Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1923/22.1T8FAR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: SERVIÇO DOMÉSTICO
CADUCIDADE DO CONTRATO
DIREITOS INDISPONÍVEIS
CONFISSÃO
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – A matéria salarial, na qual se incluem os subsídios de férias e de natal, integra os direitos indisponíveis dos trabalhadores, mas apenas enquanto o trabalhador mantém o vínculo salarial.
II – O tribunal da relação altera oficiosamente a matéria de facto caso constate que meios de prova com força plena existentes no processo foram desrespeitados, sendo que a confissão judicial escrita possui força probatória plena, nos termos do n.º 1 do art. 358.º do Código Civil.
III – A confissão efetuada em articulado pode ser retificada ou retirada enquanto a parte contrária a não tiver aceitado especificadamente, sendo que, tratando-se de uma confissão complexa, caso a parte contrária a aceite, terá de aceitar não só os factos que a beneficiam como os factos que lhe são desvantajosos, salvo se se reservar o direito de efetuar a prova da inexatidão dos factos que lhe são desvantajosos.
IV – Existe um contrato de serviço doméstico quando o trabalhador se obriga (i) a prestar a outrem; (ii) sob a sua direção e autoridade; (iii) atividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou específicas de um agregado familiar ou equiparado e dos respetivos membros; (iv) com carácter regular; e (v) em troca de retribuição.
V – No âmbito do contrato de serviço doméstico, que é um contrato especial relativamente ao regime geral previsto no Código do Trabalho, para além da situação de caducidade do contrato por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o empregador receber a prestação de trabalho do trabalhador, admite-se igualmente tal caducidade do contrato quando ocorra alteração substancial das circunstâncias da vida familiar do empregador que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
VI – Nesta última situação, o grau de exigência é menor, visto que já não se exige uma impossibilidade absoluta e definitiva, mas tão somente uma impossibilidade imediata e praticamente impossível, razão pela qual esta situação concede ao trabalhador o direito a uma compensação.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 1923/22.1T8FAR.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
AA (Autora) intentou a presente ação declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, contra BB (Ré), solicitando, a final, que a ação seja julgada procedente por provada e, em consequência, seja a Ré condenada:
a) - Reconhecer a existência do contrato de trabalho celebrado com a A. desde finais de Maio 2004 até meados de Julho de 2021, bem como as retribuições auferidas, como consta dos articulados.
b) - Pagar à A. todos os créditos laborais a título de indemnizações, compensações e subsídios proporcionais, legalmente devidas pelo todo o período de existência do contrato de trabalho, desde a celebração e até a cessação do mesmo, nomeadamente:
I - Anos de 2004, 2005 e 2006
1 - A título de subsídio ferias não pago quantia de 170,00€
2 - A título de ferias não gozadas, a quantia de 110,00 €
3 - A título de subsídio de Natal não pago, a quantia de 70,00 €
II – Anos de 2007 a 2014
1 – A título de subsídio ferias não pago quantia de 980,00€
2 - A título de férias não gozadas e não pagas, a quantia de 802,50 €
3 - A título de subsídio de Natal não pago, a quantia de 995,00 €
III – Anos de 2015 a 2021
1 – A título de subsídio ferias não pago quantia de 980,00€
2 - A título de férias não gozadas e não pagas, a quantia de 802,50 €
3 - A título de subsídio de Natal não pago, a quantia de 1185,00 €
IV - Compensação para cessação de contrato de trabalho – 300,00 x 5 = 1500,00 €
V – A estas quantias acrescem juros de mora desde o trânsito em julgado da sentença, e até ao integral e efetivo pagamento.
MAIS REQUER,
VI - Aplicação ao caso em concreto do princípio especial de Direito Laboral: “Extra vel ultra petitum”.

Alegou, em síntese, que a Autora foi admitida ao serviço da Ré em 2004 para, sob a sua direção e autoridade, prestar trabalhos de limpeza, que seriam pagos à hora e consoante as horas de trabalho cumpridas, auferindo a Autora, em média, €110,00 por mês.
Mais alegou que a Autora gozou um mês de férias em 2004, duas semanas em 2005 e duas semanas em 2006, tendo-lhe sido pago, a título de subsídio de férias, €10,00 no ano de 2004, €70,00 no ano de 2005 e €80,00 no ano de 2006, pelo que ficou em falta €100,00 em 2004, €40,00 em 2005 e €30,00 em 2006, num total de €170,00.
Alegou ainda que, a título de subsídio de natal, a Autora recebeu €80,00 em 2004, €80,00 em 2005 e €100,00 em 2006.
Consignou também que, desde 01-01-2007, a Autora celebrou com a Ré um contrato verbal, segundo o qual aquela deveria cumprir para esta as funções inerentes à categoria profissional de empregada doméstica, designadamente deveria lavar e tratar de roupas, limpar e arrumar a casa, tratar de animais domésticos e executar serviços de jardinagem, sendo que tais funções eram desempenhadas pela autora nas instalações da residência da Ré ou em qualquer outra que esta tivesse e para as quais fosse determinada a intervenção da Autora, recebendo, em contrapartida pelo seu trabalho, a retribuição mensal ilíquida de €160,00, que lhe seria paga, em dinheiro, no dia 1 de cada mês, pela Ré, encontrando-se o horário de trabalho estipulado de segunda a sábado, não ultrapassando as 48 horas semanais, estipulando-se o domingo para dia de descanso semanal, tendo a Autora, em cada dia da semana, a gozar de intervalos para refeições e descanso, não se encontrando, porém, incluindo o fornecimento de alojamento e alimentação.
Alegou igualmente o que foi auferindo ao longo dos anos, sendo que, entre os anos de 2007 e 2014, a Ré ficou-lhe a dever a título de subsídio de férias e de férias não gozadas e não pagas a quantia de €1.782,50; e a título de subsídio de natal a quantia de €995,00.
Invocou igualmente que, em 01-01-2015, a Ré contratou a Autora, por contrato verbal, para prestar trabalho como governanta, tendo, desde então, passado a supervisionar toda a limpeza e higienização da casa, a fazer as compras alimentares, a proceder ao tratamento e limpeza da piscina, a efetuar os serviços de jardinagem e horta, continuando a não estar incluído o alojamento e a alimentação, recebendo, em contrapartida, a retribuição mensal de €250,00, sendo que, desde 2017 e até 2021, tal valor foi aumentado para €300,00 mensais.
Alegou, de igual modo, que nesse período não lhe foram pagos a título de subsídio de férias e de férias não gozadas e não pagas o montante de €2.480,00; e a título de subsídio de natal o montante de 1.285,00.
Alegou, por fim, que, no início do mês de julho de 2021, a Ré comunicou à Autora que tinha vendido o imóvel, indo viver, a partir de então, para a zona de Lisboa, com a filha, e que, por isso, não ia precisar mais dos serviços da Autora, até porque tinha incluído, como condição do negociado com os compradores, que a Autora continuaria a prestar serviços, como governanta, para estes, o que, porém, não se verificou.
A Autora AA veio ampliar o pedido, solicitando, a final:
1 - Ser declarado o despedimento ilícito e doloso pela actuação da Ré
2 – Em consequência do que deve a R. ser condenada a pagar à A.:
a) - indemnização a fixar pelo Tribunal em período não inferior a 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, contando-se, para o efeito, o tempo decorrido até ao trânsito em julgado da decisão judicial correspondente aos proporcionais por 30 anos de trabalho e 3 meses e 21 dias, a que acrescem juros de mora até integral pagamento;
b) – 22 500,00 € a título de indemnização por danos morais.
c) – 444,80 € por despesas realizadas na sequência do acidente de trabalho sofrido, acrescida de respectivos juros.
Realizada a audiência de partes, não foi possível resolver o litígio por acordo.
A Ré BB apresentou contestação, por impugnação, requerendo, a final, a improcedência da ação e da ampliação do pedido, devendo a Autora ser condenada como litigante de má-fé.
Alegou, em súmula, que contratou a Autora e o marido para fazer as limpezas da casa que tinha, juntamente com o seu marido, entretanto falecido, em ..., sendo que a Autora prestava igualmente serviços para a sua amiga CC, que foi quem lhe aconselhou a Autora.
Alegou igualmente que a Autora apenas estava incumbida das limpezas da casa, vindo esta apenas duas vezes por semana, às terças e sextas-feiras, da parte da manhã, 4 horas por dia, a €5,00 por hora, tendo tal sido decidido pela Autora, por sua conveniência, sendo também a Autora quem decidiu as horas de início e de termo da sua atividade.
Alegou ainda que, no final de cada mês, a Autora apresentava à Ré uma relação das horas prestadas, procedendo esta ao seu pagamento àquela, sendo que as férias e quaisquer outras ausências, eram decididas pela Autora, que as comunicava à Ré.
Mais referiu que o valor hora foi sendo aumentado por decisão exclusiva da Autora, decisão essa imposta à Ré, pagando esta àquela, no final de 2021, o valor hora de €7,00.
Alegou também que esteve ausente, juntamente com o marido, de Portugal, entre 01-11-2015 e 28-09-2019, sendo, por isso, falso que durante esse período a Autora tivesse trabalhado para a Ré como governanta, tendo apenas sido contratados os serviços da Autora para manter a casa arejada e alimentar o cão.
Invocou igualmente que, quando regressou a Portugal, já viúva, comunicou, de imediato à Autora, que iria vender a casa de ... e passar a viver com a filha no ....
Por fim, alegou que a utilização da Autora do presente processo para invocar factos que não são verdadeiros e criar uma realidade diversa daquela que existiu e para peticionar valores que bem sabe não lhe serem devidos, consubstancia uma situação de litigância de má-fé, pela qual deverá ser condenada no pagamento de uma multa exemplar, bem como numa indemnização não inferior aos valores suportados pela Ré com os presentes autos, nomeadamente, com as taxas de justiça pagas, os honorários e outros valores a liquidar em execução de sentença.
A Autora veio responder à invocada atuação como litigante de má-fé, impugnando os factos alegados e pugnando pela improcedência de tal pedido, solicitando, pelo contrário, que seja a Ré condenada como litigante de má-fé, devendo pagar à Autora quantia não inferior a €1.000,00, acrescida de juros de mora desde o trânsito e até ao integral pagamento.
Por sua vez, a Ré veio impugnar a matéria factual alegada pela Autora relativamente à sua imputação como litigante de má-fé, pugnando pela absolvição relativamente a tal pedido.
Realizada a audiência prévia, não foi admitida a ampliação do pedido e foi concretizada em Ata, pela Autora, o facto relacionado com o início da relação contratual havida entre si e a Ré.
Proferido despacho saneador, foi fixado o valor da causa em €8.292,50, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida a sentença em 11-05-2023, com a seguinte decisão:
Em face do exposto julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Declaro que entre BB e AA entre meados de 2005 e julho de 2021 existiu contrato de serviço doméstico;
b) Consequentemente, condeno BB a pagar à A. AA:
1. a título de compensação pela cessação do mesmo a quantia de € 1120,00 (mil cento e vinte euros) acrescida de juros à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
2. a quantia que se vier a fixar em liquidação de sentença relativa a remuneração de férias, subsidio de férias e de natal dos anos relativos ao período compreendido entre meados de 2005 e julho de 2021;
c) absolvo a R. do demais peticionado.
d) Após trânsito, comunique a presente decisão ao Instituto da Segurança Social.
e) Custas por A. e R. na proporção a fixar após a liquidação da sentença.
f) Notifique e registe.
Não se conformando com a sentença, veio a Ré interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A sentença aqui impugnada condena a R. a pagar à A. a quantia devida a título de ferias, subsídio de férias e de natal respeitante ao período de meados de 2005 ate julho de 2021 – a apurar em sede de liquidação da execução da sentença - desconsiderando por completo que a A. alegou, em sede de petição inicial, que tais direitos lhe foram sendo pagos ao longo daquele período, de forma parcial, peticionado apenas a diferença não paga a este titulo.
2. Ainda que no âmbito do processo de trabalho esteja prevista no art. 74.º do CPT a possibilidade de condenação extra vel ultra petitum, não pode a mesma afrontar as mais elementares regras probatórias a que as partes estão obrigadas;
3. Ora, a A. quando alega na sua petição inicial o pagamento de valores a título de ferias, subsídio de ferias e de natal e apenas reclama a diferença de valores não paga (vide artigos 16.º a 21.º daquela peça), confessa que recebeu quantias para aquele efeito sob a forma de confissão judicial espontânea (art. 356.º, n.º 1 do Cód. Civil) produzindo esta confissão o efeito previsto no art. 342.º n.º 1 e 352.º, n.º 1 do Cód. Civil.
4. E nem se obste, como sublinhou o tribunal a quo, que a R. não provou que tenha pago à A. ferias, subsidio de ferias e de natal, porquanto, toda a defesa da R. na sua contestação assenta na impugnação da natureza da relação laboral que a A. invoca, sendo por isso contraditório que, simultaneamente alegasse que tinha pago à A., na qualidade de prestadora de serviços, os créditos laborais que apenas estão previstos para os trabalhadores por conta de outrem!! Sendo certo que, o não pagamento de tais créditos laborais consubstancia, precisamente, um dos factos que contraria a existência de uma relação laboral.
5. Ou seja, incumbiria à R., atento o teor da sua defesa, invocar factos que afastassem a presunção legal do disposto no art. 12.º, n.º 1 do Cód. de Trabalho nos termos do disposto no art. 342.º, n.º 2 e 344.º, n.º 1 do Cód. Civil nos quais não se inclui a prova de ter pago ferias, subsídio de ferias e de natal.
6. Além do mais, o tribunal a quo nem sequer facultou à R. a possibilidade de contraditório quanto ao pagamento destes valores e a sua natureza, tendo ainda desprezado que tais valores tenham sido pagos, sem sequer indagar a que titulo, dado que, também não considerou a alegação da A..
7. Cremos assim que a condenação extra vel ultra petitum proferida pelo tribunal a quo incorre em violação clara do disposto nos arts. 342.º, n.º 1 e 352.º, n.º 1 do Cód. Civil e resvala na nulidade prevista na al. e) do n.º 1 do art. 615.º do CPC ex vi art. 1.º, n.º 2, al. a) do CPT, a qual aqui se arguiu para todos os devidos e legais efeitos, concretamente, o de ser anulada a decisão de condenação da R. no pagamento à A. de ferias, subsidio de ferias e de natal no período de meados de 2005 até julho de 2021 (art. 195.º, n.º 2 do CPC). No demais,
8. Entende a aqui Recorrente que o Tribunal a quo mal andou ao julgar como provados os factos constantes nos Pontos n.ºs 1, 2, 7, 9, 11 da Factualidade provada e, como não provados os Pontos 14, 15, 16 e 17 da Factualidade não provada, porquanto entende-se que, não só não foi produzida prova pela A. de factos que pudessem indiciar a existência de uma relação contratual de natureza laboral, como, diversamente, resultou demonstrado que a A. atuava com autonomia, independência e sem qualquer subordinação à R.. Concretizando,
9. O Tribunal a quo considerou que a A. terá sido contratada pela Ré para trabalhar sob a sua direção, adiantando que as condições do exercício da atividade foram acordadas entre A. e R., afetando os Pontos n.ºs 14 e 15 da Factualidade Não Provada ao julgamento de não demonstrados por alegada ausência de prova. Contudo,
10. O julgamento efetuado no Ponto 1 da factualidade provada pelo Tribunal padece de factos e indícios dos quais possa resultar a “direção” empreendida pela R., resultando numa conclusão adiantada pelo Tribunal sem que se encontre substanciada em factos concretos, como aliás se impunha.
11. E tal terá ocorrido, porque de facto, a A. não alegou factos nem elementos que indiciavam a existência de uma relação de subordinação jurídica em relação à R. e a prova produzida em tribunal permitiu afastar todos os indícios presuntivos a que o legislador deu primazia para revelar a existência de uma relação jurídica laboral, constantes no art. 12.º, n.º 1 do Cód. de Trabalho.
12. Ou seja, apenas resultou provado nos autos que a A. exercia a sua atividade no imóvel da R., pela natureza da própria atividade de limpeza a qual não pode ser exercida nem remotamente, nem noutro local que não o objeto do serviço. Mas a forma como tal atividade era prestada redundava numa autonomia da A., de tal modo que agia em parceria com o seu marido com o qual prestava tarefas e alguns serviços a pedido e consoante a necessidade da R.. A este respeito vide o depoimento de DD, inquirido na audiência de julgamento realizada a 06 de março de 2023, com a duração de 00.44.48, Excertos 00.13.25 a 00.13.46, 00.17.42 a 00.18.30 dos quais se deslinda que, nos períodos de ausência da R. de Portugal, o imóvel ficava “por conta” da A. e do marido os quais tinham as chaves e palavra passe do alarme, deslocando-se aquele imóvel quando tal fosse necessário, e ainda que o marido da A. também prestava serviços na casa da R., serviços esses que, por vezes, eram prestados conjuntamente com a A., sendo tais tarefas “pagas à parte”. Deste depoimento também resultou que a A. e o marido, mais uma vez conjuntamente, acompanhavam a R. e o marido ao aeroporto – sem que, na realidade houvesse necessidade de estarem os dois presentes nesta tarefa - quando se deslocavam para a Alemanha e, sempre que regressava, a R. chamava um táxi. Ora, se existisse uma relação de dependência e/ou subordinação e não de autonomia, seria normal que no regresso a Portugal a R. também demandasse que a A. a fosse buscar ao aeroporto sem que recorresse ao serviço de táxi.
13. A respeito da plena autonomia e dependência também se cita o deposto pela testemunha DD, Excerto 00.20.09 a 00.22.00, o qual sem pejo e com veemência adiantou que, não obstante o pedido e a necessidade da R. dos serviços de limpeza da A. na casa do ..., “não concordou mais com isso” e “não permiti mais” tendo recusou que os mesmos fossem prestados em certa ocasião, impedindo que a A. regressasse àquela localidade desde então.
14. No que respeita aos instrumentos de trabalho utilizados pela A. na execução da sua prestação, não alegou a mesma que era a R. a fornecê-los, tendo o seu marido, em sede de audiência afirmado que teria sido ele a adquiri-los para que a A. efetuasse os arranjos exteriores tendo inclusive prestado à A. a devida formação, vide Depoimento de DD, Excertos 00.16.22 a 00.16.43, 00.18.36 a 00.18.54, 00.31.24 a 00.31.40 e 00.38.11 a 00.38.26. E nem se obste que tal testemunha apenas providenciou por tais equipamentos porque a omissão da R. era reiterada e negligente, porquanto falamos da mesma testemunha que frontalmente adiantou em tribunal que não “permitiu mais” que a esposa, aqui a A., regressasse ao ... para prestar a atividade de limpezas. Tal qual, poderia ter impedido a A. de prestar os arranjos exteriores da moradia enquanto os devidos equipamentos e formação não lhe fosse devidamente providenciado, caso entendesse que se encontrava perante uma relação de natureza laboral.
15. E nem se obste com um total desconhecimento dos direitos laborais por parte da A., porquanto a mesma havia celebrado contrato de trabalho com a CC, o qual se manteve em vigor – vide Pontos 3 e 4 da Factualidade Provada-, mesmo após a contratação acordada com a R. e havia um perfeito conhecimento de qual o direito a férias que deve ser garantido a um trabalhador, vide Excerto 00.24.48 a 00.25.32 do depoimento da testemunha DD.
16. Por sua vez, no que respeita ao horário praticado pela A., ao pagamento de quantia certa e à determinação do valor por hora a pagar, os quais foram considerados terem sido “acordados entre a A. e a R.” (Ponto 2. Factualidade provada), e cujos indícios se encontram previstos nas als. c) e d) do n.º 1 do art. 12.º do Cód. de Trabalho, encontra a aqui Recorrente prova testemunhal do qual terá resultado precisamente o contrário, ou seja, de que foi a A., sem qualquer comportamento da R. que não fosse a de mera aceitação das condições impostas por aquela, que determinou quais os dias, as horas e o valor hora que pretendia pelo seu serviço, mantendo-se semelhante poder de decisão preponderante ao longo dos anos da relação contratual que manteve com a R.. A este respeito vide depoimento de DD, já citado, Excertos 00.02.02 a 00.02.12, 00.26.33 a 00.29.10, 00.29.45 a 00.30.13, 00.30.31 a 00.31.25, 00.43.01 a 00.44.00.
17. Ora, se A. se encontrava já a prestar a sua atividade para CC a qual manteve – Pontos 3 e 4 da Factualidade Provada -, não poderia o douto tribunal ter ignorado que a disponibilidade da A. encontrava-se já limitada, não se vislumbrando como poderia a R. ter acordado dias e horas quando a limitação de tempo era oriunda da própria A..
18. Por sua vez, no que respeita ao valor hora inicialmente acordado, nenhum conhecimento direto foi atestado em tribunal quanto a este facto – vide Depoimento de DD, Excerto 00.26.33 a 00.29.10 e Depoimento de EE, inquirido na audiência de julgamento de 06 de março de 2023, com a duração total de 00.16.26, Excerto 00.07.15 a 00.07.34 – pelo que, a conclusão sobre quem terá determinado terá que advir de outros indícios como seja a autonomia da A. já supra espelhada e ainda o facto de também prestar a mesma atividade para outra entidade, sendo natural que houvesse uma igualdade de valores, a qual queria manter, dado que a R. era amiga da CC e certamente seria conhecedora de qual o valor cobrado pela A. para realizar o seu serviço;
19. Sendo que, o valor a pagar também não poderia aceitar-se que fosse certo, fixo e determinado previamente, sob pena de mal se perceber a relevância do Ponto 6 da Factualidade Provada - que o tribunal a quo, considerou, e bem, demonstrado - e a sua concatenação com o Ponto n.º 2 da Factualidade Provada, tendo sido expresso por DD que, em caso de discordância no apontamento de horas prestadas pela A., a posição que prevaleceria seria a daquela (da A.) a qual determinava como posição final quais as horas que tinha direito a receber, vide Excerto 00.29.45 a 00.30.13.
20. Por fim, quanto ao aumento do valor hora, foi expresso que o mesmo foi imperiosamente determinado pela A., em depoimento de DD, Excerto 00.43.01 a 00.44.00 o qual dispôs: “Depois a minha esposa teve que aumentar o valor hora” a instâncias do tribunal a quo, quando o mesmo se encontrava a apurar se o valor hora para os serviços e arranjos externos seria o mesmo que o praticado para a limpeza da casa.
21. Consideramos assim, ante os concretos meios probatórios que aqui se sublinharam e citaram que é inequívoco que as condições em que a A. exerceu a sua atividade para a R., tangentes a dias, horas, valores, foram pela A. exclusivamente determinadas, sem que se almeje como pôde o tribunal a quo considerar a existência de um acordo.
22. Ora, contrato de trabalho será aquele em que alguém presta atividade a outrem subordinado juridicamente, esclarecendo-nos o n.º 1 do art. 12 do Cód. de Trabalho que, caso se verifiquem, pelo menos, dois indícios ali previstos, será suficiente para se presumir a existência de uma relação laboral. Neste sentido também Diogo Vaz Marecos, Código de Trabalho, Comentado, 3.º edição, 2007, pág. 115.
23. No caso vertido nestes autos, a A. apenas alegou e demonstrou que a sua atividade era exercida no imóvel da R., sem que tivesse provado qualquer outro indício. Diversamente, resultou suficientemente esclarecido, pela prova testemunhal atrás elencada e citada, que a A. determinou à R. quais as suas condições para o exercício da atividade de limpeza – dias, horas e o valor hora – que lhe incumbiu a ela a decisão de aumentar o valor hora – aliás estranho seria que tal aumento tivesse partido na R.! – e que inclusive, providenciou pelos equipamentos de trabalho de que careceu para prestar os serviços exteriores na moradia.
24. Para além do mais, o contexto em que a A. exerceu a sua atividade para a R. ao longo dos anos, revela uma independência e autonomia na decisão e atuação que, não é usual nem presente numa relação de subordinação jurídica.
25. Ao contrário do ilustre tribunal de primeira instância, não vislumbra a Recorrente como se pôde concluir no Ponto 1 da factualidade provada que a A. exercia a sua atividade sob a direção da R. nem que tenha havido “acordo” no estabelecimento das condições contratuais iniciais ou de manutenção.
26. Para além do mais, não resultou de nenhuma prova, documental ou testemunhal, que a R. alguma vez tenha providenciado pelo “tratamento de roupas”, sendo que os cuidados prestados ao “animal doméstico” apenas ocorreram quando a R. se encontrava ausente de Portugal, e ainda assim por período limitado no tempo, ante a ocorrência do falecimento do animal em data anterior ao do marido da R., vide os depoimentos já citados de DD, Excerto 00.12.46 a 00.13.22 e EE, sendo que dos restantes depoimentos prestados na audiência de julgamento nem sequer havia qualquer conhecimento direto das funções da A. ou de qualquer facto com interesse para os presentes autos, limitando-se a depor sobre factos que a A. lhes transmitia, sendo evidente a total ausência de conhecimento sobre a relação material controvertida, nestes autos.
27. Termos em que, crê a Recorrente, ante tudo quanto exposto e à presunção ilidida dos indícios constantes do n.º 1 do art. 12.º do Cód. de Trabalho, que se deve prever nos Pontos 1 e 2 a seguinte redação, devendo eliminar-se da factualidade não provada os Pontos 14 e 15, porquanto já incluídos na nova redação dos primeiros pontos demonstrados, aqui proposta:
Ponto 1 da Factualidade Provada: Em data não concretamente apurada de meados de 2005 a R. contratou a A. para lhe prestar serviços de limpeza e arrumação de casa onde residia em ....
Ponto 2 da Factualidade Provada: A A. determinou que tal atividade seria realizada, tendencialmente, duas vezes por semana, às 3.ªs e 6.ª feiras, quatro horas de cada vez e mediante o pagamento de € 5/hora, para coordenar com o trabalho previsto nos Pontos 3 e 4 infra.
28. O facto constante no Ponto n.º 7 da Factualidade Provada, sobretudo no que respeita à “determinação da R. a A.” para prestar serviços de limpeza na casa do ... não se encontra consubstanciado e é contrariado pelo depoimento de DD, supra já identificado, Excerto 00.20.09 a 00.22.00, o qual afirmou de forma perentória que “não permitiu mais” que a A. se deslocasse ao ... para a limpeza da casa que a R. ali titulava, deixando deslindar, no nosso entendimento, que os serviços prestados pela A. naquela localidade foram solicitados pela R. e aceites pela A. certamente mediante o pagamento de um valor acrescido, ante a deslocação e ausência da família, ainda que por breve período.
29. Por conseguinte, deve ser eliminado do Ponto em apreço a demanda da R., propondo-se a seguinte redação:
Ponto 7 da Factualidade Provada: A A., pelo menos, duas vezes, limpou a casa da R. no ...
30. O julgamento emitido pelo tribunal a quo no Ponto 9. da Factualidade Provada não se coaduna com a prova produzida nos autos, concretamente dos depoimentos, supracitados, de DD, Excertos 00.12.46 a 00.13.22 e 00.34.06 a 00.35.00 e de EE, Excertos 00.07.03 a 00.07.14 e 00.15.14 a 00.15.15, donde resulta com clarividência, que a A. não comparecia na casa da R. com a mesma regularidade verificada quando a R. se encontrava em Portugal, sendo duvidoso que, uma casa fechada tenha exatamente a mesma necessidade de cuidado de limpeza que uma casa movimentada diariamente. Aliás destes depoimentos, sobretudo do marido da A. o que resultava é que a A. deslocava-se a casa da R., neste período, para cuidar do animal domestico - que entretanto veio a falecer (ainda antes do marido da R.) tendo, por consequência cessado a necessidade de tal cuidado - e ainda de algum cuidado no exterior da moradia, sendo que EE, foi também autorizado pela R. para aceder ao exterior da moradia, inclusive dela colher alfarrobas e “dar uma olhadela” pela casa, tendo atestado que não se apercebeu que a A. se deslocasse com a frequência habitual na presença da R.. E nem se obste com o facto de o marido da A. ter tido a necessidade de referir que a R. “deixava tarefas” porquanto não as soube descrever com exatidão nem indicar, concretamente, o número de horas que despendiam, deslindando-se aliás, que nesta ausência da R. a A. deslocava-se a casa da R. sempre com a companhia do marido, que trabalhava durante a hora de expediente e por isso só ao final do dia ou aos fins de semana teria disponibilidade!
31. Posto isto, cremos que, ante os meios probatórios elucidados supra, que mal andou o douto tribunal a quo na formulação do facto demonstrado no Ponto n.º 9 da Factualidade Provada, pelo que se impõe nova redação, consentânea com a prova efetivamente produzida, com o seguinte conteúdo:
Ponto 9 da Factualidade Provada: “Durante tal período a A. deslocava-se à moradia da R. sita em ..., em horários e dias não apurados, mas apenas pontualmente e em caso de necessidade, consoante a sua própria conveniência.”
32. Quanto ao atestado pelo tribunal no Ponto 11 da Factualidade Provada, cremos que o Tribunal a quo não resvalou todo o conhecimento da A., anterior e prévio à venda da moradia da R., deixando transparecer, com o texto proposto, que a A. terá sido surpreendida com a extinção dos seus serviços na data da venda do imóvel, quando, na realidade, resultou com clareza acentuada que a A. tomou conhecimento da decisão da venda do imóvel logo após o óbito do marido da R., auxiliou na venda tendo preparado, juntamente com a testemunha DD, o local para a venda e auxiliou nas mudanças para a casa do ..., vide neste sentido o depoimento de DD, supra citado, Excertos 00.07.41 a 00. 09.12 e 00.31.56 a 00.33.57.
33. Termos em que, salvo melhor opinião, somos do entendimento que o facto constante do Ponto 11 da Factualidade Provada deve assumir a seguinte redação:
Ponto 11 da Factualidade Provada: “A R. quando regressou da Alemanha após o óbito do marido comunicou à A. que iria pôr a casa à venda, o que efetuou, tendo a A. auxiliado na mudança para o ... e preparado a casa de ... para venda com pequenos reparos, tendo a venda ocorrido no inicio de julho de 2021, data em que a R. deixou de carecer dos serviços da A..”
34. Por sua vez, no que respeita à factualidade não provada o tribunal assim considerou quanto aos factos constantes dos Pontos n.º 16 e 17, julgamento este que, no entender da aqui Recorrente, sem prejuízo do elevado respeito pelo tribunal de primeira instância, ficou demonstrado que as ferias gozadas pela A. foram pela mesma determinadas e que o valor hora pago pela R. aumentou por imposição da A..
35. Quanto à Prova do facto constante no Ponto 16 assenta a mesma no depoimento da testemunha DD, supra citado, Excerto 00.24.48 a 00.25.32, onde atestou que ele a sua esposa – aqui A. – foram para a Alemanha pelo menos 3 vezes, tendo em cada uma delas gozado um “mês calendaristico”, correspondente a “22 dias uteis, ou sejam o resto de sábados e domingos”, nos anos de 2004, 2010 e 2015, tendo nas outras ocasiões “tirava no máximo uma semana, duas semanas e mesmo neste tempo a senhora de vez em quando ligava”. Ora, na deslocação para o estrangeiro dificilmente poderia ser a R. a decidir quando tal poderia ocorrer, e se telefonava no período de alegadas férias, certamente não teria havido determinação da R. na respetiva marcação, caso contrario, selecionaria momento de menor precisão.
36. No que tange à Prova do Facto constante no Ponto 17 da Factualidade Não Provada, terá o tribunal a quo desprezado a afirmação clara produzida em sede de audiência de julgamento pelo marido da A. o qual atestou que, face aos pedidos da R. de prestação de serviços pela A. no exterior da moradia, “a minha esposa teve que aumentar o valor hora”, vide Depoimento de DD, na audiência de julgamento de 06 de março de 2023, Excerto 00.43.01 a 00.44.00:
37. Nesta conformidade, crê a Recorrente, ante os meios probatórios elencados que se deve elevar os factos constantes nos Pontos n.ºs 16 e 17 da Factualidade Não provada à Matéria Provada nos autos em epigrafe, aditando-se à Factualidade Provada o seguinte:
Aditamento de Ponto 16. à Factualidade Provada: As férias e ausências sempre foram decididas pela A. e apenas comunicadas à R. que se limitava a registá-las.
Aditamento de Ponto 17. à Factualidade Provada: O valor hora aumentou por decisão exclusiva e imposição da A..
38. Por tudo quanto exposto, e sendo revogados, alterados e aditados os Pontos da factualidade Provada tal qual acima exposto, e eliminado da factualidade não provada os Pontos 14, 15, 16 e 17, extrai-se da matéria factual que inexistia uma relação de subordinação jurídica entre a A. e a R., exercendo aquela a sua atividade com autonomia e independência própria de um contrato de prestação de serviços tal qual delineado no art. 1154.º do Cód. Civil. Encontra-se afastada, por falta de prova e demonstração em contrário, a presunção prevista no n.º 1 do art. 12.º do Cód. Civil e não se encontra atestado qualquer poder de autoridade da R. sobre a A., não logrando efetuar-se qualquer subsunção jurídica dos factos demonstrados ao disposto no art. 11.º do Cód. de Trabalho. Nesta conformidade, deve a sentença a quo ser revogada por decisão que absolva a R. do petitório. Neste sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09 de março de 2017, Proc. n.º 24/13.3TTVFR.P1.S1,inwww.dgsi.pt,http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f00
3fa814/82a706955b980a5a802580de0054ed90?OpenDocument.
Sem conceder e por dever de patrocínio,
39. Entende a Recorrente, sem prejuízo de melhor decisão e jurisprudência de V. Exa. que o tribunal a quo incorreu em erro na determinação da norma aplicável quando condenou a R. a pagar uma indemnização de Euros. 1.200,00 à A. com fundamento no n.º 3 e na al. d) do n.º 1 do art. 28.º do Decreto-lei n.º 235/92 de 24 de outubro, na redação anterior às alterações promovidas pela Lei n.º 13/2023 de 3 de abril, quando, na realidade, a norma que deveria ter sido subsumida aos factos demonstrados seria a presente na al. b) do n.º 1 daquele normativo.
40. Portanto, a alteração da vida familiar da R. ocorreu aquando do óbito do marido, a ../../2018 e ainda assim a A. continuou a prestar a sua atividade para a R., que, aliás terá tido mais necessidade daquela atividade, sobretudo para os arranjos exteriores que outrora se encontravam a ser acautelados pelo marido da R..
41. O que determinou a cessação do contrato da A. por caducidade foi, antes, a venda do imóvel onde a R. prestava a sua atividade, pelo período descrito no Ponto 1 da factualidade provada, sendo de conhecimento oficioso que a A. e a sua família residem em ... e que a nova residência da R. se situava no ..., dificilmente, a A. poderia continuar a laborar para a R.!
42. Sendo que, a alienação do imóvel titulado pela R. advém de um direito constitucional de liberdade e autonomia privada – art. 62.º, n.º 1 da CRP – não lhe sendo por isso, sequer imputável a decisão de venda.
43. Cremos que estamos, sem dúvida, perante um caso de impossibilidade objetiva tal qual consagrada no art. 790.º, n.º 1 do Cód. Civil e concretizada na alínea b) do n.º 1 do art. 28.º do Decreto-lei n.º 235/92 de 24 de outubro, na redação em vigor prévia à alteração das Lei n.º 13/2023 de 03 de abril, sem que, por isso, aqui seja aplicável a norma da alínea d) do supra citado preceito. Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 07S740, datado de 12 de março de 2008, in www.dgsi.pthttp://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d4527ae99fa455028025741f004ffe86?OpenDocument, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de maio de 2009, in https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=29407&codarea=3 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 11 de maio de 2023, Proc. n.º 358/22.0T8VRL.G1, in http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/223f26d7bb783334802589b30039c8a5?OpenDocument
44. Termos em que, o contrato da A. cessou por caducidade ante a impossibilidade, superveniente, absoluta e definitiva da R. de receber a prestação daquela ao abrigo do disposto não n.º 2 e al. b) do n.º 1 do art. 28.º do DL 235/92 de 24/10, e por força da venda do imóvel que titulava a terceiros, em julho de 2021.
45. Na decorrência, não se encontra prevista qualquer compensação para a caducidade do contrato ocorrida naqueles termos, sendo a norma prevista no n.º 3 do preceito em epigrafe uma norma excecional sem possibilidade de aplicação analógica – art. 11.º do Cód. Civil - e sem que se possa obstar à aplicação do regime geral constante no Código de Trabalho, porquanto, tal está vedado pelo disposto no art. 1.º do DL 235/92 de 24 de outubro de tal modo que o legislador sentiu necessidade de, com Lei n.º 13/2023 de 3 de abril introduzir essa alteração no art. 37.º A daquele diploma e porque, mesmo que se aceitasse um recurso à normal geral – ainda que em contravenção do disposto no art. 7.º, n.º 3 do Cód. Civil – também nos termos do disposto no art. 343.º e ss do Cód. de Trabalho, inexiste qualquer previsão de compensação para os casos em que o contrato de trabalho cessa por caducidade do contrato de trabalho por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o empregador receber a prestação do trabalhador. Vide por todos, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Proc. N.º 628/14.1TTPRT.P1, de 07 de setembro de 2015, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e7ae2e22e79c5caf80257ec1003d82ff?OpenDocument.
46. Nesta conformidade, impõe-se, salvo melhor opinião, a revogação da douta sentença do tribunal a quo, reconhecendo a cessação do contrato de trabalho da A. por caducidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 28º do DL 235/92 de 24 de outubro na redação em vigor antes da Lei n.º 13/2023 de 3 de abril e sem direito a qualquer compensação.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO deve o presente Recurso merecer o provimento de V. Exas., devendo, na sequência ser a sentença proferida pelo tribunal a quo:
a) Declarada nula e na sequência revogada na parte que condenou a R. a pagar à A. as ferias, subsídio de ferias e de natal, pela totalidade e sem considerar o já confessado pela A. na sua petição inicial quanto ao período de meados de 2005 até julho de 2021;
b) Revogado o julgamento efetuado sobre os Pontos 1., 2., 7., 9. e 11. da factualidade provada e ainda Pontos n.ºs 14, 15, 16.º e 17 da Factualidade não provada, nos termos sobreditos, absolvendo-se a R. do petitório, por inexistir qualquer relação de subordinação jurídica entre a A. e a R..
Sem conceder,
c) Revogada a decisão condenatória da R. no pagamento de indemnização de Euros. 1.200,00 por não se encontrar conforme a subsunção jurídica dos factos provados à alínea d) do n.º 1 do art. 28.º do DL 235/92 de 24 de outubro, mas antes à alínea b) daquele preceito, cuja caducidade não determina direito a qualquer compensação.
POIS SÓ ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!
A Autora veio ainda apresentar contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:
I – A A . em meados de 2005, foi contratada pela Ré para, sob a sua direção, lhe prestar trabalhos de limpeza e arrumação da sua casa sita em ..., tratamento de roupas e de animal doméstico e do jardim.
II - Por acordo das partes essa atividade seria realizada duas vezes por semana, às 3ª e 6ª, mediante o pagamento da contrapartida monetária da R. à A. de € 5/hora.
III – Actividade foi prestada sempre de forma contínua e regular e veio a terminar em Julho.2021 data em que a Ré, por motivos pessoais, vendeu a casa.
IV – O contrato celebrado entre ambas foi um contrato de serviço doméstico.
V – A A. tem direito não só a uma compensação correspondente a cinco meses de retribuição como também a que lhe sejam pagos os subsídios de férias e de Natal e férias não gozadas
VI– Nenhuma censura merece a douta sentença recorrida.
VII – Improcedem todas as conclusões apresentadas pela recorrente.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DO DIREITO APLICÁVEL, DEVE SER NEGADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER INTEIRAMENTE CONFIRMADA A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, COM O QUE SE FARÁ A COSTUMADA J U S T I Ç A.
O tribunal da 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, e, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, foi dado cumprimento ao preceituado no n.º 3 do art. 87.º do Código de Processo do Trabalho, tendo a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitido parecer, pugnando pela improcedência do recurso, devendo ser mantida na íntegra a sentença recorrida.
A Autora respondeu a tal parecer, afirmando nada ter a acrescentar ao parecer proferido; e a Ré respondeu a tal parecer pugnando pela procedência do seu recurso.
O recurso foi admitido nos seus precisos termos, e, após a ida dos autos aos vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Nulidade da sentença por condenação em quantidade superior;
2) Impugnação da matéria de facto;
3) Inexistência de um contrato de serviço doméstico; e
4) Aplicabilidade do disposto no art. 28.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 235/92, de 24-10, na versão dada pela Lei n.º 114/99, de 03-08.[2]
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1.Em data não concretamente apurada de meados de 2005 a R. contratou a A. para, sob a sua direção, lhe prestar trabalhos de limpeza e arrumação da casa onde residia em ..., tratamento de roupas e de animal doméstico e do jardim. (Alterado, conforme fundamentação infra)
2. Acordaram A. e R. que tal atividade seria realizada duas vezes por semana, às 3ª e 6ª feiras, quatro horas de cada vez, mediante o pagamento da contrapartida monetária de € 5/hora.
3. À data a A. realizava limpeza na casa de uma amiga da R. - CC – que lha sugeriu.
4. Após o acordo referido em 1. a A. continuou a prestar trabalhos de limpeza na casa de CC.
5. A A. prestou tais serviços à R. até dia não apurado de julho de 2021, auferindo nessa altura a quantia de €7/hora.
6. No final de cada mês a A. apresentava uma relação das horas prestadas que eram pagas em conformidade pela R..
7. Por determinação da R. a A., pelo menos, duas vezes, limpou a casa da mesma no .... (Alterado, conforme fundamentação infra)
8. Entre Novembro de 2015 e Dezembro de 2018 a R. e marido passaram largas temporadas na Alemanha tendo em vista tratamento médico deste.
9. Durante tal período a A. continuou a deslocar-se à moradia da R. sita em ... nos termos referidos em 2.
10. O marido da R. faleceu em ../../2018.
11. No inicio de julho de 2021 a R. deu conhecimento à A. de que tinha vendido o imóvel onde realizava a atividade pelo que não precisaria mais dos seus serviços. (Alterado, conforme fundamentação infra)
12. Após a R. foi residir para a zona de ... - na companhia de sua filha.
13. No período compreendido entre 2005 e 2021 a A. foi duas vezes à Roménia de férias tendo aí permanecido cerca de um mês.
14. No mesmo período e demais anos a A. gozou, pelo menos, uma semana de férias no verão.
15. A R. não pagou à A. remuneração de férias, subsidio de férias e de natal.
E deu como não provados os seguintes factos:
1. A A. tenha sido pela R. contratada em 4de junho de 2004.
2. Nessa altura a A., em média, auferisse €110,00/mês.
3. O que sucedeu até 2006.
4. A R. tenha pago à A. quantias a título de remuneração de férias, subsidio de férias ou de natal.
5. A partir de janeiro de 2007 A. e R. tenham acordado que a realização da atividade seria de 48h por semana, de segunda a sábado e descanso semanal ao domingo.
6. A R. concedesse à A. intervalo para refeição e descanso.
7. Pela prestação da atividade a R. tenha pago à A.
a) No ano de 2008 a média mensal de 170 €;
b) No ano de 2009 a média mensal de 180,00 €;
c) No ano de 2010 a média mensal de 210,00 €;
d) No ano de 2011 a média mensal de 215,00 €;
e) No ano de 2012 a média mensal de 225,00 €;
f) No ano de 2013 a média mensal de 235,00 €;
g) No ano de 2014 a média mensal de 245,00 €
8. Em 1 de janeiro de 2015 a R. tenha contratado a A. para exercer as funções de governanta.
9. Em contrapartida da retribuição mensal de 250,00 €..
10. Em 2016 a A. auferisse € 250,00/mês;
11. Nos anos de 2017 a 2021 a A. auferisse €300,00/ mês.
12. A R. tenha dito à A. que tinha incluído como condição da venda do imóvel a manutenção da prestação de serviços de governante pela mesma aos compradores.
13. Os compradores tenham negado tal informação.
14. Tenha sido a A. a decidir que apenas realizaria limpeza na casa da R. duas vezes por semana, 4h de cada vez e mediante o pagamento de €5/hora.
15. A A. decidisse e coordenasse o seu horário tendo em conta os restantes serviços e o trabalho a fazer em cada uma das casas em que trabalhava.
16. As férias e ausências sempre foram decididas pela A. e apenas comunicadas à R. que se limitava a registá-las.
17. O valor da hora tenha aumentado por decisão exclusiva e imposição da A. .
18. Os dias da semana sofriam, de quando em vez, alterações dependendo da única e exclusiva vontade da A. e do serviço que a mesma prestava a outras entidades.
19. Entre Novembro de 2015 e dezembro de 2018 a R. tenha estado sempre ausente de Portugal.
20. Nesse período a A. apenas tivesse incumbência de manter a casa arejada e de alimentar do cão.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) a sentença é nula por condenação em quantidade superior; (ii) a sentença errou na apreciação da matéria de facto; (iii) a sentença errou ao considerar existir um contrato de serviço doméstico; e (iv) é de aplicar o disposto no art. 28.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 235/92, de 24-10, na versão dada pela Lei n.º 114/99, de 03-08.
1 – Nulidade da sentença por condenação em quantidade superior
Considera a Ré que a sentença recorrida não podia desconsiderar que a Autora alegou, em sede de petição inicial, que a Ré lhe pagou determinadas quantias a título de férias, subsídio de férias e de natal, peticionando apenas a diferença não paga a tais títulos, sendo que tais declarações configuram uma confissão judicial espontânea, nos termos do art. 356.º, n.º 1, do Código Civil, produzindo essa confissão o efeito previsto nos arts. 342.º, n.º 1, e 352.º, n.º 1, do Código Civil.
Alegou ainda que tendo a Ré sido condenada na integralidade dos pagamentos das remunerações de férias, subsídio de férias e de natal relativos ao período compreendido entre meados de 2005 e julho de 2021, está a ser condenada para além do peticionado, ou seja, numa condenação extra vel ultra petitum, que viola as regras legais da confissão judicial, e implica a nulidade da sentença por condenação em quantidade superior.
Apreciemos.
Dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil, que:
1 - É nula a sentença quando:
(…)
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Determina também o art. 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que:
1 - A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.

Estipula, por fim, o art. 74.º do Código de Processo do Trabalho que:
O juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho.

Relativamente à nulidade prevista na al. e) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil, a mesma decorre da proibição constante do art. 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, consagrada em obediência ao princípio do dispositivo. Porém, no âmbito das relações laborais tal princípio é afastado quando estejam em causa preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho (art. 74.º do Código de Processo do Trabalho).
A matéria salarial, na qual se incluem os subsídios de férias e de natal, integra os direitos indisponíveis dos trabalhadores, mas apenas enquanto o trabalhador mantém o vínculo salarial, conforme bem referem os acórdãos proferidos pelo STJ em 20-12-2017 no âmbito do processo n.º 399/13.9TTLSB.L1.S1 e pelo TRG em 10-10-2019 no âmbito do processo n.º 6745/17.9T8VNF.G1.[3]
Vejamos o caso concreto.
A Autora peticionou montantes concretos a título de subsídio de férias não pago, férias não gozadas e a título de subsídio de natal não pago. Ora, tais valores constituem o limite da condenação, a menos que seja de aplicar o disposto no art. 74.º do Código de Processo do Trabalho. Acontece, porém, que, aquando da interposição da presente ação, já tinha cessado a relação contratual existente entre a Autora e a Ré, pelo que, mesmo a tratar-se de uma relação laboral,[4] não seria de proceder a uma condenação extra vel ultra petitum.
Dir-se-á ainda que na própria sentença recorrida se reconheceu, na sua fundamentação, a fls. 12, que a condenação não poderia ultrapassar o limite do peticionado, conforme parte que se cita:
Tendo o marido da A. declarado que a R., por vezes, pagava por transferência bancária após conferência das listas que a mesma e a esposa faziam no que às horas prestadas respeitava, afigura-se-nos que a obtenção de tal informação ainda é possível e, por isso, por ora, não se recorrerá à equidade (conforme previsto no art.566º nº 3 do Código Civil) relegando-se essa fixação para liquidação de sentença com o limite do peticionado (cfr.art.609º nº2 do CPC ex vi art.1º nº 2 al. a) do CPT).

Porém, essa parte não ficou, certamente por lapso, a constar da parte decisória.
E, a ser assim, ter-se-á de proceder a tal alteração, considerando-se que a parte decisória, quanto aos pagamentos das remunerações de férias, subsídio de férias e de natal, relativos ao período compreendido entre meados de 2005 e julho de 2021, nos moldes em que a condenação se mostra efetuada, por poder permitir uma condenação para além do peticionado, padece do vício da nulidade por condenação em quantidade superior ao peticionado, nulidade essa que se declara, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil.
No entanto, por constarem do processo todos os elementos que permitem a tomada de decisão, nos termos do art. 665.º do Código de Processo Civil, este tribunal, substituindo-se ao tribunal recorrido, irá redimensionar a referida condenação dentro dos limites do peticionado, no caso de tal condenação for de manter, após apreciadas as demais questões recursivas.
Dir-se-á, por fim, que a questão da existência, ou não, de confissão por parte da Autora, e do seu valor processual, por se reportar a questões fácticas, será apreciada aquando da apreciação da impugnação da matéria de facto.
Em conclusão, ainda que por fundamentação diversa, procede, nesta parte, a pretensão da Ré.

2 – Impugnação da matéria de facto
Questão prévia
Nos termos do n.º 1 do art. 662.º do Código de Processo Civil, o tribunal da relação altera oficiosamente a matéria de facto caso constate que meios de prova com força plena existentes no processo foram desrespeitados,[5] sendo que a confissão judicial escrita possui força probatória plena, nos termos do n.º 1 do art. 358.º do Código Civil.
Por sua vez, nos termos do art. 352.º do Código Civil, a confissão traduz-se no “reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”, podendo tal confissão ser efetuada espontaneamente nos articulados (n.º 1 do art. 356.º do Código Civil). Acresce que a confissão é indivisível, pelo que se a declaração confessória “for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão” (art. 360.º do Código Civil).
Por fim, nos termos dos arts. 46.º e 465.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a confissão feita por mandatário no respetivo articulado vincula a parte, salvo se forem retificadas ou retiradas enquanto a parte contrária as não tiver aceitado especificadamente.
De tudo o que ficou dito, e quanto à confissão efetuada em articulado, é de salientar que a mesma pode ser retificada ou retirada enquanto a parte contrária a não tiver aceitado especificadamente, sendo que, tratando-se de uma confissão complexa, caso a parte contrária a aceite, terá de aceitar não só os factos que a beneficiam como os factos que lhe são desvantajosos, salvo se se reservar o direito de efetuar a prova da inexatidão dos factos que lhe são desvantajosos.
Deste modo, o primeiro requisito para que uma confissão complexa efetuada no articulado tenha a validade de prova plena é a de que seja aceite pela parte contrária, de forma expressa ou tácita, sendo que, enquanto não for expressa e inequivocamente aceite pela parte contrária, pode ser retificada ou retirada pela parte que a produziu. Por sua vez, apenas uma aceitação expressa que excluía dessa aceitação os factos que lhe são desvantajosos, fará recair sobre a parte que aceita a confissão o ónus da prova da inexistência desses factos.
Conforme se refere no acórdão do STJ proferido em 09-10-2014 no âmbito do processo n.º 311/11.0TCFUN.L1.S1:[6]
O mencionado art. 360.º, que trata do chamado princípio da indivisibilidade[14] da confissão, respeita, pois, a uma declaração complexa que, contendo afirmação de factos desfavoráveis ao declarante, mas também de factos que lhe são favoráveis, só em parte é confessória, sendo na outra parte assertória: e, assim, dado que uns e outros desses factos são objecto da mesma declaração, entende-se que a contraparte que se queira aproveitar da parte da declaração que lhe é favorável deve igualmente aceitar a realidade dos factos que lhe são desfavoráveis.
Afirmando o declarante, por um lado, a realidade de factos constitutivos que lhe são desfavoráveis, e, por outro, a realidade dos factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito dos primeiros[15]/[16].
Sendo certo que, ao contrário da confissão simples, tal declaração complexa só faz prova depois da parte se pronunciar, produzindo-se, assim, diferidamente o efeito da confissão, com a aceitação da parte contrária ou perante o seu silêncio.
Três vias sendo permitidas à parte contrária (à do confitente): (i) prescindir da confissão, não tendo a mesma a eficácia da prova plena, mas apenas como meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (art. 361.º); (ii) aceitar como tendo-se verificado os factos e as circunstâncias que lhe são desfavoráveis, ganhando, então, a confissão a eficácia de prova plena; (iii) declarar que se quer aproveitar da confissão, mas que se reserva o direito de provar a inexactidão dos factos que lhe são desfavoráveis, caso em que a confissão adquire também a eficácia da prova plena, mas a realidade de tais factos ou circunstâncias que a ela, parte contrária, são desfavoráveis só ficará completamente estabelecida se não fizer a prova do contrário. Dando-se, assim, a inversão do ónus da prova que passa a caber à contraparte[17]/[18]/[19].

Vejamos, então, a situação em apreço.
A recorrente, ainda que não tenha solicitado a inclusão dos arts. 16.º a 21.º da petição inicial na matéria de facto dada como provada, ao entender que neles consta matéria confessada, pelo menos implicitamente parece ser o que pretende. De qualquer modo, caso tenha razão, e se esteja perante matéria factual confessada, impõe-se a este tribunal acrescentar tais factos à matéria fáctica dada como assente.
Nos factos 16.º a 21.º da petição inicial a Autora confirmou ter recebido, a título de subsídio de férias, de férias não gozadas e não pagas e de subsídio de natal, entre os anos de 2008 e 2014, determinadas quantias pela Ré. No entanto, de igual modo, nos factos alegados nos arts. 8.º a 15.º dessa petição inicial, a Autora afirmou ter celebrado com a Ré um contrato verbal, no qual prestaria trabalho para esta na qualidade de empregada doméstica, de segunda a sábado, não ultrapassando as 48 horas semanais, recebendo em troca a retribuição mensal ilíquida de €160,00, tendo a Autora direito a gozar de intervalos para refeições e descanso, sem prejuízo das funções de vigilância e assistência a prestar ao agregado familiar, não estando incluído alojamento e alimentação. Assim, as quantias que a Autora admitiu ter recebido da Ré a tais títulos reportam-se a um determinado contrato que alegou ter celebrado com a Ré. Estamos, por isso, perante um facto complexo, pelo que a afirmação do recebimento de determinados pagamentos reporta-se especificamente ao que ocorreu no âmbito do contrato alegado.
O mesmo se diga do que consta dos factos 27.º a 33.º da petição inicial, onde igualmente a Autora afirma ter recebido determinadas quantias pagas pela Ré, a título de subsídio de férias, de férias não gozadas e não pagas e de subsídio de natal, entre os anos de 2015 a 2021, porém, tais quantias reportavam-se também ao que ocorreu no âmbito de um contrato alegadamente celebrado entre as partes, no qual a Autora se comprometia a prestar trabalho para a Ré na qualidade de governanta, não contemplando tal contrato o alojamento e a alimentação, recebendo a Autora, em contrapartida, a quantia mensal de €250,00 no ano de 2016 e de €300,00 nos restantes anos (factos alegados nos arts. 22.º a 26.º da petição inicial).
Deste modo, a aceitação dos factos 27.º a 33.º da petição inicial teria de incluir igualmente a aceitação dos factos 22.º a 26.º do mesmo articulado, a menos que a Ré tivesse solicitado expressamente a produção da prova dos factos que lhe seriam prejudiciais.
Por se tratarem de factos complexos, a Ré teria de os ter aceitado, de forma expressa ou tácita, para que os mesmos pudessem ser considerados como confissão e beneficiar de prova plena no processo.
Acontece, porém, que, na sua contestação, a Ré os impugnou especificamente, quer os factos que lhe eram desvantajosos, quer os factos que a podiam beneficiar. Na realidade, no facto 1.º da contestação, a Ré impugna os factos 8.º a 44.º da petição; e nos factos 3.º a 25.º alega a existência de uma outra realidade contratual, onde inexistia a obrigação de pagamento de subsídio de férias ou de natal ou sequer de atribuição de férias.
E, a ser assim, é evidente que a Ré não aceitou a confissão da Autora, pelo que, deixando de ter tais factos o valor de prova plena, apenas poderiam ser reapreciados, caso tivessem sido impugnados pela Ré, o que não aconteceu.
Entende a Ré que os factos provados 1, 2, 7, 9 e 11 devem ter outra redação e que os factos não provados 14, 15, 16 e 17 devem ser dados como provados, em face dos depoimentos das testemunhas DD e EE, invocando ainda a existência de elementos conclusivos no facto provado 1.
Dispõe o art. 640.º do Código de Processo Civil que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Relativamente à interpretação das obrigações que impendem sobre a recorrente, nos termos do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, cita-se, entre muitos, o acórdão do STJ, proferido em 03-03-2016:[7]
I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III – O ónus a cargo do Recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado.
IV – Nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, máxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica.

Relativamente à apreciação da matéria de facto em sede de recurso, importa acentuar que o disposto no art. 640.º do Código de Processo Civil consagra atualmente um duplo grau de jurisdição, persistindo, porém, em vigor o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz da 1.ª instância, previsto no art. 607.º, n.º 5, do mesmo Diploma Legal.
No entanto, tal princípio da livre apreciação da prova mostra-se condicionado por uma “prudente convicção”, competindo, assim, ao Tribunal da Relação aferir da razoabilidade dessa convicção, em face das regras da experiência comum e da normalidade da vida, da ciência e da lógica.
Veja-se sobre esta matéria o sumário do acórdão do STJ, proferido em 31-05-2016:[8]
I - O tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.
II - Desde que o recorrente cumpra as determinações ínsitas no art. 640.º, o tribunal da Relação não poderá deixar de fazer a reapreciação da matéria de facto impugnada, podendo alterar o circunstancialismo dado como assente na 1.ª instância.

Cita-se ainda o sumário do acórdão do TRG, proferido em 04-02-2016:[9]
I- Para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.

E, a ser assim, o Tribunal da Relação, aquando da reapreciação da matéria de facto, deve, não só recorrer a todos os meios probatórios que estejam à sua disposição e usar de presunções judiciais para, desse modo, obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, como também, sem incorrer em excesso de pronúncia, ao alterar a decisão de determinados pontos da matéria de facto, retirar dessa alteração as consequências lógicas inevitáveis que se repercutem noutros pontos concretos da matéria de facto, independentemente de tais pontos terem ou não sido objeto de impugnação nas alegações de recurso.
Cita-se a este propósito, o sumário do acórdão do STJ, proferido em 13-01-2015:[10]
XIII - Não ocorre excesso de pronúncia da decisão, se a Relação, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retira dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso.

Por fim, importa ainda esclarecer que o Tribunal da Relação, na sua reapreciação da prova, terá sempre que atender à análise crítica de toda a prova e não apenas aos fragmentos de depoimentos que, por vezes, são indicados, e que retirados do seu contexto, podem dar uma ideia bem distinta daquilo que a testemunha efetivamente mencionou, bem como daquilo que resultou da globalidade do julgamento.
Decidamos.
Em face do supra exposto, é evidente que a Ré cumpriu os requisitos impostos pelo art. 640.º do Código de Processo Civil, pelo que a impugnação fáctica irá ser apreciada.
Consigna-se que se procedeu à audição de todo o julgamento.

a) Factos provados 1 e 2 e factos não provados 14 e 15
Consta dos factos provados 1 e 2 que:
1.Em data não concretamente apurada de meados de 2005 a R. contratou a A. para, sob a sua direção, lhe prestar trabalhos de limpeza e arrumação da casa onde residia em ..., tratamento de roupas e de animal doméstico e do jardim.
2. Acordaram A. e R. que tal atividade seria realizada duas vezes por semana, às 3ª e 6ª feiras, quatro horas de cada vez, mediante o pagamento da contrapartida monetária de € 5/hora.

Consta dos factos não provados 14 e 15 que:
14. Tenha sido a A. a decidir que apenas realizaria limpeza na casa da R. duas vezes por semana, 4h de cada vez e mediante o pagamento de €5/hora.
15. A A. decidisse e coordenasse o seu horário tendo em conta os restantes serviços e o trabalho a fazer em cada uma das casas em que trabalhava.

Entende a Ré que, em face da declaração de parte da Autora e dos depoimentos das testemunhas DD e EE, os factos não provados 14 e 15 devem ser eliminados do elenco dos factos não provados, sendo introduzidos nos factos provados 1 e 2, que passariam a ter a seguinte redação:
1. Em data não concretamente apurada de meados de 2005 a R. contratou a A. para lhe prestar serviços de limpeza e arrumação de casa onde residia em ....
2. A A. determinou que tal atividade seria realizada, tendencialmente, duas vezes por semana, às 3.ªs e 6.ª feiras, quatro horas de cada vez e mediante o pagamento de € 5/hora, para coordenar com o trabalho previsto nos Pontos 3 e 4 infra.

A Ré invocou também que a expressão “direção” constante do facto provado 1 é conclusiva.
Apreciemos.
Relativamente ao facto provado 1, na realidade, na parte da sentença onde se consignam os factos, apenas os factos nela devem ficar a constar; já não conclusões jurídicas ou matéria de exclusivo teor jurídico.
Apesar de não constar da legislação processual qualquer definição sobre o que sejam os factos, é inquestionável que a matéria de facto deve incindir sobre factos.
Conforme bem refere Alberto Augusto Vicente Ruço[11] “quando aludimos a factos, o senso comum, diz-nos que nos referimos a algo que aconteceu ou está acontecendo na realidade que nos envolve e percecionamos”.
De igual modo, referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[12] que os factos “abrangem as ocorrências concretas da vida real”, tecendo ainda as seguintes considerações sobre este tema:
Dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, diretamente captável pelas perceções do homem – ex propiis sensibus, visus et audictus), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do individuo (v.g. vontade real do declarante (…); o conhecimento dessa vontade pelo declaratário; (…) o conhecimento por alguém de determinado evento concreto (…); as dores físicas ou morais provocadas por uma agressão corporal ou por uma injúria.
[…]
Anote-se, por fim, que a área dos factos (selecionáveis para o questionário) cobre, principalmente, os eventos reais, as ocorrências verificadas; mas pode abranger também as ocorrências virtuais (os factos hipotéticos), que são, em bom rigor, não factos, mas verdadeiros juízos de facto.
[…]
São realidades de uma zona empírica que se inscreve ainda na área da instrução da causa […]. Mas trata-se da zona imediatamente contígua à dos juízos de valor e à dos juízos significativo-normativos, que, integrando a esfera do direito, embora estritamente ligados ao circunstancialismo concreto pertencem já a uma outra jurisdição.

Deste modo, os factos meramente conclusivos, quando constituam “uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis”[13] podem ainda integrar o acervo factual, “apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum”. Por sua vez, na seleção da matéria de facto, deve excluir-se as proposições normativas ou os juízos jurídico-conclusivos, visto que para tal se mostra reservada a análise jurídica da questão.
Por fim, tudo o que for de excluir da matéria factual deverá ser eliminado[14] ou ter-se como não escrito.[15]
No caso em apreço, um dos temas da prova é exatamente apurar a natureza da relação contratual existente entre a Autora e a Ré, ou seja, se a Autora exerce para a Ré uma atividade com carácter de subordinação ou, pelo contrário, com carácter de autonomia. E, a ser assim, é evidente que expressões conclusivas, como é o caso de trabalhar sob a direção da Ré, que num outro contexto até poderiam ser admitidas, por se reportarem expressamente ao thema decidendum não poderão ser admitidas. Efetivamente essa alegada direção terá de se traduzir em factos concretos. Atente-se que a definição constante do art. 2.º, n.º 1, do DL n.º 235/92, de 24-10, refere expressamente a expressão “sob a sua direcção e autoridade”.
Porém, não é menos verdade que quer a Autora, quer a testemunha DD, afirmaram que era a Ré quem dava as ordens e as instruções à Autora relativamente às tarefas que esta, em cada dia, tinha de efetuar, deixando, inclusive, por escrito, as tarefas a realizar quando se ausentava para a Alemanha.
Acresce que nos factos 8.º e 9.º da petição inicial a Autora alegou que exercia as suas tarefas, nomeadamente de lavar e tratar de roupas, limpar e arrumar a casa, tratar de animais domésticos e executar serviços de jardinagem, de acordo com as ordens e as instruções da Ré. Esta alegação fáctica mostrou-se provada, em face da declaração de parte da Autora e do depoimento da testemunha DD, reportando-se a expressão “sob a direção” da Ré à circunstância de a Autora receber da Ré as instruções e ordens para efetuar as suas tarefas. Assim, encontrando-se alegados e provados pela Autora os factos concretos em que se traduz a conclusão constante do facto provado 1, tal conclusão será, assim, substituída pelos respetivos factos.
Pelo exposto, o facto provado 1 passa a ter a seguinte redação:
1.Em data não concretamente apurada de meados de 2005, a R. contratou a A. para, através das instruções e ordens que lhe dava, a Autora lhe prestar trabalhos de limpeza e arrumação da casa onde residia em ..., tratamento de roupas e de animal doméstico e do jardim.

Quanto à pretendida eliminação no facto provado 1 de que tinha sido acordado entre a Autora e a Ré o tratamento por aquela de roupas, do animal doméstico e do jardim desta, tal terá de improceder, em face do depoimento de parte da Autora e dos testemunhos de DD e EE. É verdade que existe alguma confusão entre o afirmado pela Autora e o afirmado pelo seu marido DD quanto ao que era abrangido pelo acordo verbal celebrado entre a Autora e a Ré. De qualquer modo, é inquestionável que ambos concordam que a Autora exercia tais funções para a Ré, sendo que a testemunha EE, vizinho da Ré, confirmou que a Autora também fazia limpezas no exterior, sendo que no exterior existia um jardim.
Relativamente ao facto provado 2, não só não resulta do depoimento da testemunha DD que a Autora, sua esposa, fosse quem decidia tudo, inclusive os dias e as horas em que trabalharia para a Ré, uma vez que o que tal testemunha procurou transmitir foi que a Ré estava sempre a dar ordens à Autora e que a explorava; como também resulta das regras da experiência comum que os dias e as horas estabelecidas para o exercício da atividade de uma empregada doméstica resulta do acordo entre as partes, em face da disponibilidade de cada uma.
Assim, é de manter o facto provado 2 nos seus exatos termos e os factos não provados 14 e 15 como não provados.

b) Facto provado 7
Consta do facto provado 7 que:
7. Por determinação da R. a A., pelo menos, duas vezes, limpou a casa da mesma no ....

Entende a Ré que, em face do depoimento da testemunha DD, tal facto deveria passar a ter a seguinte redação:
7. A A., pelo menos, duas vezes, limpou a casa da R. no ....

Vejamos.
Resulta do depoimento da testemunha DD que, a pedido da Ré, a Autora foi com ela à casa do ..., por três vezes, fazer limpezas, não tendo ido a quarta vez porque a referida testemunha, seu marido, se opôs.
Daqui resulta que a Autora acedeu a um pedido formulado pela Ré por três vezes, sendo que à quarta vez já não acedeu a tal pedido.
Uma vez que a expressão “por determinação” não significa o mesmo que “a pedido”, aquela expressão será substituída por esta.
Nesta conformidade, o facto provado 7 passa a ter a seguinte redação:
7. A pedido da R. a A., pelo menos, duas vezes, limpou a casa da mesma no ....

c) Facto provado 9
Consta do facto provado 9 que:
9. Durante tal período a A. continuou a deslocar-se à moradia da R. sita em ... nos termos referidos em 2.

Pretende a Ré que, em face dos depoimentos das testemunhas DD e EE, este facto deveria passar a ter a seguinte redação:
9. Durante tal período a A. deslocava-se à moradia da R. sita em ..., em horários e dias não apurados, mas apenas pontualmente e em caso de necessidade, consoante a sua própria conveniência.

Vejamos.
A testemunha DD afirmou que, durante as ausências da Ré e do seu marido, a Autora continuava a ir duas vezes por semana à casa daquela, para cumprir as tarefas que a Ré lhe deixava escritas. E referiu ainda que a Autora, nessas alturas, ia à casa da Ré todos os dias, à hora que lhe dava jeito, para tratar do cão. Por sua vez, a testemunha EE referiu que a Autora ia a casa da Ré duas vezes por semana, sempre nos mesmos dias da semana, terças e sextas, de manhã, independentemente de a poder ter visto também nalguns domingos. Afigura-se-nos, assim, que, independentemente das idas da Autora a casa da Ré para dar de comida ao cão, a Autora, mesmo durante as ausências da Ré, continuava a proceder à limpeza da referida casa, duas vezes por semana, às terças e sextas.
Assim, mantém-se na íntegra a redação do facto provado 9.

d) Facto provado 11
Consta do facto provado 11 que:
11. No inicio de julho de 2021 a R. deu conhecimento à A. de que tinha vendido o imóvel onde realizava a atividade pelo que não precisaria mais dos seus serviços.

Entende a Ré que, perante o depoimento da testemunha DD, este facto deve passar a ter a seguinte redação:
11. A R. quando regressou da Alemanha após o óbito do marido comunicou à A. que iria pôr a casa à venda, o que efetuou, tendo a A. auxiliado na mudança para o ... e preparado a casa de ... para venda com pequenos reparos, tendo a venda ocorrido no inicio de julho de 2021, data em que a R. deixou de carecer dos serviços da A..


Apreciemos.
Na realidade, é confirmado pela testemunha DD, marido da Autora, que a Ré, quando regressou a Portugal, no final de 2018, informou, de imediato, a Autora de que iria vender a casa em ... e mudar-se para a sua casa no ..., tendo a Autora e o seu marido ajudado a Ré a preparar a casa para a venda. Refere ainda esta testemunha que nunca foi falado, de forma direta, entre a Autora e a Ré, como ficaria a situação profissional daquela após a venda da casa.
Ora, o que consta do facto provado 11 efetivamente não traduz, com clareza, esta realidade.
Assim, e para aquilo que releva nesta matéria, o facto provado 11 será alterado e passará a ter a seguinte redação:
11. No início de julho de 2021, a Ré, após a venda do imóvel, deu conhecimento à Autora de que não precisaria mais dos seus serviços.

e) Factos não provados 16 e 17
Consta dos factos não provados 16 e 17 que:
16. As férias e ausências sempre foram decididas pela A. e apenas comunicadas à R. que se limitava a registá-las.
17. O valor da hora tenha aumentado por decisão exclusiva e imposição da A..

Pretende a Ré que, em face do depoimento da testemunha DD, os factos 16 e 17 passem a provado, devendo, este último, ter uma pequena alteração verbal, ou seja:
17. O valor hora aumentou por decisão exclusiva e imposição da A..

Apreciemos.
A testemunha DD nunca referiu no seu depoimento que a Autora tivesse imposto as suas férias ou ausências à Ré, referindo, pelo contrário, que, no período de férias, de uma ou duas semanas por ano, em que passavam em Portugal, a Ré, habitualmente, telefonava à Autora para lhe pedir certas coisas, incomodando-a mesmo nesses períodos de férias.
Por sua vez, quanto ao aumento do valor/hora, tal testemunha apenas referiu que os aumentos que aconteceram foram sempre a pedido da Autora e não por iniciativa da Ré.
Acresce que não resulta da matéria de facto qualquer circunstância que permita concluir que a Autora pudesse obrigar a Ré nestas matérias, pelo que, conforme resulta da experiência comum e da normalidade da vida, quer as férias da Autora quer o valor/hora que a Ré pagava à Autora eram o resultado do acordo entre ambas as partes.
Assim, mantêm-se como não provados os factos 16 e 17.

Em conclusão, procede parcialmente a impugnação fáctica, determinando-se a alteração dos factos provados 1, 7 e 11, os quais passarão a ter a seguinte redação:
1.Em data não concretamente apurada de meados de 2005, a R. contratou a A. para, através das instruções e ordens que lhe dava, a Autora lhe prestar trabalhos de limpeza e arrumação da casa onde residia em ..., tratamento de roupas e de animal doméstico e do jardim.
7. A pedido da R. a A., pelo menos, duas vezes, limpou a casa da mesma no ....
11. No início de julho de 2021, a Ré, após a venda do imóvel, deu conhecimento à Autora de que não precisaria mais dos seus serviços.

3 – Inexistência de um contrato de serviço doméstico
Pretende a Ré que, em face da alteração factual pretendida, resulta a inexistência de subordinação jurídica entre a Autora e a Ré, exercendo aquela a sua atividade com autonomia e independência próprias de um contrato de prestação de serviços, nos termos do art. 1154.º do Código Civil, encontrando-se também afastada, por falta de prova, a presunção prevista no art. 12.º do Código do Trabalho, pelo que apenas se pode concluir pela inexistência de um contrato de serviço doméstico.
A recorrente fez depender a apreciação desta questão da procedência da sua impugnação fáctica. Uma vez que se procedeu à alteração de três dos factos dados como provados, impõe-se apreciar tal questão.
Dispõe o art. 1154.º do Código Civil que:
Contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.

Dispõe, por sua vez, o art. 2.º, nºs. 1 e 3, do DL n.º 235/92, de 24-10,[16] que:
1 - Contrato de serviço doméstico é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a outrem, com carácter regular, sob a sua direcção e autoridade, actividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou específicas de um agregado familiar, ou equiparado, e dos respectivos membros, nomeadamente:
a) Confecção de refeições;
b) Lavagem e tratamento de roupas;
c) Limpeza e arrumo de casa;
d) Vigilância e assistência a crianças, pessoas idosas e doentes;
e) Tratamento de animais domésticos;
f) Execução de serviços de jardinagem;
g) Execução de serviços de costura;
h) Outras actividades consagradas pelos usos e costumes;
i) Coordenação e supervisão de tarefas do tipo das mencionadas neste número;
j) Execução de tarefas externas relacionadas com as anteriores.
[…]
3 - Não se considera serviço doméstico a prestação de trabalhos com carácter acidental, a execução de uma tarefa concreta de frequência intermitente ou o desempenho de trabalhos domésticos em regime au pair, de autonomia ou de voluntariado social.

Por fim, estatui o art. 12.º, n.º 1, do Código do Trabalho, que:
1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;
c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;
d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;
e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.

Do confronto das citadas normas resulta que estamos perante um contrato de serviço doméstico quando o trabalhador se obriga (i) a prestar a outrem; (ii) sob a sua direção e autoridade; (iii) atividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou específicas de um agregado familiar ou equiparado e dos respetivos membros; (iv) com carácter regular; e (v) em troca de retribuição.
Em contrapartida não estamos perante este tipo de contrato se essas mesmas atividades forem prestadas com carácter acidental, com frequência intermitente, em regime au pair, de autonomia ou de voluntariado social.
Por fim, a relação de subordinação inerente a este contrato de trabalho, traduzida na obrigatoriedade de o trabalhador prestar as suas funções sob a direção e autoridade da entidade empregadora, presume-se desde que se mostrem verificadas, pelo menos, duas das características constantes do art. 12.º do Código do Trabalho.
Acresce que nos termos do art. 7.º do do DL n.º 235/92, de 24-10, o contrato de serviço doméstico abrange quer os trabalhadores internos (que se encontram alojadas na residência onde prestam o serviço doméstico), quer os trabalhadores externos, quer as situações de trabalho a tempo inteiro, quer as situações de trabalho a tempo parcial, habitualmente denominado trabalho “a dias” ou “à hora”.[17]
Posto isto, vejamos, então, o caso concreto.
Resultou provado que a Autora foi contratada pela Ré para, através das instruções e ordens que esta lhe dava, lhe prestar trabalhos de limpeza e arrumação da casa, onde a Ré residia, em ..., bem como para proceder ao tratamento de roupas, do animal doméstico e do jardim dessa casa.
Resultou igualmente provado que a Autora e a Ré acordaram que tal atividade seria exercida pela Autora, na casa da Ré, duas vezes por semana, às 3.ª e 6.ª feiras, quatro horas de cada vez, mediante o pagamento da contrapartida monetária de €5,00 por hora, tendo tal atividade sido exercida pela Autora, nas condições referidas, desde meados de 2005 até dia não apurado de julho de 2021, sendo, nessa data, a contrapartida auferida pela Autora de €7,00 por hora.
Mais resultou provado que a Ré pagava à Autora, no final de cada mês, o trabalho prestado, de acordo com a relação de horas que esta lhe apresentava.
Perante estes factos, constata-se, por um lado, que as funções para as quais a Ré contratou a Autora se integram nas als. b), c), e) e f) do n.º 1 do art. 2.º do DL n.º 235/92, de 24-10, e, por outro, que tais funções foram realizadas regularmente, a tempo parcial, ou seja, duas vezes por semana, quatro horas por dia, entre meados de 2005 e julho de 2021 (com exceção dos períodos de férias da Autora).
De igual modo, para além de ter resultado provado que a Autora exercia as suas funções de acordo com as ordens e instruções que a Ré lhe dava, resultaram igualmente provados factos que se enquadram nas als. a) e d) do n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho (ou seja, que a atividade era realizada em local pertencente à Ré; e que o montante que a Autora auferia, por contrapartida do seu trabalho, era pago todos os finais do mês, de acordo com um valor fixo por hora), o que implicou que, por força da presunção aí estabelecida, competia à Ré o ónus da prova de que, apesar de tais factos, inexistia qualquer relação de subordinação. Ora, essa prova não foi realizada pela Ré.
E, a ser assim, não é possível considerar, como pretendido pela recorrente, que o contrato estabelecido entre as partes era um contrato de prestação de serviços e não um contrato de serviço doméstico.
Nesta conformidade, nesta parte, improcede a pretensão da recorrente.

4 – Aplicabilidade do disposto no art. 28.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 235/92, de 24-10, na versão dada pela Lei n.º 114/99, de 03-08
Considera a Apelante que o tribunal a quo errou ao aplicar o disposto na al. d) do n.º 1 do art. 28.º do DL n.º 235/92, de 24-10, e não a al. b) desse mesmo n.º 1, uma vez que com a venda do imóvel onde a Autora exercia a sua atividade, verificou-se uma situação de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de a Ré receber a prestação da Autora, pelo que inexiste qualquer obrigatoriedade legal de a Ré pagar à Autora uma compensação, não sendo de aplicar à situação do contrato de serviço doméstico o disposto no Código do Trabalho, por tal se encontrar expressamente proibido nos termos do art. 1.º do referido DL.
Referiu ainda que, de qualquer modo, mesmo que se aplicasse o Código do Trabalho, também aí não se mostra prevista qualquer compensação para as situações de cessação do contrato de trabalho por caducidade devido a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o empregador receber a prestação do trabalhador.
Apreciemos.
Estipula o art. 27.º do DL n.º 235/92, de 24-10, que:
O contrato de serviço doméstico pode cessar:
a) Por acordo das partes;
b) Por caducidade;
c) Por rescisão de qualquer das partes, ocorrendo justa causa;
d) Por rescisão unilateral do trabalhador, com pré-aviso.

Dispunha ainda o art. 28.º do DL n.º 235/92, de 24-10, na versão da Lei n.º 114/99, de 03-08,[18] que:
1 - O contrato de serviço doméstico caduca nos casos previstos neste diploma e nos termos gerais de direito, nomeadamente:
a) Verificando-se o seu termo;
b) Verificando-se a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho ou de o empregador o receber;
c) Verificando-se manifesta insuficiência económica do empregador, superveniente à celebração do contrato;
d) Ocorrendo alteração substancial das circunstâncias de vida familiar do empregador que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho;
e) Com a reforma do trabalhador por velhice ou invalidez.
2 - Para efeitos da alínea b) do número anterior, considera-se definitivo o impedimento cuja duração seja superior a seis meses ou, antes de expirado este prazo, quando haja a certeza ou se preveja com segurança que o impedimento terá duração superior.
3 - No caso previsto na alínea d) do n.º 1, o trabalhador terá direito a uma compensação de valor correspondente à retribuição de um mês por cada três anos de serviço, até ao limite de cinco, independentemente da retribuição por inteiro do mês em que se verificar a caducidade do contrato.
4 - Quando se dê a caducidade do contrato a termo celebrado com trabalhador alojado, a este será concedido um prazo de três dias para abandono do alojamento.

No caso em apreço, o tribunal a quo entendeu que se verificou a caducidade do contrato de serviço doméstico devido à ocorrência de uma alteração substancial das circunstâncias da vida familiar do empregador que tornou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho; entendendo a Ré que tal caducidade se verificou por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o empregador receber a prestação de trabalho do trabalhador.
A doutrina e a jurisprudência têm maioritariamente entendido que a impossibilidade superveniente é toda aquela que ocorre após a celebração do contrato; a impossibilidade absoluta é aquela que é total, pelo que não se basta com o simples agravamento ou a excessiva onerosidade da prestação; e a impossibilidade definitiva é aquela que é previsivelmente irreversível, não sendo, por isso, meramente temporária.[19]
Exatamente, por isso, no âmbito do contrato de trabalho em geral, e não especificamente do contrato de serviço doméstico, apenas se entende, quando a entidade empregadora encerra o local de trabalho do trabalhador (situação, em certos aspetos, semelhante à da situação dos autos), que se verifica uma situação de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o empregador receber a prestação do trabalhador, se se tratar do encerramento total e definitivo da empresa e não apenas do estabelecimento onde o trabalhador laborava.[20]
Conforme bem refere Maria do Rosário Palma Ramalho no Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais:[21]
Assim, só ocorre a caducidade do contrato de trabalho quando se verifique o encerramento total e definitivo da empresa: do requisito de que o encerramento da empresa seja total retira-se que o contrato não cessa por virtude do encerramento do estabelecimento no qual o trabalhador presta o serviço, caso em que o trabalhador deve, simplesmente, ser deslocado para outro local de trabalho; do requisito de que o encerramento seja definitivo decorre que a paragem temporária da laboração ou o encerramento temporário da empresa não constituem motivo justificativo da cessação do contrato.

Importará referir que, diferentemente do alegado pela recorrente, a caducidade do contrato de trabalho por encerramento total e definitivo da empresa atribui ao trabalhador o direito a uma compensação, nos termos do n.º 5 do art. 346.º do Código do Trabalho.
No âmbito do contrato de serviço doméstico, que é um contrato especial relativamente ao regime geral previsto no Código do Trabalho,[22] para além da situação de caducidade do contrato por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o empregador receber a prestação de trabalho do trabalhador, admite-se igualmente tal caducidade do contrato quando ocorra alteração substancial das circunstâncias da vida familiar do empregador que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. Nesta última situação, o grau de exigência é menor, visto que já não se exige uma impossibilidade absoluta e definitiva, mas tão somente uma impossibilidade imediata e praticamente impossível,[23] razão pela qual esta situação concede ao trabalhador o direito a uma compensação, nos termos do 3 do art. 28.º do citado DL, na versão citada.
Apreciemos, então, a situação concreta.
Resultou provado nos autos que a Ré contratou a Autora para, através das instruções e ordens que lhe dava, esta lhe prestar trabalhos de limpeza e arrumação da casa onde residia em ..., tratamento de roupas e de animal doméstico e do jardim, tendo sido acordado entre ambas que tal atividade seria realizada duas vezes por semana, às 3ª e 6ª feiras, quatro horas de cada vez, mediante o pagamento da contrapartida monetária de € 5/hora. Mais resultou provado que, a pedido da Ré, a Autora, pelo menos, duas vezes, limpou a casa da mesma no .... Resultou igualmente provado que o marido da Ré faleceu em ../../2018, tendo, no início de julho de 2021, a Ré, após a venda do imóvel sito em ..., dado conhecimento à Autora de que não precisaria mais dos seus serviços, tendo, a partir desse momento, a Ré passado a residir na zona de Lisboa, mais concretamente no ..., na companhia da sua filha.
Em face desta matéria factual não é possível concluir que estejamos perante uma situação de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o empregador receber a prestação do trabalhador, uma vez que a venda do imóvel, sito em ..., por parte da empregadora não a impedia, em absoluto, de receber a prestação da trabalhadora, ainda que numa outra casa de sua propriedade, sita no ..., conforme, aliás, já ocorrera duas vezes.
Acresce que não resulta da prova carreada para os autos que a empregadora já não tivesse condições físicas e/ou psíquicas que lhe permitissem continuar a residir, ainda que sozinha, em .... Na realidade, na apreciação da impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o empregador receber a prestação do trabalhador também se deve apreciar o grau de imputabilidade dessa impossibilidade ao empregador, nos termos do disposto no art. 790.º, n.º 1, do Código Civil.
Conforme bem se refere no acórdão do TRL, proferido em 25-09-2013, no âmbito do processo n.º 3013/06.5TTLSB.L1-4,[24] caduca por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o empregador receber a prestação do trabalhador, a situação em que o empregador tem de ir residir para um lar, em virtude de padecer de demência senil.
Regressando à situação concreta, é óbvio que a empregadora possui a liberdade de, em cada momento da sua vida, decidir onde pretende residir, razão pela qual tal alteração substancial das circunstâncias da sua vida familiar permite a cessação do contrato de serviço doméstico por caducidade, desde que tal alteração torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral. Porém, como tal alteração substancial das circunstâncias da sua vida familiar não resultou de uma causa que não lhe é imputável (art. 790.º, n.º 1, do Código Civil), tal cessação do contrato por caducidade atribui ao trabalhador o direito a uma compensação.
Assim, por se reconhecer que a mudança de residência da habitação de empregadora, de ... para o ..., determinou uma alteração substancial das circunstâncias da vida familiar da empregadora que tornou, de imediato, e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho havida entre Autora e Ré, em face, inclusive, do local de residência da Autora e do seu agregado familiar se situar em ..., considera-se verificada uma situação de caducidade do contrato de serviço doméstico nos termos da al. d) do n.º 1 do art. 28.º do DL n.º 235/92, de 24-10, na versão da Lei n.º 114/99, de 03-08, o qual determina o direito à Autora de receber uma compensação.
Pelo exposto, bem andou a sentença recorrida, improcedendo, nesta parte a pretensão da recorrente.
Nos termos do art. 665.º do Código de Processo Civil, por se manter a condenação da Ré na quantia que se vier a fixar em liquidação de sentença relativa a remuneração de férias, subsídio de férias e de natal, dos anos relativos ao período compreendido entre meados de 2005 e julho de 2021, ou seja, a condenação prevista na al. b), ponto 2., da parte decisória da sentença recorrida, este tribunal, substituindo-se ao tribunal recorrido, determina a alteração de tal condenação, a qual passará a ser nos seguintes termos:
2. a quantia que se vier a fixar em liquidação de sentença relativa a remuneração de férias, subsidio de férias e de natal, dos anos relativos ao período compreendido entre meados de 2005 e julho de 2021, até ao montante peticionado pela Autora.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, em determinar a nulidade da sentença recorrida quanto à condenação prevista na al. b), ponto 2, da parte decisória, por condenação em quantidade superior ao peticionado e, em substituição do tribunal recorrido, condenar nos seguintes termos:
2. a quantia que se vier a fixar em liquidação de sentença relativa a remuneração de férias, subsidio de férias e de natal, dos anos relativos ao período compreendido entre meados de 2005 e julho de 2021, até ao montante peticionado pela Autora.

No demais, mantém-se a sentença recorrida.
Custas na proporção do respetivo decaimento (art. 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário concedido à Autora.
Notifique.
Évora, 7 de março de 2024
Emília Ramos Costa (relatora)
João Luís Nunes
Paula do Paço
___________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: João Luís Nunes; 2.ª Adjunta: Paula do Paço.
[2] Por ser esta a versão aplicável.
[3] Consultáveis em www.dgsi.pt.
[4] Atente-se que a natureza da relação existente entre a Autora e a Ré é uma das questões a apreciar no presente recurso.
[5] Vide acórdão do STJ proferido em 08-09-2021 no âmbito do processo n.º 1721/17.4T8VIS-A.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Consultável em www.dgsi.pt.
[7] No âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[8] No âmbito do processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[9] No âmbito do processo n.º 283/08.8TBCHV-A.G1, consultável em www.dgsi.pt.
[10] No âmbito do processo n.º 219/11.9TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[11] Prova e Formação da Convicção do Juiz, Coletânea de Jurisprudência, Almedina, 2016, p. 55.
[12] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pp. 406-408.
[13] Acórdão do TRC, proferido em 20-06-2018, no âmbito do processo n.º 13/16.0GTCTB.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do STJ, proferido em 29-04-2015, no âmbito do processo n.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[15] O já citado acórdão do TRC, proferido em 20-06-2018.
[16] Atente-se que se aplica a este processo a versão da Lei n.º 114/99, de 03-08.
[17] Acórdão do STJ proferido em 01-06-2022 no âmbito do processo n.º 27266/18.7T8PRT.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[18] Posteriormente alterada pela Lei n.º 13/2023, de 03-04.
[19] Vejam-se os acórdãos do TRG proferido em 11-05-2023 no âmbito do processo n.º 358/22.0T8VRL.G1; do TRL proferido em 13-01-2016 no âmbito do processo n.º 497/15.4T8PDL.L1-4; e do TRL proferido em 27-05-2015 no âmbito do processo n.º 16/14.0TTVFX.L1-4; consultáveis em www.dgsi.pt.
[20] Vide acórdão do TRE proferido em 14-09-2023 no âmbito do processo n.º 708/22.0T8BJA.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[21] 6.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 773.
[22] Vide acórdãos do TRL proferidos em 04-05-2016 no âmbito do processo n.º 325/13.5TTFUN.L1-4; e em 01-06-2022 no âmbito do processo n.º 27266/18.7T8PRT.P1.S1; consultáveis em www.dgsi.pt.
[23] Vide acórdão do TRP proferido em 06-11-2017 no âmbito do processo n.º 22377/16.6T8PRT.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[24] Consultável em www.dgsi.pt.