Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5/21.8MBFAR.E1
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ALTERAÇÃO
PRODUÇÃO DE PROVA
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.os 1 e 3 do CPP».

Tal jurisprudência fundamenta-se na adequada e necessária interpretação sistemática desse preceito legal, na medida em que resulta da conjugação do seu nº 1 e 3 que a alteração da qualificação jurídica apenas poderá ocorrer após a discussão da causa, tal como acontece com a alteração não substancial dos factos.

Aliás, tal interpretação sistemática é corroborada pelo nº 4 do art.º 339º do Código de Processo Penal, em que reserva para a audiência de discussão e julgamento a discussão de todas as soluções jurídicas relevantes, independentemente da qualificação jurídica dos factos narrados na acusação ou na pronúncia.

Por seu turno, essa interpretação sistemática é reforçada pelo nº 1 do art.º 338º do Código de Processo Penal, na medida em que limita a competência do Juiz em sede de atos introdutórios ao conhecimento de questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa, acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
*

I – RELATÓRIO

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No processo n.º 5/21.8MBFAR o Ministério Público deduziu acusação, em processo comum e perante tribunal singular, contra AA, imputando-lhe os factos enumerados naquela peça processual a fls. 304 a 307 dos autos e, por via deles, o cometimento, em autoria material e na forma consumada, dos seguintes crimes:

- Um crime homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º, n.º 1, e (quanto à sanção acessória de proibição de condução de veículos com motor) pelo artigo 69.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal;

- Um crime de ofensas à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º nº 1 na sanção acessória de proibição de condução de veículos com motor, previsto no artigo 69.º n.º 1 alínea b) ambos do Código Penal.

2. Não tendo sido requerida a abertura de instrução, os autos foram remetidos para julgamento e distribuídos ao Juízo Local Criminal de … – Juiz … tendo a Senhora Juíza de Direito ali em funções recebido a acusação, mediante despacho datado de 4 de outubro de 2022, com o seguinte teor:

“Autue como processo comum singular.

*

O tribunal é competente.

O Ministério Público tem legitimidade para a ação penal.

Inexistem exceções, nulidades ou questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação de mérito da ação penal, de que cumpra conhecer.

*

Defensor do Arguido: Dra. BB (cfr. fls. 329).

*

Recebo a acusação pública, deduzida a fls. 304 307, contra o arguido AA, aí melhor identificado, pelos factos e segundo a qualificação jurídica dela constantes, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 311.º-A, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal (redação conferida pela Lei n.º 94/2021, de 21.12).

Não assumindo o ofendido CC a qualidade processual de assistente, não tem, o mesmo, legitimidade para deduzir acusação por adesão à acusação pública deduzida pelo Ministério Público, nos termos previstos no artigo 84.º do Código de Processo Penal.

Assim, não se admite o requerimento de adesão à acusação pública deduzida pelo Ministério Público apresentado pelo ofendido CC e constante de fls. 338.

*

Notifique, sendo o arguido e o seu defensor nos termos e para os efeitos dos artigos 311.º-A, n.º 1 e 3, e 311.º-B (redação conferida pela Lei n.º 94/2021, de 21.12), juntando cópia da acusação pública deduzida.

*

O arguido aguardará os ulteriores termos processuais sujeito às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, já prestado (fls. 168), uma vez que não se mostra necessária, por ora, nem foi requerida, a aplicação de qualquer outra medida de coação (cfr. artigos 196.º e 204.º do Código de Processo Penal).

*

Admito o Pedido de Indemnização Civil formulado pelo ofendido CC, a fls. 341 e seguintes, contra o arguido, DD e Companhia de Seguros EE, S.A.

*

Notifique, sendo os demandados para contestar, querendo, o aludido pedido e apresentar o respetivo requerimento de prova, com as advertências constantes dos artigos 78.º, n.º 3 e 79.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

*

(…)”.

3. Foi designado para a audiência de julgamento o dia 17 de abril de 2023 e, nessa data, uma vez aberta a audiência e antes de se dar início à produção da prova arrolada, a Senhora Juíza de Direito proferiu o seguinte despacho:

“Da acusação proferida nos presentes autos, resulta que o arguido, AA, se encontra acusado da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º, n.º 1 e pela sanção acessória de proibição de condução de veículos com motor, previsto no artigo 69.º n.º 1 alínea b) ambos do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º nº 1 e pela sanção acessória de proibição de condução de veículos com motor, previsto no artigo 69.º n.º 1 alínea b), ambos do Código Penal.

Todavia, da análise dos factos constantes da acusação pública resulta, em abstrato, a eventual prática, pelo arguido, para além dos dois crimes de que vem acusado, também de um crime de condução perigosa de meio de transporte por ar, água ou caminho de ferro, previsto e punido pelo artigo 289.º n.ºs 1 e 3, do Código Penal, com uma pena de multa ou de prisão até 3 anos.

Uma vez que a eventual prática de tal crime não se mostra imputada ao arguido na acusação pública, apesar de a factualidade que daí resulta implicar, em abstrato, a prática, pelo arguido, em concurso efetivo, também, desse tipo legal de crime, tal implica uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, a qual deve ser comunicada ao arguido, nos termos e para os efeitos previstos no disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.

Desse modo, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358.º n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, comunica-se ao arguido a mencionada alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação pública.”

4. Na sequência da comunicação da alteração da qualificação jurídica operada pelo antecedente despacho e nada tendo requerido quer o Ministério Público, quer a defesa do arguido, foi de imediato proferido o seguinte despacho, igualmente constante da ata de audiência de julgamento do dia 17 de abril de 2023:

“Tendo sido comunicada a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação pública, decorrendo da mesma a imputação ao arguido da eventual prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de homicídio por negligência, de um crime de ofensa à integridade física negligente e de um crime de condução perigosa de meio de transporte por ar, água ou caminho de ferro, verifica-se que a pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos.

Não tendo o Ministério Público, na acusação pública deduzida, usado a faculdade conferida pelo artigo 16.º n.º 3, do Código de Processo Penal, é manifesto que o Tribunal Singular é materialmente incompetente, uma vez que tal competência pertence ao Tribunal Coletivo, em conformidade com o disposto no artigo 14.º n.º 2 al. b), do Código de Processo Penal e no artigo 134.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (L.O.S.J.).

A incompetência do Tribunal é, por este, conhecida e declarada oficiosamente até ao trânsito em julgado da decisão final, nos termos do disposto no artigo 32.º n.º 1, do Código de Processo Penal, e determina a remessa dos autos ao Tribunal competente, (cfr. artigo 33.º n.º 1, do Código de Processo Penal), no caso, o Tribunal Coletivo.

Pelo exposto, declara-se este Juízo Local Criminal materialmente incompetente para proceder à realização do julgamento nestes autos, uma vez que tal competência cabe ao Juízo Central Criminal de ….

Assim, notifica-se o presente despacho aos presentes e desconvoca-se a realização do julgamento nestes autos.

D. n.

Oportunamente, remeta o presente processo à distribuição, no Juízo Central Criminal de ….”

5. Remetidos os autos, foram distribuídos ao Juiz … do Juízo Central Criminal de …, tendo o Ministério Público junto desse Tribunal interposto recurso dos despachos proferidos naquele dia 17 de abril de 2023, peticionando que os mesmos sejam revogados e se ordene o reenvio do processo para o J… do Juízo Local Criminal de …, para reinício da audiência de discussão e julgamento para produção de prova, em obediência à jurisprudência fixada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 11/2013, de 12 de junho de 2013, publicado no Diário da República, Série I, nº 138, de 19.07.2013.

Extraiu o Ministério Público da respetiva motivação as seguintes conclusões:

“1ª Os despachos proferidos pela M.ª Juiz a quo do J… do Juízo Local Criminal de … em 17 de Abril de 2022, em momento prévio à discussão da causa, contrariam jurisprudência uniformizada (art.º 446º do Código de Processo Penal), designadamente o Acórdão de Uniformização do Supremo Tribunal de Justiça nº 11/2013, de 12 de Junho de 2013, publicado no Diário da República, Série I, nº 138, de 19/07/2013, que fixou a seguinte jurisprudência: «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.os 1 e 3 do CPP».

2ª Tal jurisprudência fundamenta-se na adequada e necessária interpretação sistemática desse preceito legal, na medida em que resulta da conjugação do seu nº 1 e 3 que a alteração da qualificação jurídica apenas poderá ocorrer após a discussão da causa, tal como acontece com a alteração não substancial dos factos.

3ª Aliás, tal interpretação sistemática é corroborada pelo nº 4 do art.º 339º do Código de Processo Penal, em que reserva para a audiência de discussão e julgamento a discussão de todas as soluções jurídicas relevantes, independentemente da qualificação jurídica dos factos narrados na acusação ou na pronúncia.

4ª Por seu turno, essa interpretação sistemática é reforçada pelo nº 1 do art.º 338º do Código de Processo Penal, na medida em que limita a competência do Juiz em sede de atos introdutórios ao conhecimento de questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa, acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar.

5ª Ora, a alteração da qualificação jurídica dos factos narrados no libelo acusatório não consubstancia uma mera questão prévia ou incidental, sendo também certo que a apreciação da qualificação jurídica, nessa fase, já teria sido submetida a decisão por altura do recebimento da acusação (art. 311º do Código de Processo Penal), cuja decisão é irrecorrível (cf. nº 4 do art.º 313º do Código de Processo Penal).

6ª Acresce que a instrumentalização do art.º 358º do Código de Processo Penal efetuada pelo Tribunal a quo, em momento prévio à discussão da causa, viola o princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado no nº 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, designadamente o seu corolário da vinculação temática ao objeto processual desenhado na acusação deduzida pelo Ministério Público.

7ª Por conseguinte, os despachos proferidos pelo Tribunal a quo em 17 de Abril de 2023 ora em crise violam, flagrantemente, o princípio do acusatório constitucionalmente consagrado no nº 5 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa, bem como os comandos consagrados nos artigos 358º, nº 1 e 3, 338º, 339º, nº 4, 311º e 313º do Código de Processo Penal.

8ª Deste modo, deverão esses mesmos despachos serem revogados, em obediência ao aludido Acórdão de Uniformização do Supremo Tribunal de Justiça nº 11/2013, de 12 de Junho de 2013, publicado no Diário da República, Série I, nº 138, de 19/07/2013,

9ª Aliás, tal consequência resulta da circunstância de o Tribunal a quo não ter esgrimido na fundamentação dos despachos ora em crise quaisquer dos pressupostos passíveis de revisão da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (cf. nº 3 do art.º 446º e nº 2 do art.º 447º do Código de Processo Penal, designadamente: a) mediante desenvolvimento de um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, suscetível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; b) mediante alusão a uma evolução doutrinal e jurisprudencial suscetível de alterar significativamente o peso relativo dos argumentos até então utilizados; c) mediante a invocação da alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça que torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente a posição fixada.”.

6. Admitido o recurso e notificados os sujeitos processuais afetados pelo mesmo, não veio a ser apresentada qualquer resposta.

7. Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, tendo vista dos autos, elaborou parecer em que pugna pela procedência do recurso, dando por reproduzidas as considerações vertidas na motivação apresentada pelo Ministério Público junto da primeira instância.

8. No dia 6 de fevereiro de 2024, na sequência de despacho da Veneranda Desembargadora Presidente deste Tribunal da Relação de Évora, fundado em deliberação do Conselho Superior da Magistratura, os presentes autos foram redistribuídos.

9. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

II – QUESTÕES A DECIDIR.

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com as decisões impugnadas, a questão a examinar e decidir prende-se com a possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos tal como foi operada, designadamente em face da jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização do Supremo Tribunal de Justiça nº 11/2013, de 12 de junho de 2013, publicado no Diário da República, Série I, nº 138, de 19/07/2013.

*

III - FUNDAMENTAÇÃO.

Enfrentemos, então, a questão, sendo que para a apreciação da mesma relevam apenas as circunstâncias que supra se verteram no relatório. A questão fundamental que no caso haverá que apreciar é a da discussão da possibilidade de, no concreto momento processual (já após o despacho de recebimento da acusação, em plena audiência de julgamento, mas antes de sequer se ter iniciado a produção da prova), a Senhora Juíza do J… do juízo Local Criminal de …, suscitar a questão da alteração de qualificação jurídica em que, posteriormente, sustentou a sua declaração de incompetência.

A questão foi já muito debatida.

A última decisão publicada sobre o assunto será, porventura, a decisão do Senhor Desembargador Presidente da 5ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa que, em 29 de janeiro de 2024, apreciou um conflito negativo de competência, que emergiu entre um Juízo Local Criminal e um Juízo Central Criminal, após ter sido proferida decisão a comunicar alteração da qualificação jurídica em circunstâncias semelhantes às verificadas no nosso caso (1).

Pela clareza da exposição e absoluta suficiência dos argumentos apresentados, é incontornável a leitura dessa decisão, onde se verteu:

«Como é sabido, este é um domínio em que se não se verifica uma unicidade total de entendimentos ao nível Doutrinal e Jurisprudencial.

Desde logo, por referência ao momento do despacho de saneamento previsto no art.º 311.º - em qualquer caso, aqui já ultrapassado -, o Prof. Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal (Universidade Católica Editora, 3.ª Ed., pág.ªs 796/7), não deixa de categoricamente afastar tal possibilidade, que estende a “qualquer momento entre aquele e a audiência de julgamento”, pois que, “a solução da imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento judicial dos autos é a única consentânea com a proibição da sindicância do uso pelo Ministério Público da faculdade do art.º 16.º, n.º3”, que no seu entendimento, poderia ser defraudada pelo tribunal.

“Com efeito, se o juiz singular pudesse no despacho de recebimento e saneamento dos autos sindicar a qualificação jurídica feita na acusação do MP, ele poderia desse modo subverter o juízo do MP de determinação concreta da competência do tribunal singular, qualificando os factos mais gravemente e, em consequência, determinar a competência do tribunal colectivo. Por isso, o legislador consagrou a regra da irrecorribilidade do despacho de recebimento da acusação/pronúncia e designação de data para audiência (artigo 313.º, n.º 4). Por isso também, o legislador reservou explicitamente para a audiência de julgamento a discussão sobre as várias soluções de direito aplicáveis ao caso, “independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação e da pronúncia” (art.º 339.º, n.º 4). Em síntese, o legislador quis que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia, fosse discutida na audiência de julgamento e só nesse momento (…) podendo então os sujeitos processuais proceder a essa discussão jurídica sem quaisquer restrições ou vinculações à qualificação feita em momento anterior”.

Posição que não deixa de encontrar respaldo no mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, publicado no DR I.ª Série, de 19/07/2013, que fixou como Doutrina, que: «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP».

Já para o Comentário Judiciário do Código de Processo Penal (Almedina, Tomo IV, pág.ªs 43/4), haveria que distinguir as situações em que essa qualificação jurídica é pressuposto de decisão de saneamento, seja por via de uma nulidade a conhecer (v.g. incompetência do tribunal) seja por questão prévia que obste ao julgamento do mérito da causa (v.g. prescrição, amnistia), daquelas outras em que tal condicionalismo não se verifica.

No primeiro caso, o juiz “pode (e deve) qualificá-los diferentemente da acusação ou pronúncia, de acordo com o seu entendimento”. Já no segundo, não lhe caberia fazer essa alteração, “pois o legislador não lhe atribui o poder/dever de qualificar juridicamente os factos da acusação no despacho de saneamento”.

Sendo que esta última solução merece o aplauso expresso do respetivo Autor, não só porque a qualificação jurídica dos factos é da responsabilidade da entidade acusadora (MP ou assistente), “pelo que se o juiz nada tiver a decidir com base em diferente qualificação jurídica, deve o processo prosseguir para audiência de julgamento com a qualificação jurídica da acusação, sem prejuízo do disposto nos art.ºs 339.º/4 e 358.º/3 (…), como também, a mera qualificação antecipada dos factos no despacho de saneamento poderia constituir factor multiplicador de incertezas no caso de ser outro o tribunal (singular ou coletivo a realizar a audiência de julgamento.”

II – 3.) As considerações acima expostas assumem um valor sobretudo metodológico.

Como já dissemos, na situação que temos presente, aquele momento de saneamento previsto no art.º 311.º do Cód. Proc. Penal, já havia sido ultrapassado, sem que se tivesse, a esse propósito, operado qualquer reparo: “Recebo a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra AA, pelos factos e com a qualificação jurídica constante da acusação, que se dá por reproduzida (...)”.

No entretanto, interpôs-se também uma alteração das datas designadas para julgamento.

O motivo pelo qual as trazemos à colação, é que não se ignora que no contexto indicado, alguma Doutrina e Jurisprudência, que temos por minoritária, não deixou de apontar algumas objeções que no fundo se entroncam com a posição assumida pela Mm.ª Juíza do Tribunal da Lourinhã.

Assim, por exemplo, o Doutor Nuno Brandão, num artigo publicado na Católica Law Revue, apoiando a posição assumida pelo acórdão da Rel. de Guimarães de 14/09/2020, 715/19.0PCBRG.G1 (mas no mesmo sentido, cfr. acórdão da Rel. do Porto de 20/11/2013, no processo n.º 438/12.0SLPRT.P1), de admitir a alteração da qualificação jurídica dos factos aquando do saneamento do processo na fase do art.º 311.º do CPP, não deixou de ilustrar a bondade dessa solução “que poderia servir várias ordens de interesses, todos eles juridicamente reconhecidos”, designadamente, por motivos relacionados com a definição da competência.

Com efeito, “essa função saneadora marcará a requalificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia quando ela seja imprescindível, por exemplo, para assegurar que a causa é julgada pelo tribunal competente, para evitar o avanço de um procedimento que seja legalmente inadmissível (por prescrição do procedimento, caso julgado, ilegitimidade do Ministério Público, etc.) ou para aferir a legalidade de provas cuja admissibilidade esteja dependente da natureza do crime imputado ou da gravidade da pena aplicável. Neste tipo de situações, uma pronta requalificação jurídica dos factos poderá impedir que o processo avance para a realização de atos processuais que mais tarde serão inevitavelmente qualificados como inválidos, assim se prevenindo a prática de atos que terão tanto de ilegais como de inúteis. Com isso, será salvaguardado o princípio da economia processual e favorecer-se-á a celeridade processual.”

Mas também no já referido Acórdão do Supremo Tribunal n.º 11/2013, contra a Doutrina que fez vencimento - a de que a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova - o Exm.º Sr. Conselheiro Manuel Braz havia feito anotar na sua declaração de voto, que: “num tal caso, o juiz do tribunal singular, apercebendo-se do erro no início da audiência, deve, ao abrigo do artigo 338.º, declarar a incompetência material do tribunal, em função da correcta qualificação jurídica dos factos, remetendo o processo para o tribunal colectivo. Prosseguir com a audiência, para, no final, se declarar o tribunal incompetente, não acautelaria qualquer valor do processo penal e violaria os princípios da economia e da celeridade processual, com a prática de actos inúteis e o arrastamento do processo na sede errada.”

Seja como for, no caso, ultrapassou-se aquela fase do saneamento do processo sem que tivesse sido aposta qualquer objeção à qualificação jurídica constante da acusação. A posição sustentada pelo Doutor Nuno Brandão traduz um entendimento minoritário e a posição do Exm.º Senhor Conselheiro Manuel Braz está derrogada pelo sentido da própria Doutrina fixada.

Donde, ainda que não sejam totalmente desvaliosas as razões mencionadas pela Exm.ª Magistrada do Juízo de Competência Genérica da Lourinhã no seu despacho de requalificação jurídica, a verdade é que numa perspetiva legal, à luz da Doutrina dominante e Jurisprudência fixada, não o poderia ter feito na fase ou momento em que o fez».

Tudo isto é aplicável no caso dos autos.

Como supra se referiu no relatório, ao proferir o despacho de recebimento da acusação, a Meritíssima Juíza que o subscreveu não levantou qualquer objeção à qualificação jurídica constante da acusação – nesse despacho escreveu-se “Recebo a acusação pública, deduzida a fls. 304 307, contra o arguido AA, aí melhor identificado, pelos factos e segundo a qualificação jurídica dela constantes, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 311.º-A, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal (redação conferida pela Lei n.º 94/2021, de 21.12). (destacado nosso).

Ao avançar para a alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação, a Mma. Juíza a quo não curou de indicar qualquer razão ou fundamento para divergir da jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, publicado no DR I.ª Série, de 19/07/2013.

Acrescentamos, ainda, que não explicitou cabalmente as razões que a levaram a considerar vertida na acusação factualidade suficiente para se poder imputar ao arguido um comportamento a título de negligência grosseira (sendo que o crime previsto no artigo 289º, nrs. 1 e 3, é cometido por violação grosseira das regras de condução cometida por negligência). Deverá notar-se que quanto ao crime de homicídio negligente imputado - o do nº 1 do artigo 137º do Código Penal – o Ministério Público não concluiu pela imputação de negligência grosseira, sendo certo que, quanto a esse crime não considerou a Mma. Juíza dever comunicar alteração da qualificação jurídica dos factos, para que ao arguido passasse a estar imputado um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo artigo 137º, nº 2, do Código Penal).

A aridez da fundamentação do despacho que afasta a aplicação da jurisprudência fixada não merece acolhimento.

O Código de Processo Penal, no Capítulo II - «Da fixação de jurisprudência» - do Título II - «Dos recursos extraordinários», do Livro IX - «Dos recursos» -, estabelece um conjunto de normas sobre a finalidade, objeto, fundamentos e eficácia da fixação de jurisprudência (artigos 437.º a 448.º).

A finalidade específica do recurso de fixação de jurisprudência é evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores.

O objeto do recurso para uniformização de jurisprudência é uma decisão de última instância, quando no domínio da mesma legislação, o STJ proferir dois acórdãos relativamente à mesma questão de direito, com soluções opostas ou de um acórdão do Tribunal da Relação quando dele não seja já admitido recurso ordinário e esteja em oposição com outro acórdão da mesma ou de diferente Relação, ou do STJ, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência anteriormente fixada pelo STJ (art.437.º do C.P.P.).

Os fundamentos do recurso de jurisprudência são a existência de um conflito de jurisprudência entre dois acórdãos (o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento) e a afirmação da ilegalidade da decisão recorrida.

A decisão sobre o recurso de fixação da jurisprudência é tomada em conferência, pelo pleno das secções criminais (art.443.º do C.P.P.), com publicação do acórdão de fixação da jurisprudência na I Série do Diário da República (art.444.º, n.º1 do C.P.P.).

Se de acordo com o art.445.º, n.º1, do Código de Processo Penal, a decisão tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto e nos processos cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos do art.441.º, n.º 2, sem prejuízo da reformatio in pejus, já de acordo com o seu n.º 3 «A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão».

Quebrada a força vinculativa do acórdão de fixação da jurisprudência pelo n.º 3 deste art.445.º, prima facie, poderia entender-se que basta uma qualquer fundamentação divergente sobre a jurisprudência fixada pelo acórdão uniformizador, para se afastar a sua observância.

Mas não é assim, como deixam antever os artigos 446.º e 447.º do Código de Processo Penal, que estabelecem, respetiva e designadamente, com interesse para a presente questão:

Artigo 446.º:

«1- É admissível recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo.

2- O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

3- O Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada.».

Artigo 447.º:

«1- O Procurador-Geral da República pode determinar que seja interposto recurso para fixação da jurisprudência de decisão transitada em julgado há mais de 30 dias.

2- Sempre que tiver razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada, o Procurador-Geral da República pode interpor recurso do acórdão que firmou essa jurisprudência no sentido do seu reexame. Nas alegações o Procurador-Geral da República indica logo as razões e o sentido em que jurisprudência anteriormente fixada deve ser modificada.

3 - (…)».

Como esclarece, entre outros, o acórdão do STJ de 5-11-2009 (proferido no Processo n.º418/07.8PSBCL-A.S1, e acessível em: www.dgsi.pt.), “ A lei indica com suficiente clareza, assim, que os Acórdãos para fixação de jurisprudência têm um peso próprio, que lhes é dado pelo facto de provirem do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça. Há, pois, que lhes conceder o benefício, para não dizer a presunção, de que foram lavrados após ponderação exaustiva, face à legislação, à doutrina e à jurisprudência existentes sobre o assunto.

Deste modo, embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, já que o STJ não “faz lei”, parece estultice tomar outro caminho que não o acolhido no Pleno do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada.».

Também o Conselheiro Maia Gonçalves, entende que o segundo período do n.º 3 do art.445.º do C.P.P., ao conter uma particular chamada de atenção para o dever de fundamentar as divergências relativamente à jurisprudência que se encontra fixada, impõe “… que os argumentos invocados para o efeito, além de ponderosos, sejam novos, no sentido de não terem sido considerados no acórdão uniformizador, e suscetíveis de criar algum desequilíbrio na avaliação do peso de argumentos a favor do reexame e alteração da doutrina fixada no acórdão uniformizador.” (2).

Ainda no mesmo sentido, e seguindo o acórdão do STJ de 13 -11-2003 (in SASTJ, n.º 75, 100), refere o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, que “Os tribunais só devem divergir da jurisprudência uniformizada quando haja razões para crer que ela está ultrapassada, isto é, quando a) o tribunal tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; b) se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou finalmente c) a alteração da composição do STJ torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixou de partilhar fundadamente da posição fixada.” (3)

Em suma, como tem enfatizado o STJ, o tribunal judicial divergente não pode limitar-se ao desacato da jurisprudência uniformizada baseado tão-somente na convicção de que aquela não é a melhor solução legal.

Aqui chegados, impõe-se concluir pela necessidade de julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, devendo revogar-se os despachos recorridos e ordenar-se os procedimentos necessários a que o processo regresse ao J… do Juízo Local Criminal de …, para reinício da audiência de discussão e julgamento para produção de prova, em obediência à jurisprudência fixada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 11/2013, de 12 de junho de 2013, publicado no Diário da República, Série I, nº 138, de 19.07.2013.

*

IV – DECISÃO:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em revogar os despachos recorridos, ordenando-se o regresso dos autos à primeira instância para que, após baixa no Juízo Central Criminal de …, o processo seja remetido ao J… do Juízo Local Criminal de …, para reinício da audiência de discussão e julgamento para produção de prova, em obediência à jurisprudência fixada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 11/2013, de 12 de junho de 2013, publicado no Diário da República, Série I, nº 138, de 19.07.2013.

Sem custas.

D.N.

*

O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 20 de fevereiro de 2024

Jorge Antunes (Relator)

J. F. Moreira das Neves (1º Adjunto)

Laura Goulart Maurício (2ª Adjunta)

............................................................................................................

1 Cfr. Decisão do Sr. Presidente da 5ª Secção do TRL, Desembargador Luís Gominho, datada de 29.01.2024 e acessível em: https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/cc0c473b89a5521380258aba00414104?OpenDocument

2 Cfr. Código de Processo Penal anotado, Almedina, 17.ª edição, pág.s 1045 e 1046.

3 Cfr. "Comentário do Código de Processo Penal", UCE, edição de 2007, pág.s 1202 e 1203