Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5810/20.0T8STB.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - O artigo 277º, alínea e), do Código de Processo Civil deverá aplicar-se quando em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, for patente que a decisão a proferir pelo julgador deixou de ter interesse, seja porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo (casos de impossibilidade), seja porque o escopo visado com a ação foi alcançado por outro meio (casos de inutilidade).
II - Não há qualquer inutilidade da lide quando a ação continua a ter interesse para o demandante, considerando as causas de pedir e os pedidos formulados, e encontrando-se ainda por apreciar os incidentes de intervenção provocada suscitados pelo autor.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA, advogado, instaurou, em 09.01.2020, a presente ação que caracterizou como «Impugnação Pauliana e Pedido de declaração de nulidade de negócio que correm como acção declarativa comum, constitutiva, sob a forma comum», contra BB, e sua mulher CC, e DD, atualmente maior, filha dos primeiros réus, formulando os seguintes pedidos (transcrição):
«a) ser declarada nula a «doação .../19», realizada pelo 1º R. marido, autorizado pela 1ª R. mulher, à sua filha, a 2ª R., na Rua ..., em ..., aos 22 de Janeiro de 2020 (doc. ...), nos termos dos arts. 220º, 372º ns. 2 e 3, 375º e 605º do C.C. e
b) serem impugnados os negócios de doação pelos primeiros R.R. à segunda R., identificados nos arts. 6º a 9º supra, que se dão aqui por reproduzidas, constantes dos documentos ns. ..., ... e ..., nos termos dos arts. 610º e seguintes do C.C., com os efeitos do art. 616º do mesmo código; e
c) uma vez declarada a impugnação desses negócios, serem os direitos objecto deles arrestados nos termos dos arts. 616º n. 1 in fine e 619º do CC, sem prejuízo do que referiu no art. 28º supra.»
Em sede de aperfeiçoamento[1], o autor veio clarificar que a doação .../19, realizada pelo 1º réu marido, autorizado pela 1ª ré mulher, à sua filha, a 2ª ré, deve ser declarado nula, por falta das declarações negociais das partes, designadamente a dos doadores, na medida em que as que constam do respetivo instrumento - documento nº ... - não foram assinadas por si, mas por outrem; as demais doações devem ser declaradas ineficazes perante o autor.
Referiu ainda que o terceiro pedido, de arresto, deve verificar-se após a declaração de nulidade da doação 7/2020, objeto do primeiro pedido.
Como pressuposto de todos os pedidos invoca o autor um direito de crédito de honorários forenses que prestou ao pai dos réus, já falecido e de que estes beneficiaram, em montante não concretamente indicado.
Mais referiu que brevemente irá intentar ação de honorários.
Em 30.07.2021 o autor instaurou ação comum contra os réus EE e FF, à qual foi atribuída o nº .../21...TB, intitulando-a como ação de impugnação pauliana.
Ali refere o autor que o réu EE é irmão do aqui réu BB e que os dois irmãos são titulares de direitos e de obrigações idênticas, sendo que ambos tentam ocultar os seus patrimónios para fugirem ao cumprimento de obrigações, que são comuns, já que o réu EE é devedor, em solidariedade com seu irmão, de uma determinada quantia de honorários, por serviços prestados durante 17 anos pelo escritório do autor à pessoa do seu falecido pai, sendo que o réu EE tenta ocultar o seu património mediante uma doação à ré FF, dos direitos adquiridos por herança sobre um determinado número de prédios que correspondem a 12 dos 14 que o aqui réu BB, seu irmão, simulou doar à filha.
Afirmou o autor que «[e]sta ação não é uma ação de honorários, pois tem como causa de pedir a diminuição de garantias de um credor e como pedido a anulação de negócio jurídico simulado, pelo meio legalmente previsto, a impugnação pauliana (…) Para justificar a sua legitimidade em litigar e fundamentar o direito que lhe assiste, o A tem de fazer prova sumária do seu crédito. Daí o A alegar e provar o seu crédito, de honorários devidos, a serem reclamados em ação própria…».
E concluiu formulando os seguintes pedidos:
«a) Ser impugnada a doação realizada pelo primeiro R., EE, a favor da segunda, FF, do quinhão hereditário na herança aberta por óbito de GG, compreendendo os prédios supra referidos - art 25º desta PI - (…), nos termos dos arts. 610º e seguintes do C.C., com os efeitos do art. 616º do mesmo código; e
b) Uma vez declarada a impugnação desses negócios, serem os direitos objeto deles arrestados nos termos dos arts. 616º n. 1 in fine e 619º do CC, sem prejuízo do que referiu no art. 44º supra.
c) Ficarem futuras alienações dos bens descritos no artigo 25º desta PI sujeitas a autorização prévia do Tribunal, ficando o produto da venda de 25%, que cabe ao quinhão do R EE na herança de GG, seu avô, depositado à ordem do processo.»
Por despacho de 15.07.2021 foi ordenada a remessa da ação nº .../21...TB para apensação à presente ação instaurada anteriormente, apensação que ocorreu em 02.08.2021.
Em 19.09.2021 o autor instaurou nos juízos centrais cíveis da comarca ... ação comum nº .../21...-J3, contra BB, sua mulher e EE, na qual pede que os réus sejam solidariamente condenados a pagar-lhe a dívida de honorários por serviços prestados ao seu pai e avó materna, no montante de € 281.000,00 acrescida de juros vencidos e vincendos, contabilizando os vencidos em € 56.200,00, pedindo ainda a apensação àqueles autos de ambas as ações acima identificadas, o que viria a ser indeferido.
Por requerimento de 12.07.2022 (ref.ª Citius ...80), os réus em ambas as ações (esta e a do proc. .../21...TB), vieram juntar aos autos dois depósitos autónomos (fref.ª Citius ls. 623 e 624) cada um no montante de 168.600,00€, perfazendo o montante global de € 337.200,00 (o valor do pedido e juros vencidos, na ação de honorários), em ordem a garantir o crédito que possa ser declarado na ação de honorários acima identificada, requerendo: i) a extinção da presente lide por inutilidade superveniente e/ou ii) caso não seja esse o entendimento, o cancelamento dos registos das ações paulianas nos demais imoveis onerados.
Pela seção de processos foi informado «que as quantias a que se alude nos depósitos de fls. 623 e 624, podem, a qualquer altura, serem mandadas entregar ao autor, no âmbito de um outro processo».
Em 13.06.2023, o autor apresentou um requerimento nos autos que concluiu assim:
«a) Deve ser considerado procedente o requerimento dos R.R., de fls., a que se associa, na parte em que pedem a V. Exa. se digne ordenar que fiquem os depósitos de fls. 623 e 624 à ordem da ação de honorários, onde esse valor é peticionado – processo .../21...-JC Cível ... – J..., até decisão, o que com eles ora requer;
b) Devem os autos prosseguir, para além do mais para verificar a legalidade e validade jurídica dos negócios sub judice: Para tanto devem;
i. Ser participados ao MP e à Ordem dos Advogados os factos conexos com a autenticação do contrato de doação do R. EE à R. FF; bem como a autenticação do contrato de doação de 22/01/2020 em que é doador o R BB e donatária a R DD, com envio do Relatório da perícia grafológica efetuada pelo LEDEM e, no futuro, das conclusões da perícia que venha a ser ordenada;
ii. Seja oficiada a Autoridade Tributária para informar se houve liquidação do imposto de selo sobre a suprarreferida doação do EE a favor de FF;
iii. Seja oficiada a AT para informar das razões pelas quais os prédios, outrora pertencentes à Herança de GG se mantêm, ainda nesta data, matricialmente, em nome desta herança, mas apenas no que concerne aos herdeiros legitimários, ao passo que que foram averbados – e bem – em nome herdeiros legatários, no que concerne a estes.
iv. Seja oficiada a AT para informar se houve declaração das mais-valias geradas pelas alienações dos prédios.»
Em 14.09.2023, foi proferida a seguinte decisão:
«Pelo exposto, tendo ainda em vista o requerimento do A., de 13.06.2023, determino que as quantias a que respeitam os depósitos autónomos acima identificados, fiquem cativas e à ordem da ação de honorários acima identificada, até ao trânsito em julgado da mesma.
Not.
Comunique à ação de honorários e ao IGFJ.
*
No mais, e quanto à inutilidade superveniente no prosseguimento destes autos, em face dos depósitos acima assinalados.
O A. pronunciou-se no sentido de que os autos devem prosseguir, para além do mais, para verificar a legalidade e validade jurídica dos negócios que descrimina no requerimento de 13.06.2023.
Como acima se referiu, os autos foram intentados sob o título de “impugnação pauliana”, pelo que, conforme ficou exarado no despacho acima parcialmente transcrito, o reconhecimento da existência do crédito é a primeira condição para o decretamento da ineficácia de qualquer negócio jurídico, no âmbito de uma ação deste tipo, além de que o interesse em agir do A., para as invalidades reclamadas, e que consiste na necessidade ou utilidade da demanda, no quadro em que a ação foi proposta, só é perspetivável enquanto garante de um crédito, que no caso é de honorários.
Esse crédito, ao momento, é incerto, hipotético e litigioso.
Ainda assim, está garantido, motivo por que não há qualquer utilidade no prosseguimento de ambas as ações.
Paralelamente, este não é o meio processual adequado para averiguar a ilicitude, porventura criminal, de qualquer atuação dos RR.
Ainda assim, em ordem a acautelar qualquer indício de prática criminal, prossigam os autos com termos de Vista.
Em seguimento do anteriormente referido, declaro a inutilidade superveniente de lide, no que respeita ao processo .../20...TB e seu apenso nº .../21...TB, e, consequentemente, a extinção de ambas as instâncias (artº 277/e) do CPC).
Consequentemente, declaro o cancelamento do registo de ambas as ações nos prédios identificados nas p.i. e que ainda permaneçam ativos.
Custas pelos RR (artº 536º, nº 3, in fine do CPC, já que a inutilidade decorre dos depósitos por eles apresentados).
Registe, notifique e dê baixa estatística em ambas as ações: .../20...TB e seu apenso nº .../21...TB.»
Inconformado, o autor apelou da parte da decisão «em que ela decide a questão da inutilidade superveniente da lide e ordena o cancelamento dos registos das acções nos prédios identificados nas PI», finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1ª Os meios de conservação da garantia patrimonial, previstos nos arts. 605º e seg. do Código Civil (CC), destinam-se, como o próprio título da secção indica, a conservar a garantia contra actos de disponibilidade do devedor que a diminuam. Independentemente da legitimidade e condições que determinados credores tenham para accionarem esses meios - Declaração de Nulidade, Sub-rogação do credor ao devedor, Impugnação Pauliana e Arresto - todos os credores beneficiam, ou podem beneficiar do resultado, por um, a um desses meios. Assim,
2ª Enquanto a sub-rogação do credor ao devedor e o arresto são meios que se desenvolvem e produzem efeitos apenas inter partes, a declaração de nulidade aproveita a todos os credores, como estatui expressamente o art. 605º n. 2 do CC e a própria impugnação pauliana pode, smo, aproveitar aos credores que, porventura, se associem na pendência da acção ao credor que inicialmente a requereu.
3ª No caso sub juditio, apurou-se recentemente a existência dos processos de insolvência dos doadores. Ora, a declaração de nulidade pedida, ab initio, neste processo, pode porventura interessar aos credores reclamantes de créditos nas referidas acções, incluindo, certamente, o próprio Estado!
4ª A práctica, manifestamente dolosa, de actos, graves, de ocultação de valiosíssimo património, antecedendo ou concorrendo com pedido de insolvência com exoneração do passivo restante, sem dúvida que há-de gerar responsabilidade penal, disciplinar, etc., matérias estas que não são susceptíveis de ser conhecidas nos presentes autos[2]…; porém, essas actuações interessam para o conhecimento da matéria dos autos e dos pedidos e o conhecimento dos pedidos interessa, sem dúvida, aos demais credores; incluindo o Estado.
5ª Smo, a douta sentença recorrida, que julga a inutilidade superveniente da lide e o cancelamento dos registos não pode proceder. Pelo menos não pode proceder nesta fase, antes de ter sido dado conhecimento efectivo ao MP dos dados constantes dos autos, e antes de ter decorrido o prazo para ele promover o que entender conveniente.
6ª A douta sentença recorrida recai sobre duas acções, a segunda apensa à primeira, em que são RR, agora recorridos, numa BB, doador e mulher, CC e DD, filha de ambos, donatária; na outra são RR EE, irmão de BB, também doador e a donatária daquele, FF. Nelas, nas supervenientemente conhecidas apresentação à insolvência pelo BB e CC (23/8/2019), e apresentação do EE à insolvência (07/01/2019), o patrocínio é exercido pela mesma ilustre Mandatária, que também autenticou os negócios objecto das acções, dando os Recorridos BB, DD e CC como presentes nesse acto, sendo que, numa das autenticações, as assinaturas são falsas e não foram da autoria dos alegados outorgantes e subscritores.
7ª O R EE, patrocinado pela mesma Ilustre Mandatária, no processo de insolvência, não declarou a existência de quaisquer bens ou direitos e é ela mesma quem autentica a doação, estando ainda pendente o processo de insolvência e em curso o período para a exoneração do passivo restante, com menção de certidões, caducadas, havia cerca de dois anos, para além de uma que nunca existiu. Do mesmo modo, patrocinados pela mesma ilustre causídica, Os RR BB e CC omitiram proveitos volumosos e a existência de vários prédios ao apresentarem-se à insolvência (23/8/2019) e após serem declarados insolventes (16/9/2019), estando ainda pendente o processo de insolvência e em curso o período para a exoneração do passivo restante, fizeram a doação de outros dois valiosos prédios à filha DD, um dos quais em 20/01/2020, tendo por objecto um dos dois prédios vendidos por 1.707.480,00€, ao Município ..., em 25/05/2022.
8ª Tendo estado sempre assistidos pelo mesmo advogado, está fora de possibilidade que os RR pudessem ter agido por desconhecimento e de boa-fé em todos estes actos.
9ª O A/Rte, por, na altura, ser desconhecedor da esmagadora maioria dos factos, entretanto vertidos para os autos, começou por propor contra os recorridos BB, CC e DD acção declarativa constitutiva, em que pede a declaração de nulidade da «doação .../19», em que é doador o recorrido BB e donatária a recorrida DD, sendo um dos fundamentos da causa de pedir a evidente falsificação de assinaturas, mais tarde, tecnicamente provada por perícia do LEDEM (arts. 220º, 372º ns. 2 e 3, 375º e 605º do C.C.). O Rte impugnou, também, por via da impugnação pauliana, outras doações do BB à filha DD (doc 2,15 e 17), requerendo o arresto dos direitos doados (arts 610º a 616º, nº1e art 619º CC). Portanto,
10ª A acção proposta pelo Rte contra o BB/DD/CC não se restringe à impugnação pauliana, já que foi requerida, também, a declaração de nulidade de vendas efetuadas pelos recorridos, bem como a intervenção provocada dos compradores e de todos os herdeiros legatários, comproprietários dos prédios doados e vendidos, herdados de GG, apesar da douta sentença recorrida, na sua fundamentação e parte decisória, fazer da acção como se, apenas, de uma impugnação pauliana se tratasse.
11ª A douta sentença recorrida, apesar de ter identificado no relatório as questões sub juditio, não conheceu do pedido e declaração de nulidade, nem da matéria respectiva, em violação do disposto no art. 608º n. 2 CPC, causadora de nulidade da sentença, nos termos do art. 615º n. 1 d) do mesmo Código.
12ª A nulidade do negócio foi suscitada ab initio, na PI, tendo sido, já na pendência do processo, suscitados factos supervenientes, de que resultam outras nulidades, tencionando, em consequência, o A. ampliar o pedido nos termos do art. 265º n. 2 do CPC, para o que está e estará em tempo, em ordem a que o mesmo contemple a declaração das nulidades entretanto constatadas e causadas por eles.
13ª O douto Tribunal a quo, não decidiu, na douta sentença recorrida, nem antes dela, o(s) incidente(s) de Intervenção Principal Provocada, que o Rte suscitou, por duas vezes, apesar de nem os próprios Recorridos se terem oposto a ele(s), igualmente em violação do disposto no art. 608º n. 2 CPC, provocando a nulidade da sentença, nos termos do art. 615º n. 1 d) do mesmo Código.
14ª A causa de pedir destes dois incidentes de intervenção provocada são ilícitos graves, altamente lesivos, para além do A./Rte, quer dos chamados, que vivem na ignorância da invalidade de negócios jurídicos em que intervieram, quer, também, do interesse público.
15ª Os averbamentos registais às descrições dos prédios vendidos por 1.707.480,00€, ao Município ..., em 25/05/2022, levaram o Rte a conhecer que as putativas doações do BB tinham sido acompanhadas por ilícitos do mesmo tipo cometidos pelo irmão EE, pois, tal como o irmão, também se apresentou à insolvência, em 5/Fev/2019, sem menção da sua titularidade de qualquer bem ou direito, e fora declarado insolvente, em 11/Fev/2019, (Proc. nº 2161/19..... Comércio ... J...), o que não o impediu de assinar a escritura de venda a HH, celebrada em 4/2/2020, na qualidade de comproprietário; nem de, já insolvente e na pendência do processo, doar os seus direitos de compropriedade sobre 14 prédios à aqui recorrida FF, em 20/1/2020, evidentemente sem qualquer intervenção do Administrador Judicial da massa.
16ª Esta doação está datada, no documento particular, de 7/1/2019, mas a sua autenticação apenas foi efetuada em 20/1/2021, com recurso a certidões há muito caducadas sendo, num caso, a certidão inexistente.
17ª E os Recorridos confessaram já nos autos que se preparam para dar continuidade à sua actividade ilícita, através de novas vendas de outros prédios, uns não doados simuladamente outros omitidos nos pedidos de insolvência.
18ª Com o presente recurso, o Rte não põe em causa a bondade da decisão, de que não recorreu, de, conforme os próprios RR requereram, serem os montantes depositados (depósitos autónomos de fls., no valor, cada um, de 168.600,00€) por eles nestes autos (por exigência do Município ...), colocados à ordem da pendente acção de honorários que (também) propôs contra o BB, a CC e o EE, mas considera que mesmo esta garantia dos honorários devidos não acautela devidamente o seu direito.
19ª Embora controversa, existe Doutrina e Jurisprudência fundamentada, segundo as quais quantias ou depósitos à ordem de um qualquer processo judicial não são garantias reais dos créditos neles discutidos, para além do que nada impede o Município ... de invocar ele próprio as nulidades dos negócios celebrados, pedindo, para além de indemnização, a repetição do indevido, abrindo-se, assim, uma complexa e interminável discussão jurídica;
20ª Do mesmo modo, é preciso não esquecer que os créditos por diversos impostos, e de prestações da Segurança Social, são assistidos por privilégios creditórios, que prevalecem sobre as garantias reais.
21ª Se mais razões não existissem, a acção de impugnação pauliana e de declaração das transmissões efectuadas, seguindo-se o arresto, deve prosseguir, para assegurar a conservação a garantia do crédito do A. e o seu bom pagamento quando ele for judicialmente reconhecido e exigível, dando, também, a oportunidade aos lesados pela venda descrita, já realizada na pendência deste processo, de nele intervirem.
22ª Foram carreadas para os autos provas de factos que indiciam: fraude fiscal; viciações de registos; insolvências fraudulentas; falsificação de documentos; burlas. Se a douta sentença transitasse, e o processo findasse neste momento, consolidar-se-iam, com forte probabilidade, as falsas e dolosas insolvências dos RR BB e EE, com escandalosas exonerações do passivo restante e ficariam impunes e, sobretudo assentes na Ordem Jurídica a incompreensível falsificação de assinaturas em acto de natureza notarial; e a subsequente viciação do registo predial.
23ª Estes ilícitos - falsificação de documentos, falsificação de assinaturas, viciação dos registos prediais, as insolvências dolosas, a fraude fiscal - que atingem valores económicos, financeiros e sociais muito relevantes, têm a natureza de crimes públicos. O douto Tribunal a quo andou bem ao ordenar o Visto dos autos ao MP, dado que tais factos são credores de procedimento criminal, mas era mister que, pelo menos, aguardasse a reacção deste;
24ª Para além de que carecem de avaliação imediata os efeitos de natureza cível, fiscal e registal de tais ilícitos, sobretudo, a adopção de medidas que impeçam a continuidade das condutas ilícitas, documentalmente provada e que está em vias de ser repetida noutras situações em curso, tornada possível pelo cancelamento dos registos ordenados na douta sentença recorrida.
25ª A normal tramitação das acções, e respectivo registo, em lugar da sua abrupta e anómala, por prematura, decisão e a manutenção do registo das presentes acções, constituíam e constituem um fortíssimo dissuasor da repetição de transmissões fraudulentas.
26ª Paradoxalmente, com o advento do Estado de Direito Democrático no nosso país, o anterior absoluto domínio do Princípio do Dispositivo foi mitigado no Processo Civil, em favor do aumento dos poderes, e dos deveres, dos juízes. Não só no âmbito do Princípio do Inquisitório 411º, como, também, nos poderes de Direcção do Processo 6º, 411º, 547º, 588º e na tutela quer da Legalidade 2º, quer da Boa-fé 8º, quer da Justiça 152º, 411º.
Também por esta via se exigia maior cautela ao douto Tribunal a quo que, tranquilizado pelos depósitos efectuados, cuidando estarem suficientemente acautelados os direitos do A, conforme refere na douta sentença recorrida, acabou por não conhecer as demais questões suscitadas por ele – cfr. art. 608º n. 2 CPC – assim comprometendo, também, o Princípio do Dispositivo.
27ª O A./Rte teve a diligência de intentar – há já 3 anos no início de Novembro de 2020 – a presente acção. E teve a diligência, não só de pedir o registo oficioso dela, como a de a registar pelos seus meios. Entretanto, durante a respectiva pendência, gastou tempo, esforço e dinheiro para, como já se referiu, investigar a actuação dos RR e ir instruindo o processo com os dados que ia descobrindo e obtendo. Inclusivamente, pagou uma perícia altamente reveladora, feita por entidade científica idónea. É de elementar Justiça, e conforme à legalidade, que, por via da prioridade, incluindo registal, se possa prevalecer desses seus cuidados, mesmo perante outros credores que possam vir a seguir o seu exemplo, na esteira do seu trabalho.
28ª Prioridade registal que se perderá se a douta sentença recorrida prevalecer e transitar em julgado.
29ª A douta sentença recorrida desconsidera o pedido, os factos que, quer ab initio, quer supervenientemente, integram a causa de pedir; para além de desconsiderar o interesse de outros lesados, cuja intervenção provocada foi requerida.
30ª Não são toleráveis, nem se podem desconsiderar a prática de actos de natureza notarial, em que são falsificadas assinaturas das partes intervenientes: doador, donatária e autorizante, ou a autenticação de contratos em que são indicadas certidões caducadas, há longos meses, obtidas para outros atos, ou certidões de todo inexistentes, (tudo informação do INR), a que se segue a viciação do registos.
31ª Se a douta sentença se consolidasse, consolidar-se-iam, também, com forte probabilidade as falsas e dolosas insolvências com escandalosas exonerações do passivo restante, em prejuízo dos credores.
32ª Era dever do douto Tribunal tomar medidas que obstassem à prossecução da atividade ilícita, sobretudo porque estão em causa condutas subversivas da legal ordem pública.
33ª A CRP elenca, entre os Direitos Fundamentais do Estado de Direito, o acesso aos tribunais para assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses (CRP-art 2º,20º, 202º), que também são assegurados por convenções internacionais ratificadas por Portugal (CEDH-art VI , Carta DCUE-art47º).
34ª A realização desses direitos faz-se à luz de princípios estruturantes e de normas processuais. No processo civil, o princípio do dispositivo impõe à parte demandante o ónus da identificação dos direitos interesses, públicos ou privados, afetados; dos factos integrantes da ilicitude; da apresentação das provas da sua ilicitude da lesão; da identificação dos autores dos ilícitos; da formulação do pedido.
35ª Estes requisitos valem para a acção e para os incidentes, como sejam a intervenção provocada ou espontânea.
36ª Ao decretar a inutilidade superveniente da lide, sem conhecer dos pedidos, o douto Tribunal violou o princípio do dispositivo. (CPC 5º)
37ª O douto Tribunal deixou de praticar actos que não podia omitir (art.195.º, nº.1 do CPC)
38ª Não esteve bem a douta sentença porque o douto Tribunal a quo estava vinculado ao poder-dever de cooperação com as partes e não teve em consideração a causa de pedir e o pedido do autor ora Recorrente, ferindo a equidade do processo.
39ª Não haveria tutela efectiva se o tribunal dispusesse de um poder discricionário, não previsto na lei, para afastar a aplicação do princípio do dispositivo.
40ª A prevalecer tal interpretação e a aceitar-se a inutilidade superveniente da lide, teria de concluir-se pela inconstitucionalidade material dos artigos 5º e 6º do CPC por oposição ao artigo 20º e 202º da CRP.
41ª Por fim, a propósito da frase a fls. na douta sentença, segundo a qual «…o reconhecimento da existência do crédito é a primeira condição para o decretamento da ineficácia dos negócios impugnados.», há que frisar, sem prejuízo da bondade formal da mesma, que não só o reconhecimento, como a própria existência actual do crédito, não são requisitos para o exercício – i.e., o pedido - da impugnação pauliana de acto de natureza não pessoal que diminua a garantia patrimonial do crédito, atento o disposto no art. 614º do CC.
42ª É a própria sentença recorrida que, doutamente, aponta a solução nos casos em que o crédito ainda não venceu, ou ainda não é certo, ou ainda não é exigível porque ainda não está judicialmente declarado, como o dos autos… esta deverá ser tratada como uma questão prejudicial, ou, quiçá, nalguns outros casos, como uma questão prévia.
Termos em que deve a douta sentença ser revogada, descendo os autos à 1ª instância para serem materializadas a promoção do MP, as intervenções provocadas e ser conhecidos os pedidos formulados pelo autor, agora recorrente, dando-lhe oportunidade de os ampliar, nos termos do art. 265º n. 2 do CPC, à luz dos factos supervenientes entretanto apurados e carreados paa os autos, assim fazendo Vossas Excelências, Justiça!»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir é a de saber se existe fundamento para declarar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, como foi entendido na decisão recorrida, ou se, o invés, como defende o autor/recorrente, devem os autos prosseguir para apreciação dos pedidos por si formulados.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos a considerar são os constantes do relatório supra.

O DIREITO
Diz o recorrente que contrariamente ao que refere e resulta do dispositivo da decisão recorrida, o autor não se limitou a instaurar uma ação de impugnação pauliana, pois desde o introito da petição inicial até à formulação do pedido, exprimiu-se, claramente, no sentido de obter do Tribunal a quo declaração de nulidade de negócio, o que, aliás, não deixou de ser registado no relatório da decisão ora posta em crise.
Tal, segundo o recorrente, constitui uma violação do disposto do disposto no art. 608º, nº 2 CPC, causadora de nulidade da sentença, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), do mesmo Código, sendo que a nulidade foi invocada ab initio, na petição inicial, tendo sido suscitadas outras nulidades que resultam de factos supervenientes, alegados em articulados supervenientes, pelo que oportunamente o ora recorrente ampliará o pedido para que o mesmo contemple a declaração das nulidades verificadas com os ditos factos supervenientes.
Prosseguindo, diz o recorrente que suscitou, por duas vezes, o incidente de Intervenção Principal Provocada, primeiro em 06.05.2021 (ref.ª Citius ...37), chamando HH e outros, e depois em 15.06.2023, incluindo no identificado chamamento, ou, caso assim não se entendesse, autonomamente, o Município ..., não tendo os réus deduzido oposição a nenhum dos chamamentos, mas o Tribunal a quo nunca se chegou a pronunciar sobre estes requerimentos, nem, ao menos, agora, para os considerar prejudicados pela decisão, entendendo o recorrente que isso configura igualmente uma omissão de pronúncia, de que resulta a nulidade da decisão recorrida.
Mas não tem razão o recorrente quanto à invocada nulidade da decisão.
Com efeito, no que respeita à declaração de nulidade de negócio, a decisão recorrida pronuncia-se de forma expressa, ao afirmar que «os autos foram intentados sob o título de “impugnação pauliana”, pelo que, conforme ficou exarado no despacho acima parcialmente transcrito, o reconhecimento da existência do crédito é a primeira condição para o decretamento da ineficácia de qualquer negócio jurídico, no âmbito de uma ação deste tipo, além de que o interesse em agir do A., para as invalidades reclamadas, e que consiste na necessidade ou utilidade da demanda, no quadro em que a ação foi proposta, só é perspetivável enquanto garante de um crédito, que no caso é de honorários.
Esse crédito, ao momento, é incerto, hipotético e litigioso.
Ainda assim, está garantido, motivo por que não há qualquer utilidade no prosseguimento de ambas as ações».
Ora, a não consideração para efeitos da decisão da nulidade de negócio não consubstancia omissão de pronúncia, uma vez que não constitui um vício intrínseco da decisão, mas apenas que a Sr.ª Juíza terá decidido eventualmente mal. Trata-se, nesse caso, de um error in judicando, em contraposição ao error in procedendo, o que, aliás, será apreciado infra.
No que concerne aos requerimentos de intervenção provocada, a sua apreciação ficou naturalmente prejudicado pela solução dada ao litígio (art. 608º, nº 2, do CPC), inexistindo, por conseguinte, qualquer omissão de pronúncia, independentemente de isso não ter sido mencionado expressamente na decisão recorrida.
A decisão recorrida não enferma, pois, da nulidade apontada pelo recorrente.
Apreciando a bondade da decisão recorrida, importa ter presente que a causa de pedir nos referidos chamamentos - e também parcialmente nas próprias ações -, assenta na alegada prática pelos réus/recorridos de negócios jurídicos consubstanciados em: i) falsificação das assinaturas do doador, da donatária e da autorizante num dos vários contratos de doação [facto alegado na p.i.]; celebração dos contratos de doação, quando o doador já havia sido declarado insolvente [facto superveniente].
Assim, para além do interesse subjetivo do autor/recorrente, estão também os interesses privados de quem comprou património imobiliário objeto da ação, designadamente HH e o Município ..., que foram chamados à ação pelo autor sem oposição dos réus.
Se os negócios em causa enfermam de nulidade, seja por falsificação de assinaturas, seja por subtração dos prédios aos processos de insolvência, é algo que pode e deve ser conhecido no âmbito da presente ação, dando oportunidade aos chamados de discutirem os eus direitos.
Como bem observa o recorrente, «[s]e o Município ... se aperceber da nulidade da aquisição dos dois prédios que comprou por escritura de 22/05/2022, poderá, (…), pedir a declaração de nulidade do negócio, com a repetição do indevido, para além de indemnização. Tornando-se credor dos RR.», sendo que «[o] Recorrente tem, (…), interesse em que a nulidade de que enferma a aquisição de dois prédios pelo Município ... seja discutida nos presentes autos e desejavelmente suprida, ou por decisão judicial ou pela prática de acto notarial válido. (…)».
Mas será que podemos considerar que o depósito à ordem da ação de honorários constitui garantia idónea de que o autor receberá os honorários que alega serem-lhe devidos há tanto tempo, o que tornaria a presente demanda inútil.
Sendo questão controvertida saber se as quantias ou depósitos à ordem de um qualquer processo judicial constituem garantias reais[3], o certo é que se o Estado reclamar dívidas relacionadas com alguns impostos e/ou com a Segurança Social, para, por via de privilégios creditórios, que podem prevalecer sobre garantias reais, a quantia entretanto depositada à ordem da ação de honorários não pode considerar-se intocada.
E como também observa o recorrente, «[a] verificar-se a hipótese de o Município ... requerer a anulação do negócio da compra dos dois prédios, que nem sequer é remota, desapareceria a garantia que o douto Tribunal e, também, os Recorridos a quo veem no depósito daquele montante à ordem do processo».
Entendemos, por isso, ainda que à cautela, atendendo à tutela dos interesses dos chamados, que não devia o Tribunal a quo ter já proferido decisão a julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, devendo antes apreciar os incidentes de intervenção provocada suscitados, considerando, ademais, a existência de prova documental indiciadora de uma atuação eventualmente ilícita dos réus nos negócios em causa.
E, ademais, é incontornável que os pedidos claramente expressos na petição inicial, foram a «impugnação pauliana e o pedido de declaração de nulidade de negócio que correm como acção declarativa comum, constitutiva» e, posteriormente, de Intervenção provocada de todos os herdeiros legatários e dos adquirentes dos prédios alienados, com particular destaque para o Município ....
A tudo isto acresce, como bem aduz o recorrente, que «depois dos factos supervenientemente apurados e carreados para os autos, poderiam, deveriam, até, os pedidos ser ampliados nos termos do art. 265º n. 2 do CPC».
Não se afigura, pois, curial, que o Tribunal a quo não tenha em consideração a atuação dos réus nos negócios em causa, remetendo sem mais o litígio para a ação de honorários, onde nada disto se discute.
A alínea e) do art. 277º do CPC deverá aplicar-se «quando em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, for patente que a decisão a proferir pelo julgador deixou de ter interesse, seja porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo (casos de impossibilidade), seja porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio (casos de inutilidade)»[4].
Por tudo o que se deixou dito, o depósito das quantias acima referidas, à ordem do processo referente à ação de honorários, não consubstancia uma situação de inutilidade superveniente da presente lide.
Por conseguinte, o recurso merece provimento, devendo os autos prosseguir os seus regulares termos para conhecimento dos pedidos formulados pelo autor e, desde logo, com a apreciação dos incidentes de intervenção provocada suscitados pelo autor/recorrente.

Vencidos no recurso, suportarão os réus/recorridos as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir nos termos acima referidos.
Custas pelos réus.
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Évora, 7 de março de 2024
Manuel Bargado (relator)
Maria Adelaide Domingos (1ª adjunta)
Maria José Cortes (2ª adjunta)
(documento com assinaturas eletrónicas)

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[1] Vide requerimento de 21.04.2021, ref.ª Citius ...57.
[2] 8 Neste ponto andou bem a douta sentença recorrida.
[3] Propendemos a considerar que não constituem garantias reais, na esteira, entre outros, do acórdão da Relação do Porto de 19.12.2023, proc. 4336/19.9T8GDM.P1, in www.dgsi.pt, com ampla explanação doutrinal e jurisprudencial.
[4] Cf. acórdão do STJ de 07.11.2019, proc. 3150/07.9TVPRT.P1.S1. No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 17.11.2021, proc. 391/17.4T8GMR.G1.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.