Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
711/18.4T9EVR.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: NULIDADES
INSUFICIÊNCIA DO INQUÉRITO
INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 07/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADIO PROVIMENTO
Sumário:
I - A omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência pois a apreciação da necessidade dos atos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público.

II – Constitui acto obrigatório do inquérito, correndo este contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática do crime, o interrogatório dessa pessoa como arguido, a menos que não seja possível notificá-la.

III - O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público deve conter a narração, ainda que sintética dos factos suscetíveis de configurar o crime ou crimes imputados ao arguido. Se tal não acontecer, deve ser rejeitado.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No âmbito dos autos com o NUIPC nº711/18.4T9EVR, por decisão de 23 de janeiro de 2019, o Exmº Juiz de Instrução Criminal decidiu “rejeitar o requerimento para abertura da instrução formulado pela assistente MH, por inadmissibilidade legal da instrução.”

Inconformada com o assim decidido, recorreu a assistente MH extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1ª Nos presentes autos o MºPº omitiu a realização de inúmeras diligências absolutamente indispensáveis para a descoberta dos factos,

2ª E determinou o arquivamento dos presentes autos estribando-se no despacho proferido noutro processo (por corrupção, e injusta, infundamentada e caluniosamente instaurado contra a ora recorrente) e sob o absolutamente extraordinário “argumento” de que apenas não se provou que a aqui assistente tivesse cometido aquilo que lhe foi imputado.

3ª Assim, o MºPº designadamente não inquiriu o advogado do rendeiro, Sr. Dr. FL, como não ouviu o então Director Regional Sr. Engº FM, como também não ouviu os responsáveis da Gest-Sado e ora arguidos (MC e JC), nem inquiriu o advogado da Gest-Sado, Sr. Dr. JB (autor do requerimento à Ministra da Agricultura) – é obra!

4ª Os autos continham já indiciariamente a factualidade – reproduzida com suficiência bastante no RAI, ao invés do erroneamente invocado no despacho recorrido – relativa à prática do ilícito criminal oportunamente participado (denúncia caluniosa), que foi em absoluto desprezada e desconsiderada pelo MºPº,

5ª Mas competia a este ter realizado as diligências indispensáveis para determinar a autoria, e circunstâncias relativas a esta, dos mesmos factos, e todavia o mesmo MºPº não as realizou,

6ª Assim impossibilitando também a assistente – que não é autoridade judiciária nem tem poderes legais de investigação – de os poder apurar e elencar no próprio RAI.

7ª A vertente normativa do artº 120º, nº 2, al. d) do CPP e também 283º, nº 3, al. b), 286º, nº 1, 287º, nº 2, 284º, nº 4, 289º, nº 1 e 290º do mesmo CPP, consagrada na decisão recorrida (representando que no inquérito o MºPº faz o que bem entende e que apenas por omissão do interrogatório dos arguidos e da vítima menor do crime contra a liberdade e a auto determinação sexual gerariam a nulidade da insuficiência do inquérito) é absolutamente violadora da construção constitucional da figura e da fase do inquérito e, mais concretamente, doa artº 32º, nº 4 da CRP.

8ª A solução consagrada no despacho recorrido nega a competência de controle jurisdicional do Juiz de instrução e transforma o MºPº num autêntico, insindicável e jurisdicionalmente incontrolável “dominus” da acção penal, o que a Constituição não consagra e não permite.

9ª A apontada e escandalosa ausência de realização de diligências, para além de representar uma violação completa do estatuto funcional e das competências legais do MºPº (artº 53º da LPP), configura a omissão, totalmente injustificada e infundamentada, de diligências absolutamente essenciais para a descoberta da verdade.

10ª É que a autonomia do MºPº só se afirma se a realização dos actos levados a cabo for coerente com a definição da sua necessidade, pautando-se necessariamente por critérios de objectividade e de legalidade na realização de diligências necessárias à investigação, sob pena de essa autonomia não vincular afinal o próprio órgão que dele dispõe, não o sujeitando aos seus próprios critérios de direcção.

11ª Outro entendimento deixaria sem qualquer conteúdo útil a previsão legal da “insuficiência do inquérito”, constante do artº 120º, nº 2, al. d) do CPP – conforme justamente se consagrou nos Ac. Rel. De Lisboa de 2/3/2004 e de 22/11/16, este no Proc. 582/13.7TDLSB, in dgsi.Net.

12ª Assim, e ao invés do que erroneamente pretende o Mº Juiz a quo, ao Juiz de Instrução compete mesmo sindicar jurisdicionalmente a actuação do MºPº no inquérito, designadamente por falta ou insuficiência do mesmo inquérito.

13ª A oportunamente arguida nulidade do inquérito deveria assim ter sido julgada procedente, ao invés do erradamente decidido no despacho impugnado.

14º E tendo sido essa omissão de diligências por parte do MºPº que impossibilitou a assistente de fazer constar do RAI todos os elementos relativos à autoria dos factos criminalmente puníveis – os quais foram, todavia, adequada e suficientemente descritos no mesmo RAI – nunca poderia uma eventual insuficiência dos elementos relativos à referida autoria ser assacada à assistente,

15ª E, logo, não poderia constituir fundamento legal bastante para a decretada rejeição do mesmo RAI.

Termos em que,
Deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, declarando-se a nulidade da insuficiência do inquérito e da decisão de arquivamento nela fundada, determinando-se a remessa ao MºPº para que complete devidamente o mesmo inquérito, pois só assim se fará inteira JUSTIÇA!
*
Por despacho de 22 de março de 2019, o recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

Ao recurso respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do mesmo e formulando as seguintes conclusões:

1. O elenco das nulidades, previsto no Código de Processo Penal, está sujeito ao Princípio da Legalidade.

2. Tais nulidades estão previstas no artigo 119.°, do Código de Processo Penal.

3. A inquirição de testemunhas não é acto legalmente obrigatório de inquérito.

4. A não constituição como arguido de quem não era, em sede de inquérito, suspeito, não correndo contra eles inquérito, não é acto legalmente obrigatório que tira de nulidade o inquérito.

5. O requerimento para abertura da instrução, não estando sujeito a formalidades especiais, deve conter os elementos descritos no n." 2, do artigo 287.°, do Código de Processo Penal.

6. O despacho judicial que rejeitou o requerimento de abertura da instrução está bem fundamentado e conforme às normas processuais penais.

Pelo exposto, deve o presente recurso ser indeferido e, consequentemente, manter-se a decisão proferida, fazendo-se, desta forma, JUSTIÇA.
*
Os arguidos JC e MC também responderam ao recurso interposto, alegando, em síntese:
(…)
17. Embora, do recurso da Recorrente pareça resultar alguma confusão quanto à decisão da qual ali se recorre-- se do despacho do Ministério Público (que encerrou o inquérito) se do despacho do Juiz de Instrução Criminal (que rejeitou o RAI da Assistente) – considerando a tramitação processual que antecede aquele recurso conclui-se que a Recorrente pretenderá insurgir-se neste momento, por via da sua pretensão recursiva, contra o despacho do(a) Mmo(a) Senhor(a) Juiz de Instrução prolatado nestes autos em 23.01.2019 com referência CITIUS/HABILUS 28327806 8 9 10

18. E a Recorrente parece insurgir-se contra essa decisão porquanto, em suma, no seu entender:

a. O inquérito nestes autos é insuficiente uma vez que foi omitida a inquirição de algumas testemunhas que a Assistente reputa agora (depois de encerrado o inquérito) de indispensáveis para descoberta da verdade;

b. A interpretação e aplicação do art. 120.º n.º 2 al. d) do CPP da qual não resulte a obrigatoriedade do Ministério Público realizar acriticamente todas as diligências probatórias que a Assistente pudesse pretender produzir na fase de inquérito (porque contrariamente ao que a Recorrente pretende fazer crer, é na verdade só disso que se trata), viola o art. 32.º n.º 4 do CRP (o que sucederá então, no entender da Assistente, quanto ao despacho recorrido),

c. Concluindo com base nessas premissas, que a decisão recorrida deveria ter julgado procedente a nulidade de inquérito invocada pela Recorrente;

E por último que,
d. Por essas razões, as insuficiências dos elementos relativos à autoria do RAI não podem, nem devem levar à rejeição do RAI da Assistente.

19. Contudo, como teremos oportunidade de demonstrar ao longo da presente resposta, não lhe assiste, porém, qualquer razão quando a nenhum daqueles fundamentos.

20. Primeiramente e antes de mais, se (como até a própria Assistente reconhece) “os autos continham já indiciariamente a factualidade (…) relativa à prática do ilícito criminal oportunamente participado (denúncia caluniosa)” não se alcança como poderiam ter sido omitidas todas e quaisquer diligências de inquérito como invoca a Recorrente (de forma indistinta, parecendo até, umas vezes que nenhumas diligências foram realizadas, e outras vezes, que apenas algumas diligências não foram realizadas).

21. A conclusão, diga-se, é aliás bem contrária: se os autos já continham indiciariamente a factualidade que no entender da Recorrente é relativa e bastante para a verificação (indiciária) do cometimento de um crime (e de quem foi o seu agente), então o que se verifica é que a Assistente simplesmente não concorda com o Ministério Público.

22. E não concorda com o Ministério Público, entenda-se, quando o Titular da Acção Penal, desses mesmos indícios, conclui (correctamente, diga-se) em sentido diferente: ou seja, que os indícios recolhidos não indiciavam factualidade bastante do cometimento daquele crime (nem de quem tenha sido o seu eventual agente).

23. Se assim é, o que se pode constatar é que não foram omitidas quaisquer diligências essenciais, mas sim, que o despacho que encerrou o inquérito tão só não é do agrado da Assistente.

24. No entanto a mera circunstância de o despacho que encerrou o inquérito não agradar à Recorrente (e por isso, contra ele se insurge), não configura qualquer causa de nulidade, muito menos a prevista no art. 120.º n.º 2 al. d) do CPP.

25. Ora, considerando os termos indistintos em que a Assistente, agora recorrente, persiste ao refere-se ao concreto vício que por si é invocado (nulidade prevista no art. 120.º n.º 2 al. d) do CPP) impõe-se novamente repetir (como já se fez em momento anterior destes autos) que a “insuficiência do inquérito” e a “omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade” não são a mesma realidade (ao invés do que, em confusão, parece resultar do recurso a que se responde).

26. A insuficiência de inquérito por não terem sido praticados os actos legalmente obrigatórios só se verifica quando tiver sido omitido a prática de acto que a lei prescreve como obrigatório16 – o que não sucede no caso dos autos;

27. Já a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, como resulta do próprio texto legal (que a Recorrente sempre parece olvidar ao longo do seu recurso) reporta-se precisamente à omissão de diligências (essenciais) ocorridas, não no inquérito (como pretende a Recorrente) mas sim nas fases posteriores do processo (entenda-se, de julgamento).

28. Também contrariamente ao que defende a Recorrente a interpretação e aplicação do art.120.º n.º 2 al. d) do CPP que encontra abrigo no despacho recorrido não configura qualquer violação ao art. 32.º n.º 4 da Lei Fundamental.

29. Contrariamente ao que resulta alegado no recurso da Recorrente, o despacho recorrido em momento algum expressa ou acolhe interpretação e aplicação normativa (seja dos preceitos invocados pela Recorrente, seja de quaisquer outros) na qual esteja implícito que “o MºPº faz o que bem entende” e que transforme “o MºPº num autêntico, insindicável e jurisdicionalmente incontrolável ‘dominus’ da acção penal” ou que permita simplesmente ao Ministério Público andar, como diz a Recorrente e nas palavras daquela, “à solta”.

30. Se atentarmos no teor da decisão recorrida (que a Recorrente s.d.r. parece por vezes em alguns segmentos do seu Recurso olvidar por completo) o que ali se afirma de forma certa e inequívoca é que:

- “Estando o elenco de nulidades no nosso código sujeito ao princípio da legalidade (artigo 118.º do CPP) daqui resulta que para se poder considerar integrados os requisitos da nulidade que a assistente invoca, necessário será que:

i) Haja um acto cuja realização em sede de inquérito ou de instrução a lei impõe (e não apenas permite) que deixe de ser realizado;

ii) Sejam omitidas posteriormente diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade cuja obrigatoriedade resulte igualmente da lei.

Quanto ao ponto i), mostra-se legalmente obrigatório em fase de inquérito, que os arguidos sejam ouvidos em interrogatório nessa qualidade (vide Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência nº 1/2006 de 23-11-2005 in DR, n.º 1 Série I A de 02-01-2006: A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º n.º 2 alínea d) do CPP).

Mostra-se igualmente obrigatório, em fase de inquérito, tomar declarações para memória futura a vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual desde que não seja maior e idade (artigo 271.º n.º 2 do CPP).

Assim, basta a mera leitura dos dispositivos atrás mencionados para se concluir que a lei não impõe que haja lugar na fase de inquérito a inquirição de testemunhas, apenas o permite. E, em especial no que concerne a MC e JC, ora arguidos (face à requerida abertura de instrução) não eram os mesmos suspeitos da prática de quaisquer crimes, não correndo contra eles inquérito, motivo pelo qual não era obrigatória a sua inquirição, já que, frise-se, a lei não prevê como actos legalmente obrigatórios a inquirição de testemunhas, qualidade que MC e JC tinham em sede de inquérito.

Quanto ao ponto ii) saliente-se que – como bem refere a Digna Magistrada do Ministério Público e a arguida – a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade só constitui nulidade se for posterior ao inquérito ou à instrução. Durante estas duas fases processuais, o artigo 120.º n.º 2 al d) do CPP apenas comina com o vício da nulidade a «insuficiência do inquérito ou da instrução».

Assim, uma vez que não estamos perante uma omissão ocorrida numa «fase posterior» também por aqui não se vislumbra qualquer nulidade.

Pelo que, não assiste razão à assistente na nulidade que invoca, pois o fundamento da mesma não cumpre os requisitos previstos no artigo 120.º n.º 2 al. d) do CPP”.

31. Ora (e ainda que a Recorrente nem sequer o refira) nem mesmo se se pudesse equacionar uma eventual omissão na fase de inquérito da diligência de interrogatório dos agora Arguidos (constituídos enquanto tal após notificação do RAI da Assistente e apenas em virtude de ali ter sido requerida a sua inquirição e constituição como arguidos) haveria de caber qualquer razão que impusesse declarar a nulidade do inquérito por insuficiência como pretende a Recorrente.

32. Pois que em momento algum dos autos – para o que aqui importa, na fase de inquérito – resultou indiciado que os agora Arguidos seriam autores ou sequer suspeitos do crime que a Recorrente alega ter sido perpetrado contra si.

33. O que é também consentâneo com a actuação da Assistente ao longo destes autos (e que a Assistente sempre parece esquecer): em momento algum do inquérito a Assistente identificou os agora Arguidos como sendo suspeitos ou autores do crime que alega ter sido cometido.

34. E não o fez, nem na denúncia criminal apresentada17 e que deu origem aos presentes autos (fls. 2-11) nem quando inquirida nestes autos (fls. 50-52).

35. Aliás, atentando nas declarações da Assistente nestes autos (fls. 52) quanto muito poder-se-ia considerar que a Assistente teria por suspeito eventualmente até o “(…) Advogado – Dr. JB (…)” (que nem sequer figura entre as pessoas que, de acordo com o RAI da Assistente, devem ser constituídas Arguidas nesta fase de instrução).

36. Das posições processuais ajuizadas nos autos pela Assistente resulta o contrário do que agora invoca; veja-se que a Assistente alega até no seu RAI que entre as diligências que considera terem sido omitidas pelo MP figura a (omissão) de inquirição dos agora Arguidos na fase de inquérito apenas enquanto testemunhas18 (e não interrogados enquanto arguidos, entenda-se).

37. E como se teve oportunidade de sustentar já no requerimento apresentado a fls. 208/222 (então apenas a Arguida MC, mas em termos igualmente aplicáveis ao também arguido JC) a constituição e interrogatório dos agora Arguidos só teria sido obrigatória(o) na fase de inquérito se os mesmos tivessem sido denunciados ou contra eles tivesse corrido o inquérito ou se no inquérito tivessem sido reunidas fundadas suspeitas de que estes tivessem praticado o crime19 – o que, em nenhum dos casos, aqui sucedeu.

Acresce ainda que,
38. O recurso a que se responde omite que o Ministério Público em sede de inquérito não só realizou todas as diligências probatórias que o próprio Titular da Acção Penal teve por pertinentes e adequadas às finalidades do inquérito,

39. Como também, e ainda, realizou todas as diligências de prova requeridas… pela própria Assistente (nomeadamente as testemunhas que a Assistente, requereu na sua denúncia criminal que fossem ouvidas – vide por exemplo fls. 50-52, 53-54, 73-75, 93-94, 116-117); a mesma Assistente que agora, em sede recursiva vem alegar que o Ministério Público andou “à solta” e a “liquidar ou prejudicar investigações”.

40. Imagine-se, pois, o que diria a Assistente se o Ministério Público nem sequer tivesse realizado as diligências probatórias que aquela Assistente requereu na fase de inquérito (e que, s.d.r., nem sequer eram necessárias, adequadas ou pertinentes para as finalidades do inquérito)!

41. Não estando em lado algum prescrita a obrigação de inquirir testemunhas em inquérito (que para mais, testemunhas que nem sequer foram identificadas naquela fase processual, por qualquer sujeito processual, como prova a produzir, nem a necessidade da sua inquirição resulta da demais prova produzida) não se verifica qualquer nulidade do inquérito por insuficiência, que apenas tem lugar quando não hajam sido praticados os actos legalmente obrigatórios.

42. Como refere GERMANO MARQUES DA SILVA “a omissão de diligências de investigação não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público”.

43. Por outro lado, restaria aqui, nesta parte, ponderar se a eventual omissão das diligências probatórias relacionadas pela Recorrente, insusceptível que é de configurar qualquer insuficiência de inquérito seria sim apta a verificar qualquer vício de invalidade cominado para as fases posteriores do processo, o que, não nos parece (desde logo atenta a afronta qual tal ponderação significaria ao princípio da tipicidade que rege a matéria das invalidades em sede de processo penal).

44. Como esclarece o Conselheiro HENRIQUE GASPAR a nulidade do art. 120.º n.º 2 al. d) do CPP por omissão de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade “refere-se às fases de julgamento e recurso: «posterior» ao inquérito e à instrução”.
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45. De resto, a própria Recorrente também não invoca/alega em que medida se poderia estar perante uma qualquer invalidade radicada numa fase posterior do inquérito (i.e. de julgamento, que como se viu nem sequer o é de instrução) quando todas as diligências que entretanto, após encerrado o inquérito, vislumbrou serem essenciais e identifica como tendo sido omitidas, diz, terem sido omitidas na fase de inquérito (fase, aliás, para a qual pretende que os autos regressem).

46. Mais, e ainda que a Recorrente também não o alegue, mesmo que assim não fosse (no que não se conceda e apenas se equaciona, enquanto mera hipótese e para beneficio de melhor raciocínio) ficou também oportunamente demonstrado que da prova produzida em inquérito não resulta a necessidade de produção de qualquer outra prova e muito menos a realização das diligência pretendidas realizar pela Assistente se afigura(va) apta a infirmar os pressupostos do despacho de arquivamento ou a transmitir qualquer facto ao processo que não resulte já fortemente esclarecido pela demais prova produzida.

47. Como já se referia no requerimento de fls. 208/222:

- “ (…) a recorrente limita-se a invocar que as diligências que gostaria que tivessem sido realizadas deveriam ter sido realizadas porquanto: a) no que à inquirição de FL e de FM os respectivos depoimentos seriam relevantes (sem que diga porquê e/ou porque e em que medida entende que o Ministério Público deveria ter atribuído relevância ao depoimento daquele Advogado-testemunha) b) No que à inquirição dos responsáveis da Gest-Sado constarão dos depoimentos dos mesmos no processo do IGAMAOT os seguintes segmentos ‘situações de interesse na mesma propriedade’, ‘razões económicas e até políticas’, ‘entrava o processo da Herdade Grande’, ‘ter interesse directo no processo’, ‘estava combinada com o rendeiro e o advogado’, ‘o advogado do rendeiro a visitava frequentemente na DRAP Alentejo”, ‘tinha provas disso e que as faria chegar a quem de direito’, ‘tinha casas’ (dos quais, nem numa leitura isolada nem numa leitura truncada, retirada do contexto e miscigenada com outras suposições desprovidas de base probatória, resulta o que a Assistente alega)

c) No que que à inquirição de JB, segundo se percebe o respectivo depoimento seria relevante para demonstrar um comentário que aquele terá feito a uma testemunha já inquirida (JM) e relativamente à qual a Assistente, nada coloca em causa (o que per si demonstra a desnecessidade de prova, uma vez que o que então, ao que se compreende, parece pretender ser provado resulta já de outro meio de prova produzido nestes autos”.

48. E no recurso a que se responde, a Recorrente não alega a esta parte nada que não tivesse já anteriormente alegado, pelo que se mantém inteiramente válido e aplicável tudo quanto naquela peça processual já se referia.

49. Razões estas todas, e ainda por aquelas que constam devidamente explicitadas e fundamentadas no despacho recorrido (dotado aliás de um clarividente e exaustivo percurso racional que a Recorrente pareceu obnubilar no recurso apresentado), pelas quais se imporá concluir pela manutenção do decidido não se verificando qualquer insuficiência e/ou omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade.

Por fim,
50. No que concerne à temática da rejeição do RAI e não obstante das conclusões da Recorrente não resultar alegada qualquer razão que impusesse modificar a decisão recorrida (que muito menos resulta das suas motivações24 onde surge até clarificado que a única e verdadeira razão do recurso é a da alegada nulidade do art. 120.º n.º 2 al. d) do CPP25) sempre se dirá que,

51. De acordo com o disposto no artigo 287.º, n.º 1, al. b), do CPP, “a abertura de instrução pode ser requerida pelo assistente (...) relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação”.

52. Sendo ainda que de acordo o n.º 2 daquele artigo “aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º”, uma vez que, com bem se sabe, o requerimento de abertura de instrução apresentado por Assistente na sequência de um arquivamento por parte do Ministério Público assume formalmente a natureza de uma acusação, fixando o objeto da (eventual futura) instrução.

53. Ora, nos termos das alíneas do n.º 3 do artigo 283.º do CPP ora mencionadas:

- “A acusação contém, sob pena de nulidade: (…)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis”.

54. Ou seja, de forma porventura mais simples: nos termos da nossa lei processual penal, o requerimento de abertura de instrução de Assistente deve ser liminarmente rejeitado, caso (i) não narre, sinteticamente, mas com rigor e a precisão adequados os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma sanção penal ou (ii) não indique as disposições legais aplicáveis.

55. Sucede que nada disto foi feito (ou mesmo sequer tentado) pela Recorrente a ponto de se poder dizer que, do seu requerimento, nunca se poderá extrair uma autêntica acusação, capaz de responsabilizar, convenientemente, os Arguidos.

56. De facto, após uma leitura atenta do mesmo, não resta outra hipótese que não seja a de concluir pela falta de indicação/identificação, se não dos próprios autores dos “factos” que eventualmente se localizem no RAI, pelo menos de factos, alegados com clareza e precisão, que possam preencher os elementos objetivos e subjectivos dos ilícito penal em causa.

57. Em face do RAI da Recorrente deve perguntar-se o seguinte: Uma vez proferido um despacho de acusação nos precisos termos em que o requerimento foi redigido, em que medida o mesmo seria visto como suficiente e completo para permitir o cabal exercício dos direitos de defesa pelos Arguidos?

58. A resposta, como resulta evidente em face do RAI apresentado nestes autos não pode deixar de ser negativa, contrariamente ao que tem exigido a nossa, mais avisada, jurisprudência.

59. Motivo pelo qual não poderá o RAI apresentado ser equiparado a uma acusação para efeitos da delimitação do objeto do processo sob pena de se verem violadas todas as garantias de defesa dos Arguidos tal como previstas pelo nosso legislador penal.

60. Ora, no que toca à concreta consequência jurídica do não respeito pela estrutura acusatória (em que se inclui a precisa e rigorosa identificação dos autores dos factos e dos factos por esses cometidos) por qualquer Assistente que requeira a abertura de instrução, a jurisprudência e doutrina portuguesas têm apontado no sentido da inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287.º, n.º 3, CPP), com apelo à ideia de falta de objeto da instrução.

61. E a inadmissibilidade legal da instrução, como se sabe, é uma das causas de rejeição do requerimento (art. 287º nº 3 do CPP)

62. Ora, tendo em conta tudo quanto foi exposto, e que, face ao (correcto e devidamente fundamentado) teor do despacho recorrido até se poderia ter por desnecessário, mostra-se forçoso concluir que bem andou aquela decisão [recorrida] ao decretar a rejeição do RAI apresentado pela Assistente, ora Recorrente, por manifesta inadmissibilidade legal.

63. Mais, e não bastasse, a rejeição do RAI da Assistente por manifesta inadmissibilidade legal da instrução é ainda sustentável por outra via.

64. De facto, dispõe o artigo 278.º n.º 1 do CPP que “no prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, (...) a requerimento do assistente (...), determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento”.

65. É este o segundo caminho que um Assistente, inconformado, dispõe em face de uma decisão de arquivamento. A escolha entre um ou outro trilho far-se-á tendo em conta a sua pretensão última.

66. Como refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, “o CPP prevê a intervenção hierárquica para o caso de omissão ou insuficiência de prova no inquérito e a instrução para o caso de erro na valoração da prova já existente no inquérito Precisamente neste sentido”.

67. Sendo proferido despacho de Arquivamento pelo Ministério Público e sendo detetada pelo Assistente a falta ou insuficiência de investigação realizada em sede de inquérito, a solução não será apresentar um requerimento de abertura de instrução, mas sim recorrer à faculdade legal conferida pelo artigo 278.º CPP, requerendo que as investigações prossigam e indicando as diligências a efetuar, bem com o prazo para o seu cumprimento.

68. O Assistente deve lançar mão deste expediente naqueles casos em que crê que os elementos de prova no inquérito sejam insuficientes, porque existem meios de prova não produzidos ou realizados pelo titular da ação penal que, a realizarem-se, conduziriam, com toda a probabilidade, a uma decisão diversa daquele órgão.

69. Como bem ensina a nossa jurisprudência, “[a] instrução não é um segundo inquérito, pelo que não visa averiguar se alguém cometeu factos qualificados como crime. Antes se destina a comprovar a bondade da decisão anteriormente tomada pelo Ministério Público, cabendo-lhe [ao Juiz de Instrução] apurar se a decisão de acusar ou de não acusar correspondeu aos indícios existentes nos autos”.

70. No caso dos presentes autos, a via escolhida – a abertura da fase de instrução – não foi a indicada para o efeito pretendido pela Assistente (e que se retira da formulação do RAI que apresentou nos autos)

71. Seja porque, como vimos, a fase de instrução não tem esse escopo, seja porque o Juiz de Instrução não tem as mesmas competências policiais e de averiguação autónoma e ampla concedidas ao Ministério Público,

72. Seja, ainda – adiante-se –, porque o Juiz de Instrução não tem a faculdade de, mesmo querendo, devolver o processo ao Ministério Público para que este prossiga a investigação, sob pena de se violar a estrutura acusatória do processo, garantida constitucionalmente.

73. Assim, também pelo que imediatamente atrás, e em último lugar, ficou aqui referido, também o RAI da Assistente deveria ter sido rejeitado nos termos do art. 287.º n.º 3 do CPP por inadmissibilidade legal da instrução.

74. Entendendo-se, por tudo isto, que deverá o recurso apresentado ser rejeitado por ausente e desprovido de qualquer fundamento legal e não provado.

75. Mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida, plena de acerto.

Nestes termos, e nos mais de Direito que V.Exas., Venerandos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, mui doutamente suprirão, se requer seja a resposta dos arguidos JC e MC ao recurso da Assistente MH admitida, e consequentemente, seja o recurso interposto pela Recorrente/Assistente julgado totalmente improcedente, por não provado e desprovido de qualquer fundamento legal, mantendo-se inalterado o despacho recorrido.

Assim, se fazendo a devida Justiça.
*
No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer Parecer nos seguintes termos:

“Concordo com o entendimento geral constante da Resposta do Ministério Público da primeira instância, apresentada em 22/4/2019 com a referência 2307076, que aqui se dá por reproduzida, ao recurso apresentado pela assistente MH do despacho que indeferiu a abertura de instrução requerida.

Sou do entendimento de que o despacho recorrido deve ser mantido.”
*
Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não houve resposta ao Parecer.

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.
Cumpre decidir.

Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice as questões suscitadas pela recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduzem-se em saber se:

- há a nulidade de insuficiência de inquérito;

- o despacho recorrido violou o disposto nos arts.287º, nºs 2 e 3 e 283º, nº3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal.

No Processo acima identificado foi proferido, em 23 de janeiro de 2019, o seguinte despacho, que se transcreve:
(…)
I. Nulidade do inquérito
A fls. 147 a 158 a assistente veio arguir a nulidade do inquérito nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Penal (doravante apenas designado por CPP).

Dispõe o artigo supra mencionado que «Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade».

Para fundamentar a nulidade do inquérito, a assistente refere que o Ministério Público não inquiriu:

∙ O advogado do rendeiro, FL;
∙ A testemunha FM, então Director Regional da Agricultura e Pescas do Alentejo;
∙ Os responsáveis da Gest-Sado, MC e JC;
∙ JB (nem considerou o seu requerimento datado de 10.03.2015).

A Digna Magistrada do Ministério Público pugna pela improcedência da invocada nulidade, referindo, em síntese, que «actos legalmente obrigatórios, são, no inquérito, por exemplo, a constituição de arguido (artigos 58.º e 59.º), o interrogatório do arguido, sendo possível notificá-lo (artigo 272.º, n.º 1), as declarações do ofendido para memória futura, nos casos de crime contra a autodeterminação sexual (artigo 271.º, n.º 2)» (o que entende não ser o caso) e «omissão posterior de diligências que sejam essenciais, refere-se às fases de julgamento e de recurso, como evidencia o termo “posterior”, ou seja, ao inquérito e à instrução» (o que entende não ser o caso) [fls. 176].

Também a arguida MC pugna pela improcedência da invocada nulidade do inquérito, em síntese referindo que não foi omitido acto que a lei prescreve como obrigatório (em lado algum se encontra prescrita a obrigação de inquirir testemunhas) e não foram omitidas posteriormente diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, uma vez que a lei refere-se às fases de julgamento e de recurso (fls. 208 a 222).

Vejamos.
Estando o elenco de nulidades no nosso código sujeito ao princípio da legalidade (artigo 118.º do CPP), daqui resulta que para se poder considerar integrados os requisitos da nulidade que a assistente invoca, necessário será que:

i) Haja um acto cuja realização em sede de inquérito ou de instrução a lei impõe (e não apenas permite) que deixe de ser realizado;

ii) Sejam omitidas posteriormente diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade cuja obrigatoriedade resulte igualmente da lei.

Quanto ao ponto i), mostra-se legalmente obrigatório, em fase de inquérito, que os arguidos sejam ouvidos em interrogatório nessa qualidade (vide ac. STJ de Fixação de Jurisprudência nº1/2006, de 23-11-2005, in DR, nº1, Série I A de 2-01-2006: A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP).

Mostra-se igualmente obrigatório, em fase de inquérito, tomar declarações para memória futura a vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, desde que não seja maior de idade (artigo 271.º, n.º 2 do CPP).

Assim, basta a mera leitura dos dispositivos atrás mencionados para se concluir que a lei não impõe que haja lugar, na fase de inquérito, a inquirição de testemunhas, apenas o permite. E, em especial no que concerne a MC e JC, ora arguidos (face à requerida abertura de instrução), não eram os mesmos suspeitos da prática de quaisquer crimes, não correndo contra eles inquérito, motivo pelo qual não era obrigatória a sua inquirição, já que, frise-se, a lei não prevê como actos legalmente obrigatórios a inquirição de testemunhas, qualidade que MC e JC tinham em sede de inquérito.

Quanto ao ponto ii), saliente-se que – como bem refere a Digna Magistrada do Ministério Público e a arguida - a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade só constitui nulidade se for posterior ao inquérito ou à instrução. Durante estas duas fases processuais, o artigo 120.º, n.º 2 al. d) do CPP apenas comina com o vício da nulidade a «insuficiência do inquérito ou da instrução».

Assim, uma vez que não estamos perante uma omissão ocorrida numa «fase posterior», também por aqui não se vislumbra qualquer nulidade.

Pelo que, não assiste razão à assistente na nulidade que invoca, pois o fundamento da mesma não cumpre os requisitos previstos no artigo 120.º, n.º 2, al. d) do CPP.

Motivo pelo qual, indefiro a arguição de nulidade.
*
II. Requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente – fls. 147 a 158

A assistente, inconformada com o despacho de arquivamento proferido nos presentes autos pelo Ministério Público, veio requerer a abertura da instrução, resultando do seu requerimento de abertura de instrução que pretende a pronúncia MC e de JC pela prática de um crime de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal.

Refira-se, em primeiro lugar, que só na última página do requerimento de abertura de instrução se compreende que a assistente pretende a pronúncia daqueles arguidos – constituídos nesta fase de instrução - (e porque refere «suspeitos a inquirir, com a respectiva constituição de arguidos MC e JC), já que em mais lado algum se refere a estes arguidos.

Em segundo lugar, refira-se, igualmente, que da leitura do requerimento resulta desde logo que este carece de requisitos essenciais para que a final seja proferido despacho de pronúncia.

Vejamos porquê:
De acordo com o disposto no nº 1 do art. 286º do Cód. de Proc. Penal (doravante apenas designado por CPP) «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».

Por seu turno, o nº 2 do art. 287º do mesmo diploma legal estabelece que «o requerimento (para abertura da instrução) não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º (…)».

Tal remissão para a norma que estabelece os requisitos da acusação pelo Ministério Público significa que o requerimento para abertura de instrução, quando formulado pelo assistente, deve constituir uma verdadeira acusação, i. e., deve conter «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» (alínea b) do nº 3 do art. 283º), bem como «a indicação das disposições legais aplicáveis» (alínea c) do nº 3 do art. 283º).

Como se refere no Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 24 de Setembro de 2003, «na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há (…) uma similitude processual de função, e por isso, uma assimilação funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura de instrução no caso de não ter sido deduzida acusação.

Deste modo, o requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório» (in www.dgsi.pt – Proc. 03P2299)

Com efeito, conforme se alude no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de Junho de 2016, proferido no Proc. º 970/13.9PBEVR.E1 (acórdão não publicado), «o requerimento (para abertura da instrução), sendo livre de fórmulas, não o é de conteúdo material vinculante», pelo que «tal requerimento deve ser mais do que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento (para a qual existe a reclamação hierárquica), consubstanciando uma verdadeira acusação em sentido material, que é dada a conhecer ao arguido». E bem se compreende que assim seja. Na realidade, há que não olvidar que o nosso sistema processual penal tem uma estrutura acusatória (veja-se o art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa), o que implica que a acusação tem além do mais a função de delimitar com exactidão o objecto do processo (princípio da vinculação temática), sob pena de violação das garantias de defesa do arguido.

De igual sorte o requerimento para abertura da instrução do assistente fixa o objecto da instrução e vincula factualmente o juiz quanto à decisão a proferir no final da instrução.

Com efeito, não obstante o juiz investigue autonomamente o caso submetido a instrução, fá-lo «tendo em conta a indicação constante do requerimento para abertura da instrução» (cfr. art. 287º, nº 4, do Cód. de Proc. Penal), sendo certo nos termos do nº 1 do art. 309º do Cód. de Proc. Penal será nula a decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução (sem prejuízo, naturalmente dos casos de alteração não substancial dos factos, que se encontram regulados no art. 303º, nº 1, do Cód. de Proc. Penal).

Aliás, também o Tribunal Constitucional já foi por diversas vezes chamado a pronunciar-se sobre estas questões, tendo fundamentado o seu Acórdão nº 358/2004 nos seguintes termos: «a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

De resto, a exigência feita (…) ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa».

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito» (Acórdão publicado no DR, II Série, nº 150, de 28 de Junho de 2004).

Regressando ao caso dos autos, verifica-se que o requerimento para abertura da instrução não cumpre minimamente os requisitos supra referidos.

No “facto” 3.º alude a «factos anónima e caluniosamente imputados à ora requerente».

No “facto” 6.º alude a «completa falsidade das caluniosas imputações dirigidas à requerente e, nomeadamente, a verdadeira provocação que é a insinuação de um pretenso acordo entre ela e o Advogado do rendeiro».

No “facto” 16.º alude a «situações de interesse na mesma propriedade por parte da requerente, que pretenderia retirar tal propriedade do património do Estado para a sua própria titularidade pessoal».

No “facto” 17.º alude a «razões económicas e até políticas» que foram alegadas.

Nos factos 18.º a 21.º a assistente dá conta (de forma muito confusa, diga-se) de uma conversa que teve com a arguida MC.

No facto 22.º a assistente refere que JB dirigiu requerimento à Ministra da Agricultura, sobre transmissão de arrendamento.

No “facto” 26.º menciona que sempre tratou o processo da Herdade Grande de forma isenta e rigorosa.

No “facto” 27.º menciona que a sua opinião e posição eram desvantajosas para o rendeiro.

Nos factos 28.º e 29.º da conta da existência uma acção administrativa especial de condenação da Administração à prática de acto devido (venda da Herdade Grande).

No facto 30.º refere que «todos os factos atrás descritos mostram que os respectivos autores, com plena consciência da falsidade dessa imputação, não apenas lançaram a suspeita como apresentaram mesmo a denúncia da suposta prática de crime (v.g. os de corrupção passiva ou recebimento indevido de vantagem e de abuso de poder) pela ora requerente, com o claro propósito – aliás alcançado – de que contra ela fossem instaurados procedimentos» - sem que se perceba i) quais são os factos atrás descritos (uma vez que tudo o que vem atrás descrito são conclusões confusas);

ii) quem são os autores;
iii) quais são as imputações;
iv) porque razão tais imputações – que frise-se, não se encontram narradas factualmente – são falsas; v) quando foi lançada a suspeita de falsa imputação;
vi) quando foi apresentada a denúncia da suposta prática do crime;
vii) que procedimentos foram instaurados.

Inexistem factos (narrados) que preencham as conclusões da assistente.

Continua a assistente no “facto” 31.º, referindo que os factos consubstanciam a prática claríssima de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido no artigo 365.º do Código Penal (sem que se perceba quais os factos susceptíveis de integrar a prática desse crime).

No facto 36.º menciona que «por meio de denúncias alegadamente anónimas, designadamente uma remetida à Ministra da Agricultura e do Mar e ao Secretário de Estado da Agricultura em Março de 2015 e outra supostamente remetida depois à Gest-Sado e reenviada por esta, em 03.08.2015, para a Ministra da Agricultura e do Mar, foram imputados à ora requerente uma série de pretensos factos relacionados com a “Herdade Grande” sita na Freguesia das Ermidas do Sado, concelho de Santiago do Cacém (que nos anos 80 fora objecto de um processo de expropriação ao abrigo do Regime Jurídico da Reforma Agrária».

Note-se, quanto a este “facto” 36.º, que a assistente não elenca quem denunciou e o que denunciou (alude apenas a “pretensos factos relacionados com a Herdade Grande), chegando mesmo a utilizar a palavra supostamente (!).

Quais factos foram denunciados? E por quem? O tribunal desconhece em absoluto.

No “facto” 37.º refere que [foi imputado à assistente] um «pretenso acordo entre a ora requerente, enquanto funcionária e Assessora jurídica da DRAPAL e o rendeiro da referida propriedade (JS) e/ou o seu Advogado, Dr. FL, para, sob a invocação de que o rendeiro não teria dinheiro para adquirir o prédio, “comporem o processo” ou para “passarem a propriedade para o filho” do mesmo rendeiro ou até para a própria assistente». Sendo esta alegação confusa, não se percebendo qual terá sido exactamente o “pretenso acordo”(que refere não ter existido) e a que prédio se reporta a assistente.

No “facto” 38.º a assistente alega que “alguém” terá afirmado que «haveria situações de interesse na mesma propriedade por parte da ora requerente, que pretendia retirar do património do Estado para o seu património pessoal a dita propriedade”.

Saliente-se que continuam a inexistir factos sobre i) quem afirmou; ii) qual a propriedade; iii) como/quando pretendia a assistente “retirar” o quê do património do Estado.

No facto 40.º a assistente refere que as imputações lhe atribuíram a indigna e ilícita conduta de actuar, não em estrito respeito pela legalidade e em defesa do interesse público, mas sim a de, a troco de uma qualquer vantagem patrimonial ou da sua promessa, praticar actos ou omissões contrárias aos deveres do cargo (como a de se reunir frequentemente com o citado Advogado nas próprias instalações da DRAPAL e de estar até a preparar a passagem do arrendamento para o filho». Continuando a assistente sem mencionar i) quais foram as imputações; ii) quais as vantagens ou promessas de vantagens patrimoniais alegadas; não se percebendo sequer as alegações contrárias aos deveres do cargo (já para não dizer que não disse qual o cargo).

No facto 45.º a assistente refere que «os factos atrás descritos mostram que os respectivos autores, com plena consciência da falsidade dessa imputação, não apenas lançaram a suspeita como apresentaram mesmo a denúncia da suposta prática de crime (v.g. os de corrupção passiva ou recebimento indevido de vantagem e de abuso de poder) pela ora requerente, com o claro propósito – aliás alcançado – de que contra ela fosse(m) instaurado(s) procedimento(s)». Sendo esta alegação conclusiva, não consubstanciada em factos concretos.

E, por fim, no facto 48.º, a assistente refere que «os autores dos actos ilícitos bem sabiam que as suas condutas eram proibidas por lei e, não obstante, quiseram-nas e adoptaram-nas». Mais uma vez desconhecemos quem são os autores e quais são os actos ilícitos.

Veja-se que no “facto” 32.º, a própria assistente admite que «não formula um requerimento de abertura de instrução que contenha todos os elementos da al. b) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP, e desde logo todos os elementos relativos à concreta identificação do(s) arguido(s), os concretos factos que cada um praticou e o grau da sua participação e respectiva motivação».

Efectivamente, nesta parte transcrita, assiste razão à assistente.

A assistente não narra factos, limita-se a fazer alusões genéricas, que claramente são insuficientes para que se impute ao arguido (e qual arguido?) a prática do crime de denúncia caluniosa, não só atendendo à ausência do elemento objectivo do crime, como à ausência de elemento subjectivo.

Aliás, em especial quanto ao elemento subjectivo, cumpre não olvidar que através do seu Acórdão nº 1/2015, de 20 de Novembro de 2014, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de que «a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal» (Acórdão publicado no DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015), sendo que tem vindo a ser entendido que tal jurisprudência «deve ser aplicada, por identidade de razão, aos requerimentos para abertura da instrução apresentados por assistentes» (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17 de Março de 2015, in www.dgsi.pt – Proc. 1161/12.1GBLLE.E1).

Conforme supra referido, não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos – objectivos e subjectivos - a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual, que in casu, não existe.

Em suma, o requerimento para abertura da instrução formulado pela assistente MH deve ser rejeitado liminarmente, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no art. 287º, nº 3, do Cód. De Proc. Penal.

Pelo exposto, rejeito o requerimento para abertura da instrução formulado pela assistente MH, por inadmissibilidade legal da instrução.”
*
Apreciando

Invoca o recorrente nulidade do inquérito cominada pelo art.120º, nº2, al.d) do CPP

Dispõe o art.118º do C,P.P. que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei (nº1); nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular (nº2).

Os vícios dos actos processuais, podem assumir três graus:
1) vício mínimo: mera irregularidade;
2) vício intermédio: nulidade, que pode ser absoluta ou insanável e relativa ou sanável;
3) vício máximo: inexistência jurídica.

A arguição das nulidades sanáveis tem de ser feita de acordo com o disposto no nº3 do art.120º do CPP, variando o prazo em que tal deve suceder em função do acto originário da nulidade processual.

Se não for cumprido o prazo legalmente estipulado, a nulidade considera-se sanada.

A declaração da nulidade insanável pode ter lugar em qualquer fase do processo, mas apenas enquanto a decisão final não transita em julgado. Efectivamente, a nulidade absoluta não pode ser declarada após a formação do caso julgado da decisão final que, neste aspecto, actua como meio de sanação (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, Rei Dos Livros, 3ª Edição, 2008, pág.731, Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol.II, Editorial Verbo, 2008, pág.93, e Acórdão do Tribunal Constitucional nº146/2001, de 28/03/2001).

Nos termos do disposto no art.122º, nº1, do CPP as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.

E preceitua o art.123º, nº1 do CPP que qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.

O art.118º do C.P.P. estabelece, assim, que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei (nº1); quando assim não suceder, o acto ilegal é irregular (nº2).

A norma enuncia o princípio da tipicidade ou da legalidade, pelo qual só algumas das violações das normas processuais é que têm como consequência a nulidade do respectivo acto, sendo razões de economia processual e boa-fé processual as que baseiam tal diferenciação.

Dentro das nulidades, o C.P.P. distingue as nulidades insanáveis, a que se refere o art.119º, e as nulidades dependentes de arguição, a que se referem os arts.120º e 121º, regulando o art.122º os efeitos de declaração de nulidade.

O art. 123º estabelece o regime das irregularidades.
As nulidades insanáveis são as que constam do art.119º do C.P.P. e ainda as que forem, como tal, identificadas em outras disposições desse Código.

Nos termos do disposto no art.120º, nº1, do C.P.P., qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.

E, nos termos do disposto no art.120º, nº2, al. d), do C.P.P., constitui nulidade dependente de arguição (…) a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para descoberta da verdade.

Vejamos:
O dispositivo legal ora em causa, art.120, nº2, al. d) do C.P.P. comporta dois segmentos, referindo-se o primeiro a «insuficiência do inquérito ou da instrução»; e o segundo a «omissão posterior de diligências que pudessem reportar-se essenciais para a descoberta da verdade».

A omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade só pode constituir nulidade se for posterior ao inquérito ou à instrução, porquanto nestas duas fases processuais esta norma apenas comina com o vício da nulidade a «insuficiência do inquérito ou da instrução».

E a insuficiência do inquérito ou da instrução “é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um ato que a lei prescreve. Assim, só se verifica esta nulidade quando se omita um ato que a lei prescreve como obrigatório e desde que, para essa omissão, a lei não disponha de forma diversa” – cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, ed. 1999, pág. 80.

Ou seja, só a ausência absoluta de inquérito ou a omissão de diligências impostas por lei determinam, pois, nulidade do inquérito.

Assim, a omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência pois a apreciação da necessidade dos atos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público.

Com efeito, o Ministério Público é livre, salvaguardados os atos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei – cfr,Acórdão do Tribunal Constitucional 395/04 de 2.6.2004, DR 11 série de 9.10. 04, p. 14975” .

E o critério relativo à produção de prova terá que ser sempre o da necessidade do ato para alcançar as finalidades do inquérito ou da instrução. Logo, o titular dos mesmos, terá que decidir quais os atos a praticar em função do objeto do processo e do fim que se pretende alcançar e ordenar, apenas a realização das diligências que contribuam segundo o seu entendimento, sustentado em critérios de legalidade, necessidade e de proporcionalidade, para o apuramento dos factos e descoberta da verdade.

Está vedada ao aplicador a prática de atos inúteis e desnecessários, apenas devendo ser realizados os que se mostrem indispensáveis.

Ora, a inquirição de testemunhas não é ato legalmente obrigatório de inquérito, assim como a não constituição como arguido e o interrogatório de quem não era, em sede de inquérito, suspeito, não correndo contra ele inquérito, não é ato legalmente obrigatório de inquérito, não sendo, pois, as diligências requeridas pela assistente diligências que se possam considerar como obrigatórias, pelo que não se verifica a invocada nulidade.

E, no caso dos autos, constata-se que nenhum ato obrigatório foi omitido em sede de inquérito, que tivesse que ser obrigatoriamente executado.

Com efeito, como referido, bem, no despacho recorrido: “ (….) resulta que para se poder considerar integrados os requisitos da nulidade que a assistente invoca, necessário será que:

i) Haja um acto cuja realização em sede de inquérito ou de instrução a lei impõe (e não apenas permite) que deixe de ser realizado;

ii) Sejam omitidas posteriormente diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade cuja obrigatoriedade resulte igualmente da lei.

Quanto ao ponto i), mostra-se legalmente obrigatório, em fase de inquérito, que os arguidos sejam ouvidos em interrogatório nessa qualidade (vide ac. STJ de Fixação de Jurisprudência nº1/2006, de 23-11-2005, in DR, nº1, Série I A de 2-01-2006: A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP).

Mostra-se igualmente obrigatório, em fase de inquérito, tomar declarações para memória futura a vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, desde que não seja maior de idade (artigo 271.º, n.º 2 do CPP).

Assim, basta a mera leitura dos dispositivos atrás mencionados para se concluir que a lei não impõe que haja lugar, na fase de inquérito, a inquirição de testemunhas, apenas o permite. E, em especial no que concerne a MC e JC, ora arguidos (face à requerida abertura de instrução), não eram os mesmos suspeitos da prática de quaisquer crimes, não correndo contra eles inquérito, motivo pelo qual não era obrigatória a sua inquirição, já que, frise-se, a lei não prevê como actos legalmente obrigatórios a inquirição de testemunhas, qualidade que MC e JC tinham em sede de inquérito.

Quanto ao ponto ii), saliente-se que – como bem refere a Digna Magistrada do Ministério Público e a arguida - a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade só constitui nulidade se for posterior ao inquérito ou à instrução. Durante estas duas fases processuais, o artigo 120.º, n.º 2 al. d) do CPP apenas comina com o vício da nulidade a «insuficiência do inquérito ou da instrução».

Assim, uma vez que não estamos perante uma omissão ocorrida numa «fase posterior», também por aqui não se vislumbra qualquer nulidade.”

Termos em que não se verifica a invocada nulidade, improcedendo o recurso neste particular.
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A instrução visa, nos termos do artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Configura-se assim como fase processual sempre facultativa destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida.

A instrução configura-se no Código de Processo Penal como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respectivo enquadramento jurídico-penal.

Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe o artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.

Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como supra referido, na suficiência de indícios.

E, nos termos do n.º 2 do artigo 283.º do Código de Processo Penal “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Assim, para que seja proferida uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final.

Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento, que, porém, só deverá ocorrer quando existam indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.

Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Ora, no caso sub judice a assistente veio requerer a abertura de instrução por se mostrar inconformada com o despacho de arquivamento.

E, nesse requerimento para abertura de instrução apresentado, a assistente expõe a sua discordância relativamente a tal arquivamento, em vez de, como se impunha, narrar e datar factos, imputa-los a um agente determinado e subsumi-los jurídico penalmente, sendo que, como referido, bem, no despacho sob recurso,” veio requerer a abertura da instrução, resultando do seu requerimento de abertura de instrução que pretende a pronúncia Costa de Sousa e de José Felisberto da Cruz Costa pela prática de um crime de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal.

Refira-se, em primeiro lugar, que só na última página do requerimento de abertura de instrução se compreende que a assistente pretende a pronúncia daqueles arguidos – constituídos nesta fase de instrução - (e porque refere «suspeitos a inquirir, com a respectiva constituição de arguidos MC e JC), já que em mais lado algum se refere a estes arguidos.
(….)
A assistente não narra factos, limita-se a fazer alusões genéricas, que claramente são insuficientes para que se impute ao arguido (e qual arguido?) a prática do crime de denúncia caluniosa, não só atendendo à ausência do elemento objectivo do crime, como à ausência de elemento subjectivo.”

Com efeito, analisando tal requerimento, verifica-se que o mesmo não contém uma descrição fáctica que traduza e consubstancie o objeto da instrução, nem o tempo, lugar e motivação da prática de factos, nem o grau de participação que o agente neles teve.

Verifica-se, pois, que com tal requerimento não foi dado cumprimento ao disposto no art..283º, nº3, als.b) e c), do CPP, ex vi do nº2 do art.287º do mesmo Código.

E, como referido no Acórdão da Relação de Lisboa de 21/10/99 /Rec, nºº4533/99-9ª Secção) “(…) a falta de descrição de factos, caso a instrução fosse recebida, equivaleria à transferência para o juiz do exercício da acção penal, o que violaria os princípios legais e constitucionais vigentes, (…) sendo certo que o requerimento para a abertura de instrução no caso de arquivamento do processo pelo MP, é que define e limita o objecto do processo a partir da sua formulação, sendo a intervenção do juiz de instrução balizada pelos factos constantes desse mesmo requerimento”.

Requerida, pois, a instrução pelo assistente relativamente a factos que o Ministério Público se tenha abstido de acusar, o respetivo requerimento tem que enumerar os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, factos esses indispensáveis para possibilitar a realização da instrução, particularmente no que concerne ao princípio do contraditório e à elaboração da decisão instrutória.

O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público deve, pois, conter a narração, ainda que sintética dos factos suscetíveis de configurar o crime ou crimes imputados ao arguido.

E, inexistindo tal narração, inexiste um verdadeiro requerimento de abertura de instrução, sendo que não há base legal que permita ao juiz o convite ao aperfeiçoamento – cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº7/05, de 4.11, que decidiu no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.287º, nº2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Assim sendo, a narração deficiente e incompleta dos factos, impossibilitando a imputação de um tipo legal de crime a uma conduta de um (ou vários) agentes, e a não identificação dos presumíveis arguidos, levaria a que toda a instrução fosse manifestamente inútil.

E, porque só pode haver instrução se for devidamente requerida, faltando ao requerimento apresentado pela assistente os requisitos exigidos pelo art.283º, nº3, als. b) e c), do CPP, ex vi do nº2 do art.287º do mesmo Código, tem a abertura de instrução que ser rejeitada, por inadmissibilidade legal, nos termos da parte final do nº3 do citado art.287º.

Termos em que o recurso improcede também neste particular.

Decisão

Face a tudo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Negar provimento ao recurso interposto pela assistente MH, mantendo a decisão recorrida.

- Condenar a recorrente em custas, fixando-se em 3 Uc a taxa de justiça .

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 2 de julho de 2019

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Laura Goulart Maurício

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Maria Filomena Soares