime não se apercebeu que o arguido BB ia no seu encalce e que se encontrava muito perto de si.

11-Não tendo o arguido AA se apercebido que possa ter batido com alguma parte do andaime no arguido BB.

12-E, se isso aconteceu, foi quando o arguido descarregou o andaime do seu ombro esquerdo para o solo.

13- Sem saber que o arguido BB ia no seu encalce,

14-Sem qualquer intenção de agredir o arguido BB.

15-E conforme doc. nº 2 (foto) anexo à contestação – crime do ora recorrente, e para o qual se remete, o andaime em causa é um andaime móvel articulado de alumínio temperado (e que é o mesmo que está na dita foto doc. 2), tem 1,85m de altura, tem a largura de 0,73m nas rodas e 1,03m de largura nas duas partes movíveis e extensíveis, e pesa 21kg de peso.

16-E, como é notório, um andaime móvel articulado, de alumínio temperado, com 21kg de peso, tendo a altura de 1,85m e a largura de 0,73m, e de 1,03m não é susceptível de ser utilizado, intencionalmente, como um objecto contundente por um individuo como o arguido AA, com 66 anos, para cometer uma agressão.

17-O ora arguido e recorrente nasceu em …1954, e à data dos factos [26/03/2021] já tinha 66 anos.

18-Em parte alguma do vídeo CD se vê, frontalmente, deliberadamente, e intencionalmente, o arguido AA usar, ou tentar usar, como objecto contundente o referido andaime móvel articulado de metal para agredir o arguido BB.

19-E, devendo pois julgar-se não provados os factos constantes do ponto 4) dos factos provados da sentença da 1ª instância,

20-E, sendo esses factos do aludido ponto 4) julgados não provados, serão igualmente, julgados não provados, os factos, do ponto 8) dos “Factos provados” na sentença da 1ª instância, e, no que respeita ao arguido/recorrente AA, julgados igualmente não provados os factos dos pontos 10) e 11) dos “Factos Provados” da sentença recorrida da 1ª instância.

21-E, sendo procedente como se espera, o recurso sobre a Matéria de Facto proferida em 1ª instância, deixa de haver, nestes autos, a prática pelo arguido AA de factos susceptíveis de integrar qualquer tipo de crime.

22-E devendo proferir-se pois Acórdão que absolva o arguido AA da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.e p. no artº. 143º, nº 1, 14º nº 1 e 26º, todos do C.P.

TERMOS EM QUE deverá ser concedido provimento ao presente recurso, proferindo-se Acórdão que considere não provados os pontos 4), 8), 10) e 11) dos Factos Provados na sentença recorrida.»

c. Por igualmente discordar da sentença proferida, dela recorreu o arguido BB, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões:

«235. O arguido AA prestou falsas declarações perante o tribunal a quo.

236. O arguido BB aproximou-se e abordou o arguido AA pelo barulho e perturbação perpetuada contra si e a sua família.

237. O tribunal a quo contrariou produção de prova sobre o “background” da abordagem pelo arguido BB ao arguido AA, mas, e apesar disso, temos elementos e produção de prova que sustenta a justificação (barulho e perturbação) para a abordagem (que, diga-se, não é ilícita).

238. Assim, e por referência ao facto 2), o tribunal a quo não podia dar como provado que foi devido a desentendimentos entre ambos que o arguido BB abordou o arguido AA (em prejuízo da posição do arguido BB), mas sim que é devido ao barulho da atividade de carpintaria desenvolvida e outros comportamentos de provocação pelo arguido AA.

239. Resulta provado que o golpe desferido pelo arguido BB ao arguido AA é leve e do qual o arguido AA sai ileso.

240. Por referência ao facto 5), não resulta prova que o arguido BB tenha atingido o arguido AA na zona superior do nariz.

241. Depois do golpe, o arguido BB agarra no andaime, do seu lado, e o arguido AA agarra no andaime, do seu lado, e o arguido BB empurra o andaime, que está seguro pelo arguido AA do seu lado e que acaba por recolher o andaime.

242. O arguido BB não empurrou o andaime contra o arguido AA, e o tribunal a quo não podia dar como provado o facto 6).

243. Depois de recolher o andaime, o arguido AA encosta-o à parede do pátio.

244. Depois de encostar o andaime à parede do pátio, o arguido AA desloca-se para o outro lado do pátio (onde guarda materiais e ferramentas), e quando se cruza com o arguido BB, encara-o.

245. Só depois, e repita-se, de o arguido AA encarar o arguido BB e de ir para junto dos materiais e ferramentas é que o arguido BB entra no pátio e agarra o arguido AA.

246. Assim, e por referência ao facto provado 7), o tribunal a quo não pode dar como provado que foi “em seguida” que o arguido BB agarrou o arguido AA.

247. Refira-se que resulta provado (das declarações do arguido BB), e diga-se que é inclusivamente a compreensão que acaba por ter sentido (considerando a factualidade), que o arguido BB entrou no pátio e agarrou o arguido AA por segundos e para o suster.

248. O tribunal a quo também não podia dar como provado o facto 9).

249. O tribunal a quo não podia dar como provado o facto 11).

250. Em suma, o tribunal a quo elabora uma maldade, uma agressão contínua e perpetuada por parte do arguido BB ao arguido AA, o que não corresponde à produção de prova e à verdade.

251. O que corresponde à produção de prova e à verdade é que o arguido BB foi agredido com um andaime na cabeça, e teve sorte por daí não ter resultado lesão superior.

252. É nosso entendimento, que a agressão com um andaime na cabeça ao arguido BB é crime de ofensa à integridade física qualificada.

253. E resulta provado que o arguido BB reagiu instantânea e instintivamente com um golpe ao arguido AA (do qual este sai percetivelmente ileso).

254. O arguido BB defendeu-se, e verifica-se a exclusão de ilicitude por legítima defesa.

255. E mesmo que se entenda algum excesso de legítima defesa (o que salvo o devido não resulta da produção de prova), o mesmo se deve à perturbação e susto, compreensível de quem leva uma pancada com um andaime na cabeça (quando ainda por cima é de noite e tem a cara virada).

256. Nos termos do arts. 32º, 31º/2a) e/ou 33º/2 do Código Penal o arguido BB não deve ser punido, por se ter defendido.

257. Ainda, e do já esgrimido nesta peça de recurso, o tribunal a quo devia considerar a dispensa de pena nos termos do art. 143º/3b) do Código Penal para o arguido BB.

258. Não resulta provado (longe disso) que da conduta do arguido BB resultasse a lesão (com corte e sangramento) na zona superior do nariz.

259. Não resulta provado, nem se compreende de convicção e experiência comum, que da conduta o arguido BB resultasse "lesões", "dores","incómodos", repercussões".

260. O tribunal a quo não podia dar como provado o facto 12).

261. Não podia o tribunal a quo arbitrar uma indemnização no valor de 700,00 €, por, o arguido BB se ter defendido (legítima defesa que exclui a ilicitude), não resultar provado que da conduta do arguido BB resultou "lesões" e dores, e incómodos e repercussões, e mesmo que assim não fosse, por o valor ser um exagero perante a factualidade de processo.

262. Para mais, quando, na prática, o responsável por toda a situação é o arguido AA.

263. Também, o tribunal a quo não podia condenar o arguido BB a pagar os 54,00 € ao CH…

264. O tribunal a quo não pode operar a mesma carga penal para as duas condutas e comportamentos, por substancialmente diferentes, e não podia aplicar duas coimas, “mais euro menos euro”, iguais.

265. O tribunal a quo viola o princípio da igualdade por julgar de forma igual duas condutas e comportamentos de valoração completamente diferentes, e assumir dualidade de critério.

266. A posição e decisão do tribunal a quo, em relação ao arguido BB, é, no nosso entendimento, uma injustiça.

Nestes termos deve o presente recurso proceder e o arguido BB ser absolvido do ilícito de ofensa à integridade física simples; caso assim não se entenda, ser equacionada e aplicada a dispensa de pena para o arguido BB;

caso assim não se entenda, ser aplicada uma admoestação ao arguido BB;

caso assim não se entenda, ser reduzido o valor de pena de multa aplicada ao arguido BB;

o arguido BB ser absolvido de pagar uma indemnização no valor de 700,00 € ao arguido AA, e uma indemnização no valor de 54,00 € ao CH….

d. Admitidos os recursos o Ministério Público respondeu-lhes, pugnando pela sua improcedência, concluindo deste modo:

d.1. relativamente ao recurso de AA

«I. Não se descortina ter ocorrido “erro de julgamento ou erro notório na apreciação da prova” como não se constata a existência de qualquer outro dos vícios consagrados no art.º 410º do Código de Processo Penal.

II. O juiz do tribunal “a quo” formulou a sua convicção de acordo com a prova produzida em julgamento, fundamentando a sua decisão de acordo com as regras da experiência comum e numa sequência lógica, pelo que não violou o principio da livre apreciação da prova.

III. A prova produzida não deixou no espírito do julgador qualquer tipo de dúvida quanto à imputação dos factos constantes da acusação ao recorrente, razão pela qual não foram violados os princípios da presunção de inocência e do “in dubio pro reo”.

IV. Do texto da decisão recorrida, conjugada com a sua motivação e com as regras da experiência comum não resulta que devesse ter sido outra a decisão tomada pelo tribunal recorrido.

Termos em que, não deve o recurso interposto pelo ora recorrente merecer provimento, mantendo-se integralmente a decisão recorrida,

V.ª(s) Ex.ª(s), porém, e como sempre farão, JUSTIÇA.»

d.2. relativamente ao recurso de BB

«I. Não se descortina ter ocorrido omissão de pronuncia ou como não se constata a existência de qualquer outro dos vícios consagrados no art.º 410º do Código de Processo Penal.

II. O juiz do tribunal formulou a sua convicção de acordo com a prova produzida em julgamento, fundamentando a sua decisão de acordo com as regras da experiência comum e numa sequência lógica, pelo que não violou o principio da livre apreciação da prova.

III. A prova produzida não deixou no espírito do julgador qualquer tipo de dúvida quanto à imputação dos factos constantes da acusação ao recorrente, razão pela qual não foram violados os princípios da presunção de inocência e do .

IV. Do texto da decisão recorrida, conjugada com a sua motivação e com as regras da experiência comum não resulta que devesse ter sido outra a decisão tomada pelo tribunal recorrido.

V. O Tribunal a quo efetuou uma correta aplicação da lei, ao ter enquadrado os factos provados no crime de ofensa à integridade física.

VI. Não se verifica qualquer excesso quanto à medida da pena.

Termos em que, não deve o recurso interposto pelo ora recorrente merecer provimento, mantendo-se integralmente a decisão recorrida,

V.ª(s) Ex.ª(s), porém, e como sempre farão, JUSTIÇA.»

e. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância pronunciou-se (também) no sentido de os recursos não serem merecedores de provimento, assinalando que nenhum dos recorrentes, nas respetivas conclusões deu cumprimentos às exigências previstas no artigo 412.º, § 2.º do CPP.

f. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, ambos os recorrentes vieram mostrar a sua discordância com a posição assumida no parecer citado, reiterando no essencial o que já haviam dito nos respetivos recursos.

Os autos foram aos vistos e à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2), estando suscitada apenas uma questão no recurso de AA: i) Erro de julgamento da questão de facto, relativamente aos factos 4.º, 8.º, 10.º e 11.º). E quatro questões do recurso de BB: i) Erro de julgamento da questão de facto (factos 2, 5,6, 7, 9, 11 e 12); ii) In dubio pro reo; iii) Erro de julgamento de direito – legítima defesa; iv) Erro de julgamento de direito – espécie e medida da pena; v) Erro de julgamento de direito – pressupostos da responsabilidade civil.

B. O tribunal recorrido considerou provado o seguinte quadro factológico:

«1. No dia 26-03-2021, pelas 20:15 horas, o arguido BB encontrava-se no exterior da sua residência a passear o seu canídeo, tendo passado junto à residência do arguido AA, que ali se encontrava a descarregar material de construção da sua viatura.

2. Nessa sequência, e devido a anteriores desentendimentos entre ambos, o arguido BB dirigiu-se ao arguido AA e disse-lhe que era “um bandido”.

3. Ato contínuo, e enquanto o arguido AA se encontrava a descarregar uma parte de um andaime no quintal da sua residência, o arguido BB foi no seu encalce até à porta do quintal da residência daquele e aproximou-se do arguido AA.

4. Em seguida, o arguido AA, que segurava com ambas as mãos uma parte de um andaime, desferiu, com o mesmo, uma pancada em BB, atingindo-o na zona da cabeça.

5. Ato contínuo, o arguido BB agarrou na parte do andaime que o arguido AA se encontrava a segurar e desferiu, com a mão direita, um golpe na face de AA, que estava com óculos, atingindo-o na zona superior do nariz.

6. Após, o arguido BB, agarrou o andaime com as duas mãos, e empurrou-o contra o arguido AA.

7. Em seguida, o arguido BB agarrou o arguido AA com os dois braços.

8. Na sequência do facto 4) supra, BB sofreu escoriação no crânio, lesão que lhe demandou, para completa cura, 7 dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral ou profissional.

9. Na sequência do facto 5) supra, AA sofreu uma escoriação no topo da pirâmide nasal, infracimétrica, lesão que lhe demandou, para completa cura, 10 dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral ou profissional.

10. Cada um dos arguidos sabia que, ao agir do modo descrito, molestava fisicamente o corpo e a saúde do outro, o que ambos quiseram.

11. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

12. Do pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante AA:

13. Na sequência do facto 5) supra, AA sentiu dores, ficou nervoso e incomodado.

14. Do pedido de indemnização civil deduzido por Centro Hospitalar…, E.P.E.:

15. Na sequência do facto 5) supra, AA foi assistido no Centro Hospitalar …, tendo sido emitida a fatura n.º …, no valor total de 54€.

Mais se provou, relativamente às condições pessoais do arguido AA, que:

16.Tem 68 anos de idade.

17. De escolaridade, tem o 4.º ano.

17. Encontra-se reformado da sua profissão de carpinteiro e recebe 400€ a título de reforma, no entanto ainda presta serviços de carpintaria e aufere, mensalmente, cerca de 400€ a 500€ mensais pelos serviços prestados.

18. É casado e tem dois filhos, com 49 e 40 anos de idade.

19. O seu agregado familiar é composto por si, pela sua esposa, que se encontra reformada e recebe a título de reforma o valor de 300€, pelo filho de ambos, com 40 anos de idade, que se encontra desempregado, e pelo seu sogro.

20. O agregado familiar vive em casa própria e suporta, a título de despesas domésticas, o valor aproximado de 220€, onde se inclui o valor do fornecimento de eletricidade e água.

21. Suporta, ainda, uma prestação mensal bancária 0,00 Euros por um crédito contraído.

Mais se provou, relativamente às condições pessoais do arguido BB, que:

22. Não tem antecedentes criminais.

23. Tem 55 anos de idade.

24. De escolaridade, tem o 12.º ano.

25. Está em Portugal há 30 anos.

26. Encontra-se desempregado e realiza, ocasionalmente, serviços de jardinagem e de pedreiro, auferindo mensalmente cerca de 600€.

27. Tem dois filhos, com 22 e 21 anos de idade.

28. O seu agregado familiar é composto por si e pelos seus pais, com 81 e 89 anos de idade.

29. Vive em casa própria dos pais e as despesas domésticas são suportadas pelos seus pais.»

B.1 Tendo motivado a sua convicção relativamente aos factos provados nos seguintes termos:

«O Tribunal formou a sua convicção na análise global e pormenorizada dos vários elementos probatórios que constam dos autos e da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, com exceção dos documentos autênticos.

Assim, os factos 1) e 3) supra resultaram provados na sequência das declarações dos arguidos, que os confirmaram integralmente, em total sintonia com as imagens de vídeo registadas e visualizadas em audiência de discussão e julgamento, tendo, inclusivamente, e a este propósito, o arguido BB explicado que insistiu no seu comportamento devido ao silêncio do arguido AA, mesmo perante o facto 2) supra.

O facto 2) supra resultou, assim, demonstrado pela admissão realizada pelo arguido BB, que não foi impugnada nem contrariada por nenhum outro meio de prova.

O facto 4) supra, apesar de ter sido negado pelo arguido AA, a sua constatação resultou, não só das declarações do arguido BB e das declarações da testemunha CC (mãe do arguido BB) mas, também, das imagens de vídeo visualizadas em audiência de discussão e julgamento, donde resulta, de forma clara, o comportamento assumido pelo arguido AA contra o arguido BB, nos exatos termos expostos no referido facto, razão pela qual não foi atribuída credibilidade ao declarado, quanto a este facto, pelo arguido AA, que se limitou a negar, de forma vaga e contra o que resulta das imagens referidas, qualquer pancada desferida contra o arguido BB.

Por seu turno, os factos 5) a 7) supra resultaram demonstrados pela admissão realizada pelo arguido BB. Com efeito, cumpre referir que, pese embora se encontre registado nas imagens juntas aos autos o que se sucedeu após o facto 4) supra, a verdade é que das mesmas não foi possível extrair, para além do facto 6) supra, os demais factos, tendo ficado a demonstração dos mesmos a dever-se à admissão realizada pelo arguido BB, que, de forma espontânea, os explicou e detalhou, em conjugação com as declarações do arguido AA.

Efetivamente, e sobre os factos 5) e 6) supra, o arguido AA referiu que a pancada que sofreu na zona superior do nariz se ficou a dever ao impacto do andaime contra si no entanto, e a este propósito, o arguido BB foi além e explicou que, não só deu uma pancada na zona do nariz do arguido AA, que se encontrava com óculos, com a sua própria mão, como, também, lhe desferiu um empurrão com o andaime, atingindo-o, pelo que o Tribunal considerou que ambas as versões, apesar de aparentemente discordantes, não são incompatíveis, e atribuiu credibilidade ao modo de realização dos factos expostos pelo arguido BB, atenta a concretização e frontalidade com que declarou tais factos, assumindo, integralmente, a sua autoria (apesar de justificar tais factos com a sua intenção de acalmar o arguido AA, o que, apesar do exposto, não mereceu credibilidade, tendo em conta, desde logo, a dinâmica dos factos, pois foi o arguido BB que entrou no pátio da residência do arguido AA para praticar os factos em apreço, mesmo depois do facto 4) supra e sem que tivesse havido alguma tentativa, por parte do arguido AA, de sair do seu pátio para confrontar o arguido BB).

Ademais, as lesões verificadas no arguido AA revelam-se, também, consentâneas com as agressões assumidas pelo arguido BB à luz das regras da experiência comum, pois é verosímil que uma pancada desferida com a mão na zona do nariz de alguém que use óculos seja adequada a provocar um corte e, consequentemente, sangramento, tendo em conta a conjugação entre a vulnerabilidade da zona em questão, a existência de uma pancada com uma mão e a existência de óculos, não sendo tal lesão exclusiva do resultado provocado pelo embate de um andaime. Atento o exposto, o Tribunal decidiu, por isso, considerar cabalmente demonstrado o facto em apreço.

Nesta senda, os factos 8) e 9) supra resultaram das declarações dos arguidos, que descreveram as lesões sofridas de forma séria, credível, razoável e, até, expectável, à luz das regras da experiência comum, tendo em conta a natureza e o modo como as agressões foram perpetradas, o que, igualmente, se encontra suportado pelas fotografias juntas aos autos a fls. 31 (do processo apenso), a fls. 36 e na contestação do arguido AA, pelos relatórios periciais, juntos aos autos a fls. 143 a 145 e 66 a 68, respetivamente, e pelas informações clínicas juntas a fls. 109 a 111, 131, 138 e 139, cujos teores não foram contrariados nem impugnados por nenhum outro meio de prova.

Ademais, as lesões verificadas no arguido AA foram confirmadas pelas testemunhas DD (esposa do arguido AA) e EE (filho do arguido AA), que declararam, de forma espontânea, ter visto o arguido a sangrar da zona superior do nariz após os factos, e a lesão verificada no arguido BB foi, igualmente, atestada pela testemunha CC, que descreveu o corte apresentado pelo mesmo na zona da testa, após os factos.

Quanto aos factos 10) e 11) supra, sendo atinentes à vida interna de cada um e insuscetíveis de apreensão direta, extraíram-se, de acordo com as regras do normal acontecer, dos atos materiais perpetrados pelos arguidos, sendo que não se demonstrou, em momento algum, que os mesmos estivessem condicionados ou coagidos aquando da prática dos factos referidos. Por estas razões, foram os factos em análise julgados como provados.

Quanto às consequências das lesões sofridas na saúde do arguido AA, o Tribunal decidiu julgar como provado o facto 12) supra na sequência do que foi relatado pelo próprio arguido, de forma espontânea, e que encontra respaldo nas regras da experiência comum, porquanto é do conhecimento geral que sofrer uma pancada junto do nariz e empurrões no interior da sua própria residência são comportamentos adequados a provocar dores, incómodos e anseios, pelo que, tendo em conta, também, a idade do referido arguido, o Tribunal considerou cabalmente demonstrado o facto em apreço.

O facto 13) supra resultou da junção aos autos da fatura indicada, pelo Centro Hospitalar …, que se encontra junto aos autos a fls. 183, e que não foi contrariada e nem impugnada por outro meio de prova.

Os factos 14) e 22) supra foram julgados provados tendo em conta o teor dos Certificados do Registo Criminal dos arguidos juntos aos autos e devidamente atualizados.

Os factos 15) a 21) e 23) a 29) supra resultaram provados na sequência do que foi declarado pelos arguidos, que não mereceu qualquer censura, nem foi contrariado por nenhum outro meio de prova, atenta a natureza pessoal dos mesmos, razão pela qual o Tribunal decidiu julgar os referidos factos como provados.

Por fim, o facto 30) supra foi julgado como não provado, tendo em conta as dúvidas suscitadas a propósito do mesmo, pois, apesar de a testemunha CC ter referido, de forma tabelar e vaga, que o facto em análise foi provocado pelo arguido AA, o próprio arguido BB assumiu não ter certeza sobre a forma como a lesão aí referida terá sido provocada, tendo em conta a dinâmica dos factos, e o arguido AA negou ter atingido o arguido BB no pé, razão pela qual o Tribunal considerou que não foi feita uma prova cabal e suficiente da autoria do referido facto e concluiu que as dúvidas suscitadas a propósito do mesmo não permitiram ultrapassar a barreira da presunção de inocência, alcançando o estádio de certeza judicial ou de “proof beyond a reasonable doubt” exigível para uma condenação penal e, por isso, decidiu julgar tal facto como não provado, ao abrigo do princípio in dubio pro reo.

*

As testemunhas FF (advogado e conhecido do arguido AA), GG ( engenheiro e amigo do arguido AA), HH (carpinteiro e conhecido do arguido AA) e II (carpinteiro e conhecido do arguido AA) declararam, de forma genérica, ter visto o arguido AA com um penso na zona do nariz e, somente, a testemunha HH é que declarou ter visto uma lesão na zona do nariz do arguido, sem que, no entanto, tenham logrado enquadrar, com segurança, temporalmente tal situação, não tendo, por isso, as declarações das referidas testemunhas sido consideradas relevantes para a boa decisão da causa.»

C. Apreciando.

C.1 Do recurso de AA

C.1.1 Da impugnação da matéria de facto

O recorrente considera que os factos provados alinhados na sentença recorrida sob os n.ºs 4., 8., 10. e 11. foram erradamente julgados. Sustenta, no essencial, que «em parte nenhuma do vídeo CD se vê, frontalmente, deliberadamente, e intencionalmente, o arguido AA usar, ou tentar usar, como objeto contundente o referido andaime móvel articulado de metal para agredir o arguido BB.

Sendo esses factos do aludido ponto 4) julgados não provados, serão igualmente, em consequência, julgados não provados, os factos do ponto 8) dos “Factos provados” na sentença da 1.ª instância, e bem assim, e no que respeita ao arguido/recorrente AA, julgados igualmente não provados os factos dos pontos 10) e 11) dos “Factos Provados” da sentença recorrida da 1.ª instância.»

Pois bem. Conforme resulta da lei, a impugnação da decisão de facto tem as suas regras, as quais devem ser cumpridas pelo recorrente/impugnante (artigo 412.º, § 3.º e 4.º CPP). E não foram. Senão, vejamos.

Preceitua o artigo 431.º al. a) CPP, que havendo documentação da prova - como sucede no presente caso, a decisão do tribunal de 1.ª instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412.º, § 3.º e 4.º CPP. Dispondo-se no § 3.º do artigo 412.º CPP que o recorrente deve especificar:

a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) as provas que devem ser renovadas.

Porém, a recorrente limitou-se a indicar os factos que giza impugnar, indicando que relativamente ao facto provado 4.º da sentença (matricial relativamente aos demais), no qual se afirma que «o arguido AA, que segurava com ambas as mãos uma parte de um andaime, desferiu, com o mesmo, uma pancada em BB, atingindo-o na zona da cabeça», é percetível «pelo senso comum» que «um andaime móvel articulado, de alumínio temperado, com 21kg de peso, tendo fechado nas suas duas partes estremas a altura de 1,85m e a largura de 0,73m, e bem assim com as duas partes móveis extensivas de 1,03m de largura, não é de forma alguma suscetível de ser utilizado, intencionalmente, como um objeto contundente para um individuo ao tempo com 66 anos agredir outro.»

Acrescentando que «em parte nenhuma do vídeo CD se vê, frontalmente, deliberadamente, e intencionalmente, o arguido AA usar, ou tentar usar, como objeto contundente o referido andaime móvel articulado de metal para agredir o arguido BB.»

Recordemos que a sentença refere que a prova do facto 4.º assenta na valoração conjugada de diversos meios de prova: da conjugação das declarações do arguido BB com as declarações da testemunha CC (sua mãe); e das imagens visualizadas na audiência, das quais resulta «de forma clara» o modo como na circunstância se comportou o recorrente.

E assim é, efetivamente.

Só uma visualização interessada, sublimadora das dificuldades, será possível não ver o óbvio. O vídeo contendo as imagens que são referidas na sentença não tem a clareza de uma realização cinematográfica, preocupada com os detalhes. Mas não deixa lugar a dúvidas. Sobretudo se conjugadas com as declarações contextualizadoras do arguido BB e da testemunha CC e os elementos clínicos demonstradores das lesões causadas na cabeça do atingido (também referidas na sentença a propósito do facto provado 8.º). Reportando-se os pontos 10.º e 11.º às intenções.

Ora as intenções, as vontades, os conhecimentos, as representações mentais, porque do foro psíquico do sujeito, não são realidades palpáveis, sensitivamente percetíveis, hipostasiáveis.

Daí que a inerente perceção delas, nomeadamente para efeitos judiciais, só pode ser alcançada por via da ponderação dos comportamentos exteriorizados que, de um modo mais ou menos conclusivo, demonstrem esses estados psicológicos (nas palavras de Germano Marques da Silva, e na linha de pensamento de Cavaleiro de Ferreira, «a maior parte das vezes os atos interiores não se provam diretamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores» (3)).

Em suma: a única prova indicada pelo recorrente para infirmar o juízo feito pelo Tribunal recorrido relativamente aos factos provados 4.º, 8.º, 10.º e 11.º (artigo 412.º/3-b) CPP) – imagens documentadas no CD dos autos - não impõe decisão diversa da que foi exarada na sentença recorrida.

E assim, mantendo-se inalterada a decisão de facto, e sendo os factos provados indubitavelmente integradores do crime pelo qual o recorrente se mostra condenado, o recurso não é merecedor de provimento.

C.2 Do recurso de BB

C.2.1 Do erro de julgamento da questão de facto A motivação do recurso (sintetizada nas conclusões 235.º a 265.º) evidencia, com inescapável clareza, que a impugnação que o recorrente pretende da matéria de facto provada na sentença é, afinal, fundamentalmente, um desacordo quanto ao modo de formação e estruturação da convicção do julgador, traduzida essencialmente na relevância subjetiva dos meios de prova invocados como fundamento da convicção, na vertente da relevância e credibilidade de cada um deles. Isto é, o que o recorrente questiona é o juízo racional, lógico e de normalidade decorrente da experiência comum que inspira as conclusões que o julgador retirou da prova produzida relativamente aos factos 2, 5, 6, 7m 9, 11 e 12 julgados provados. Pretende, deveras, a substituição desse juízo pelo que ele próprio entende que seria o ajustado à luz da experiência comum! Sucede que a impugnação da convicção do Tribunal não pode assentar na mera discordância na formação dessa convicção, isto é, na discordância quanto à valoração da prova. Antes, deverá assentar na violação dos passos seguidos para a aquisição de tal convicção, designadamente, por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação; ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos; ou porque não houve liberdade na formação dessa convicção. O que o recorrente seguramente não pode, legitimamente, é pretender inverter a posição dos intervenientes processuais, substituindo-se a convicção de quem tem a legitimidade, imparcialidade e competência técnica para julgar, pela convicção do que espera a decisão (4), em desconformidade com a regra plasmada no artigo 127.º do CPP e o especial estatuto do juiz – único interveniente dotado de independência e imparcialidade, a quem a Constituição e a lei conferem esse poder funcional. Se bem-vista a argumentação do recorrente, logo se verifica que se não aporta qualquer desconformidade (racional, lógica ou normativa), ressaltando apenas a pretensão de substituir a convicção alcançada pelo Juízo recorrido, na valoração feita sobre os meios de prova pertinentemente indicados, pela sua própria, fundada na apreciação e valoração que fez dos mesmos meios de prova, na pressuposição de essa sua análise dos factos é que é correta! Ora, a motivação da sentença recorrida, relativamente à decisão de facto, evidencia um raciocínio integrado no processo lógico-formal realizado pelo julgador na ponderação e correlacionamento das provas produzidas e ali identificadas, que integraram a formação da sua convicção, depois traduzida no elenco dos factos considerados provados e não provados.

Esse iter mostra-se muito bem explicado, não se lhe surpreendendo falhas de lógica, afronta às regras da experiência comum, contrariedade com o valor da prova por documentos, não espelhando qualquer desacerto sobre facto histórico de conhecimento geral, ofensa às leis da física ou da mecânica, estando o arrimo feito à prova objetiva perfeitamente conexionado com a prova declaratória e as imagens reproduzidas na audiência. E, por assim ser, improcede a preconizada impugnação do recorrente.

C.2.2 In dubio pro reo

Na motivação do seu recurso o arguido BB alude, de modo inconsequente, ao princípio in dubio pro reo! Nem, na verdade, nas suas conclusões (que definem e delimitam o objeto do recurso – artigo 412.º/1.º) se vislumbra qualquer referência a esse argumento! Não obstante sempre se dirá que o sentido e conteúdo do princípio in dubio pro reo - que é uma das dimensões do princípio da presunção de inocência (garantia fundamental plasmada no § 2.º do artigo 32.º da Constituição) (5) - não serve para esgrimir com base na convicção da próprio recorrente! E é isso- e só isso - o que se passa no caso presente.

Ora, o aludido princípio encerra uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Sendo uma forma de ultrapassar um impasse probatório em sede factual (um non liquet), na fase de apreciação probatória, por banda do Tribunal.

Mas só o tribunal é tercero en discordia (6), isto é, só o juiz possui as características da independência e de imparcialidade e a necessária preparação técnica que não só o habilita como o legitima a julgar. Quer-se dizer, o princípio in dubio pro reo «não é vulnerado quando, de acordo com a opinião do condenado, o juiz devia ter duvidado, mas somente quando o juiz condenou apesar da existência real de uma dúvida.» (7)

Daí que o estado de dúvida gerado no espírito do julgador (único que subjaz ao aludido princípio), só poderá ser afirmado quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, de modo evidente, que o Tribunal teve dúvida sobre o acontecido e optou por decidir contra o arguido.

Isto é, só perante uma dúvida racionalmente inultrapassável, que impeça a formação racional de uma convicção segura por banda do Tribunal, se tem de seguir a solução favorável ao arguido.

Ora o Tribunal não julgou os factos que o recorrente impugna, com base em dúvidas que teve relativamente à verificação dos mesmos, conforme a motivação claramente evidencia.

O facto de o arguido/recorrente, firmado na sua interpretação das declarações, depoimentos e imagens visionada, entender que as mesmas, só por si, determinariam uma dúvida inultrapassável, não integra o pressuposto constitucional e legal a que vimos fazendo referência.

Não resulta da sentença recorrida que o Tribunal a quo se tivesse confrontado com qualquer dúvida sobre qualquer dos factos em referência.

Pelo contrário. A motivação inventaria as razões pelas quais o Tribunal valorou as provas - que circunstanciadamente descreve - expondo com lógica os raciocínios empreendidos, não tirando nenhuma conclusão que possa ser contrariada pelas máximas da experiência comum. Não é, pois, por acaso, que nas “dúvidas” suscitadas pelo recorrente, se não aponte qualquer questão probatória que o Tribunal não tivesse inventariado, valorado e racional e logicamente motivado (explicado).

Restando, assim concluir, que nenhuma vulneração sofreu a garantia constitucional da presunção de inocência, nem as demais garantias processuais do recorrente, pelo que nada há a alterar à factualidade julgada provada na 1.ª instância. Não havendo, igualmente, nenhuma desigualdade de critérios de julgamento. E não fora tudo o mais já referido, a simples afirmação disso mesmo por ambos os recorrentes, o mais que se evidencia é que eles continuam, agora em recurso, a disputa que tiveram naquele dia 26/3/2021.

C.2.3 Do erro de julgamento de direito – legítima defesa

Também de modo infundado, se apresenta o recorrente a invocar a legítima defesa. Dispõe o artigo 32.º do Código Penal que constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. O fundamento desta causa de justificação ancora-se na ideia hegeliana de que o direito não tem que ceder perante o ilícito. Sendo dela pressuposto que a atuação de defesa ocorra em necessidade em face de uma agressão atual ou iminente, com animus defendendi. Confrontando os factos provados verificamos que deles não emerge que a atuação do recorrente tenha sido motivada pelo intuído de afastar a agressão que sobre si recaiu. Nem sequer se tendo tratado de mera retorsão (artigo 143.º, § 3.º, al. b) CP). Veja-se que havia anteriores desentendimentos entre ambos os contendores (facto 2.º); e passando o recorrente naquela ocasião junto à residência de AA, o qual ali se encontrava a descarregar

material de construção da sua viatura, foi ele quem àquele se dirigiu chamando-lhe de «bandido», no contexto de desentendimentos anteriores entre ambos (facto 3.º). E ainda que «cada um dos arguidos sabia que, ao agir do modo descrito, molestava fisicamente o corpo e a saúde do outro, o que ambos quiseram» (facto 17.º). Pelo que não houve legítima defesa, antes intenção recíproca, e inequívoca, de os contendores provocarem agressões físicas mutuamente.

C.2.4 Do erro de julgamento de direito – espécie e medida da pena

Sustenta o recorrente BB que lhe deveria ser aplicada a dispensa de pena, prevista no artigo 143.º, § 3.º al. b) CP e, caso assim se não entenda, ser-lhe aplicada uma admoestação ou, assim se não entendendo, fixar-se-lhe a pena de multa em medida mais baixa.

Em matéria de medida da pena o recurso não é uma oportunidade para o Tribunal da Relação fazer um novo juízo sobre a decisão de primeira instância ou a este se substituir, sendo antes e apenas um meio de corrigir o que de menos próprio tenha sido decidido pelo tribunal a quo. Conforme já decidiu este Tribunal da Relação, nesta matéria o tribunal de recurso deve intervir «apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da pena, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Assim, o recurso não visa, nem pretende aqui, eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de 1.ª instância enquanto componente individual do ato de julgar. A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada. (…)» (8) Já atrás deixámos dito que o caso não foi de retorção, pelo que não deveria ter sido (como não foi) ponderada a possibilidade da dispensa de pena. Não estando igualmente reunidos os pressupostos da admoestação, prevista no artigo 60.º CP, designadamente por o dano causado não ter sido reparado, nem das circunstâncias de facto provadas resultar que a simples admoestação realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Não indicando o recorrente nada que que neste contexto o Tribunal recorrido tenha deixado de considerar. Ademais a ponderação efetuada pelo Tribunal recorrido, nos termos constantes da sentença, observa os parâmetros normativos essenciais relativos à escolha e à medida da pena, não merecendo qualquer reparo. Termos em que se mostra inconsistente a pretensão de alteração da espécie e medida da pena aplicada.

C.2.5 Do erro de julgamento de direito relativamente aos pressupostos da responsabilidade civil

Não se conformando com a condenação no pagamento de indemnização de 700€ acrescida de juros moratórios ao lesado AA; e indemnização ao Centro Hospitalar … EPE na quantia de 54€, acrescida de juros moratórios, pugna neste recurso pela sua revogação, assentando esta pretensão da falta de prova dos factos que impugnou e sobre os quais já tomámos posição supra.

Conforme ficou dito a prova dos referidos factos é indubitável. Acrescendo que, conforme dispõe o artigo 400.º, § 2.º CPP, sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

Nos termos do disposto no artigo 44.º, § 1.º da Lei n.º 62/2013, de 26/8, a alçada dos tribunais da Relação em matéria cível é de 30 000€ e a dos tribunais de 1.ª instância é de 5 000€, sendo que por alçada entende-se o «limite de valor até ao qual o tribunal julga sem recurso ordinário» (9).

No caso sub judice, o montante do pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes foi 1 000€ e de 54€ respetivamente, tendo o primeiro pedido sido julgado parcialmente procedente e o segundo integralmente procedente.

Considerando o disposto no citado artigo 400.º, § 2.º CPP e atentos o valor da alçada e o valor dos pedidos de indemnização civil deduzidos

pelos demandantes, não é legalmente admissível recurso neste particular.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento aos recursos do arguido AA e do arguido/demandado BB e, em consequência, manter integralmente a sentença recorrida.

b) Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC pelo recorrente AA e 4 em UC pelo recorrente BB (artigo 513.º, § 1.º e 3.º do CPP e artigo 8.º Reg. Custas Processuais e sua Tabela III).

Évora, 20 de fevereiro de 2024

J. F. Moreira das Neves (relator)

Laura Goulart Maurício

Nuno Garcia

.............................................................................................................

1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

3 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1999, pp. 101

4 Neste sentido cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24mar2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos

5 Em sentido algo diverso Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, 2019, Almedina, pp. 66 ss.

6 Título feliz de obra de Perfecto Andrés Ibañez (magistrado del Tribunal Supremo de España), Editorial Trotta, 2015, pp. 251 ss.

7 Claus Roxin e Bernd Schünemann, Derecho Procesal Penal, Buenos Aires, 1.ª ed., 2019, p. 573 (tradução da 29.ª edição da C. H. Beck, München), Ediciones Didot, p. 573).

8 Acórdão TRÉvora, de 22/4/2014, proc. n.º 291/13.7GEPTM.E1, Desemb. Ana Barata Brito. No mesmo sentido cf. acórdãos TRÉvora, de 29/5/2012, proc. 72/11.2PTFAR.E1, Desemb. António João Latas; e acórdão TRÉvora, de 16/6/2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1, Desemb. Clemente Lima, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

9 Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. V, pp. 220.