Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
681/20.9T8STR-B.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
VALOR DO IMÓVEL PENHORADO
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Do artigo 812.º do CPC não resulta que, no caso de venda por negociação particular, tenha de haver um valor mínimo de venda. O que aquele preceito dispõe é que na decisão de venda – em qualquer das suas modalidades e, portanto, também na venda por negociação particular – deve ser fixado o valor base de venda do imóvel, que, no caso dos bens imóveis, deve corresponder ao maior dos indicados no n.º 3 do artigo 812.º.
2 – Na modalidade de venda por negociação particular o pode ser vendido por valor inferior ao valor base anunciado e ainda que não haja acordo nesse sentido por parte de todos os interessados. Neste caso, porém, só mediante autorização judicial se poderá concretizar tal venda.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 681/20.9T8STR-B.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: Ana Margarida Pinheiro Leite
Francisco Matos

I. RELATÓRIO
I.1.
AA, co-requerido na ação de divisão de coisa comum instaurada por BB, interpôs recurso do despacho proferido pelo ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., o qual autorizou a sra. encarregada de venda a proceder à venda, pelo preço de € 32.000,00, da fração autónoma designada pela ..., correspondente a cave, constituída por cinco divisões destinadas a arrecadações e a um espaço amplo com sete lugares destinados a aparcamento de viaturas e zona de circulação de pessoas e viaturas, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., lote ..., em ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...70... da União de Freguesias ... e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...64....

O despacho sob recurso tem o seguinte teor:
«(…)
Veio o requerente requerer autorização judicial para que o imóvel em causa nestes autos seja vendido pelo preço proposto de € 32.000,00.
Notificados, os requeridos CC e AA opuseram-se à pretensão do requerente, nos termos e com os fundamentos esgrimidos nos requerimentos com as referências ...01 e ...34.
Apreciando.
Conforme estabelece o art. 549.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, sempre que num processo judicial haja lugar a venda de bens, esta é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução, com as devidas adaptações.
Ora, qualquer que seja a modalidade de venda judicial, a lei impõe que seja sempre atribuído um valor base de venda (cfr. artigo 812.º do Cód. Proc. Civil).
Assim, em princípio, o bem só pode ser vendido por preço igual ou superior ao valor base fixado na decisão sobre a venda.
Esta regra comporta, no entanto, algumas exceções.
Destarte, o valor da venda pode ser reduzido para o limite mínimo de 85% do valor base em duas outras situações: (a) na venda mediante propostas em carta fechada ou leilão eletrónico e (b) na adjudicação do bem penhorado ao exequente ou a credor reclamante (cfr. artigos 816.º, n.º 2 e 799.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil).
Sublinhe-se que, na negociação particular – como ocorre in casu –, a lei não permite a aceitação, sem mais, de quaisquer propostas abaixo do valor base fixado. Sem embargo, a venda poderá ser concretizada por valor inferior a este se houver acordo de todos os interessados (cfr. artigo 821.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil), ou mediante autorização judicial. Nesta última hipótese, deverá o tribunal fazer um juízo casuístico, analisando e ponderando os elementos constantes do processo que possam justificar uma tal decisão, como sejam, v.g. o hiato temporal já decorrido, a evolução da conjuntura económica, as potencialidades de venda do bem e o interesse manifestado pelo mercado.
Conforme sustentou, a esse propósito, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 03.03.2020 (cfr. processo n.º 150-E/1991.E1, relator Mata Ribeiro, in www.dgsi.pt), «sendo necessário proceder à venda dum imóvel comum e tendo as partes deliberado que a mesma se faria na modalidade de venda por negociação particular, o juiz, ouvidas as partes e perante a dificuldade de se obter comprador que se disponha a cobrir o preço mínimo, pode autorizar a venda por preço inferior, mesmo que as partes não se tenham pronunciado nesse sentido».
Nos presentes autos, o valor base da venda foi fixado em € 45.400,00, correspondente ao respetivo valor de mercado, segundo o relatório pericial com referência ...11.
Numa primeira fase o imóvel foi colocado à venda mediante leilão eletrónico, que teve início em 27.04.2022 e findou em 08.06.2022, com uma proposta máxima de € 27.891,71, i.e., inferior a 85% do valor base.
Ante a frustração desta venda, por despacho de 13.09.2022, foi determinado que os autos prosseguiriam com a venda por negociação particular.
Em 18.01.2023 foi apresentada uma proposta no valor de € 36.439,07, tendo, entretanto, o proponente desistido da mesma. Posteriormente, em 28.03.2023, foi apresentada proposta no valor de € 32.000,00.
Desde então não são conhecidas outras propostas.
In casu, cumpre levar em linha de conta que o requerente – que aceita, como se disse, a proposta de € 32.000,00 – é titular de uma quota-parte de 5/6 do imóvel, sendo que cada um dos requeridos é titular de uma quota-parte de 1/12.
Assim, impõe-se aquilatar se a proposta de venda pelo preço de € 32.000,00 representa para os requeridos uma vantagem de tal ordem significativa que justifique que o requerente fique impedido de obter o mais rapidamente possível o proveito da referida venda.
Como se disse, no âmbito da venda por leilão eletrónico realizada nos autos, teriam sido aceites propostas correspondentes a, pelo menos, 85% do valor base, ou seja, 38.590,00€, caso em que caberia a cada um dos requeridos o montante de € 3.215,00. Ora, se venda for realizada pelo preço de € 32.000,00, caber-lhes-á o montante de € 2.666,66. A diferença ascende, pois, a € 548,34.
Em nossa ótica, tal diferença não assume suficiente relevância para se continuar a insistir com as diligências com vista à obtenção de melhor proposta, impedindo que o requerente – repita-se, titular de uma quota-parte de 5/6 – receba, desde já, o montante de € 26.666,67.
Acresce que o prosseguimento daquelas diligências acarretaria custos acrescidos do processo designadamente com despesas e honorários da sra. Encarregada de venda.
(…)».
I.2.
As alegações de recurso do apelante culminam com as seguintes conclusões:
«i. O douto Tribunal proferiu decisão no sentido de autorizar a sra. Encarregada de venda a proceder à venda, pelo preço de € 32.000,00, da fração autónoma designada pela ... do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., lote ..., em ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...70, da União de Freguesias ... e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...64.
ii. Fundamentando sua decisão na suposição que, no âmbito da venda por leilão eletrónico, teriam sido aceites propostas correspondentes a, pelo menos, 85% do valor base (ou seja, 38.590,00e), caso em que caberia a cada um dos requeridos o montante de € 3.215,00, resultando uma diferença de € 548,34, caso a venda se realize pelo valor de € 32.000,00 (€ 32.000,00 - € 2.666,66).
iii. Considerando o Douto Tribunal que tal diferença não assume suficiente relevância para se continuar com as diligências com vista à obtenção de melhor proposta, impedindo que o requerente – titular de uma quota-parte de 5/6 – receba, desde já, o montante de € 26.666,67.
iv. Entende o Recorrente que não lhe assiste qualquer razão, não devendo ter sido determinada a autorização de venda do imóvel, nos termos em que o foi.
v. Atenta a inexistência de acordo quanto à adjudicação do imóvel em apreço a qualquer dos interessados, determinou o tribunal a quo o prosseguimento dos autos com a venda da fração, tendo sido inicialmente mediante leilão eletrónico e, após a mesma não ter sido possível, foi determinada a venda por negociação particular, dispondo o n.º 2 do artigo 549.º do Código de Processo Civil que “Quando haja “Quando haja lugar a venda de bens, esta é feita pela formas estabelecidas para o processo de execução(…)”.;
vi. Foi elaborado o Relatório de Avaliação, em 23.07.2021, que concluiu “Atendendo aos valores apurados pelos dois métodos de avaliação (Método Comparativo de Mercado e Método do Custo de Reposição), considerando a média aritmética dos dois valores e o seu arredondamento às centenas de euros, o valor atualizado (julho de 2021) do prédio urbano / fração autónoma designada pela ..., correspondente a cave, constituída por cinco divisões destinadas a arrecadações e um espaço amplo com sete lugares destinados a aparcamento de viaturas e zona de circulação de pessoas e viaturas, inserida em edificação do lote ... da Urbanização ..., em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...70... da União de Freguesias ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...67..., é de € 45.400,00 (quarenta e cinco mil e quatrocentos euros).”.
vii. O bem só pode ser vendido por valor igual ou superior ao seu valor base, que se traduz no seu valor de mercado, cfr. artigo 812.º do Código Processo Civil (C.P.C.), razão pela qual, qualquer autorização de venda deve ser precedida de averiguação, através de perícia adequada, para aferir qual será, efetivamente, o verdadeiro e real preço de mercado;
viii. Não obstante o imóvel ter sido avaliado em 45.400,00 euros, fixando-se o seu valor base, veio o Tribunal a quo autorizar a venda pelo valor 32.000,00 Euros, violando, desta forma, o disposto no artigo 812.º do C.P.C;
ix. Valor esse que fica muito aquém do valor de mercado e representa uma desvalorização de 29,52%, do imóvel, o que é significativa, designadamente, considerando os valores imputados a cada um dos interessados, de acordo com a sua quota-parte, desconsiderando uns relativamente a outros, ou a outro.
x. Nem é aceitável a circunstância de se considerar que não se deve continuar a insistir nas diligências de venda, pois que a sua continuação impedirá o requerente de receber 5/6, ou seja, € 26.666,67, em detrimento do direito dos demais interessados, ou de somenos importância, cuja quota-parte é de 1/12, é, para além de injusta, ilegal;
xi. Cada um dos interessados é proprietário de avos da fração em causa, não obstante todas as arrecadações e lugares de garagem estarem afetos ou atribuídos a cada fração habitacional do prédio, sabendo cada proprietário, qual a sua arrecadação e qual o seu lugar de estacionamento.
xii. Isto porque, a constituição de propriedade horizontal e o licenciamento urbanístico do prédio obedece a regras, designadamente e no caso sub judice, ditadas pelo Regulamento Municipal da Edificação e Urbanização – Município ..., que estabelece no seu artigo 11.º, n.º 3 e 57.º, n.º 1, que não é permitido os parqueamentos constituírem frações autónomas, razão pela qual, os diversos proprietários adquiriram em avos.
xiii. A fração encontra-se, pelas razões acima aduzidas, em regime de compropriedade, frisando, mais uma vez, que cada uma das arrecadações e lugares de estacionamento estão afetos às frações habitacionais do prédio, só se alcançando a sua alienação, no todo, como um investimento, o que subverte totalmente o objetivo para que foi constituída, consequência, aliás, também da própria Ação de Divisão de Coisa Comum.
xiv. O que também faz concluir que a sua alienação não é urgente, nem premente, nem o tempo decorrido justifica comprometer a venda pelo valor real de mercado, quando as potencialidades de venda do imóvel têm subido exponencialmente nos últimos anos, bem como a procura de bens imóveis, também para investimento.
xv. A decisão de autorização de venda pelo valor de € 32.000,00 faz tábua rasa do Relatório de Avaliação, que indica o real valor de mercado do imóvel – € 45.400,00;
xvi. Sendo certo que tal valor e, até, inferior ao valor correspondente a 85% do valor base de venda, o que, por si só, é demonstrativo da insuficiência do valor com que se pretende a venda.
xvii. Não existe, assim, qualquer fundamento para se proceder à venda do imóvel em apreço pelo valor de € 32.000,00, entendendo o recorrente que devem ser mantidas as diligências conducentes à venda do imóvel por valor próximo do valor base e tendo este por referência.
xviii. Importando, face ao exposto, decidir pela violação de lei e errada aplicação do direito constante da Douta Decisão em crise, substituindo por outra que, em face da posição dos interessados sobre a realização da venda por preço inferior ao valor base, se insista pela diligência de angariar melhor preço, considerando o valor base do imóvel.
FAZENDO-SE ASSIM A COSTUMADA JUSTIÇA!».

I.3.
O apelado apresentou resposta às alegações de recurso, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal de primeira instância.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).
III.2.
No caso a única questão que importa decidir é a do (des) acerto da decisão do tribunal a quo relativamente à autorização de venda do imóvel em causa nos autos por valor inferior ao respetivo valor base.
III.3.
FACTOS
Dá aqui por integralmente reproduzida a factualidade constante da decisão recorrida.
Resulta ainda dos autos a seguinte factualidade:
1 – Mediante sentença já transitada em julgado foi declarada a indivisibilidade e a compropriedade na proporção de 5/6 para o autor BB, 1/12 para o primeiro réu AA e 1/12 para o segundo réu CC, da fração autónoma designada pela ..., correspondente a cave, constituída por cinco divisões destinadas a arrecadações e a um espaço amplo com sete lugares destinados a aparcamento de viaturas e zona de circulação de pessoas e viaturas, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., em ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...70... da União de Freguesias ... e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...64....
2 – Na conferência prevista no artigo 929.º/2, do CPC foi deferido o pedido de avaliação do imóvel com vista a determinar o respetivo valor de mercado, tendo em consideração as possibilidades de utilização do imóvel.
3 – No relatório pericial, apresentado em 23-07-2021, o valor de mercado do imóvel foi fixado em € 45.400,00.
4 – Na fixação daquele valor foram tidos em consideração os seguintes vetores: a área bruta privativa constante da caderneta predial urbana emitida pelo Serviço de Finanças ...; as áreas respeitantes a cada uma das arrecadações existentes na fração (de acordo com o especificado no projeto de arquitetura; os usos (estacionamento e arrecadações) associados à fração; a idade da construção – 17 anos, considerando o ano (2004) em que foi emitida a autorização de utilização n.º ...04, concedida pela Câmara Municipal ... à fração; a localização da fração / prédio urbano, situado em zona servida por vias de comunicação pavimentadas e em bom estado de conservação; o estado de conservação da fração / prédio urbano; as prospeções de mercado utilizadas, as quais tiveram em consideração construções com o mesmo uso (lugares de estacionamento e arrecadações), estado (usado) e localização (União de Freguesias ... e concelho ...) dos usos respetivamente afetos (estacionamento e arrecadações) à fração / prédio urbano em causa.
4 – O valor patrimonial atual do imóvel referido em 1 é de € 41.820,00 de acordo com a avaliação efetuada pela autoridade tributária no ano de 2019.
5 – O requerente aceitou sempre todas as propostas apresentadas e relativas à venda do imóvel, ao passo que os requeridos rejeitaram-nas todas com o fundamento de as mesmas ficarem muito aquém daquele que é o valor de mercado do imóvel apurado em sede de avaliação pericial.

III.4.
Do mérito do recurso
No presente recurso está em causa o despacho proferido pelo tribunal de primeira instância que autorizou a sra. encarregada de venda a proceder à venda do imóvel objeto dos autos pelo preço de € 32.000,00, valor inferior ao valor base fixado para a venda do mesmo, a saber, € 45.400,00.
Diz o apelante que o tribunal a quo ao autorizar a venda pelo valor de € 32.000,00 está a infringir o disposto no artigo 812.º do CPC, na medida em que o bem só pode ser vendido por valor igual ou superior ao seu valor base.
Quid juris?
A venda em processo de divisão de coisa comum, na decorrência da impossibilidade de adjudicação do bem a qualquer dos interessados, é tramitada de harmonia com as normas que regulam a venda de bens em processo executivo (artigo 549.º/2, do CPC).
No caso, e depois de frustrada a venda através da plataforma eletrónica de leilões, foi decidido pelo tribunal a quo que os autos prosseguissem com a venda do imóvel através de negociação particular, tendo sido fixado como valor base da venda o montante de € 45.400,00, correspondente ao valor de mercado do imóvel apurado através de avaliação pericial. É, pois, nesta fase que surge a proposta de aquisição do imóvel pelo valor de € 32.000,00.
A venda por negociação particular está prevista nos artigos 832.º e 833.º, ambos do CPC, designadamente para as situações em que se frustrou a venda em leilão eletrónico por falta de proponentes (alínea f) do artigo 832.º).
De acordo com o disposto no artigo 812.º, n.ºs 2 e 3, do CPC – norma legal que se aplica a todas as modalidades venda (e que se mostram previstas no artigo 811.º) – na decisão de venda deve ser indicado o valor base dos bens a vender, o qual, tratando-se de bem imóvel, será o maior dos seguintes: a) o valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há menos de seis anos ou b) o valor de mercado (artigo 812.º, n.º 3).
Do artigo 812.º do CPC não resulta que, no caso de venda por negociação particular, tenha de haver um valor mínimo de venda. O que aquele preceito dispõe é que na decisão de venda – em qualquer das suas modalidades e, portanto, também na venda por negociação particular – deve ser fixado o valor base de venda do imóvel, que, no caso dos bens imóveis, deve corresponder ao maior dos indicados no n.º 3 do artigo 812.º.
O artigo 816.º/2, do CPC – inserido na Divisão II – Venda mediante propostas em carta fechada – preceitua que o valor de venda a anunciar é igual a 85% do valor base dos bens. Norma que tem de ser conjugada com o disposto no artigo 821.º/3, segundo a qual não são aceites as propostas de valor inferior ao previsto no n.º 2 do artigo 816.º, salvo se o exequente, o executado e todos os credores com garantia real sobre os bens a vender acordarem na sua aceitação. De tal conjugação (artigos 816.º/2 e 821.º/3, do CPC) resulta que na venda mediante propostas em carta fechada há efetivamente um valor mínimo de venda. Há, porém, que ter em conta que: (i) aquelas normas legais estão expressamente previstas para a venda mediante propostas em carta fechada; (ii) é o artigo 811.º/2, do CPC que dispõe quais as normas visando a venda mediante propostas em carta fechada que são aplicáveis às demais modalidades de venda; e que (iii) entre as normas ali previstas não se encontra quer a do artigo 816.º/2, quer a do artigo 821.º/3, do CPC. Donde concluímos que se o legislador tivesse querido estender à venda por negociação particular as exigências previstas naqueles dois normativos para a venda mediante propostas em carta fechada tê-lo-ia dito, como o fez no artigo 811.º/2, quanto às normas ali expressamente referidas e cuja aplicação estendeu a outras modalidades de venda[1]. Não o tendo feito, impõe-se que o bem possa ser vendido mediante negociação particular por valor inferior ao valor base anunciado e ainda que não haja acordo nesse sentido por parte de todos os interessados. Neste caso, porém, só mediante autorização judicial se poderá concretizar tal venda. Em sentido idêntico veja-se o Ac. RP de 24-12-2015[2] onde se escreveu: «(…) numa primeira apreciação da letra da lei, somos tentados a crer que na venda por negociação particular (e bem assim na venda efetuada segundo as outras modalidades) os bens penhorados só poderão ser vendidos por preço igual ou superior ao valor base fixado na decisão sobre a venda. Não vemos, porém, que a lei impeça o juiz de, frustrada a venda por propostas em carta fechada, fixar um valor mínimo da venda a levar a efeito por negociação particular abaixo daquele valor base do bem que a lei estipula para a venda por propostas em carta fechada. Dizemos mais: tal venda por valor inferior àquele, para se poder concretizar, deve ter o “aval” ou autorização do juiz. Ou seja, não só não vemos obstáculo a que se fixe esse valor inferior, como cremos que a venda não pode ter lugar por valor inferior aos 85% a que se refere o artigo 816.º/2, CPC sem que o juiz dê expressa autorização para tal. É que só desta forma se logrará garantir a defesa dos interesses de todos os interessados, designadamente dos executados e demais credores»; e o Ac. RC de 26-10-2021[3] no qual se escreveu que «as regras relativas à negociação particular não exigem a fixação de preço mínimo, deve esta ser feita de acordo com as regras que regem a venda particular, devendo-se sempre ajustar o valor do bem à condição do mercado por forma a potenciar a maior receita possível. Por isso, a existir acordo de todos os interessados é possível realizar a venda por preço inferior ao valor base sem intervenção do juiz. Mas, se esse acordo não for obtido, então a venda por negociação particular só pode ser concretizada mediante autorização judicial».
Aqui chegados, diremos que a decisão judicial de autorização de venda por valor inferior àquele que foi fixado como valor base de harmonia com o disposto no artigo 812.º do CPC deve ser norteada pelo intuito de satisfação do interesse do todos os interessados. O que implica ter em conta, designadamente, o período de tempo já decorrido com a realização da venda, a forma como a conjuntura económica evolui, as qualidades do bem e as potencialidades da sua venda, o interesse manifestado pelo mercado, a eventual desvalorização sofrida, valores de mercado na zona, e quaisquer outros elementos que devam ser levados em conta – vd. supra citado Ac. RP de 24-12-2015.
No caso sub judice, há que dizer, como ponto prévio, que o interesse do requerente / apelado – o qual aceita o valor de € 32.000,00, tal como aceitou todos os outros valores apresentados pelos interessados na compra – não deve prevalecer ou ser sobrevalorizado sobre/perante o interesse dos requeridos – que não aceitaram aquele valor – pelo facto de estes últimos serem titulares, cada um, de apenas uma quota-parte de 1/12 (ao passo que o requerente é titular de uma quota-parte de 5/6) porquanto o que aqui está em causa é uma divisão de coisa comum, sendo a posição de todos os interessados idêntica e de igualdade na medida em que após a venda o seu produto é distribuído de acordo com aquelas quotas-partes de que já eram titulares antes da decisão de venda[4].
O valor de € 32.000,00 é inferior quer ao valor de mercado do imóvel apurado no ano de 2021 (valor que não foi impugnado pelos interessados na altura em que tiveram oportunidade para o fazer) como fica também aquém do seu valor patrimonial (€ 41.820,00) apurado em sede de avaliação efetuada pela autoridade tributária em 2019 (cfr. documento anexo à contestação de AA).
Resulta do relatório pericial que o imóvel é uma cave com cinco divisões destinadas a arrecadação e um espaço amplo com sete lugares de estacionamento e uma zona de circulação de pessoas e veículos; as possibilidades de uso do mesmo estão limitadas a estacionamento que pode coexistir com arrecadações; o imóvel tinha, à data, 17 anos contados da data de emissão de licença de utilização e localiza-se em zona servida por boas vias de comunicação.
No relatório pericial faz-se notar que a acessibilidade de veículos a alguns dos lugares marcados no pavimento é efetuada em condições deficientes devido à existência de pilares de betão que dificultam as manobras de circulação e estacionamento, mas este fator depreciativo não é suscetível de agravamento com o decorrer dos anos. Isto para dizer que para além da idade do imóvel – tinha, em 2023, 19 anos – não se conhecem concretas razões para a depreciação do valor do imóvel no arco temporal compreendido entre 2019 e 2023, sendo certo que, em face da tabela do artigo 44.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) o coeficiente de vetustez para edifícios com “idade” entre 16 e 20 anos é o mesmo.
Em contraponto diremos que o processo de venda do imóvel iniciou-se nos idos de 27.04.2022, na modalidade de leilão eletrónica, com uma proposta de € 27.891,71 (que não foi aceite), prosseguindo depois na modalidade de negociação particular, tendo havido apenas duas propostas, a primeira no valor de € 36.439,07, que não foi avante por desistência do proponente, e a segunda, em 28.03.2023, no valor de € 32.000,00; depois de 28.03.2023, nenhuma outra proposta foi apresentada. E está por demonstrar que as potencialidades de venda do imóvel têm subido exponencialmente nos últimos anos, bem como a procura de bens imóveis, também para investimento, pelo menos em ....
Tudo ponderado, pese embora o desfasamento do valor da proposta em causa relativamente ao seu valor de mercado (€ 45.400,00) e também relativamente ao seu valor patrimonial (€ 41.820,00), a escassez de propostas (três, no total) desde o início do processo de venda, a completa ausência de propostas desde 28 de março de 2023 e a circunstância de a proposta mais alta ter sido no valor € 36.439,07, tendo o proponente logo desistido a mesma, leva-nos a considerar improvável que, a breve prazo, surja uma nova proposta que se aproxime do valor base do imóvel.
Julgamos, assim, que a decisão do julgador a quo deve ser mantida, embora com fundamentação não totalmente coincidente.
Improcede, assim, a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

Sumário: (…)


IV. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar a apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida.
As custas na presente instância de recurso são da responsabilidade do apelante, atento o disposto no artigo 527.º/1 e 2, do CPC, embora só seja devido o pagamento de custas de parte uma vez que o apelante procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual.
Notifique.
DN.
Évora, 8 de fevereiro de 2024
Cristina Dá Mesquita
Ana Margarida Pinheiro Leite
Francisco Matos



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[1] Como se refere no Ac. RC de 16-12-2015, processo n.º 2650/08.8TBCLD-B.C1, consultável em www.dgsi.pt, «(…)no artigo 811.º, n.º 2, NCPC, em que se determinam quais as normas que visam a venda mediante propostas em carta fechada, que são aplicáveis às demais modalidades da venda, não se prevê a limitação do valor mínimo da venda, a que se alude no supra citado artigo 816.º, n.º 2, sendo certo que se o legislador pretendesse que assim fosse, bastaria ali incluir tal intenção, o que não fez»
[2] Proc. n.º 1951/12.5TBVNG.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[3] Proc. n.º 176/11.1TBNS-A.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, Ac. RE de 03-10-2010, processo n.º 150-E/1991.E1, consultável em www.dgsi.pt